“... lançai vossas redes para a pesca em águas mais profundas” (Lc 5,4)
Neste 5º. dom. do Tempo Comum a liturgia nos situa no início do cap. 5 de S. Lucas; encontramo-nos diante de um episódio com múltiplos atos: a multidão que se comprime em torno a Jesus para escutar a Palavra de Deus; o ensinamento a partir da barca; o convite a remar mar adentro e lançar as redes; a pesca surpreendente; a confissão da indignidade de Pedro; o chamado dos discípulos e o imediato seguimento.
O relato não nos diz sobre o que Jesus falava, mas o que segue nos dá a verdadeira pista para descobrir do que se trata; tal relato abre um horizonte novo na vida das pessoas e nos convida a conhecer Jesus mais profundamente e a conhecer-nos a nós mesmos; só assim o seguimento se revela mais inspirado.
No evangelho deste domingo Lucas dá um destaque ao chamado dos primeiros discípulos. Marcos e Mateus situam este chamado no início da vida pública de Jesus. Lucas o narra de uma forma mais compreensível, mais lógica, depois de apresentar Jesus como Mestre nas sinagogas, como o libertador de um endemoniado, como presença terapêutica na cura da sogra de Pedro e dos doentes com diversas enfermidades. Assim, ele nos transmite que o seguimento significa identificação com Jesus e o prolongamento de suas obras.
A primeira parte do relato nos convida a contemplar Jesus ensinando, junto ao lago de Genesaré. Diante da crescente multidão, sobe à barca de Simão e lhe pede para que a afastasse um pouco da terra. Sua presença muda o significado da barca: não é só instrumento de pesca, mas torna-se o “novo púlpito” a partir de onde Ele passa a ter uma visão mais ampla da multidão que o escuta. Pastoral nos espaços amplos ou no descampado, à margem da “sinagoga”, fora dos espaços sagrados.
Jesus se deixa conduzir pela criatividade do Espírito, que rompe os lugares estreitos e controlados. Seu “templo” é a vida, o lugar cotidiano das pessoas. Ali, o anúncio da Boa Notícia do Reino encontra muito mais ressonância no coração das pessoas, sobretudo aquelas que não tinham “lugar” nos templos.
A segunda parte do relato descreve a pesca abundante e surpreendente; os pescadores retornam ao trabalho por iniciativa de Jesus: “remai mar adentro e lançai vossas redes para a pesca” (literalmente: “voltai para a profundidade e fazei descer vossas redes para a pesca”).
A tradução oficial da CNBB diz: “Avançai mais para o fundo, e ali lançai vossas redes para a pesca”, destacando o esforço pessoal dos pescadores. Pedro e seus companheiros revelam-se ser pessoas “arrisca-das”, inclusive ousados, por acreditarem em Jesus na realização de sua tarefa. Jesus lhes pede um novo esforço, os leva a novos mares, e eles assumem a atividade sem resistência.
No fundo, eram homens “aventados” (com o sopro do bom Espírito), pois foram capazes da arriscar, lançando as redes em um horário impróprio (de manhã); sabemos que os pescadores armam as redes ao cair da tarde e as recolhe na manhã do dia seguinte.
“Nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. O fato de que a pesca abundante seja precedida de um total fracasso, tem um significado existencial muito profundo. Quem nunca teve a sensação de ter trabalhado em vão durante décadas? Só teremos êxito quando nosso trabalho se situa no horizonte do sentido: para quem trabalhamos? É para o Reino? É para o bem dos outros...? Isto quer dizer que devemos agir de acordo com a atitude vital de Jesus, para além de nossas posições raquíticas e rasteiras. O que o relato nos pede é algo muito diferente: deixar Jesus Cristo entrar na barca de nossa vida. “Confiando em tua palavra, lançarei as redes”.
Simão já havia presenciado a cura de sua sogra. Sua confiança em Jesus aumenta com a quantidade de peixes que apanharam. A pesca abundante, ao meio-dia, depois do fracasso noturno, é um presente, um sinal da benção divina. Pedro não se considera digno de tal benção, mas reconhece a força de Jesus que tivera a iniciava de mover os pescadores a uma nova tentativa de pesca.
A reação dos pescadores é de assombro e reconhecimento que, talvez, não mereciam tanto. Mesmo assim, superado o primeiro impacto emocional, eles encontram um sentido novo e uma direção diferente para avançar na vida. Jesus os chama explicitamente – “eu vos farei pescadores do humano” – ou seja, “eu os convido a que me ajudeis a situar as pessoas em uma posição diferente para recuperar a verdadeira essência da vida”.
Lucas usa a expressão “dsogrón”: reanimador ou despertador de pessoas. Jesus reanima, desperta aqueles rudes pescadores com seu Espírito; tira-os de sua cotidianidade repetitiva, sem criatividade, sem sonhos maiores; abre os olhos deles e os reaviva para prolongar Seu caminho, ou seja, dedicarem-se a despertar o melhor em cada pessoa.
O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de lançar redes: sair da rotina, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar... Isso dá medo, mas os impulsiona a se deslocarem para o desconhecido, saírem das margens conhecidas, seguras e mergulharem na aventura do próprio Jesus.
Jesus sempre se revelou como o homem integrado que, livremente, teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir as ricas possibilidades, recursos, criatividades, inspirações... Movido pelo Espírito, Ele trouxe o “novo” das profundezas do seu próprio ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas. Com sua sensibilidade, Jesus foi capaz de tocar naquilo que as pessoas mais amavam (mundo das esperanças, impulsos para uma vida plena...) e o potencializou.
No caso dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior, Jesus os desafiou a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
"Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada um.
Debaixo das cinzas do cotidiano, encontra-se as brasas da paixão, dos desejos mobilizadores, dos sonhos...
Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele nos desafia a descer no mais profundo no oceano do nosso coração e ali buscar o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e des-velar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.
Sejamos pessoas que, saindo ao campo da vida, tenhamos a oportunidade de também tornar melhores os outros com quem nos encontramos!
Texto bíblico: Lc. 5,1-11
Na oração: Pedro e seus companheiros desejavam algo novo; no entanto, romper com a normalidade na arte de pescar estava para além de suas possibilidades. Foi necessário que Alguém de fora os incitasse ao abandono daquele modo arcaico de pescar.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.02.2024
“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
No oriente, esta festa é conhecida como “o encontro”; no Ocidente, tomou o nome de “purificação de Maria” ou “candelária”, porque a cerimônia mais vistosa deste dia era a procissão das candeias, ou seja, quarenta dias depois do nascimento de Jesus (fechando o ciclo do Natal), os cristãos (especialmente as mulheres) iam às igrejas com velas/candeias, dando graças pela vida.
Na nova liturgia, a festa deste dia chama-se “apresentação do Senhor”; nela retoma-se o simbolismo da Epifania, recordando Jesus como Luz de todos os povos.
Falamos de nova Epifania quando Jesus é manifestado a Israel, representado por dois idosos (Simeão e Ana) que estavam no Templo, alimentando uma esperança que agora se realiza: tomar nos braços o Menino Salvador. Na primeira Epifania, os Magos, depois de adorarem o Menino, regressam às suas terras por outro caminho. Agora é a Epifania daqueles que também querem “partir” com a vida plena e realizada.
O relato do nascimento de Jesus em S. Lucas é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o menino é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.
Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo.
Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.
Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos. Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.
O mundo está cheio de mistérios grandiosos que cobrimos com a rotina e as pressas. Falta-nos capacidade de assombro e pureza no olhar. Quando o mundo é visto tão somente com os olhos estreitos e interessados, os encantos e as surpresas da vida passam desapercebidas e se tornam realidades opacas, ambíguas, obscuras.
Os modos de agir de Deus são discretos, quase escondidos; só um olhar contemplativo consegue perceber. Por isso, podemos evocar aqui o ícone da Apresentação de Jesus no Templo, onde o Espírito convoca todos os personagens e os faz coincidir em uma festa de promessas cumpridas. Todo o relato do evangelho deste domingo está atravessado de cotidianidade, tudo transcorre “sob a lei” e alguns ritos. Simeão e Ana são presenteados com o privilégio de contemplar o Salvador, porque souberam esperar e permanecer na fidelidade; souberam contemplar, na vulnerabilidade de um menino, o desejado de Israel.
Na passagem de Lucas, nem os sacerdotes do templo, nem os mestres da lei, nem os legitimados pela religião ou pelo poder social reconhecem no Menino a presença do Salvador. Aqui falam os pequenos e os simples; aqueles que não costumam ter palavra – pastores, pagãos, idosos – são os que veem mais além, maravilham-se, reconhecem e confessam. E com eles devemos estar, se queremos também reconhecê-Lo.
Podemos dizer que o Nascimento de Jesus está rodeado de idosos(as); os anciãos são despertados: primeiro foi Zacarias; logo depois, Isabel. Mais tarde Simeão e Ana.
Simeão, aquele da promessa de que não morreria sem ver o Salvador. Ana, a profetisa que dá graças a Deus e fala do menino a todos os que aguardam a libertação de Jerusalém.
A cena da “apresentação de Jesus” nos faz recordar e compreender o valor e a importância da presença dos anciãos, sobretudo entre as crianças e os jovens. Eles são um tesouro.
O Papa Francisco nos diz: “Nós vivemos em um tempo no qual os anciãos não são contados. É feio dizer isso, mas eles são descartados porque atrapalham”. No entanto, “os anciãos são aqueles que nos trazem a história, a doutrina, a fé e nos deixam como herança. São como o bom vinho envelhecido, isto é, tem dentro de si a força para nos dar essa herança nobre”.
Jesus é “apresentado” publicamente no Tempo; mas, só dois idosos desconhecidos saem do “anonimato” e cantam a esperança que os alimentara tanto tempo. Seus olhares cansados conseguem ver naquela criança a esperança realizada do Povo de Israel.
