Falei do sofrimento na coluna passada, falo hoje da alegria, do contentamento de ser. Tanto quanto o sofrimento, a alegria é parte constitutiva da experiência humana. Se o sofrimento, o sofrimento vivido humanamente, lança uma sombra sobre nossas vidas e nos conduz a um certo recolhimento, a alegria, que não precisa ser barulhenta, é um suplemento de vida, uma expansão existencial. Um costume arraigado tende a ver mais seriedade na tristeza do que na alegria, que, muitas vezes, se não é vista como ingenuidade, é desculpada como um descanso necessário, mas provisório, na inevitável rudeza da vida. Já foi dito que a infelicidade tem mil formas e a felicidade não, é a mesma sempre, o que acaba lhe conferindo menos espaço na experiência humana. Mas será mesmo assim?
Não falo da alegria motivada por um acontecimento como um amigo reencontrado, um gesto carinhoso recebido ou uma ação valorosa cumprida, mas da alegria como um pano de fundo, como um estado do ser. Alegria, entre outras coisas, é essa serenidade continuada, esse acolhimento da existência, esse surpreendente acordo entre nós e o universo, essa familiaridade com as coisas, esse prazer em ser, essa gratidão por existirmos. Em qualquer um dos casos, a alegria parece estar associada a uma sensação de pertencimento. Que é mais rara no sofrimento, onde o nosso eu parece, ele sim, expandido à custa do mundo. Reconhecer o nosso pertencimento a algo que nos excede, ainda que não suprima nada do que em nós é essencial, permite que enfrentemos a inevitável e dolorosa solidão para a qual a tirania do eu nos conduz.
Sofrimento e alegria, dois estados do ser? Sim, mas não podemos dar um passo a mais? A efetiva oposição talvez não seja essa, mas sim entre uma vida, no sofrimento ou na alegria, que nos encerra em nós mesmos – individual ou coletivamente – e uma vida, no sofrimento ou na alegria, que acolhe a abertura e o mistério que, excedendo a nós, nos constituem.
Para pensar na quinzena:
A existência é a maior perfeição. ( frase atribuída a Sto Tomás)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
13.06.2013
A experiência do sofrimento é de tal modo inseparável da vida humana que imaginar que não sofremos ou procurar, inutilmente, não sofrer talvez sejam modalidades ainda mais agudas de sofrimento. Mas no que diz respeito a nós, os humanos, nada é simples, nada é destituído de ambiguidade, nada é muito linear. Se o sofrimento é inevitável, devemos reconhecer que são muitas as fontes de sofrimento e, sobretudo, são variadas as nossas formas de lidarmos com ele.
Fontes de sofrimento são diversas: as biográficas, que se devem às vicissitudes das histórias pessoais, de responsabilidade nossa ou não, e as que, vindas do destino indiferente, caem sobre nós. Outras decorrem das sociedades de que fazemos parte e nos atingem enquanto membros da comunidade. E há um sofrimento que nos acompanha a todo o tempo, oriundo de nosso pertencimento à condição humana, dados os limites nos quais ela transcorre e os anseios que a caracterizam.
Entre as inúmeras reações possíveis em vista do sofrimento, e aqui sigo um texto do Pe. Javier Rojas, retenho duas. Diante do sofrimento, podemos nos valer dele para obter algum benefício indevido, algum olhar que, apiedado, nos conceda uma vantagem indevida, nos dispense de uma luta que nos caberia. Ou podemos, quando o sofrimento chegar até nós, procurar acolhê-lo como um traço da vida, como uma ocasião não de nossa dissolução, mas de aceitação da quota de dor inerente à vida. Dor a que, não raro, se segue uma interrogação que nos inquieta e obriga a movimentos de criação que na ausência do sofrimento não ocorreriam.
O sofrimento usado como meio de obter um ganho descabido despertará irritação e repulsa, diferentemente do sofrimento acolhido, que sempre tocará a corda de nossa compaixão.
Para pensar na quinzena:
“Ousar a fundo ser si mesmo, ousar ser um indivíduo, não este ou aquele, mas o que se é, só ante Deus, só na imensidão do seu esforço e da sua responsabilidade. (Kierkegaard)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
03.06.2013
Dê uma olhada mais demorada no Facebook e preste atenção nas postagens onde alguma discussão parece estar sendo proposta. Sendo uma discussão de uma temática que, em princípio, pode interessar a mais pessoas, é de se esperar que brotem, dos lados em disputa, que podem ser dois ou mais, argumentos, exemplos e comparações. Nada muito sofisticado, só a paciência de apresentar alguma fundamentação para o que se defende e a boa vontade de escutar posições distintas. Enfim, as regras de uma boa conversa entre pessoas ciosas de alguma tolerância e que têm gosto pela vida das idéias. Redes sociais, na medida em que criam espaços públicos de interação, potencializam a vocação humana para a convivência.
