Ter uma opinião e, mais do que isso, manifestar uma opinião pode ser considerado um costume contemporâneo e mesmo um direito a ser defendido nos dias que correm. Pesquisas cujos resultados orientam tomadas de decisões de amplas conseqüências estão escoradas em opiniões. Um percentual de 70% por cento a seu favor atesta a correção ou a oportunidade de A frente aos escassos 30% obtidos por B. O exercício da opinião parece indissociável da democracia: todos se manifestam a todo o tempo. Não ter uma opinião é sinal de menoridade ou de submissão inaceitável a uma autoridade. E mesmo no terreno mais estritamente pessoal, no domínio dos sentimentos o cenário é parecido: o que sentimos é, pelo fato de o sentirmos, é inquestionável. “O que você acha?”, mais do que uma pergunta, é entendido como um poderoso instrumento de aferição da realidade.
Será mesmo? Não é hora de percebermos que a riqueza da vida ultrapassa de muito a ansiedade de opinar ou a pressão do primeiro sentimento? A opinião que quase sempre evita a controvérsia e dispensa o argumento não é mais um sinal desta curiosa infantilização que parece não ter fim em torno de nós? A opinião que se irrita quando contestada, o sentimento que não admite a réplica, não reiteram o mesmo protesto da primeira infância diante da hostilidade inicial do mundo? E, coisa curiosa, a opinião que, dizem, é uma reafirmação dos direitos do indivíduo, não é, no final das contas, o lugar privilegiado da conformidade social?
Para pensar na quinzena:
“A gente deveria ser sempre um pouco improvável” ( Oscar Wilde)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.07.2012
Ideias ou a preocupação com ideias costumam não ter boa reputação entre nós. Celebramos os homens práticos, insistimos que “na prática a teoria é outra”, transferimos os que pensam para o mundo da lua e, colados no dia a dia, classificamos como utopia qualquer consideração que não vá na direção costumeira. Mas é preciso mesmo que seja assim? Não custa lembrar que para nós, os humanos, passar sem ideias é uma destas intenções das quais o inferno está cheio. Somos animais simbólicos, o que quer dizer que vivemos no horizonte das ideias: o que comemos, como amamos, o modo como trabalhamos, a maneira como organizamos o nosso lazer, nossas relações familiares, enfim, nossas vidas são o que são pelas ideias a que, sabendo ou não aderimos.
Pertencer a uma sociedade humana é compartilhar ideias. Ideias, literalmente, nos humanizam. Desprovidos da imediateidade dos instintos, despossuídos das respostas com que contam as demais espécies, ideias representam o esforço com que procuramos dar conta do vazio e do desamparo que, sem cessar, nos interrogam. Cultura é o nome deste esforço e não há qualquer sociedade que tenha prescindido, ou possa prescindir, desta tarefa. Portanto, não se trata de escolher entre uma vida à luz de ideias ou uma vida, vamos chamar assim, prática. Pelo contrário, a escolha é outra: entre as várias ideias, ou melhor, entre as várias vidas possíveis, a que vida, a que tipo de vida iremos dar nossa adesão?
Para pensar na quinzena:
“Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência.” (Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.07.2012
Retomo a conversa da coluninha anterior, a que versava sobre a experiência humana da cidade. Nela, era simples o que se defendia: somos feitos para a proximidade, na variedade de suas formas. E possibilitar isto é esta a virtude maior das cidades. Mas nossas cidades, de uma forma geral, cumprem, hoje, apenas parte desta função. Por motivos que vão da desigualdade social ao gigantismo das metrópoles, da troca da convivência das ruas pela solidão das casas, da devoção à TV à sensação generalizada de insegurança, nossa existência se passa, na quase totalidade do tempo, em espaços privados. Desconhecemos os diferentes de nós, receamos, parodiando o verso de Caetano Veloso, o que não é espelho. Isto quando não descambamos para o ódio. Estamos, e aqui eu exagero um pouco, revertendo o movimento que deu origem às cidades medievais e voltando aos novos feudos, que dos antigos repetem, sobretudo, o que havia ali de limitação. Saímos pouco de nossas casas de nossos prédios, de nossos bairros, de nossos condomínios e por aí afora. Há uma privacidade que é mera privação, desistência que estiola e avilta o horizonte das possibilidades humanas.