O velho Simeão personifica a justiça e a piedade israelita; representa o povo que escuta a Deus, que recebe seu Espírito e espera a chegada do Messias. Não tem idade, não é de agora nem de antes; é de sempre, é a plenitude da esperança. Recebeu a promessa de ver a Cristo Senhor antes de morrer e vive somente para isso. Assim, quando chegam os pais de Jesus, ele se apresenta, toma o menino em seus braços e bendiz a Deus dizendo: “Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz...”
Soube esperar; agora, sabe esperar a morte com serenidade. Sua vida culminou, teve sentido tudo o que tinha feito. Agora pode morrer com a esperança realizada, como indivíduo concreto e como patriarca, representante do povo, condensado em sua pessoa. O verdadeiro Israel, que é Simeão, cumpriu sua missão esperando o Salvador em quem todos os povos se vinculam no gesto de paz. Toda uma vida centrada numa promessa; toda uma vida carregada de esperança; toda uma vida que não se cansa de esperar.
Simeão viveu e envelheceu crendo numa promessa; viveu e envelheceu sem cansar-se de esperar. A luz tardou em iluminar; a noite foi longa para envelhecer. Mas, a esperança é assim: não tem hora; as esperanças semeadas no coração terminam amanhecendo. Começa a fazer-se luz quando seus olhos já estão se apagando. Pode abraçar o Salvador prometido, quando seus braços já estão cansados.
O evangelho de hoje nos fala também de outra grande mulher, cuja pequenez enaltece: Ana, a profetisa.
Ana conectou sua vida com as batidas do coração de Deus, esteve sempre em oração, sempre no Templo, em sintonia com uma esperança que pairava no ar. Ela nos fala da espiritualidade do esvaziamento de nossos egos inflados, nossas soberbas, saindo de nós mesmos para deixar espaço ao Menino, colocando nossa voz, nossas pessoas, nossas vidas para torná-lo conhecido entre todos. O importante é falar do Menino, como Ana; ser profetas e profetisas, em seu nome.
Ana, a profetisa, pode nos comunicar algo do segredo da esperança. Para isso, como esta idosa, conectemos com esse pulsar que, se estivermos atentos, sentiremos em nossas entranhas. Deixemos que a Ana profetisa que há em todos nós, tenha vida e fale a todos do Menino. Despojemo-nos de tudo o que nos impede ser Ana, daquilo que não nos deixa ser profetas e profetisas.
Esqueçamos nossa mediocridade e deixemos levar, deixemos fluir a Vida de Deus em nós, em nosso entorno. Sejamos como Ana, portadora da Boa Notícia do Menino, tão pequeno e tão grande.
Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré; ali, o Menino “crescia” e se “humanizava”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo e ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.
Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do seu povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.
Texto bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: “Não é necessário que alguém me apresente diante de Deus. Sei que sou mais d’Ele que de mim mesmo e eu nada seria se me separasse d’Ele. Essa realidade desconcertante me ultrapassa. Uma vez descoberta e aceita, me abre possibilidades infinitas como ser humano” (Fray Marcos).
- Como integrar, na sua vida, estes dois ambientes: Jerusalém e Nazaré?
- Rezar o seu “cotidiano” familiar, comunitário, profissional, social... Sua presença “faz diferença”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.01.2025
“... após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo” (Lc 1,3)
Neste terceiro domingo do Tempo Comum, a liturgia nos convida a um passeio pelos primeiros capítulos do terceiro evangelista. O texto de hoje nos dá boas-vindas ao Evangelho de Lucas; em seguida, salta os relatos da infância e do batismo de Jesus. Depois de procurar dar solidez aos testemunhos da comunidade lucana e a tudo o que foi fixado por escrito a respeito de Jesus, nos situa diretamente em sua vida pública, já com o discernimento feito, durante o tempo do deserto, sobre o sentido de sua missão.
Antes de começar a narrar o ministério da vida pública, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsionou Jesus e qual foi o horizonte de sua atuação. Os cristãos devem saber em que direção o Espírito de Deus conduziu Jesus, pois segui-Lo é precisamente caminhar em sua mesma direção.
Lucas nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. O Evangelho de hoje marca o início da missão de Jesus: conduzido pela força do Espírito, Ele começa justamente lá onde “ninguém era capaz de dirigir o olhar e o coração”.
O relato deste domingo começa com um formato epistolar dirigido a Teófilo. Lucas o situa no princípio do Evangelho e no começo do livro dos Atos dos Apóstolos, para dar-lhe um caráter literário, como se fosse uma longa carta remetida a seu companheiro Teófilo. Mas não é só uma carta subjetiva relatando o que fora experimentado, mas alude a uma investigação diligente para dar consistência e solidez aos fatos que marcaram profundamente Aquele que passou por esta vida fazendo o bem.
Teófilo não é tanto um indivíduo, mas devemos entendê-lo no sentido etimológico da palavra: “Theos”: Deus/”philos”: amigo. Lucas dirige seu evangelho aos amigos de Deus. Deus é amigo, amigo nosso, amigo de todos. Nossa relação com Ele não se fundamenta no poder, na ameaça, na imposição e no domínio, mas na amizade que não alimenta medo, angústia, submissão.
Segundo o Evangelho, somos amigos(as) de Deus (Teófilo), não clientes de uma religião.
“Teófilo” somos todos: Deus é amigo de todos nós. No missal romano há uma oração eucarística na qual se diz: “quando pela desobediência perdemos vossa amizade, não nos abandonaste...). E quem disse que Deus deixou de ser amigo das pessoas? Deus não retirou nunca sua amizade para com o ser humano.
É uma consideração de grande transcendência saber que somos todos amigos e amigas de Deus e que Ele nos tem a todos por seus amigos e amigas. Infelizmente, na vida cristã, dá-se muito maior peso a expressões carregadas negativamente: pecadores, indignos, miseráveis... Fala-se tanto de pecado e de inferno e muito pouco do “Deus amigo” que nos quer bem, que nos ama a todos.
É um bálsamo escutar S. Lucas afirmar que Deus é nosso amigo. O Evangelho de Jesus, portanto, é boa-notícia dirigida aos amigos e amigas de Deus. O Deus de Jesus não é um justiceiro temível a quem devemos aplacá-lo com nossas míseras penitências e mortificações. Deus é amigo; quem é amigo não sufoca o outro com pesadas cargas de leis, culpas e condenações; quem é amigo não se impõe sobre os outros através da obediência cega. Quão distante estamos do “Deus amigo” revelado por Jesus!
Avançando no texto, o evangelista Lucas nos mostra Jesus no início de seu ministério, expondo seu “projeto com vida” na sinagoga de Nazaré. É a etapa do início de sua pregação, de sua vida itinerante e, posteriormente, já em Cafarnaum, o relato de suas primeiras curas e do chamado de seus primeiros discípulos.
Jesus dirige-se à sinagoga, como era costume entre os judeus, e ali lhe entregam o pergaminho onde estava escrito o texto do profeta Isaías (61,1-2). Não há dúvida que Lucas persegue um objetivo claro: fazer deste discurso em Nazaré o programa daquilo que vai ser toda a atuação de Jesus na Galiléia.
A cena na Sinagoga em Nazaré é impactante. Não é casual que Lucas a eleja como ponto de partida de todo o ministério de Jesus. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem título algum, se levanta na sinagoga de seu próprio povo e se reveste da função do escriba, se apresenta como mestre, diante da admiração e espanto de todos.
Lucas descreve com todo detalhe o que Jesus faz na sinagoga: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, ele mesmo busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e senta-se. Todos escutam com atenção as palavras escolhidas por Ele, pois revelam a missão à qual se sente chamado por Deus.
É sintomático que, na leitura do texto de Isaías, Jesus tenha omitido o último versículo: “anunciar um dia de vingança do nosso Deus”. Isso é de muita importância porque desmonta uma falsa imagem de Deus. Jesus se sente com autoridade suficiente para começar a reinterpretar a lei judaica a partir da coerência com sua nova consciência: sentir-se habitado pelo Espírito, que lhe tinha fortalecido no deserto, e pelo amor filial, experimentado no batismo.
De fato, a imagem de um Deus vingativo choca frontalmente com a imagem de um Deus Mãe-Pai que cuida, protege, dignifica e lança ao crescimento, à liberdade e à autonomia a partir de um vínculo profundo.
Trata-se de uma passagem para a consciência adulta centrada na concepção da religiosidade que não se encaixa com a dinâmica infantil do prêmio-castigo diante do bem ou do mal praticado. Jesus nos situa diante de um Deus que habita nosso ser mais profundo e que se manifesta como “graça”, como luz, força, cura e autoridade, a partir da dignidade que nos confere. Uma consciência de liberdade que favorece a eleição daquilo que vai dar um sentido profundo à nossa vida. E esta visão vital tem claríssimas consequências como Jesus expõe nessa recuperação do texto de Isaías.
Poderíamos dizer que Lucas apresenta Jesus pronunciando seu “discurso programático”, fruto do discernimento durante sua estadia no deserto, logo após seu batismo. A “força” de seu programa não procede de uma ideologia poderosa, nem de uma determinada religião, nem de um patriotismo doentio; Jesus vive e começa a atuar impulsionado pela “força do Espírito de Deus”. Ele se deixa conduzir, no mais profundo de si mesmo, pelo Espírito; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.
O modo de ser e viver de Jesus é o do Espírito de Deus. O mesmo Espírito criador e criativo do Gênesis, agora “paira” sobre Jesus: Espírito de vida. O mesmo Espírito que atuou durante o êxodo do povo de Israel: Espírito de Liberdade. O Espírito é brisa suave, descanso, é consolo e ânimo. É o mesmo Espírito de fecundidade e vida (Maria-Jesus). Espírito que move a comunidade cristã, arrancando-a de seus medos. E esse Espírito é paz, alegria, impulso e esperança para viver.
A vida e a missão de Jesus são presididas não por esquemas religiosos, mas pela criatividade, pela liberdade, pela vida, pelo ânimo, consolo... despertados pelo Espírito.
Sob a ação do Espírito, Jesus deixa claro que sua missão é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...
Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher. Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.
E, ao “fixar os olhos n’Ele”, os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo. As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.
Texto bíblico: Lc 1,1-4;4,14-21
Na oração: Se o que fazemos e proclamamos, como cristãos, não é captado como algo bom e libertador pelos que mais sofrem, que Evangelho estamos anunciando? A que Jesus estamos seguindo? Quê espiritualidade estamos promovendo? Estamos caminhando na mesma direção que Jesus caminhou?
- Inspirado(a) na missão de Jesus, qual é sua missão no ambiente em que você vive? Família, trabalho, comunidade cristã, compromisso social...?
- Sua missão o(a) situa no horizonte do empobrecido, do excluído...?
- Na sinagoga de sua vida, o que prevalece? a preocupação com o rito, com a doutrina, com as leis... ou é lugar de abertura ao mundo do outro?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.01.2025
“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10)
Talvez porque Israel e Jesus eram mediterrâneos, viram no vinho o sinal de abundância e alegria. Isto está muito presente na Bíblia e na cultura popular. O vinho é um tema muito usado por Jesus, para falar da nova situação do Reino: vinho novo, odres novos.
A vida de Jesus transcorrerá entre refeições e encontros, banquetes e bodas, multiplicação de pães, etc. Não é muito complicado entender que o cristianismo é alimento, vida e festa em todos os sentidos da palavra.
Jesus oferece a verdadeira salvação, mas esta não vai depender de nenhuma lei (talhas). A água se converterá em vinho fora delas.
“Celebrai a vida com vinho!”, nos diz Jesus, que é o amor que se expande, que contagia. É antes de tudo o vinho dos “noivos”, daqueles que se uniram para celebrar a festa de sua vida, para beber juntos da mesma taça o vinho do amor que cresce sempre mais. É a festa de todos os convidados, entre eles Maria e os discípulos, que devem transformar o mundo à base de bom vinho. Quando há abundância de vinho e aprende-se a beber em comunhão de prazer, a vida se transforma.
Este é o motivo central da festa de Jesus que nos faz celebrantes da vida, animadores dessa festa, que é de todos, homens e mulheres, convidados ao banquete das bodas, sem que ninguém fique excluído, sem que ninguém o monopolize. Este é o tempo de passar do vinho ruim ao bom vinho de festa, de amor generoso, de bodas de vinho para todos, superando as velhas leis e purificações, para nos colocar a serviço da vida.
Com toda certeza, a festa de casamento era e é um dos momentos mais felizes e importantes na vida dos noivos; a boda é encontro, amor, alegria, festa, esperança, amizade... Talvez por isso a boda era imagem dos tempos messiânicos. O banquete de bodas foi um sinal muito utilizado por Jesus: o Reino de Deus é como um banquete de bodas ao qual somos todos convidados. Nosso Deus é “festeiro” e que organiza ricas refeições.
Esse é o sentido do “evangelho das bodas” onde está presente a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam em amor e querem que esse amor se expanda e que chegue a todos, expresso no vinho de festa e na plenitude prazerosa. O judaísmo era religião de purificações e jejuns; por isso, precisava de muita água para as abluções. Pois bem, contra isso, o evangelho começa sendo experiência messiânica de festa. No meio dela, como animadora e guia, como irmã e amiga, encontramos a Mãe de Jesus. Não a busquemos nas penitências e mortificações, mas nas alegrias da vida. Só assim, quando saboreamos com ela do vinho de Jesus, poderemos dedicar nosso trabalho e alegria a serviço daqueles que estão excluídos e não tem acesso ao vinho saboroso.
Muitas vezes, na própria comunidade cristã tem-se impedido que haja vinho para todos: uns desperdiçam, outros só oferecem “vinagre” (ritos estéreis, mortificações, penitências...), outros retém para si o melhor vinho e não o oferecem aos outros...
Às vezes temos a sensação de que a Igreja atual se encontra na mesma situação dos noivos e dos convidados à festa: “eles não têm mais vinho”. Anuncia-se com trombetas a festa, mas não se consegue oferecer nada: só aparência de bodas, uma festa vazia, carregada de ritos que alimentam culpas, inclusive com músicos pagos, ornamentações luxuosas..., mas falta o melhor: o vinho.
Sem o vinho, nem os noivos podem pronunciar sua palavra de amor, nem os amigos podem compartilhar e celebrar com eles, conforme o ritual judaico. Esta é a situação: em muitas comunidades cristãs predomina um funeral de críticas, lamentações e abandono. E muitos vão embora da festa, pois falta o vinho.
“Enchei as talhas de água”, ordenou Jesus, pois estavam vazias. “Estavam seis talhas de pedras colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer”. Em plano externo, eram necessárias para que os judeus pudessem cultivar sua pureza ritual, mas eram incapazes de oferecer às pessoas a vida e o prazer do Reino.
Em Caná, Jesus se valerá da estrutura religiosa para propor o projeto do Reino, centrado no amor e na amizade entre seus integrantes. O “melhor vinho”, símbolo da qualidade dessas relações, revela-se essencial e não pode faltar na festa existencial que Ele propõe (bodas). Com seu gesto, Jesus declara caduco a antiga ordem centrada na Lei; deslocando-a para uma melhor pauta de vida: alegria, festa, amizade...
Com sua presença numa festa de casamento, Jesus funda uma “nova comunidade”, marcada pela alegria, pela festa e pela abundância do melhor vinho.
É o momento da boda, da vida, do amor, do encontro... Somente esta passagem da água real ao vinho realíssimo da festa, da nova consciência, do prazer partilhado, expressa a novidade de Jesus.
Muitas vezes, corremos o risco de bloquear o projeto de Jesus e fechá-lo em grandes cântaros de água. Pois bem, é a hora de um novo tempo, de abrir as talhas e enchê-las de água nova, para que Jesus nos ajude a transformar a água em vinho da festa sem fim.
Festejar é afirmar a bondade e o sabor da vida.
Sem festa não conseguiremos nos ajustar bem à existência e à convivência; falta-nos a leveza existencial da liberdade e do sentido da vida. Na festa, a comunidade que celebra encontra legitimação para sua atuação, recriando a espiritualidade da vida, aprofundando-a a nível emotivo-afetivo, reavivando a esperança que anima, antecipando a utopia que a une.
O ápice da festa é gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da vida.
Por sua gratuidade, a festa faz descobrir a gratuidade da vida humana, a gratuidade da ação histórica.
Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião, mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Por quê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.
A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.
Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renunciemos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é anti-evangélica.
Texto bíblico: Jo 2,1-11
Na oração: deixe-se mobilizar pelo Espírito: Ele suscita, em você e na realidade, ricas possibilidades que equivalem a um saboroso vinho da melhor qualidade
Não seja nunca uma “talha de pedra” que sufoca a Vida. Mereça a Vida que Deus lhe dá! Que em você, a vida saboreada seja expressão de sua filial sintonia com o Senhor.
Faça-se disponível perante Ele; seja um bom recipiente do melhor vinho da Graça!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.01.2025
Terminado o “tempo natalino”, começamos o tempo litúrgico conhecido como “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos. Toda a liturgia deste ano (2025) deve estar iluminada pelo tema do “Ano Jubilar”: “Peregrinos de esperança”.
O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
Com o seu Batismo, Jesus “começa algo novo”, um movimento de vida, fora das estruturas religiosas de seu tempo. É a primeira coisa que os evangelistas deixam claro. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e, com uma presença inconfundível, reacende a esperança nas pessoas, sobretudo naquelas mais excluídas.
O relato do evangelho deste domingo afirma que Jesus deixou Nazaré, sua casa e sua comunidade, e se dirigiu para as margens do Jordão, onde fora batizado por João. Começa sua vida itinerante.
A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus à humanidade. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Ele é o “autor” da estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Com os itinerantes Jesus dá início a um movimento a serviço do Reino e Ele mesmo é um itinerante. Não permanece numa casa, não se fecha em um lugar, não fundou uma instituição vinculada a um tipo de templo, sinagoga ou santuário, mas percorre, com um grupo de discípulos(as)/amigos(as), também itinerantes, os povoados e aldeias da Galiléia, anunciando e realizando o Reinado do Pai.
Ele é o inspirador de toda itinerância; com sua peregrinação Ele abre possibilidade de outros caminhos. Ele convoca a todos a um seguimento que está profundamente conectado com o seu próprio destino.
“Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profundeza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo inspirador ou deslumbrado, que deixa necessaariamente impressões muito profundas.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se “configurar”, isto é, movimento pelo qual cada um vai sendo modelado à imagem d’Ele.
Para entrar em sintonia com o Peregrino, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com Ele. Aqui está a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus: o(as) “adeptos(as) do caminho”.
De fato, em seus inícios, o cristianismo era conhecido como “o Caminho” (At 18,25-26). Tornar-se cristão não era simplesmente entrar numa nova religião; era encontrar o caminho acertado da vida, caminhando sob as pegadas de Jesus, para viver com sentido e esperança. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso” (leis, ritos, doutrinas, hierarquias...), mas um “caminho novo e vivo” que fora inaugurado por Jesus, um caminho que era percorrido com os olhos fixos n’Ele. Ser cristão significava, para eles, “seguir” a Cristo. Isto era o fundamental, o decisivo.
Por isso, não é estranho que ainda hoje podemos encontrar muitas pessoas que se sentem cristãs simplesmente porque foram batizadas e cumprem alguns deveres religiosos, embora nunca tenham considerado a vida como um seguimento de Jesus Cristo. Este fato, bastante generalizado, seria inimaginável nos primeiros tempos do cristianismo.
Então, qual o sentido do batismo de Jesus? Trata-se de um acontecimento que traz uma mensagem nova e que supera radicalmente o Batista. Os evangelistas cuidaram com esmero desta cena. O céu, que permanecia fechado e impenetrável, se abre para mostrar seu segredo. Ao abrir-se, não descarrega a ira divina que João Batista anunciava, mas revela o amor de Deus, o Espírito, que pousa pacificamente sobre Jesus. Do céu se escuta uma voz: “Tu és o meu Filho amado”.