Entretanto, ainda há muito a aprender. Muito freqüentemente, o que se passa no FB, quando está em pauta um tema polêmico, é a expressão raivosa de alguma opinião, completamente desinteressada de ouvir a discordância. Mero exercício de intolerância, beneficiado pela tecnologia. Ou, ainda, a constituição de pequenos grupos em torno de uma bandeira, sempre reforçada pelas curtidas e compartilhamentos mútuos dos integrantes do gueto em questão. A estratégia costuma se repetir: o grupo se identifica como minoritário e vitimado por alguma espécie de perseguição. Espera assim ganhar uma espécie de imunidade, já que vítimas, são, por princípio, injustiçadas e, por isso, inatacáveis. Multiplicados, esses grupos, à maneira de um arquipélago de ilhas isoladas, desmentem o que cabe esperar da cidade dos humanos: uma disposição incessante e grave para a aproximação ao invés da reafirmação narcísica, e, portanto, insegura e violenta, de nossa identidade.
Para pensar na quinzena:
“Narciso acha feio o que não é espelho” (Caetano Veloso)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.05.2013
Se somos, como Aristóteles dizia, animais políticos, animais que vivem, e, como humanos, só podem viver, na presença uns dos outros, daí não se segue que contemos com uma espécie de instinto que nos assegure, de imediato, uma convivência propiciadora de felicidade ou, pelo menos, de paz. Somos atraídos pelo outro, sem que, entretanto, possamos lançar mão de qualquer mapa ou orientação para chegar até ele. A contigüidade física não nos auxilia: não raro, ainda que sós, estamos mais próximos das pessoas do que quando imersos numa multidão. Se nosso olhar estará sempre voltado para o outro, como Aristóteles parece sugerir, é porque percebemos que somos, de alguma forma, incompletos e que algo que nos diz respeito se encontra nele.
Posta a relação, vem junto com ela o risco. Ao invés de sairmos de onde estamos, de nos movimentarmos, dependuramo-nos no outro, fazendo-o provedor de nossas necessidades e não destinatário do nosso desejo. Sendo essa a escolha, não apenas ignoramos a singularidade do outro, mas, sobretudo, escorados nele evitamos encontrar o que só em nós se acha. O que parecia ser uma confirmação de nossa disposição sociável nada mais é, de fato, do que um egoísmo brutal e doloroso.
Mas, se em vez da dependência, é a confiança que nos move, o cenário não é o mesmo. A confiança envolve o acolhimento de nossa fragilidade, fragilidade mútua, e a coragem de trilhar um caminho desconhecido, tornado possível pela presença do outro. E não poucas vezes acabaremos por reconhecer que é só através de um outro, respeitado na sua singularidade, que chegamos a nós mesmos, encobertos que estávamos pela voracidade do nosso egoísmo.
Nada é simples, nada é garantido, mas alguma sabedoria é sempre possível se nos lembrarmos outra vez de Aristóteles, quem, um dia, disse que a virtude, e a convivência é uma virtude, se aprende sendo virtuoso.
Para pensar na quinzena:
“Amar se aprende amando” (Carlos Drummond de Andrade)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
30.04.2013
Há palavras cujo desempenho numa discussão parece insuperável. Ingenuidade é um exemplo. Quando a empregamos, temos a impressão de uma imediata desqualificação dos nossos adversários, os destinatários do termo, e, ao mesmo tempo um sentimento inequívoco de nossa superioridade. Quando o debate é de natureza mais intelectual, a ingenuidade, é o que acreditamos, está associada à ignorância, a não saber o que se deveria saber. Mas será sempre assim?
A tradição iluminista nos ensinou o valor do conhecimento, o apego ao exercício do saber e à sua capacidade de retirar o ser humano da menoridade, seja considerado na sua individualidade, seja considerado na dinâmica social. Áreas as mais diversas, até então submersas no preconceito, emergiram enquanto objeto de conhecimento. Com o tempo, o que entendemos como modernidade deixou de ser um apenas episódio na história humana e veio a ser visto como uma conquista sem retorno, como um bem a ser preservado.
Entretanto, não devemos nos esquecer que a paixão pelo conhecimento é uma aventura permanente, sempre sujeita á revisão, sempre marcada pela finitude humana. O que hoje tomamos por saber é menos um conjunto de certezas, por mais caras que nos sejam, do que um estado provisório, sempre sujeito à revisão quando o inevitável contato com a realidade assim o indicar. Estaremos quase sempre, no campo do conhecimento, em alto mar, ainda que, por vezes e provisoriamente, nos vejamos atracados num ou noutro porto.
Daí que talvez possamos falar de uma outra ingenuidade, a dos que imaginam como termo do conhecimento, como matéria incontroversa, as respostas que defendem, o ponto de vista que advogam. Se há uma ingenuidade dos que ignoram o que deveriam saber, há outra ingenuidade, a dos que se aferram ao que imaginam ser conhecimento incontroverso. Daí que uma terceira ingenuidade, sabedora de nossos limites e da complexidade típica dos assuntos humanos, possa conter, paradoxalmente, uma apreciável dimensão crítica, que nos obrigue a corrigir o que, aparentando conhecimento, não é senão um conjunto de hábitos intelectuais arraigados e confortáveis.