Cabe esperar alguma mudança neste cenário? Certamente, não suportaremos isto por muito tempo mais, não somos capazes de permanecer para sempre tão reticentes e defensivos. Aqui e ali, movimentos variados começam a apontar para a necessidade da reconstrução de espaços públicos que, podendo ser de todos, não pertencem a ninguém em particular. Ainda não sabemos bem porque fomos para tão longe uns dos outros e nem será simples reverter a situação, mas, como temos pouco a perder, é hora de lembrar, uma vez mais, que a diversidade, quando aproxima, humaniza e, quando distancia, leva à indiferença.
Para pensar na quinzena:
“Sou homem: não julgo alheio a mim nada do que é humano” (Terêncio, 195/185 – 159 a.C)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.06.2012
Pode alguém desconhecer o que é uma cidade? Não vivemos desde muito tempo em cidades, portanto não sabemos já o que é uma cidade? Pode ser, mas mal não fará olhar mais de perto. Cidades são, antes de mais nada, lugares de encontro, da convivência variada e da proximidade com a diferença. Basta a existência lado a lado de muitas pessoas para que se multipliquem experiências, brotem novidades e apareçam oportunidades. Foi para isto que, um dia, saímos do campo e do que, nele, parecia insuficiência e limite. Outra coisa não defende Aristóteles: nós, os humanos, somos animais políticos. Calma, políticos, no caso, quer dizer animais que vivem na polis, na cidade. Não somos deuses ou animais, ou seja, não estamos prontos, somos uma obra meramente iniciada, cujo acabamento dependerá da abertura que formos capazes de manter diante dos outros, o que a cidade, mais do que tudo, possibilita. Recusando a cidade, recusando a presença dos outros, é a nós mesmos que estaremos privando do essencial. Então é isso: esculpimos uns aos outros, somos os nossos melhores educadores. Resta ver, primeiro, se Aristóteles está mesmo certo no que diz e, em seguida, se é assim que as cidades dos nossos dias estão sendo habitadas por nós. Não custa, daqui a quinze dias, continuar esta conversa.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nasceram um para os outros; educa-os e padece-os” (Marco Aurélio)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.06.2012
Abra uma dessas revistas de "famosos", como se diz, ou veja uma coluna social (isto ainda existe) de um jornal qualquer. Certamente, as pessoas estarão sorrindo, não importa a situação. A proximidade de um fotógrafo gera sorrisos aos montes. Talvez seja assim mesmo, as pessoas andam felizes e, por via de consequência, sorridentes. Será? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Penso, mas não afirmo sem mais, que estamos diante de um fenômeno da nossa época: ninguém quer parecer triste, sisudo ou preocupado. Essas imagens não vendem, desagradam, afastam. Não importa se, de fato, estamos tristes, se preferimos um pouco de solidão ou se precisamos tomar decisões que nos levam a franzir a testa (cuidado com as rugas!). Assim como uma mercadoria deve vir bem embalada, é melhor que saibamos cuidar de nossa estampa, mesmo porque as relações quase sempre param por aí mesmo, na superfície. O sorriso é um aviso, indica que seu portador é daqueles que não estão dispostos a qualquer discussão, que concordam com tudo e que, se a coisa aperta, dizem que não têm nada contra, que cada um deve levar a vida como achar melhor. Contrariamente ao que se recomendava à mulher de César, o imperador, não se precisa ser alegre, basta parecer.
Protegendo-se da dor, disfarçando o desejo, passando ao largo da própria alma, acabam como vítimas. Forçadas ao sorriso automático, perdem a chance da alegria efetiva, a que brota da coragem de ser o que somos. Alma ou desejo, é disto que vivemos, é disto que devemos cuidar ou então nos tornaremos, de fato, o que estamos tentando ser: sonâmbulos sorridentes e monstruosamente tristes.