A alusão aos céus que se abrem definitivamente é a expressão de uma esperança de todo o AT: “Quem dera rasgasses o céu e descesses!” (Is 63,19). A comunicação entre o divino e o humano, que havia ficado interrompida por culpa da infidelidade do povo, é, a partir de agora, possível graças à total fidelidade de Jesus. A distância entre Deus e o ser humano fica superada para sempre. Jesus ouviu a voz dentro de si mesmo e está lhe deu a garantia absoluta de que Deus estava com Ele para levar a missão a bom termo.
A mensagem é clara: com Jesus Cristo o céu permanece aberto; de Deus só brota amor e paz; podemos viver com confiança. Apesar de nossas limitações e de nossa mediocridade, também para nós “o céu se abre”. Também nós podemos escutar com Jesus a voz do Pai: “tu és para mim um filho amado, uma filha amada”. De agora em diante podemos assumir nossa história de vida como a marca da dignidade de filhos(as) de Deus, e que devemos cuidar com zelo e agradecimento.
Para quem vive a fé no Deus que “rasga os céus e desce”, a vida se revela cheia de momentos de graça: o nascimento de uma criança, o encontro com uma pessoa cheia de bondade, o serviço gratuito, a experiência de um amor oblativo, o cuidado com a criação..., que põem em nossa vida uma luz e um calor novos. De imediato nos parece ver “o céu aberto”. Algo novo começa em nós: sentimo-nos vivos, desperta-se o melhor que há em nosso coração, reacende-se uma nova esperança, novas relações interpessoais são vividas...
Talvez aquilo que sonhávamos secretamente, agora nos é presenteado de forma inesperada: um início novo, uma vida diferente, um “batismo de Espírito”. Por detrás dessas experiências está Deus nos amando como Pai, está seu Amor e seu Espírito, doador de vida.
Recebemos o batismo gratuitamente; talvez, por isso mesmo, não damos o devido valor.
Efetivamente, não fomos consultados para ser batizados, mas tampouco fomos consultados para nascer, nem na família que temos. Tampouco nos pediram opinião para amanhecer em determinado lugar do mapa, nem para ser de uma determinada raça. E, no entanto, tudo isso é decisivo e nos constitui como pessoas.
Por que não damos o devido valor ao nosso batismo? Por que não somos mais humildes e nos coloquemos na fila dos demais? Por que não somos mais agradecidos e, com Jesus, mergulhemos nas águas do Jordão para sermos re-batizados?
Esquecemos que “ser cristão” é “seguir” Jesus Cristo: mover-nos, dar passos, caminhar, construir nossa vida seguindo suas pegadas. Nossa vivência cristã, às vezes, permanece numa fé teórica e inoperante, ou se reduz a uma prática religiosa rotineira, estéril, sem maiores compromissos; não transforma nossa vida em seguimento. “Batiza-nos, Senhor, com teu fogo!”
Texto bíblico: Lc 3,15-16.21-22
Na oração: Nutramos nosso “ser peregrino” que carregamos dentro de nós! Deixemos que ele se submerja nas águas da vida, para um novo renascimento.
Despertemos a esperança adentrando-nos em “nosso Jordão”! E desfrutemos da paisagem externa, descobrindo assim a paisagem de dentro. Deixemos emergir nosso mapa interior. Contemplemo-lo e agradeçamos... tudo. O bom. O boníssimo e o difícil ou tortuoso. Assim é o caminho da vida.
- Sua vivência batismal se reduz a algumas práticas religiosas egóicas? Ou ela tem a marca de Jesus que, após seu batismo, viveu o compromisso com os pobres e excluídos até à radicalidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.01.2025
“... retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (Mt 2,12)
Celebremos “Epifania” situando-nos no horizonte do Ano Jubilar, com o tema: “Peregrinos de esperança”. Guiados pela estrela no céu e pela estrela de uma grande esperança no coração, os Magos começaram a caminhar. Na sua busca, examinaram o céu e auscultaram o próprio coração. Porque buscavam, empreenderam o caminho. Puseram-se a caminho porque tinham perguntas e uma inquietante esperança no coração.
A itinerância dos Magos vem nos recordar que “caminhantes somos”, todos no mesmo percurso, no mesmo voo, no mesmo barco. Mas temos esquecido nossa condição de nômades do tempo e da vida, peregrinos de Deus, pensando que podemos construir, com a ajuda do mesmo Deus, uma casa permanente sobre o mundo, um “tabernáculo” perpétuo onde repousar, seja na forma “sacral” (nossas seguranças religiosas), seja na forma secular (nossos sistemas econômicos-sociais). Mas, as condições dos tempos e, de um modo especial, a experiência mesma do evangelho, nos fazem descobrir que somos nômades do tempo e peregrinos de Deus, para além de todas as formas e estruturas que fomos criando ao longo da história.
Ser nômade do tempo significa caminhar (voar, navegar), leves de equipagem e por itinerários que ainda não foram percorridos por ninguém, não como aves migratórias que vão e voltam por rotas pré-fixadas na mesma evolução do tempo, pelas estações e pelos ventos da terra. Somente nós, seres humanos, somos verdadeiros peregrinos da criação, pois para continuar existindo precisamos abrir, por terra, mar e ar (ou seja, por nós mesmos, no interior de nossa humanidade), os caminhos que ainda não existem, pois nós mesmos os traçamos.
Peregrinos somos, e assim a festa da Epifania, inspirado no deslocamento dos Magos, nos leva para fora dos pequenos lugares de refúgio que fomos edificando (nossas torres de Babel) para amar, viver e morrer no descampado, como Jesus, enquanto buscamos e esperamos a cidade futura. Assim, caminhamos com Ele, sabendo que nem o olho viu e nem o ouvido ouviu o que poderemos olhar e escutar se continuamos caminhando com Jesus.
Na Epifania, não somos simples espectadores, mas, sim, criadores de futuro, ou seja, de nós mesmos, em Deus. Unidos por uma esperança compartilhada, queremos ser pessoas “epifânicas”, sabendo que nossa história não está escrita nem fixada ainda, mas que nós mesmos vamos traçando-a, enquanto Deus percorre seu caminho em nós e por nós. Como cristãos cremos que nossa vida não está escrita, mas que precisamos escrevê-la, nós em Deus e com Deus. Por isso “somos epifania”; vivemos em “estado de epifania”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas.
Cada ser humano é “homo viator”, um itinerante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construi-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e mais além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”.
Todo caminho implica um mundo de relações; relações livres porque não sabemos com quem vamos encontrar; falamos de igual para igual, compartilhamos alegrias e tristezas, nossa conversação, nossa ajuda. Não há pré-juizos no trato mútuo, ajudamos e somos ajudados, carregamos a mochila de nosso irmão cansado, curamos suas bolhas nos pés; aproximamo-nos das pessoas sem barreiras, superando fronteiras de raça, credo e cultura.
Nosso caminhar pessoal, familiar, social, histórico... é um caminhar para a “terra prometida”, para o melhor, para a superação constante...; é um caminhar que se abre a nós cheio de possibilidades, que alimenta a esperança, que nos enche de novas energias..., porque Deus, que é novidade constante, nos impulsiona a partir de dentro.
Os sábios do Oriente, com humildade perscrutaram por entre as pegadas da ciência em busca da verdade e quando descobriram um vestígio dela, puseram-se em movimento.
Viram a estrela e partiram, seguindo seu caminho; e no seu trajeto se informaram, procuraram, indagaram, retomaram o caminho. Com a paciência do diálogo, com a humildade da espera, com a alegria da esperança, esses foram ao encontro da Verdade.
O cristão é alguém que vislumbrou a “estrela”, aponta-a e, junto com os outros, desloca-se seguindo sua direção. O caminho da vida é marcado por percalços, dúvidas, fracassos..., mas seu coração é portador da força insubstituível da busca.
Como os Magos, porque busca, desperta nos outros o “ser buscador” que está escondido.
No processo da experiência cristã, a busca é um dinamismo determinante da mente e do coração de cada pessoa. Aquele que busca, movido por uma razão, quando encontra vibra de alegria, como a parábola do buscador de pérolas.
“Se eles (magos) percorreram um caminho tão longo para ver o recém-nascido, que desculpa terás tu se nem sequer fores ao bairro ao lado para visitá-lo enfermo e encarcerado”? (S. João Crisóstomo).
De Deus viemos. Dele somos. Nele vivemos. Para Ele vamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos Pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo(a) seu(sua) seguidor(a). O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.
Em chave de interioridade, podemos interpretar o relato de Mateus recorrendo à psicologia do profundo. Os magos representam o caminho que seguem aqueles que escutam seus desejos mais nobres do coração humano; a estrela que os guia é a busca do divino; o caminho que percorrem é o desejo; o menino é a eterna criança que nos habita. Para descobrir o divino no humano, para adorar o menino em vez de buscar sua morte, para reconhecer a dignidade do ser humano em vez de destruí-la, é preciso percorrer um caminho oposto àquele que Herodes segue.
Podemos também recordar o significado simbólico dos presentes que os Magos oferecem. Com o ouro reconhecem a dignidade e o valor inestimável do ser humano: tudo há de ficar subordinado à sua felicidade; um Menino merece que sejam colocadas a seus pés todas as riquezas do mundo.
O incenso recolhe o desejo que a vida desse menino se expanda e sua dignidade se eleve até o céu: todo ser humano é chamado a participar da vida mesma de Deus.
A mirra é o remédio para curar a enfermidade e aliviar o sofrimento: o ser humano necessita de cuidados e consolo, não de violência e agressão.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: No contexto pós-moderno, onde predomina o uso dos meios eletrônicos, os “lugares virtuais” acabam determinando nossa vida, nosso modo de pensar, nossa visão, nosso sentir... Enquanto a tecnologia nos permite transitar por todos os lugares e encontrar pessoas mais distantes, cresce, no entanto, o medo do outro, daquele que é “diferente” de nós, daquele que não pensa como nós, encerrando-nos em pequenos mundos. Assim, os “percursos virtuais” acabam atrofiando nosso horizonte, nossos desejos e inspirações; as relações tornam-se frias, neutras, não nos comprometemos com o outro e não permitimos o confronto; matamos a possibilidade de viver contínuas travessias.