Para pensar na quinzena:
“E, em todos os assuntos humanos, quem os examine bem verá isto: que uma dificuldade não pode ser afastada sem que outra comece a avultar... porque o que é completamente claro, e inteiramente sem certeza, não se encontra jamais.” (Maquiavel)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola-BH
15.04.2013
As épocas se parecem, basta um pouco mais de leitura, sobretudo de uma leitura historicamente mais diversificada, para que percebamos isso. Documentos mais próximos da intimidade humana, como, por exemplo, poemas, permitem observar a persistência, ao longo do tempo, de temas recorrentes: o amor, a amizade, a dor, a morte, a felicidade, a alegria, entre outros. Há um fundo humano que nos acompanha e é nele que, sob as águas mais superficiais e movimentadas, encontramos as correntes mais profundas e mais lentas. Considerar os nossos tempos como axiais e fazer proliferar observações como “uma crise de proporções inéditas” ou “os desafios a serem enfrentados parecem superar nossos recursos”, é, de fato, o resultado de um compreensível, mas errôneo, exercício de provincianismo temporal.
Feita essa ressalva mais geral, nada impede que recolhamos, nas águas mais movimentadas, a singularidade de nossa hora. São muitas, escolho uma delas. Ideias formam o repertório com o qual procuramos responder ao silêncio do mundo e dar sentido à nossa experiência. Que elas sejam insuficientes, que o mundo sempre as exceda, é conseqüência de nossa finitude. Mas se essa insuficiência se transforma numa impossibilidade plena, a mundo se torna opaco e a linguagem vazia.
Parte do nosso cotidiano é mais do que ilustrativo desse cenário. Dou um exemplo, a violência. Reclamamos ostensivamente, e com razão, da violência e lamentamos o crescimento dos seus indicadores. É de tal modo universal o protesto, que somos levados a pensar de que a violência cai sobre nós como um destino, em relação ao qual não cabe, a cada um de nós, qualquer responsabilidade.
Apesar disso, cometemos sem cessar pequenas violências: no trânsito, na falta de delicadeza no trato, na indiferença, na insensibilidade mais generalizada, na impaciência, no descuido de nós mesmos. Violentamos os outros e, também, a nós. Fazemos tudo isso e, curiosamente, permanecermos vociferando contra a violência, criando, desse modo, um hiato absurdo entre palavra e gesto. Assim, o gesto indesejado, e violento, persiste e a palavra pronunciada permanece vazia.
Quem sabe, investigar o que nos torna insensíveis a esse hiato e buscar, aqui e ali, aproximar gesto e palavra, ideias e realidade, não sejam duas destas pequenas e imprescindíveis tarefas ao alcance de todos nós?
Para pensar na quinzena:
“Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...” (Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
27.03.2012
Permanece a comoção provocada pela renúncia de Bento XVI e, mais, estende-se, geográfica e culturalmente, para áreas que, pelo menos explicitamente, se mantinham desinteressadas de temáticas associadas ao Vaticano ou, de uma forma geral, ao catolicismo. A mídia, com as exceções de sempre, se debruça sobre o fato com a avidez e o ritmo que lhe são característicos, mas, não raro, passa ao largo da complexidade da questão. Artigos mais consistentes, mais intrigantes, vindos do interior do pensamento católico, assinalam que, talvez, a Igreja Católica esteja diante de uma crise/oportunidade de proporções bem maiores do que à primeira vista imaginávamos.
O que brevemente alinhavo a seguir o faço como católico, interpelado que sou, como todo católico, pelo gesto de Bento XVI. Sem querer desconhecer a importância dos fatores já apontados como a causa da renúncia – saúde debilitada, escândalos financeiros/sexuais, disputas internas, entre outros -, entendo ser proveitoso ver na renúncia o que ela revela de profético. A gravidade do gesto, claramente assinalada por Bento XVI, é suficiente para nos convencermos de que as razões, que apontam para o futuro, prevalecem sobre as causas, que vêm do passado. Afastando-se, Bento XVI reconhece os limites de um desenho institucional, encerra um ciclo e abre um espaço que nos interroga a todos e a cada um dos católicos em particular.
A meu ver, o que a renúncia põe em cena é a urgência de pensar a identidade e a o sentido do cristianismo enquanto projeto civilizatório. Não se trata de atender apenas demandas específicas, algumas delas de muita importância, mas de rever a potência do ideário cristão enquanto leitura e interpretação da experiência humana. Desafios dessa natureza não são inéditos: o cristianismo medieval, interrogado pela alteridade representada pela chegada do pensamento grego, viu-se às voltas com a necessidade de um autoexame. Recusando, de um lado, a mera capitulação diante da novidade e, de outro, a teimosa reiteração da tradição, os pensadores cristãos, já no espaço das universidades, se debruçaram sobre as fontes do cristianismo. Partindo delas, aproximaram-se do pensamento grego e deram origem ao percurso – fé e razão - a que pertencemos ainda hoje.
Certamente podemos aprender alguma coisa com esse episódio. A vitalidade de uma instituição depende da sua capacidade de enfrentar o que ameaça apequená-la, destruí-la ou, mesmo, opor-se a ela. Talvez o gesto de Bento XVI, profético, possa ser lido como uma interpelação serena, mas firme, para que saiamos do interior dos muros que nos protegem – e, não raro, nos enfraquecem – e aceitemos a mesa de conversação aí onde ela é proposta.
Para pensar na quinzena:
“ A renúncia do Papa me pareceu um gesto de grandíssima nobreza, humildade e dignidade ao mesmo tempo. Eu não sei o que ela vai mudar na vida da Igreja, mas indubitavelmente irá marcá-la de forma positiva, pela força que o exemplo tem em si.”
