[PORQUE O AMOR TORNA FRÁGIL]
porque o amor torna frágil tudo o que toca
e porque eu mesma não evitei que
tocasse meu corpo
meus ossos
minha respiração
meu sono
por isso temo por mim —
pelo risco de desabar a um
tremor de pálpebras
Mar Becker
in: Noite Devorada
Círculo de Poemas, São Paulo, 2025
DESSALGA
não sei que água
vai dessalgar
a carne seca
da minha boca
não sei em que mar
vai desaguar
a minha dor cansada
não sei que palavra
vai nomear
essa água salgada:
que é suor
que é lágrima
que é enxurrada
Giselle Vianna
in Intempestiva. Patuá, São Paulo, 2023
O DEUS QUE VEM
Frêmito no alto céu,
morde Scorpio a Virgo escura.
Este o sinal de que se deve cantar os tempos
de juvenil tropel. Estua o vinho na uva por nascer
e a terra nas grotas úmidas de lágrimas fecha a boca.
A Lua espreita, enquanto dorme o Sol do liso flanco
de ouro. Acordêmo-lo e em procissão subamos
aos lugares altos. A noite é propícia para o germinar,
para o borbulhar de risos líquidos.
Lamenta a Virgem de verde sua casta solidão.
Ei-lo que desponta ao longe, nas dobras do mar:
no topo de um penhasco, grava-o a águia em sua
[pupila.
É o deus que vem, há um frêmito no alto céu
enquanto se une ao Sol a Lua desnudada,
submersos nos remoinhos das águas do dia por nascer.
Frutos brilharão nos campos e os celeiros não bastarão
para conter tantas espigas. O Novo Tempo vem,
[circundando
bosques, alvas colunas e imagens se dissolvem para
[que tudo
reverdeça: beberemos o vinho saboroso, o trigo terá
[sabor
de trigo e o deus vestirá de amor os corpos nus.
Dora Ferreira da Silva
[In Poesia Reunida, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, pp. 244-246]
lá no umbral
umbilical, no bico
da primeira mamadeira
lá na murcha folhagem
do ipê transplantado
onde o pé largou a terra
para dar o passo
lá nesse sertão de alma
onde a comida é rala
e a farinha engrossa
o caldo
lá onde o desígnio é rio
intermitente
onde oscila o sinal
de internet e, de repente,
é lápis sem ponta o que era
traço, o suco faz-se sulco: é inverno
— na ponta seca do compasso,
lá onde o mundo cresce, lá
onde algo se perde,
lá — e somente lá —
é que eu existo
se a memória fenece
na cama
da calma, no imemorial
átomo
no antílope azul
e seu último sono terrestre
Giselle Vianna
In: Intempestiva - Patuá, São Paulo, 2023
imagem: pexels.com
[HOJE ACORDEI]
hoje acordei
com a chuva
chiando na janela,
levantei,
olhei o mundo em volta,
e fui para a cozinha,
o feijão chiando na panela
imitou a chuva,
pássaro caprichoso,
o cheiro do alho esmagado
misturado ao cheiro
de terra molhada
entrando pelas frestas,
o buda bocejando,
os olhos mal abertos,
se espanta com tanta agitação
num dia ainda escuro,
como se dissesse
que hoje seria dia apenas
para filosofias e números puros,
mas é que hoje acordei
com a chuva chiando
na panela de tudo.
Micheliny Verunschk
in Geografia Íntima do Deserto
Círculo de Poemas, São Paulo, 2024
Que, neste Natal, o amor te abrace.
Que, neste Natal, o amor te abrace tanto, com tanta verdade, que faça milagres acontecer.
Que, neste Natal, o amor te abrace tanto, com tanta verdade, que se tatue em ti para sempre.
Que, neste Natal, um abraço te abrigue como porto seguro.
Que, neste Natal, uma mão te ampare e te conforte.
Que, neste Natal, um olhar te toque e te envolva a alma.