- É preciso despertar o “mago peregrino” que habita no interior de cada um, para empreender caminhos novos e acolher descobertas surpreendentes.
- Sua vida carrega a marca dos “magos buscadores” ou de Herodes acomodado, amigo da morte?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.01.2025
“Agora chegou o momento de um novo Jubileu, em que se abre novamente, de par em par, a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo” (Bula Papa Francisco, n. 6)
Com a Bula “Spes non confundit” (“a esperança não decepciona” – Rom 5,5), o Papa Francisco proclamou o Jubileu ordinário do ano 2025. Com o tema “Peregrinos de esperança”, a intenção do Papa é reacender a esperança em todo o povo cristão, tendo presente o contexto social e religioso marcado pela “desesperança”, carência de projetos e de sonhos, falta de sentido...
Que é o Jubileu da esperança? O texto bíblico do Levítico 25 nos ajuda a compreender o que significa “jubileu” para o povo de Israel. A cada 50 anos os hebreus ouviam o alegre som do “jobel” (corneta de chifre de carneiro) que ecoava nas montanhas e nos vales, convocando a todos (“jobil”) para celebrar um ano jubilar. Neste tempo devia-se recuperar a boa relação com Deus, com o próximo e com toda a Criação, fundada na gratuidade. Era um ano do perdão, ou seja, os pobres ficavam livres de suas dívidas, os escravos tornavam-se livres, os camponeses recuperavam suas terras... Cheios de júbilo, podiam respirar, podiam viver, podiam reacender uma nova esperança; era o jubileu.
Neste Novo Ano que se inicia, o Jubileu vem nos recordar que somos “peregrinos de esperança”; é da nossa essência humana. A vida é constituída de contínuas “travessias” em direção a um horizonte inspirador. Somos seres em trânsito, rumo ao novo. Itinerantes. Temos “fome e sede de estradas”. O próprio caminhar desvenda mais caminhos, desperta uma inspirada esperança.
“O ser humano é Terra que anda” (Atahualpa Yupanqui). O caminho está dentro de nós. Sem caminho nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência.
Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade. Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor. Esta é a grande esperança que dignifia toda a humanidade.
“Peregrinar” e “esperançar”: fundamentos de nossa vida; duas dimensões humanas indissoluvelmente unidas, pois uma não existe sem a outra; duas atitudes que revelam a verdadeira identidade do ser humano. Quando os pés se movem, a esperança se acende; por outro lado, ninguém caminha se não é alimentado pelo fogo da esperança; é a esperança que mobiliza nossos melhores recursos, mobiliza nossos pés e nos faz peregrinos(as). Enquanto avançamos no caminho, importa colher e acolher o que a esperança oferece.
Expandimos a esperança que ilumina a mente e o coração do nosso ser caminhante.
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da autotranscedência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Ele carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz... Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele, não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Nesse sentido, o Jubileu vem ao encontro desse nosso desejo profundo e se apresenta como uma mediação para ajudar-nos nessa longa travessia em direção à nossa própria identidade expansiva, deixando nosso estreito território e nos enveredando pelas terras desconhecidas do nosso “eu profundo”.
Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que desperta assombro frente aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Perceberemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado. A redescoberta de nós mesmos é a maior e sem dúvida a mais gratificante aventura de nossa vida.
Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar na história e a nossa missão no mundo.
O Jubileu da esperança nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões...
Foi essa a experiência vivida pelos pastores, que os arrancou do seu cotidiano e os fez caminhar em direção à Gruta de Belém; nas suas vidas, muitas vezes rotineira e sem expressão, uma Criança se fez presente e a alegria tomou conta do coração deles. E, repentinamente, sentem que, na noite da desesperança, uma luz os envolve, uma voz os consola, uma esperança floresce. A plenitude chegou para eles, e quando ela chega não se esgota num instante, senão que permanece ao longo de toda a vida. Eles se puseram a caminho, na direção do lugar onde o coração e a luz os guiaram. Num despojado presépio, a luz de seus olhos se encontrou com a glória da vida e do universo, encarnada no sinal mais humilde e luminoso: um recém-nascido.
Os pastores encontraram Aquele que é a “Luz da esperança”, e tudo se transfigurou para eles, pois Deus se revela em tudo. Com eles, também nós podemos nos colocar a caminho, olhar mais para dentro de nós mesmos, sentir o sofrimento dos excluídos, contemplar a harmonia do amanhecer e do entardecer de toda a natureza vivente, e reconhecer no fundo de tudo a paz que nos sustenta e nos relança em direção a um futuro carregado de esperança.
Neste mundo da violência globalizada, da economia que gera “massa sobrante”, da política planetária submetida aos poderes financeiros, da juventude condenada ao desespero, dos equilíbrios da natureza rompidos, neste mundo que parece ter perdido o juízo e caminha desesperadamente para o suicídio, neste mundo onde só cabe a resignação ou o conformismo doentio...., ainda continua sendo possível ver a Luz e experimentar, como os pastores, que ter “esperança é ser capaz de ver a luz apesar da obscuridade” (Desmond Tutu).
Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho: “Emanuel, Deus conosco”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade.
O Ano Novo nos abre as portas para uma vastidão de possibilidades, sonhos, desejos.... No início de cada ano civil nos é oferecida uma nova oportunidade, uma possibilidade aberta para investir o melhor de nós mesmos nos 365 dias que temos pela frente; assim, deveríamos viver o começo de cada ano, que se oferece a todos como novidade, oportunidade, novo começo...
Caminhar é preciso. O seu caminho tem coração?
O Ano Novo mora dentro de você.
Textos bíblicos: Lc 2,16-21
Na oração: Orar é entrar na Tenda do Senhor, que é o próprio coração: peregrinação interior, mobilidade...
- Deus “passa” e nos coloca em movimento; a oração é “fazer estrada com Deus”, caminhar na mesma direção, entrar no ritmo d’Ele, deixando-nos “ser conduzidos”.
- Para onde você sente que Deus vai lhe conduzindo? Há alguma coisa que o aprisiona?
- Recordar medos, entraves, obstáculos... que limitam sua vida interior, impedindo-o(a) fazer-se peregrino(a)
- Quê eventos inesperados no caminho transformaram sua vida? O que realmente causou impacto? Era algo planejado? Em que aspectos da vida você pode “sair” dos terrenos conhecidos? Você já se arriscou alguma vez?
- Neste Novo Ano que se inicia, você vislumbra caminhos inspiradores? Quê esperanças você alimenta no seu coração? Nele há lugar para a surpresa, para o inédito?
Um inspirado Ano Jubilar a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo:
hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11)
A celebração do Natal deste ano tem um sabor todo especial; podemos vivenciá-lo inspirado no “Ano Jubilar da esperança” - 2025-, cuja abertura acontecerá oficialmente no dia 29 de dezembro/24.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação entra em ação: diante d’Aquele que é “Luz da esperança”, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se faz visível nas pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa Criança a presença do Inefável.
Na verdade, “entrar” na Gruta do Nascimento de Jesus é sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve apenas para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”. Por este motivo, não podemos entender a esperança como mera “expectativa” que nos afasta do presente cotidiano, na promessa de algo que nos faça sentir melhor, em outro tempo e em outro lugar.
A autêntica esperança nos enraíza no presente. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Hoje eterno” de Deus. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele.
Na contemplação do Nascimento do Menino Jesus, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o cotidiano pode parecer vazio, mas ele aponta para a eternidade; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
Para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato e finca raízes no futuro novo; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver com mais sentido, integra o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, nos mobiliza a passar das puras exigências e das simples necessidades para o dinamismo do dom e do desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, que somente é possível se nos conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia a dia.
No Nascimento de Jesus Cristo, Deus realiza um verdadeiro casamento com a humanidade e com o planeta Terra, com toda a diversidade de vidas e com todas as suas riquezas naturais.
Contemplar o Nascimento de Jesus deve nos levar a um mais profundo reconhecimento de que a Terra e o que ela contém fornecem o material para o seu corpo, seu presépio e sua presença no mundo.
Em Jesus, Deus não só se fez Homem, senão “homem pobre e humilde”. A Palavra de Deus não pode ressoar em nós com toda a intensidade se, para nós, palavras como “gruta de animais domésticos, pastores religiosamente impuros, vida cotidiana, ...” não tem um profundo significado experiencial.
Na proximidade contemplativa dos pobres e humilhados encontramos os nomes e verbos nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Em Jesus encarnado encontramos a pobreza e a humildade de Deus, ao lado de muitas existências pobres e humilhadas. “Fora” e “abaixo”, onde Jesus se manifestou, construímos a “composição vendo o lugar” para situar a contemplação.
Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
O “mistério do Nascimento de Jesus” nos diz que a esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, sem nunca nos consumir; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Jesus é a Luz da esperança que brilha no mundo e na gruta interior de cada um; seu Nascimento revela-se como uma Luz que, do interior de uma Gruta, se espalha e ilumina toda a terra, harmonizando e integrando tudo. Quem se aproxima da Luz se torna luz, reflexo da Luz da Criança de Belém. A vida inspirada pelo Nascimento de Jesus é um “caminhar na Luz”.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”.
Podemos viver com encantamento a mais simples sensação, o encontro aparentemente mais banal e sentir transparecer através dos seres e das coisas o Rosto do Deus encarnado. Na sua luz, tudo passa da morte para a vida, da ausência para a presença, do tempo para a eternidade.