( Marco Vannini)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.03.2013
Na coluna anterior, lembrando nosso pertencimento ao Ocidente enquanto aventura espiritual, vimos que a experiência da fé exige de nós o acolhimento de uma inquietação que, ao invés de estreitar o espaço humano, o amplia. Mas como a razão também é parte deste legado espiritual, é preciso ver o que se passa no seu âmbito. Se nós pensarmos no momento em que essa relação se pôs de forma mais evidente, a era medieval, não custa lembrar que data daí a fundação da Universidade, instituição que brotou do reconhecimento de um espaço próprio da razão.
Entretanto, há os que opõem fé e razão. Se a fé nos deixa insatisfeitos, dada a incerteza que a envolve, não podemos esperar que a razão nos brinde com a certeza? O constante avanço das ciências, a sua chegada nas áreas as mais diversas, a proliferação tecnológica delas decorrente, com os inegáveis benefícios que envolve, tudo isso não basta para dar razão aos que consideram dever a razão ocupar a totalidade do espaço? E não nos enganemos: as ciências incluem as ciências humanas, mesmo porque é nelas que a febre de certeza parece, hoje, ainda mais aguda. Não é assim que as pessoas citam os chamados mestres da suspeita?
Mas a ciência é, de fato, esse paraíso da certeza? Não é verdade, e esse reconhecimento vem dos estudos contemporâneos sobre a ciência, que as grandes teorias científicas, não obstante a sua fecundidade, ultrapassam em muito o que é dado na experiência? As pressuposições básicas que abrem o campo das ciências, como a pressuposição de um mundo ordenado, não se assemelham mais a uma aposta do que a uma certeza? A própria história das ciências não nos ensina o caráter progressivo e inacabado do conhecimento? As grandes teorias não são, senão mortais, pelo menos sempre sujeitos a revisões pronunciadas?
Parece não ser razoável a atitude dos que defendendo a certeza imaginam receber apoio das ciências. A ciência, ao contrário, se acha melhor hospedada nos espaços abertos dos enigmas a serem decifrados, no desvendamento permanente dos problemas sempre renovados, na contínua reforma de nossas ilusões, como dizia Bachelard.
Se assim é, não podemos aproximar os dois fundamentalismos, o que vem da fé e o que vem da ciência, já que ambos imaginam, cada um a seu modo, que é possível a nós, os humanos, uma palavra final?
Para pensar na quinzena:
Em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas (Contardo Calligaris)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.03.2013
Pertencemos, simultaneamente, a duas tradições, a que vem da Bíblia e a que vem dos gregos, junção que faz com sejamos espiritualmente ocidentais. Se qualquer uma delas vier a se apagar, é todo um estilo civilizatório que desaparecerá. O texto bíblico, revelado que é, solicita de nós a experiência da fé e a aventura da razão, impulsionada em terras gregas, escora-se na experiência reflexiva. Abrindo mão de uma ou de outra ou reduzindo um à outra, fé e razão, estaríamos abandonando um percurso já mais do que duplamente milenar. Mas é sempre hora de nos voltarmos para nós mesmos e ver há quantas anda a herança que recebemos. Até porque não dispomos de nenhum acerto sobre a repartição adequada entre esses dois campos, que é sempre dinâmica e sofre o assédio irregular da história. Aqui nos ocupamos, com a brevidade que a coluna permite, da fé. Na próxima quinzena, vamos falar da razão.
Diante do horizonte sempre aberto da existência humana, o texto revelado se oferece à nossa confiança, assinalando o nosso limite e, ao mesmo tempo, o pertencimento ao que nos excede. Aproximando de alguma forma esses dois pontos, percepção do limite e sentimento de pertencimento, a experiência da fé, longe de apequenar ou restringir o espaço humano, o estende mais e mais, permitindo que convivamos, ainda que de modo sempre inquieto, com o que nos habita sob a forma de um excesso.
A inquietação, entretanto, é uma companhia dolorida, sendo, por isso, mais do que compreensível a nossa propensão para capitular. Incapazes de suportar a porção de silêncio e de impotência que nos envolve, corremos numa direção redutora, substituindo o silêncio pelo palavreado eufórico, o que, de sobra, parece, apenas parece, derrotar a impotência.
Mas procedendo assim, teremos, ao final, menos e não mais. Se o exercício do silêncio e o acolhimento da impotência deixam aberto o espaço para a experiência da fé, a palavra impaciente apenas nos devolve a nós mesmos.
Para pensar na quinzena:
“ O raciocínio deixa facilmente na sombra o que desejamos conservar oculto.” (George Bernanos)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
14.02.2012
Começo de ano, hora de planos, que, na sua maioria, não serão cumpridos. Não importa, a esperança ganha da experiência, o que é sempre louvável, e, encorajados, listamos intenções. Podemos fazer isso, mas também, quem sabe, não é hora de nos voltarmos para aqueles valores que, valendo para ano que se inicia agora, valem, entretanto, sempre? A calma do começo do ano, o descanso das comemorações, desperta em nós uma disposição contemplativa, o que favorece um olhar menos preocupado com a urgência que vem do cotidiano.
E que valores são esses, que reclamam permanência? Vou falar de dois. O primeiro deles, acredito, é o senso de que alguma coisa nos ultrapassa, de que o mundo não começou conosco e não cessará quando partirmos. O senso de que somos criaturas. O que nos excede, entretanto, não é uma mera distância muda, indiferente à nossa inquietação, à nossa insuficiência. Pelo contrário, pertencemos, de alguma forma, ao que nos excede, estamos, também, onde nos desconhecemos. Portanto, sejamos fiéis a isso.