Que, neste Natal, um sorriso te abrace e te cative o coração.
Que, neste Natal, a ternura te cuide e te cure.
Que, neste Natal, um colo te aconchegue e faça tudo serenar.
Que, neste Natal, uma palavra te fale do coração, ao coração.
Que, neste Natal, um silêncio te escute o coração, com o coração.
Que, neste Natal, uma companhia te guarde e te seja sempre presente.
Que, neste Natal, um gesto de bondade torne tudo melhor e te faça sorrir.
Que, neste Natal, alguém te queira bem e te seja, de verdade e para sempre.
Que, neste Natal, tu saibas que ter (e ser) um bom coração é tanto, é tudo.
Que, neste Natal, o amor te salve.
Que, neste Natal, o amor te abrace.
Que, neste Natal, o amor seja o teu sol nos dias cinzentos, a tua luz na escuridão, a tua paz na tempestade.
Que, neste Natal, o amor te mostre o lado bom do mundo, a parte bonita da vida.
Que, neste Natal, o amor te abrace.
Que, neste Natal, o amor te traga a magia que acende todas as estrelas.
Que, neste Natal, o amor te acenda a chama da esperança no coração.
Que, neste Natal, o amor te abrace.
E que, neste Natal, tu descubras que esse abraço é tudo o que importa.
Que esse abraço é a resposta a tudo, o sentido de tudo.
Neste Natal… e em todos os dias. Sempre. Para sempre.
Daniela Barreira
In: imissio.net 16.12.24
Não apenas passantes
Ontem uma estrela disse
à pequena luz em meu coração:
Não somos apenas transeuntes
passando.
Não morra. Sob esse brilho
alguns andarilhos permanecem
caminhando.
Você foi concebida por amor.
Portanto, não leve mais que amor
àqueles que tremem.
Um dia todos os jardins brotaram
de nossos nomes, daquilo que restou
dos corações ansiosos.
E desde que se tornou madura,
esta língua antiga
nos ensinou a curar pessoas
com nossos desejos,
como ser um aroma celestial
para relaxar seus pulmões contraídos:
um suspiro de boas-vindas,
um hausto de oxigênio.
Suavemente passamos sobre as feridas,
como uma gaze suave, um olhar de alívio,
uma aspirina.
Ó pequena luz em mim, não morra,
mesmo que todas as galáxias do mundo
se apoximem.
Ó pequena luz em mim, diga:
Entrem em paz no meu coração.
Todos vocês, entrem!
Heba Abu Nada
poeta e romancista, morta em outubro de 2023 nos bombardeios na Faixa de Gaza.
Affonso Romano de Sant’Anna
Que saibas sempre ser abraço que abriga. Talvez esse abraço seja tanto, talvez seja tudo, para alguém.
Que saibas sempre ser sorriso do coração. Talvez esse sorriso seja sol nos dias cinzentos, para alguém.
Que saibas sempre ser mão que ampara. Talvez essa mão seja luz na escuridão, para alguém.
Que saibas sempre ser colo que serena. Talvez esse colo seja paz na tempestade, para alguém.
Que saibas sempre ser olhar mais fundo. Talvez esse olhar seja abraço na alma, para alguém.
Que saibas sempre ser palavra, ou silêncio, que abraça. Talvez essa palavra, esse silêncio, toque o coração de alguém.
Que saibas sempre ser companhia que conforta. Talvez essa companhia faça sorrir alguém.
Que saibas sempre ser gesto de bondade. Talvez esse gesto seja o lado bom do mundo, para alguém.
Que saibas sempre ser ternura que cura. Talvez essa ternura seja a parte bonita da vida, para alguém.
Que saibas sempre ser amor. Só amor. Que salva sempre. Talvez esse amor seja esperança a acontecer, para alguém.
E para ti também.