Para pensar na quinzena:
“Não por orgulho meu, mas antes me faltar o raso da paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam.” (Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
15.05.2012
Seguramente, uma das passagens filosóficas mais conhecidas é a Alegoria da Caverna de Platão. Tal texto se encontra em seu não menos famoso A República. Nesta passagem, a coisa se dá mais ou menos da seguinte forma: havia um grupo de homens que foram criados no interior de uma caverna, acorrentados de costas para a entrada, de modo que tudo o que conseguiam ver do mundo exterior eram as sombras, refletidas no fundo da caverna, das pessoas e dos objetos que passavam em sua entrada. Certo dia, alguém entra nessa caverna, liberta um dos prisioneiros que lá se encontrava, e o força a sair. Após relutar muito e não conseguir se opor à pessoa que o arrastava de lá, o prisioneiro finalmente chega ao lado de fora. No começo, tem grande dificuldade de conseguir enxergar as coisas. Por fim, seus olhos se acostumam à claridade, e ele passa a ver as coisas como elas são. Nisso, ele se dá conta de que o mundo real, verdadeiro, era o que estava fora da caverna, que lhe era, até então, desconhecido e contra cujo conhecimento lutara o tanto quanto pôde. Na visão de mundo de Platão, tal coisa, o conhecimento da verdade, significaria automaticamente a virtude (no campo do agir ético) e a plena realização possível da existência humana.
O dado do sentido da vida não era propriamente uma questão para os gregos. O foco, na Alegoria de Platão, é sobretudo o conhecimento da verdade em si, da ordem subjacente às coisas, da sua essência. Do modo como temos hoje, a busca pelo sentido da vida, que se processa em uma vertente muito mais individual, já que é o sujeito sozinho que busca o sentido para a sua própria existência (ainda que esse sentido possa também ser partilhado, em algum nível, com outras pessoas), é uma invenção recente: no ocidente europeizado, desponta mais fortemente na segunda metade do século XIX.
Se pudéssemos usar uma imagem, pegando emprestado o exemplo da Alegoria, é como se, posto para fora da caverna, o ser humano tivesse sucumbido da contemplação da verdade, do bem e do belo, em Platão, para o desabrigo e o desalento, em nosso tempo. Não foi a essência das coisas aquilo a que acabamos chegando, mas ao aparente vazio de sentido da existência. A impressão que se pode ter é que, para além da caverna que nos protege, mas que, como preço para isso, mantém-nos infantilizados, vedando-nos o acesso à realidade, o que nos resta é o descampado vazio, estéril, infeliz. Usando uma imagem judaico-cristã, parece, muitas vezes, que estamos diante de dois extremos irreconciliáveis: o Éden da plenitude, do sentido, da vida – do qual fomos expulsos (e que talvez também por isso, por ser lugar interditado à nossa presença, afigura-se-nos tão atraente e vivificante) – e o mundo da contingência, do trabalho, da caminhada ao qual fomos lançados, mas que, na concepção de muitos, emerge como um desterro, o lugar da provação e da purificação, espaço da não-vida, antessala expiadora da redenção, lugar da culpa por alguma razão desde sempre merecida e que deve ser purgada, posto que se a felicidade é para alguma criatura, definitivamente não deveria ser para seres precários e imperfeitos como nós.
Não deixa de ser curioso que, ao dar um passo efetivamente difícil, o de abandonar um útero de seguranças e sentidos, o ser humano se ressente da possibilidade de crescer e amadurecer, praguejando contra sua situação de desalento, sonhando com as cebolas do Egito. Nisso, acabamos por nos comportar como aquela criança birrenta, que, ao ser contrariada em algum de seus caprichos, passa a empenhar-se em fazer-se infeliz e aos demais à sua volta, não querendo tolerar o bem possível, enraivecida que está com a interdição ao bem absoluto que desejava.
O fato de sermos expulsos do útero divino (se pudéssemos ler dessa forma a simbologia do Éden), do mesmo modo como o fomos do materno, talvez não seja punição, mas condição de possibilidade para que possamos existir enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Contudo, diante do frio e da necessidade imperiosa de passarmos a existir a partir do exercício, consciente ou não, de nossa liberdade, muitas vezes nos portamos como a tal criança birrenta.
A opção ao sentido absoluto, à verdade última não precisa ser necessariamente o niilismo, o não-sentido. Na verdade, nunca é, por mais que tentemos acreditar no contrário. Não é que optemos por algum sentido para a vida; existir, de um modo ou de outro, cria necessariamente um, pressupõe, ainda que inconscientemente, um. Podemos, é bem verdade, dizer-nos que tal sentido não é bom, que deveria haver um melhor, etc. Podemos também, ao nos darmos conta de que algo como uma verdade última, como um novo grande útero seguro e imobilizador não existe, dizer que nenhum outro sentido existe.