O segundo valor é o gosto da comunidade. Que não suprime nossa solidão e nem nos obriga a abdicar de todo silêncio. Mesmo que os tempos sejam difíceis, a reclusão em nós mesmos e o desprezo pelos outros nunca é justificável. Como escreveu Santiago Kovladoff, “ um mundo que provoca repulsa em quem aspira afastar-se dele é, sempre, um mundo que venceu a quem o impugna. É, em suma, um mundo que mantém encarcerado a quem se considera em condições de deixá-lo para trás”. Não nos esqueçamos que o mundo à nossa volta, na variedade de suas formas – mundo social e universo físico - é nossa oficina: nele nos formamos para nosso destino maior. Nossa mundaneidade, mais do que uma escolha, é uma vocação. Portanto, também a isso sejamos fiéis.
Para pensar, a mais, na quinzena:
“A experiência sobrenatural da nossa contingência é a humildade que ama e valoriza, sobretudo, nosso estado de impotência metafísica e moral diante de Deus” (Thomas Merton)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.02.2013
Para começar o ano com Carlos Drummond de Andrade:
RECEITA DE ANO NOVO
Para você ganhar um belíssimo Ano Novo
Cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintando de novo, remendando às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens, passa telegrama?)
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta,
não precisa chorar de arrependimento
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
30.12.2012
Se a morte nos intriga, e não poderia ser diferente, não é menos verdade que o nascimento é igualmente rodeado pelo mistério. São múltiplos os nascimentos que, sem cessar, nos interrogam: o nascimento do mundo, o nosso próprio nascimento, o nascimento de uma criança, o nascimento de uma nova sociedade, o nascimento de uma coragem ali onde sequer era esperada, de um horizonte inimaginável, de uma resistência súbita onde a capitulação parecia inevitável, a doçura de uma amizade, a irrupção da solidariedade ao invés do costumeiro egoísmo, o amanhecer de um amor, o espetáculo de um poema.
Entretanto, a força do hábito nos distrai, torna-nos cativos da repetição e desvia nosso olhar do que está sempre irrompendo. Pressionados pelas urgências do cotidiano, obrigados a reiterar comportamentos, interpomos entre nós e a experiência uma camada espessa que dissipa a novidade e dificulta o espanto. Ainda assim, prossegue a permanente brotação da realidade, o eterno movimento do mundo, rebelde aos nossos esforços de aprisioná-la, diverso de nossas expectativas.
Daí que a surpresa sempre pode ocorrer, acreditemos ou não. É que chegamos depois dos começos, quando a fonte já corria e porque é próprio do mistério envolver, e nutrir, cada nascimento. Pertencentes ao mundo, quem sabe aprenderemos a acolher essa disposição para os nascimentos e a cultivar a coragem dos recomeços.
Criados um dia, nos foi dada, no horizonte de nossa humanidade, a potência de criar. Que neste natal o nascimento do Menino nos lembre disso.
Para pensar na quinzena:
“Então, o que não somos,
escuridão,
silêncio,
ausência,
é um lugar exato
para sentir
como todo o novo
começa.”
Benjamin Gonzáles Buelta sj
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.12.201
Neste momento em que a questão ética está novamente em cena, é mais do que apropriado perguntar pela dimensão ética do cristianismo. Do ponto de vista público, por motivos os mais variados, a ética e a moralidade associados ao cristianismo são reduzidas, quase sempre, a um conjunto de proibições, todas impeditivas do florescimento humano. Num cenário que se proclama libertário, como esse em que vivemos, isso tende a impedir que o cristianismo tenha uma presença significativa nos debates em curso no campo da ética. Mas reduzir a ética cristã a uma lista de interdições é aceitar a plausibilidade de uma caricatura mais do que empobrecedora. Diante disso, cabe um reiterado esforço para conferir mais credibilidade à perspectiva cristã da ética, seja assentando-a em bases mais próximas das fontes cristãs substantivas, seja mostrando sua capacidade de enfrentar questões inéditas, próprias do nosso tempo.
É possível ver nos debates éticos a polarização entre o que se poderia chamar de expressivismo ético - cada um de nós é o fundamento e a garantia da legitimidade das nossas ações - e o recurso às ciências, como se delas pudesse provir a sustentação de uma ética. Nenhuma das duas alternativas, ao que me parece, é satisfatória e nenhuma delas é compatível com o pensamento cristão. Talvez haja aí um intervalo, um espaço vazio que permita o aparecimento de alguma alternativa, próxima ao cristianismo, que possa ser pensada. Não pode ser essa a direção do esforço acima indicado?
Para pensar na quinzena:
"Se nós não falarmos do homem tal como ele é (na sua) fragilidade, de quem ou do que estaremos falando?" (Adolphe Gesché)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.12.2012
A coluna anterior, partindo do reconhecimento da diversidade, versava sobre a possibilidade da escuta mútua das diferenças e defendia o princípio da aproximação cuidadosa entre povos e tradições distintas, todos irmanados na mesma condição humana. Como exemplo dessa possibilidade, segue uma oração originária da cultura esquimó, distanciada de nós, mas na qual, com facilidade, nos reconhecemos.