Para ilustrar concretamente a força inspiradora do Mistério que se revela na Gruta em Belém, há uma fantástica contemplação de um autor que está longe de ser um Padre da Igreja: trata-se de Jean-Paul Sartre, o famoso filósofo do existencialismo e ateu confesso. Quando foi feito prisioneiro de guerra em 1940, ele escreveu, a pedido de seus companheiros de prisão, a espantosa contemplação, como sua contribuição para a festa de Natal que eles queriam celebrar juntos. O título do texto é: “Se eu fosse um pintor”. Aparecem maravilhosamente unidos o humano e o divino, o sensível e o espiritual se entrelaçam intimamente:
“A Virgem está pálida e olha o filho. O que deveria ser pintado em seu rosto é uma maravilhosa ansiedade que só apareceu uma vez em uma figura humana. Pois Jesus é seu filho, carne de sua carne e fruto de suas entranhas. Ela o carregou nove meses e lhe dará o seio e seu leite se transformará no sangue de Deus.
E, em alguns momentos, a tentação é tão grande que ela esquece que ele é Deus. Ela o aperta nos braços e lhe diz: ‘meu pequeno’. Mas, em outros momentos, ela fica confusa e pensa: ‘Deus está aí’ – e ela se sente invadida por um puro medo religioso diante desse Deus mudo, dessa criança assustadora. Pois todas as mães, às vezes, ficam como que paralisadas diante desse fragmento rebelde de sua carne que é seu filho e se sentem exiladas diante dessa nova vida que se fez com a vida delas e que é habitada por pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi tão cruelmente nem mais rapidamente arrancado de sua mãe, pois ele é Deus e ultrapassa em tudo o que ela pode imaginar.
Mas imagino que também existam outros momentos rápidos e misteriosos nos quais ela sente que Jesus, ao mesmo tempo que é seu filho, é Deus. Ela o contempla e pensa: ‘Esse Deus é meu filho. Essa carne divina é minha carne, Ele foi feito de mim, ele tem meus olhos e a forma de sua boca é da minha. Ele parece comigo. Ele é Deus e ele parece comigo’.
E nenhuma mulher teve dessa forma seu Deus somente para ela. Um Deus pequenino que podemos abraçar e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que podemos tocar e que está vivo. E é em um desses momentos que pintaria Maria, se fosse pintor, e tentaria reproduzir o ar de confiança suave e de timidez com a qual toca com o dedo a pele suave dessa criança-Deus cujo peso ela sente sobre os joelhos e que lhe sorri”.
Textos bíblicos: Lc 2,1-15
Na oração: Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz e a esperança que brotam do coração que o Menino de Belém nos traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom; sem defesas, sem preços, sem temores.
A “memória agradecida” do tempo do Natal nos abre os olhos e todo o nosso ser para o grande presépio que é realidade, grávida de ricas possibilidades e novidades, de sorte que nos associemos à grande “descida” do Messias para comunicar Vida em Plenitude.
- Quê esperanças você carrega no coração?
Que a esperança, visível na Criança de Belém, se torne uma atitude permanente de vida.
Um inspirado Natal junto aos seus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.12.24
imagem: Bartolome Murilo
O relato evangélico deste 4º. Dom. de Advento nos revela o verdadeiro sentido do “visitar” e ser “visitado(a)”. Logo após a “anunciação”, Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia apressadamente o caminho para as montanhas, a um povoado de Judá, onde vivia Isabel. O impulso de seu coração movia velozmente seus pés.
Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel.
O Sublime se digna visitar o pequeno; o “Emmanuel” se manifesta nos sinais mais simples: duas mulheres, uma casa, um encontro, uma saudação... O AT e o NT se encontram e se acolhem, fora dos espaços sagrados da religião oficial. A partir de agora, devemos encontrar Deus no cotidiano, na vida. Jesus, já desde o ventre de sua mãe, começa sua missão de levar aos outros a salvação e a alegria. Tudo quer indicar que a verdadeira salvação sempre repercutirá em benefício dos demais; quando alguém a descobre, imediatamente quer comunicá-la. A visita comunica alegria (o Espírito), também à criança que Isabel carregava em seu ventre.
Aquelas mulheres grávidas, esperançadas e cheias de fé, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e, no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da alegria e da intimidade compartilhada.
Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou exultante a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. O “Magnificat” recolhe o louvor da orante que se descobre, a partir de sua humildade, fecundada pelo seu Senhor, dentro da História da Salvação.
“Visitar” implica mover-se, para perto ou longe, sair, colocar-se em marcha, abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade da outra pessoa. Por outro lado, a pessoa visitada abre a porta de seu espaço vital e acolhe aquela que vem “de visita”.
“Visitar” exige irremediavelmente investir tempo: quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente? A visita começa a dar frutos desde o primeiro instante, se há uma boa predisposição. A atitude de quem visita e de quem é visitada é elemento primordial.
Maria permaneceu em casa de Isabel durante três meses e depois voltou para sua casa. Deslocou-se, investiu seu tempo e podemos imaginar o quão maravilhosos foram os três meses que elas passaram juntas, acolhendo-se mutuamente, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, compartilhando...
No contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas em manifestações muito superficiais; reduzidas a um mero contato tecnológico através das redes sociais, Whatsapp, Instagram, etc, nos perguntamos se ainda tem significado o fato de visitar, para além de um contato comercial, de captação de clientes, ou do médico quando o paciente não pode se mover da cama.
Depois de empapar-nos do evangelho deste domingo é preciso nos perguntar: a que nos impulsiona o “movimento” de Maria visitando Isabel. E, se realmente, o fato de visitar tem um significado em nossa vida.
Há uma infinidade de pessoas, aí fora, esperando uma visita, um encontro de pessoa a pessoa.
Há muita necessidade de abraços e de afeto, que não se solucionam com “emojis” e fotos com preciosos textos de boas intenções no celular.
Há uma sede de presença física, de escuta, nas alegrias e nas dores de muitas pessoas; há enfermos crônicos que aguardam o consolo de uma visita gratuita e alegre que quebre a sua solidão.
Há muitos idosos que vivem sozinhos, cuja porta da casa nunca se abre para receber, porque ninguém se aproxima para ser recebido. Há muitos imigrantes que ultrapassam fronteiras, fugindo de seus lugares de origem e que precisam ser escutados, recebidos, alentados etc.
No contexto rural de nosso país ainda se conserva o bom hábito de “fazer visitas” e a casa torna-se espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda mútua...
Por outro lado, sobretudo nos grandes centros, as casas estão cercadas por uma parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada, alarmes contra invasores..., impedindo o acesso até dos mais próximos (parentes, amigos...). Com os familiares e amigos trocam-se frias mensagens eletrônicas em vez de visitas; com os desconhecidos, contato virtual descompromissado.
Além disso, há uma doença que afeta praticamente todas as casas: nelas, há muito mais espelhos que isolam as pessoas do que janelas que se abrem para a realidade externa.
As janelas abertas permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar quem somos para os outros e, assim, poder passar da janela à porta que se abre para que eles entrem em nossa vida. Outros rostos precisamos descobrir: rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Dentre as “obras de misericórdia”, citadas no juízo final (Mateus), duas delas fazem referência ao ato de “visitar”: visitar os enfermos e os presos.
Visitar é uma atitude humanizadora; requer um empenho pessoal, um estar atento aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Sua essência está no reconhecimento e na acolhida mútua.
Este “reconhecimento” presente nas duas futuras mães – Maria e Isabel - se prolonga nos nossos “reconhecimentos cotidianos”; no reconhecimento está o “nascimento”, e viver o reconhecimento é, então, nascer a uma nova relação com o outro, numa comunhão profunda. Reconhecer-nos unidos, na diferença
Na Visitação, as duas protagonistas, também, põem em destaque três importantes ações que Jesus depois vai potencializar na sua missão: acolher, animar e acompanhar a vida.
Segundo o Cardeal Martini, Maria, mulher do discernimento, depois da Anunciação, busca a confirmação de sua missão de ser a mãe do Messias. Sabemos que é a consolação que confirma determinada opção.
Na Visitação, Maria encontra três confirmações, através de uma tríplice alegria (três consolações).
Em primeiro lugar, a alegria de João Batista no ventre da mãe; em segundo lugar, a alegria de Isabel que estava grávida em sua velhice e reconhece em Maria a ação de Deus (através de seu canto); em terceiro, a alegria da própria Maria que se expressa no Magnificat.
A saudação na Visitação se transforma em um encontro no qual as duas protagonistas ficam confirmadas em seu afeto, sua fé e admiração. O encontro se converte em comunicação. O espírito de fecundidade que ambas, Maria e Isabel reconhecem como graça em sua carne, se tornou naquele momento graça de comunicação transparente.
E o clima festivo da Visitação se prolonga na história humana das visitas. E o primeiro “Visitador” é o próprio Deus.
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Deus não é distância e solidão. Ele é comunicação, presença, libertação, visita providente.
Ele está perto. Sua proximidade nos causa espanto: Deus possibilita cada um “entrar” em sua casa e captar em profundidade a sua realidade, perceber a raiz do seu ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições, ilusões, medos...
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da própria casa, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
- Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?... Tem mais espelhos ou janelas?
- Como está minha casa interior? Preparada para acolher o Senhor que me visita constantemente?
- Há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.12.2024
A primeira palavra da liturgia deste domingo, na antífona de entrada tirada da segunda leitura, é um convite à alegria. Não se trata de uma alegria que procede do exterior, fruto de uma conquista ou de um presente; ela brota da tomada de consciência de que “Deus é Emmanuel”.
Essa alegria, no AT, está baseada na salvação que vai chegar. Hoje estamos em condições de dar um passo a mais e descobrir que a salvação já chegou, porque Deus não tem que vir de nenhuma parte; Ele já veio, está vindo e virá sempre. Nós é que precisamos ativar uma atitude de atenção e vigilância para entrar em sintonia com esta Presença, sempre nova e surpreendente.