No entanto, ao meu ver, ao fazermos isso, não é que estaríamos desvelando a face da realidade em si; realidade supostamente vazia de sentido. Estaríamos, talvez mais propriamente, reagindo à precariedade de qualquer significação e de qualquer realização possível, que são, inevitavelmente, parciais e limitadas no tempo. É essa a realidade mais dura no que concerne à questão do sentido e da realização de nossas vidas: jamais estaremos saciados, jamais chegaremos a um ponto a respeito do qual poderemos dizer “meu caro, você possui um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma e beba, alegre-se” (Lc 12, 19b). A condição humana de nossa existência tem, associada a si, o insuperável da nossa incompletude e do nosso desejo de sempre mais.
O trágico nisso tudo é que, tão aferrados a nos fazermos infelizes, ante a frustração de não termos o absoluto sonhado e desejado, não nos damos conta do belo que é a fome que nos impele a seguir sempre buscando mais vida. Algo como o trecho daquele belo refrão cristão: “(...) só nossa sede nos guia”. É porque o nosso corpo está vivo, que temos fome, e é porque queremos mantê-lo assim, que comemos. Por que será, entretanto, que ao lidarmos com a fome do espírito, fome de sentido e de realização, e sua insuperável não saciedade, não conseguimos suportar tal ordem de coisas, preferindo apequenar nossa existência, abstendo-nos de caminhar?
Ante o sonho da perfeição e a realidade da vida possível, acabamos muitas vezes por abortar esta, por não conseguirmos nos libertar da ilusão onírica. E porque padecemos a realização apenas contingente do desejado e o conhecimento apenas transitório de um sentido último, preferimos minar ainda mais as condições de possibilidade de nossa vida humana, negando-nos este sentido que já temos, mas que menosprezamos, no afincado exercício imaturo de nos fazermos infelizes.
Cristiano C. Cruz
01.05.2012
Como é sabido e, mais do que sabido, sentido, os tempos andam bicudos. Não se trata apenas da violência explícita de cada dia, mas também da violência invisível, a dos pequenos gestos e da indelicadeza generalizada, a violência excessiva, gratuita, que todos nós, sem perceber, cometemos. Diante desse quadro, o retorno da valorização da família enquanto refúgio material e psíquico é mais do que compreensível. Na família, tratamos e somos tratados com mais condescendência, nossas faltas são mais ignoradas, somos mais pacientes do que de hábito e nossa cotação é sempre superior a que encontramos cá fora.
Bem sei que não é sempre assim, mas, não importa, é essa a imagem responsável pelo lugar de honra ocupado pela família nas pesquisas sobre as instituições merecedoras de confiança em nossa sociedade. Mas para além da eventual incorreção desta imagem, vale a pena meditar sobre o papel do receio nesta corrida, mais do que compreensível, em direção à família. Talvez haja aí menos uma decisão esclarecida e mais uma capitulação. Entretanto, o preço cobrado pela proteção decorrente do medo costuma ser alto e só pode ser pago com a cessão da liberdade. E, destituídas de liberdade, nossas escolhas terão, sempre, um fôlego tão curto quanto contraditório.
Talvez seja melhor não cedermos tão facilmente ao receio e, ao invés de encurtar tão abruptamente o nosso espaço de convivência, devamos retomar a busca de ligações mais amplas, distanciadas da facilidade do contato familiar e capazes de favorecer a construção de relações diversificadas e humanamente mais generosas. Somos feitos para a convivência, para a vida enriquecida da polis, para aprender com os que diferem de nós. Restritos apenas ao que nos é familiar, estaríamos, afinal, privados de muito do que poderíamos ser. .
Para pensar na quinzena:
“Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra (Hannah Arendt)
Ricardo Fenati
30.03.2012
À primeira vista, a discórdia está hoje mais espalhada do que nunca. Vivemos em sociedades mais e mais complexas, o que traz como conseqüência inevitável a diversidade de comportamentos, a multiplicidade de pontos de vista e a afirmação generalizada dos direitos. Tudo isto, sem dúvida, é mais que louvável, já que garante a expressão de vozes às quais um silêncio penoso sempre foi imposto. Entretanto, se observarmos mais de perto, o espetáculo das diferenças, com freqüência, não vai muito longe, contenta-se apenas em garantir a satisfação das demandas próprias de cada grupo.