“Sim, eu creio em um ser poderoso que chamamos Hila.
Não podemos, porém, explicá-lo com palavras ordinárias.
Ele é um espírito poderoso,
que guarda o universo,
regula as estações do ano
e mesmo toda a vida do homem.
Ele é tão grande que sua palavra não pode ser ouvida
de maneira ordinária.
Ele fala pelas tempestades,
pelas nevascas,
pelos furacões dos mares,
por todas as forças que intimidam o homem.
Mas ele tem também outra maneira de revelar-se.
Ele se manifesta no tempo ensolarado,
pela calma do mar,
ou então pelas crianças inocentes,
que brincam na neve.
As crianças entendem sua voz doce e familiar,
como a voz de uma mulher...
A mãe fala sussurrando, tão amavelmente,
que a criança não tem medo.
Assim fala Hila às crianças.
Voltando para casa, elas falam simplesmente
o que ouviram.
Então o feiticeiro interpreta, para nós,
suas palavras.
Quando tudo vai bem, Hila não fala aos homens.
Ele desaparece no Infinito e permanece escondido,
enquanto os homens respeitam a vida
e não abusam do alimento cotidiano.
Ninguém viu Hila!
Sua morada é misteriosa.
Ele está, ao mesmo tempo,
longe e perto de nós.
(In Muraro, R. e Cintra, Frei R., As mais belas orações de todos os tempos. Rio de Janeiro, Ed. Rosa dos Tempos, 1993)
Para pensar na quinzena:
“Ouvir, mais do que estar disposto, é estar exposto” (Santiago Kovadloff)
Ricardo Fenati
Professor de filosofia e membro da equipe do Centro Loyola-BH
15.11.2012
Cada geração tem seus termos próprios, expressões caracterizadoras de sua singularidade e de sua identidade. Diversidade, pluralidade são termos da nossa hora, bem vindos porque indicam a disposição de acolher a diferença e de se abrir ao outro. Chegam com a força da realidade, quebram comportamentos, inauguram caminhos. E é assim que deve ser. A diversidade decorre da misteriosa amplitude da experiência humana, seja a dos povos e das civilizações, seja a dos indivíduos. Colocar-se contra a diversidade é, desse ponto de vista, uma injustificada amputação. Entretanto, como é próprio das coisas humanas, incorporado o que o tempo traz, vale a pena refletir um pouco.
Partir da diversidade significa reunir, com boa vontade, perspectivas diversas em torno de um tema, por exemplo, a temática religiosa, a diversidade das religiões. Significa, igualmente, que podemos, uns aos outros, explicitar, na medida do possível, o modo como pensamos e vivemos a fé com a qual estamos comprometidos, a identidade a que pertencemos. Um benefício imediato é um ganho de clareza em relação ao que professamos, oriundo, muitas vezes, do que aprendemos com quem não pensa como nós. A riqueza da experiência religiosa, sempre além de qualquer endereço confessional específico, só tem a ganhar com essa mútua exposição, calçada na sinceridade. Não haverá pluralismo efetivo e conseqüente sem esse mergulho compartilhado na diversidade das identidades.
É justamente essa disposição para a conversação, para o acolhimento mútuo e cuidadoso das interferências que impede o pluralismo de ser o mero reconhecimento do que nos separa. Convém insistir na aceitação sincera da diversidade como um ponto de partida obrigatório, fiéis que devemos ser aos sinais do nosso tempo. Mas sem esquecer, em seguida, que, deveras, o que conta é o esforço sempre renovado em favor da escuta mútua e da aproximação entre nós, os humanos.
Para pensar na quinzena:
“A civilização é, antes de mais nada, vontade de convivência”. (Ortega y Gasset)
Ricardo Fenati
01.11.2012
Assim como temos um lar físico, que vai de nossa casa ao universo, também temos um lar mental/espiritual, constituído pelo conjunto de recursos simbólicos com os quais, sabendo ou não, andamos pela vida. Uma parte desses recursos pertence ao território da Ética, disciplina reflexiva que está relacionada ao campo da ação, ao modo como conduzimos nossas vidas e, mais basicamente, à liberdade que nos caracteriza enquanto humanos. Se nossas ações fossem equivalentes, se dessem origem às mesmas conseqüências ou se fôssemos presas de algum determinismo, a Ética seria desnecessária. Como nada disso acontece, a Ética se faz presente e se interessa pelo tipo de ação ou conduta que torna a vida mais legítima, mais humana, mais defensável. Daí que acusar alguém de falta de ética é desaprovar o que ele faz, é se opor aos valores por ele defendidos.