Fazendo de todos nós sua morada, Deus nos comunicou tudo o que Ele mesmo é. Não devemos estar alegres “porque Deus está próximo”, mas porque Deus já está em nós. A alegria é como a água de uma fonte: nós só a vemos quando aparece na superfície. Mas antes, ela percorreu um longo caminho que ninguém pode conhecer, através das entranhas da terra. A alegria não é um objetivo a conquistar; é, antes de tudo, uma consequência de um estado de ânimo que se alcança depois de um processo. Esse processo começa pela experiência de “sentir-se habitado”, ou seja, tomada de consciência de nosso verdadeiro ser. Se descobrimos que Deus habita nosso ser, encontraremos a absoluta felicidade dentro de nós.
No evangelho deste domingo (3º dom do Advento), surge uma repetida pergunta: “Que devemos fazer?” As respostas a estas perguntas manifestam muito bem a diferença entre a pregação de Jesus e a de João Batista.
Segundo a mentalidade do AT, Deus estava mais preocupado com o cumprimento de sua vontade expressa na Lei. O Batista segue nessa direção, porque acreditava que a salvação que esperavam de Deus dependia da conduta de cada um. Esta era também a atitude dos fariseus; daí sua escrupulosidade e rigor no cumprimento de todas as leis e normas.
A partir da perspectiva da religiosidade judaica, o Batista pede àqueles que o escutam, uma determinada conduta moral para escapar do castigo iminente. Essa conduta não se refere ao cumprimento de normas legais, como faziam os fariseus, mas manifesta uma preocupação para com os outros. Todas as propostas apresentadas por João Batista estão encaminhadas a melhorar as relações entre as pessoas, a tornar essas relações mais humanas, superando todo egoísmo.
No entanto, o evangelho de Jesus propõe uma motivação mais profunda. O objetivo não é escapar da ira de Deus, mas prolongar a atitude do próprio Jesus, numa vida de entrega aos demais. Ele nos convida a descobrir o amor, que é Deus, dentro de nós mesmos e, como consequência, dedicar-nos a agir conforme às inspirações dessa presença. Para o Batista, a aceitação de Deus depende do que nós fazemos.
O Evangelho, por sua vez, nos diz que a sintonia com essa Presença divina é ponto de partida, e não a meta. Continuar esperando a salvação de Deus é a prova de que não descobrimos ainda essa presença dentro de nós, e continuamos desejando que chegue de fora. S. Agostinho expressou isso com clareza: “Ame e faça o que quiseres”. Este é o melhor resumo da mensagem de Jesus.
A certeza de ter Deus presente em nós não depende de nossas ações ou omissões. É anterior à nossa própria existência. Não ter isto claro, pode nos fazer cair no “ativismo religioso”, onde o centro passa a ser o nosso falso eu que realiza ações em favor dos outros; caímos no perfeccionismo das ações morais, onde transparece o nosso ego inflado, que espera recompensas tanto da parte de Deus como dos outros (elogios, admiração...). Com esta atitude estamos projetando sobre Deus nossa maneira de proceder e nos afastamos dos ensinamentos do evangelho que nos diz exatamente o contrário.
A salvação não está em satisfazer os desejos de nosso falso eu.
Nem sequer a resposta de João Batista pode nos tranquilizar, pois na realização de uma série de obras pode entrar em cena o nosso ego que busca projeção. Não se trata de “fazer” ou deixar de fazer, mas, movido pela Presença que nos plenifica, fortalecer uma atitude oblativa que nos leve a responder, em cada momento, às necessidades concretas do outro que clama por ajuda. O decisivo é que, a partir do centro divinizado de nosso ser, flua humanidade em todas as direções, na mais pura gratuidade.
A experiência de sentir-nos habitados pelo Deus de Amor desperta em nós o sentimento humano mais nobre que é a gratidão; e este sentimento se expressa numa atitude constante de abertura e serviço aos demais.
Na vivência cristã, sempre corremos o risco de transformar o “fazer” em simples ativismo, ou seja, uma ação desprovida de sentido e de direção. De fato, vivemos mergulhados numa cultura de resultados, distraídos e perdidos na variedade de luzes, cores, sensações fugazes, vivências superficiais... A existência inteira faz-se maquinal e rotineira. Caímos numa pura “fazeção”, ou seja, fazer por fazer, fazer para afirmar-nos, fazer para brilhar, fazer para produzir, fazer para nos impor...
Falta uma referência e um horizonte que unifique tudo, que possibilite reorientar e canalizar nossas potencialidades, impulsos, inspirações, que desperte nossa paixão e dê novo sentido à nossa missão.
Para integrar bem os diversos dinamismos da vida, é decisivo centrar no horizonte que inspira nossa vida e nos motiva a fazer o que fazemos e como fazemos. E o horizonte é “ajudar”.
“Ajudar” é, para a espiritualidade do Advento, o horizonte e a chave de integração de nossa vida.
“Ajudar”, como atitude pessoal e comunitária, é o equivalente evangélico “servir”. Um “ajudar” (servir) que brota da experiência de ser “ajudado” (servido) por um Deus servidor.
No “ajudar” dão-se as mãos o amor a Deus e o amor à pessoa humana, a experiência interior e a ação cotidiana, a ação e a contemplação; nele se expressa a profundidade e o enraizamento da pessoa nas exigências cotidianas da vida; nele convergem a busca de Deus e o compromisso com o mundo.
“Ajudar” é oposto do ativismo, que é um fazer “insensato”, sem sentido e sem direção. “Ajudar” é fazer com inspiração, com horizonte de sentido; é perguntar-se continuamente: “por que faço isso? para quem faço?... “Em que posso ajudar?” (D. Luciano M. de Almeida)
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Tal atitude requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo-a crescer em liberdade.
“Ajudar” implica possibilitar ao outro ser protagonista de seu processo, devolver a ele a autoria, a autonomia... No “fazer” o centro somos nós, no “ajudar” é o outro; no “fazer” medimos a quantidade, no “ajudar”, a qualidade de nossa ação. No “ajudar” há parceria (mão dupla): na medida em que ajudamos, somos ajudados; na ajuda há um enriquecimento e crescimento mútuo.
“Ajudar” não é substituir os outros naquilo que eles podem e tem de fazer, ou dizendo o que tem de ser feito, mas colocá-los em condição para que eles mesmos se experimentem ajudados, descubram o Deus que ajuda a todos e sintam o impulso para ajudar como ideal de suas vidas.
“Ajudar” os outros, inspirados e animados pelo Espírito de Jesus, é o que torna “espiritual” nossos atos, nossos pensamentos e orações, nossos trabalhos, nossa vida inteira.
“Ajudar” torna “espiritual” nossa vida, toda nossa vida.
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na oração: - Não pergunte a ninguém o que você tem de fazer. Descubra seu verdadeiro ser e encontrará seu modo original de proceder na relação com os outros. Sua meta deve ser a de ativar e expandir o que você já é na sua essência.
Só poderá expandir seu verdadeiro ser se suas relações com os outros são cada dia mais humanas, sem nenhum resquício egóico.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.12.2024
“Ficai despertos e orai a todo momento...” (Lc 21,36)
Com a liturgia deste domingo inicia-se o “tempo do Advento” e um novo “ano litúrgico” (Ano C – centrado no evangelista Lucas).
Mais uma vez nos disponibilizamos, através da oração e da celebração litúrgica, a viver mais intensamente o Tempo do Advento e alargar nossas vidas para nele caber o mistério do Natal.
Advento nos revela a presença da eternidade no coração do tempo. O Eterno continua vindo, pelos caminhos mais imprevisíveis, iluminando a dura rotina e a sequência do cotidiano.
Advento é tempo de espera, de preparação e de chegada. Tempo forte carregado de sentido, que nos faz ter acesso àquilo que é mais humano em nós: o sentido da esperança, a travessia, o encontro com o novo..., tempo que nos arranca de nossas rotinas e modos fechados de viver.
Viver o Advento é o grande evento que agita os corações, sacode as inteligências, inquieta as pessoas, move as estruturas... Toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente.
Nós cristãos, nas festas de Advento e Natal, celebramos o Deus que está em nós e conosco; Ele é a presença libertadora de tudo o que nos desumaniza. Celebramos a fé no Deus encarnado e fé na humanidade que nos faz presente a Deus. Celebramos o valor divino do humano e o valor humano do divino. Celebramos que Jesus, o Emanuel, é nosso salvador, nossa referência de vida; Ele veio nos ensinar a ser e viver como Ele.
Caminhamos para o “Senhor que veio, que vem e que virá” à medida que mais nos adentramos ao fundo de nós mesmos e da realidade. Advento convida a deixar-nos “contaminar” pela realidade; e isso nos humaniza.
O Evangelho deste domingo nos chama a estar alertas, a ter o coração livre de vícios, da libertinagem e das preocupações da vida; nos chama a “estar despertos e orando”, porque o Espírito se des-vela em nossa atitude de fé e de esperança viva: ponto de encontro entre as promessas da fé e os sinais dos tempos presentes e vindouros.
A chegada de Deus se identifica com a chegada do “novo ser humano”, da nova humanidade, do novo mundo. Preparar a chegada do ser humano novo, isso é o Advento.
Diante do surgimento de um novo tempo e de um novo mundo requer “estar desperto” e “levantar a cabeça”; e a pessoa “desperta” é, justamente, aquela que vê a novidade em tudo, que tem a cabeça erguida e vislumbra novos horizontes. Ao contrário, quem permanece adormecido, move-se no terreno da rotina, com o coração atrofiado e a mente embotada pelos vícios e preocupações vazias.
Quem permanece adormecido, debate-se entre o passado que se foi e o futuro que nunca chega, escravo da ansiedade que o faz viver fora do presente.
O Advento vem nos dizer que não há outra coisa a fazer senão viver intensamente o momento presente. A plenitude está na consciência do instante presente, onde o “Filho do Homem” se revela.
No presente pleno, tudo tem sabor de novidade, a percepção da própria identidade se amplia sem limites, a consciência da comunhão com tudo e com todos se alarga...
Não é estranho que, ao longo dos Evangelhos, escutemos tantas vezes o chamado insistente: “vigiai”, “estai atentos à sua vinda”, “vivei despertos”. É a primeira atitude daquele que decide viver a vida como Jesus a viveu. Essa é a primeira atitude que devemos fortalecer para seguir seus passos.