Curiosamente, esta proliferação das diferenças não dá lugar a quaisquer disputas de mais longo alcance e nem a posições que não se reduzam ao nosso interesse mais imediato. Permanecendo circunscritos ao nosso espaço privado ou do grupo a que pertencemos, perdemos a oportunidade de nos aproximarmos das questões que dizem respeito à humanidade como um todo, cujas respostas desenham as sociedades e indicam as balizas no interior das quais as civilizações se desenvolvem.
Trazidas à luz e cultivadas, estas grandes questões geram a discórdia proveitosa, na medida em que nos lançam no espaço público, em meio a combates nos quais está em jogo o que há de mais precioso na existência humana. Aqui a efetiva discórdia mostra todo o seu valor: discordamos não mais em nome do que nos singulariza enquanto indivíduo ou grupo, mas em nome do que, imaginamos, todos partilham. Os tempos atuais são difíceis: discordamos exaltadamente sobre a proibição das sacolas plásticas nos supermercados, mas guardamos um silêncio embrutecedor sobre o que torna feliz a existência humana. Optando pela discórdia que nos afasta, evitamos a discórdia que nos aproximaria.
Para pensar na quinzena:
“Ilhas perdem os homens” (Carlos Drummond de Andrade).
Ricardo Fenati
15.03.2012
Passado o carnaval, hesitamos entre dois sentimentos: a culpa pelos exageros cometidos e a recordação do prazer experimentado. Como, frequentemente, a culpa ganha do prazer, vou argumentar em sentido contrário. Carnaval é inversão da ordem. Por isto, senhores comumente engravatados vestem saias, mulheres sisudas gargalham, ricos ou pobres fingem ser o que não são no resto do ano, pululam príncipes e princesas revelando uma nobreza inexistente na república. E, sobretudo, o corpo alegra-se, liberto das correntes de sua identidade habitual.
E por que esta inversão, mais que desejada, é essencial? Porque nos lembra que nós, os humanos, enlouquecemos quando somos obrigados a confinar nossa amplidão nos limites de uma função qualquer. Somos professores, esposas, pedreiros, médicas, jornalistas, maridos, bancários, engenheiros, costureiras, cozinheiros, mães, pais e filhos durante o ano e isto é essencial para que a vida continue sendo possível. Mas ai de nós se insistirmos em esgotar nossa humanidade em quaisquer papéis, por mais reconfortantes que sejam. Adoeceríamos. Precisamos, de quando em vez, da brecha carnavalesca que insiste em nos avisar da vastidão sem nome que nos constitui. O carnaval, quem diria, pode nos salvar. O carnaval do calendário ou os pequenos carnavais que nossa sagacidade, de repente, inventa.
Para pensar na quinzena:
“ O homem ultrapassa infinitamente o homem” (Pascal)
Ricardo Fenati
01.03.2012
Por que Verso e Reverso? É simples: porque nem sempre estamos próximos do que, efetivamente, vivemos ou, para dizer com palavras mais antigas, as coisas, as externas ou as internas, nem sempre são o que parecem. Com a linguagem o que se passa é ainda desconcertante: quando trazidas para o mundo das palavras, não raro o que vivemos perde suas cores originais e, mais ainda, costuma ser, voluntária ou involuntariamente, ocultado e quando reaparece o faz sob um disfarce quase irreconhecível. Então é isso: o Verso podendo ser enganoso, por que não nos voltarmos para o Reverso? Por que não, à maneira dos garimpeiros, confiar que o ouro que não aparece à vista está lá, à espera de nossa disposição para cavar?
A inteligência, como quase tudo o que se refere a nós, os humanos, é um exercício, se atrofia com o desuso e cresce com a prática. Conformar-se com o já pensado, contentar-se com o já dito, confere segurança, o que não é mau, mas empobrece nossas vidas, o que não é bom.
A cada quinze dias, juntos, eu e você, improvável leitor(a), teremos a oportunidade, bem acompanhados de terceiros e do que eles disseram, de examinar o Reverso para ver melhor.
Para pensar:
“Quando os deuses querem nos punir, atendem nossas preces.” (Oscar Wilde)
Ricardo Fenati
06.02.2012
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