Vamos resgatar uma palavra antiga, dessas que não usamos tanto, mas que sempre esteve associada à Ética. Na linguagem do dia a dia raramente aparece: virtude. Alguém se lembra de referir-se a um amigo/amiga como virtuoso/virtuosa? Difícil, não é mesmo? Virtude é, hoje, uma dessas palavras frias, das quais mantemos distância. Mas o que deve ser entendido como virtude? Não é o caso de nomear atos ou ações virtuosas. Seria interessante, mas não bastaria. Virtude tem a ver com a improbabilidade de agirmos na direção do que foi dito mais acima: na direção do que é mais humano, mais defensável, mais legítimo. Mas porque improbabilidade? É que um comportamento virtuoso é mais difícil, perde numericamente para comportamentos não virtuosos, que são mais prováveis. Nossa inclinação imediata é agir de acordo com nosso interesse mais corriqueiro, em obediência aos costumes do lugar onde vivemos, a partir de expectativas que os outros nutrem sobre nós e assim por diante. Ora, a virtude tem a ver com a suspensão desses caminhos, com a disposição de atuar em vista de um fim discernido de forma mais reflexiva, mais corajosa, mais custosa, em concordância com um valor escolhido mais livremente, não importando a quota de sacrifício envolvida. Nestes tempos onde todo mundo reclama por mais Ética, é bom nos lembrarmos dos custos associados à Ética, em tudo contrários à voracidade do imediatismo dos nossos dias. Se, de fato, a Ética é uma questão importante para nós, conversar sobre a experiência da virtude pode ser um bom começo.
Para pensar na quinzena:
“ Não se pode receber da verdade mais do que nela se investiu” ( Milorad Pavic, Dicionário Kazar)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.12.2012
Há uma reclamação generalizada, e justa, em favor da educação. Educação tem a ver com o fato de que não nascemos prontos, pelo contrário, somos, desde sempre, inacabados e é desse vazio que a educação se ocupa. Distraídos da tarefa da educação, permaneceremos cativos da pressão pela sobrevivência a mais imediata e dos interesses de curtíssimo alcance.
Educamo-nos a partir de um acervo de referências, resultado da experiência histórica da humanidade. Formamos novos físicos, por exemplo, a partir do conhecimento físico consolidado, o que favorece, ao invés de impedir, a constante expansão deste conhecimento. Nas áreas científicas, ciências humanas incluídas, o processo é mais ou menos este, guardadas as diferenças de campo a campo. Entretanto, se as ciências ocupam, e devem ocupar, parte do espaço aberto a ser cultivado pela educação, não é desejável reservá-lo apenas a elas. Esquecer dos outros campos simbólicos – artes, filosofia, religião, mitologia – e das possibilidades que lhes são inerentes é mera e injustificada mutilação. Porém, falando de uma forma mais geral, tais campos são, hoje, esvaziados de sua dimensão objetiva e perversamente transferidos para o domínio privado. Confinados aí, perdem qualquer possibilidade de atuar como oportunidades e instrumentos de formação. Imaginar, entretanto, que a tarefa da formação humana possa ser conduzida à revelia desses campos é malhar em ferro frio. É hora, acredito, de voltarmos nossa atenção para o material pertencente a cada um dos campos acima mencionados. Talvez, assim, nos sentíssemos menos solitários diante dos enigmas, os tristes e os alegres, que a existência não cessa de nos propor.
Este, a meu ver, é um ponto a ser discutido para que a reclamação, inteiramente justa, por mais educação possa se aproximar um pouco mais do objetivo proposto. E vale a pena ressaltar que, aqui e ali, começam a proliferar instâncias de formação dispostas a aproximar a demanda tão contemporânea por formação da multiplicidade dos recursos simbólicos forjados ao longo da história humana. Não me parece exagero lembrar que é nessa fronteira que também o Centro Loyola, modesta mas persistentemente, procura atuar.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nascem uns para os outros; educa-os, padece-os” (Marco Aurélio)
Obs. Não dá para não indicar um livro sobre educação, de onde, aliás, retirei a frase de Marco Aurélio: Savater, Fernando, O valor de educar, publicado pela Editora Martins Fontes.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.10.2012
Reclamamos, muito freqüentemente, a favor dos direitos da natureza e dos direitos das outras espécies, companheiras da nossa. E, indo além, insistimos no nosso retorno à natureza, pátria original da qual nos distanciamos num doloroso exílio. Mas vejam bem que o nosso pertencimento à natureza tem lá sua singularidade. Somos, sim, bichos da terra, irmanados por uma complexa evolução, mas somos, também, um tanto estrangeiros. O encaixe não acontece, alguma sede permanece, algum desejo nos inquieta, a conta não fecha. E não é que nos tenha sido tirada algo, pelo contrário, é mais provável que alguma coisa a mais nos tenha sido entregue. O sortimento na literatura ou na filosofia é grande, como mostram Guimarães Rosa (“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto.”) e Pascal (“ Malgrado a visão de todas as misérias que nos tocam, que nos agarram pela garganta, temos um instinto que não podemos reprimir, que nos eleva”).
Mas como o que sobra incomoda e dói, é freqüente nos esforçarmos para arredondar as arestas ou polir o que parece embaçado, impacientes com o que nos resiste. Quem sabe não é hora de inverter a estratégia e começar a ver se a dor, ela mesma, ainda que venha do passado longínquo, não é por onde o futuro pode chegar?
Para pensar na quinzena:
“ No fundo das nascentes tudo se passa com lentidão” (Nietzsche)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.09.2012
Uma das formas de compreender a modernidade ocidental é notar que, à medida que ela se desenrolava, a vivência religiosa cristã caminhava sempre com mais velocidade, para a esfera privada da consciência. Certamente que a marcha não foi a mesma em todos os países e, particularmente entre nós, no Brasil, esta privatização é mais recente. Estamos longe, entretanto, de perceber todas as conseqüências desse processo, parte do qual é inevitável. Entretanto, resignando-se ao insulamento na esfera privada, a religião só tem a perder numa civilização marcada pela ampliação incessante da esfera pública. Sem falar no essencial: sempre foi parte da tradição cristã a conversação com a cultura e desta conversação, como sabemos, brotou um acervo simbólico do mais amplo espectro.