Daniela Barreira
in: imissio.net 21,10,24
A GUARDADORA DE REBANHOS
tínhamos uma coreografia toda manhã
ela em uma ponta da cama
eu na outra ponta segurando a mesma coberta
as duas virando o corpo pelo quarto
como numa dança
como naquelas danças da corte francesa
a coberta ficando cada vez mais fechada
até ganhar a forma de um cilindro
enquanto nós duas
mãe e filha
terminávamos unidas pelas dobras do tecido
uma coreografia
que acabava com ela guardando a coberta
como quem guarda em segredo
um coração no armário
Mariana Godoy
in O Afogamento de Virginia Woolf
Patuá, São Paulo, 2019
A gente vai indo...
crescendo...vivendo...
chorando ou sorrindo...
e no vaivém
- da vida,
retorna ao passado:
uma série de ocorrências
acumulam-se
em nossa mente,
cheias de beleza
ou de maldade,
e... no giro, girando
a gente fica,
ficando sempre a pensar
se tudo aquilo
foi mentira,
ou se realmente é verdade
o que nos surpreende
num momento
- de saudade.
Celeste Laus
In Um Pedaço de Papel
Escritora nascida em Tijucas em 1911. Filha de Minervina e Rodolfo Laus.
Poetisa consagrada de Santa Catarina. Autora de Caderno de Sonhos, Poemas Escolhidos e Seleção de Poemas, Um pedaço de Papel, etc...
Teria escrito mil vezes teu nome na areia,
não fosse teu nome matéria em que meu coração se dissolve.
Mistério infinito do mar-espelho.
Amar é espelho do infinito.
Amar é mistério de areia.
Areia é matéria fluida, efêmera.
Areia é minério talvez eterno.
Este grão que penso reter nas mãos
amanhã mesmo o oceano levará.
Nunca saberei de que silício ou cecília
é feito.
Não saberei onde se quedará meu coração de areia:
em doces praias ou voragens,
rochas ou abismos.
Abismo sou agora, sem nome e sem pouso
E a matéria areia, fugaz e eterna,
dolorida e bela,
me consome.
Ana Cecília de Sousa Bastos
in Contemplação do mar
Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
imagem: pexels.com
Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:
tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.
Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n’água.
A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.
O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
Às vezes, tantas vezes, não é sobre as coisas grandes.
Às vezes, tantas vezes, é sobre as coisas simples.
Todos os dias.
Às vezes, é sobre aquele abraço mais demorado.
Às vezes, é sobre aquela mão a confortar. A abrigar.
Às vezes, é sobre aquele olhar mais fundo, a ver o que quase ninguém vê, a olhar de verdade: a olhar a alma.
Às vezes, é sobre aquele sorriso do coração, que salva aquele dia cinzento.
Às vezes, é sobre aquele gesto de ternura, que quase parece que cura.
Às vezes, é sobre aquele colo que acolhe. Que ampara. Que serena.
Às vezes, é sobre aquela palavra dita com amor.
Às vezes, é sobre aquele silêncio que escuta com amor. Que diz tudo, sem ser preciso dizer.
Às vezes, é sobre aquela companhia que está, que fica, que se importa.
Às vezes, é sobre cuidar.
Às vezes, é sobre fazer sorrir.
Às vezes, é sobre mostrar (e ser) o lado bom, a parte bonita. Do mundo. Da vida. De tudo.
Às vezes, é sobre o amor. Todas as vezes.
Em todas as vezes, é sobre o amor.
O amor que vamos deixando pelo caminho. E encontrando também.
Daniela Barreira
17.06.2024
imagem: pexels.com
A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se
estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão,
nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer
relacionamento: amizade, família, trabalho, amor,
somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil.
Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos
reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação
pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos
o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a
salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar,
e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos,
teimamos em pensar que ainda há remédio:
um pobre band-aid serviu.
Ou um passe de mágica que nos tornasse
menos expostos, menos humanos.
LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997
Página 1 de 17