Para ficar num exemplo, entre tantos outros possíveis: a proposta de uma infinita maleabilidade humana, ontem defendida por um culturalismo exacerbado – e hoje alardeada pelos entusiastas da engenharia genética – parece colidir com a lembrança cristã que nós, os humanos, existimos a partir de um fundo para sempre inatingível e sobre a qual nunca teremos um domínio exaustivo. Este problema, o da maleabilidade humana, o cristianismo pode se furtar a enfrentá-lo? Não, já ele põe em cena um interesse cristão. Outros exemplos podem ser citados, não importa, lembrariam a mesma coisa: a massa da qual a vida pública no Ocidente é feita repõe em cena, necessariamente, o cristianismo.
Para pensar:
“Ilhas perdem os homens” (Carlos Drummond de Andrade)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.09.2012
Esbarro numa citação do poeta e ensaísta T.S.Eliot (1888-1965) e não resisto à tentação de fazer dela a coluna desta quinzena. É suficientemente intrigante, o que faz com que cada um de nós, ao dar com ela, se sinta interrogado ou, ao menos, inquieto. Segue sem mais:
“Uma vez que somos humanos, o que fazemos deve ser bom ou mau; já que fazemos o bem ou o mal, somos humanos; é melhor, paradoxalmente, fazer o mal a nada fazer: ao menos existimos. É verdadeiro dizer que a glória do homem é a capacidade de salvação; também é verdade dizer que sua glória é a capacidade de condenação às penas eternas. O pior que pode ser dito da maioria dos malfeitores, de estadistas a ladrões, é que não são homens o suficiente para merecerem a condenação eterna(...). Baudelaire percebeu que o que realmente importava era o pecado e a redenção(...) e a possibilidade de condenação eterna é um alívio tão grande em um mundo de reforma eleitoral, plebiscitos, reforma dos sexos e do vestuário, que a própria danação é uma forma imediata de salvação – salvação do tédio da vida moderna, porque, ao menos, dá algum significado para a vida” (citado in, Kirk, R., A era de T.S. Eliot, São Paulo: É Realizações, 2011).
Para pensar na quinzena:
Para concordar, para discordar, temos aí material suficiente para pensar na quinzena.
Ricardo Fenati
Equipe Centro Loyola
15.08.2012
O modo como usamos as palavras na vida cotidiana é sempre um bom ponto de partida para a reflexão. Palavras não são inocentes. Carregam, pelo contrário, modos de ver e ser no mundo que por estarem, muitas vezes, fora do domínio da consciência não são, por isso, menos influentes. O gesto mais incisivo e a ação mais conseqüente têm início numa palavra, no universo de sentimentos que as palavras disparam ou interrompem. Somos animais simbólicos, para o bem e para o mal, o que torna aconselhável que prestemos atenção nas palavras que nos enredam.
Problema e mistério, duas palavras vizinhas, dão margem a uma boa conversa. Num primeiro momento, parecem intercambiáveis, com o problema levando, ultimamente, alguma vantagem sobre o mistério: mistério não é um problema que ainda não solucionamos? E mais: fazer mistério de alguma coisa não é, propositadamente, jogar poeira sobre os nossos olhos, escondendo o que, de fato, é claro e não dá margem a dúvida? E nosso vitorioso debatedor joga a pá de cal: cita Marx sem saber quando diz que a humanidade só se propõe problema que pode resolver. Não tem mistério.
Mas talvez isso não seja tudo. Um filósofo francês, já falecido, Gabriel Marcel propôs uma distinção mais do que interessante. Dizia que há uma distinção aguda entre problema e mistério. Problema é o que está diante de nós, fora de nós, e que, por princípio, é suscetível de resolução, já que sabemos o que seria uma solução aceitável. A composição do solo de Netuno? Um pouco mais de tempo e certamente saberemos. Veículos menos poluidores? Já estamos quase lá. Estratégias pedagógicas que otimizem a aprendizagem? Não há porque descrer de uma solução com o tempo. Não importa sua diversidade, os problemas cabem na mesma caixa. São resolúveis, hoje ou amanhã. Ou depois.
Mistério é outra coisa. O que consideramos mistério não está diante de nós, não pode ser objetivado. Pertencemos ao mistério, sem saber onde está, nesse caso, a fronteira onde começa o nosso território. Matéria temporal que somos, não somos capazes de compreender o tempo. Estamos na existência como quem está numa terra estrangeira, cuja língua, afora uma ou outra palavra, desconhecemos quase inteiramente.
Não somos sequer capazes de imaginar o que, no caso do tempo ou da existência, contaria como resolução. Portanto, não estamos aqui diante de problemas.
Claro, podemos fazer uma grande confusão, chamando de mistério o que, de fato, é problema, e de problema o que estaria mais em casa no domínio do mistério. Mas não é verdade que conversamos para tornar as coisas, na medida do possível, um pouco mais claras?
Para pensar na quinzena:
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? ( Guimarães Rosa)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.08.2012
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