E o que significa “viver despertos”?
- “Viver despertos” significa não cair no ceticismo e na indiferença frente à marcha do mundo; não deixar que nosso coração se endureça; não cairmos nas queixas, críticas e condenações; despertar ativamente a esperança.
- “Viver despertos” significa sermos mais lúcidos, sem deixar-nos arrastar pela insensatez que, às vezes, parece invadir tudo; atrever-nos a ser diferentes; não deixar que se apague em nós o desejo de buscar o bem para todos.
- “Viver despertos” significa viver com paixão a pequena aventura de cada dia; não darmos as costas a quem precisa de nós; continuar realizando os “pequenos gestos” que aparentemente não têm grande significado, mas que sustentam a esperança das pessoas e tornam a vida um pouco mais amável.
- “Viver despertos” significa reacender nossa fé, nossa experiência contemplativa, ou seja, buscar Deus na vida e a partir da vida; senti-Lo muito próximo de cada pessoa; descobri-Lo atraindo a todos para a feli-cidade; viver não só de nossos pequenos projetos, mas atentos ao Projeto amoroso de Deus.
- “Viver despertos” significa sair da normose (normalidade doentia) e da ignorância para vir à luz da compreensão. É uma arte e um caminho, e isso significa um deslocamento para uma amplitude maior na maneira de viver.
- A arte de “viver despertos” é ativada na medida em que diminui ou cessa a identificação com o ego, para deixar emergir nosso “eu profundo”, graças ao silêncio e à tomada de distância com respeito aos conteúdos doentios da mente (remorsos, culpas...). Aqui encontra o seu lugar a prática contemplativa, na qual nos mobilizamos para acessar a “outro lugar”, para além da mente, que abre a porta à amplitude da vida.
Advento, portanto, é o momento de escutar o chamado que Jesus dirigido a todos: “levantai-vos”, animai-vos uns aos outros”, “erguei a cabeça” com confiança. Deus é Salvação e já está em nós. Basta despertar-nos e descobri-Lo. Esta descoberta nos descentra de nós mesmos, nos projeta para os outros, para o infinito e nos identifica com tudo e com todos.
O momento do encontro com “Aquele que vem” nos introduz na soleira de um futuro novo e carregado de esperança, aquela esperança que dá sentido às nossas atividades, liberta o coração da preocupação, expulsa toda ansiedade e impulsiona a buscar o Reino.
O fundamento da segurança e da serenidade reside na consciência de estar nas mãos providentes de Deus.
O fiel discípulo de Jesus, descobrindo-se amado e protegido pela ternura providente, se sente sempre a caminho, isto é, pronto a acolher cada fragmento de luz e de vida, que fala da presença e da passagem de Deus. O presente, tecido de partilha, solidariedade, misericórdia, mansidão, reveste o futuro de luz.
A verdadeira segurança cresce no coração e na confiança de sermos protegidos por um Deus que sabe o que precisamos e nos aguarda. É esta a relação fundamental, fecunda e criativa, que possibilita o “êxodo” de nós mesmos e a acolhida do “advento” do Outro e dos outros.
Texto bíblico: Lc. 21,25-28.34-36
Na oração: “Advento”: o Senhor vem... em sua direção! Ou melhor, já chegou! Basta despertar-se para descobri-Lo e descobrir-se n’Ele.
Por isso, o Advento deveria ser um tempo para retornar ao interior em meio à agitação, e olhar para dentro de si mesmo. Aí, no seu interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro.
- Tome consciência do momento presente, deste único instante, aqui e agora, carregado de Presença e permaneça nele. Deus é Salvação que se dá a todos em cada instante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.11.2024
“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)
Com a festa de “Cristo Rei” encerramos mais um ano litúrgico. O Evangelho indicado para esta festa nos introduz numa cena muito constrangedora da vida de Jesus. O contexto no qual ela se desenvolve é o processo de julgamento político ao qual Ele foi submetido, denunciado pelas autoridades judaicas. Como podemos observar, não estamos diante de um diálogo distendido entre dois iguais; é um procurador romano frente a um acusado que deve responder e dar razão daquilo que o levou a esta situação.
Condição mais inapropriada para Jesus se declarar “rei”.
Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.
Jesus não se apoia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Sua realeza tem um fundamento completamente diferente; ela provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.
Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.
Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem muitos cristãos “fundamentalistas”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos das nações. Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode se defender.Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!
Jesus não quis fazer-se rei militar, pois a violência pertence ao nível dos poderes de um mundo onde a verdade se encontra pervertida pela mentira dos poderosos. Jesus quis ser Rei, mas de maneira que todos pudessem ser reis, “testemunhas da verdade”. Assim respondeu a Pilatos dizendo-lhe que “seu reino não era deste mundo”. Pilatos só conhecia um tipo de reino, aquele que se fundamentava na espada do império, que se apoiava e se defendia com as armas, de maneira que a verdade como tal tornou-se secundária.
Meu Reino está em “ser testemunho da verdade”. Como Pilatos vai entender isso se está acostumado a fazer da verdade o que a ele lhe interessa e lhe convém?
Esta é a proposta: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, nem por algum tipo de justiça legal, nem por dinheiro... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade, da fraternidade e não violência... para que todos sejam “reis”, no sentido radical da palavra.
Portanto, a festa de “Cristo Rei” revela-se como uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, quando nos identificamos com Ele, também somos reis. Reis servidores devemos ser todos. Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus” porque, como reis, estamos todos a serviço de todos.
“Sou rei..., e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. É neste mundo que Jesus quer exercer sua realeza, mas de uma forma surpreendente: veio ser “testemunha da verdade”, introduzindo o amor e a justiça de Deus na história humana.
Esta verdade que Jesus deixa transparecer não é uma doutrina teórica. É um chamado que pode transformar a vida das pessoas. Ele já tinha afirmado antes: “Se permanecerdes na minha palavra... conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Ser fiéis ao Evangelho de Jesus é uma experiência única pois nos leva a conhecer uma verdade libertadora, capaz de tornar nossa vida mais humana.
Diante de Pilatos, mais uma vez aparece a palavra “verdade” (“aletheia”), que Jesus considera como a razão de seu ser e de sua missão. A verdade da qual Ele fala não é um argumento carregado de afirmações fechadas para ter razão. Não se trata de possuir a verdade ou estar na verdade, de ter direitos sobre os outros, de se impor sobre alguém. Longe disso.
Jesus fala da “verdade” no sentido de uma atitude diante da vida, de uma opção de vida: viver na verdade é buscar a verdadeira essência que somos, nossa possibilidade de plenitude, nossas raízes mais profundas; é conectar-nos com esse Reino que traz à luz a bondade humana como imagem da bondade divina.
Só tomamos consciência de nossa realeza quando acessamos à nossa verdade mais profunda. Enquanto isso não ocorra, viveremos como mendigos, buscando nos apropriar e nos identificar com tudo aquilo que possa nos conferir certa sensação de identidade. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”.
Verdade é a realidade existente; ela salienta a dignidade de cada pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.
A verdade descobre o que está encoberto, desvela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombrado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.
A verdade retira o mundo (interno e externo) da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada.
Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade”. Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, transparente, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade.
É significativo que os antigos gregos entendessem a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos, a nossa essência.
Importa “des-velar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.
Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida.
É aqui que se revela como Rei.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida.
- A verdade que somos nunca pode ser algo que temos e possamos transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.
- Sua vida está centrada no des-velamento de sua verdade, de sua essência? Ou ela se deixa determinar pela cultura da aparência, da vaidade, da mentira...?
“Quando os ramos da figueira ficam tenros e as folhas brotam, sabeis que a primavera está próxima”
A natureza se renova continuamente através dos brotos; muitas vezes nos fixamos na velha árvore e temos a sensação de que ela está morta. Mas, de repente, das profundezas das raízes, uma nova seiva vai emergindo, fazendo aparecer novos brotos que apontam para os frutos vindouros.
O que a vida cristã precisa claramente, neste momento de desânimo e de abatimento, não é resignação diante do contexto no qual vivemos, mas de vida e vitalidade. Precisamos alimentar a esperança para empreender novos caminhos com entusiasmo renovado e sem temor.
O seguimento de Jesus, mais que prudência, conformidade ou conservadorismo que pretende preservar as coisas do passado em lugar de sua sabedoria, requer audácia, precisa de membros adultos que resistam ao envelhecimento da vida, e jovens que resistam ao envelhecimento da alma.
Muitas vezes, onde deveria reinar a ousadia, reina a resignação e a passividade, onde deveria reinar a criatividade, reina a repetição doentia, onde deveria reinar a “narrativa” da vida de Jesus, reina a doutrina pesada e o legalismo estéril. A tentação consiste em fazer da sobrevivência a nossa máxima aspiração, em vez de vivermos a vida plenamente, com toda profundidade e o entusiasmo que nossa vocação cristã exige.
A capacidade de arriscar situa a vida cristã deste tempo perante o desafio de confiar ao máximo em Deus. A capacidade de arriscar é a virtude que fará a ponte entre a vida cristã atual e a que está para vir. Pertencer a uma antiga instituição não é desculpa para não ter ideias jovens e não fazer coisas novas. Ao contrário, é precisamente a idade da instituição que exige isso. É a virtude de viver plenamente até a morte que se exige da vida cristã atual, se quisermos que os brotos voltem a surgir.
É a virtude do risco que precisamos alimentar de novo: risco nos mais velhos que acreditam que os grandes riscos de sua vida já tinham passado; e risco nos novos membros que pensam que uma vida fundada no seguimento de Jesus e no serviço é uma vida sem nenhum risco.
A revitalização do seguimento de Jesus não consiste em redefinir suas formas, sua doutrina, seus dogmas, seus ritos... senão em reavivar seu significado, seu direito a continuar tendo sentido diante das novas inquietudes e das realidades atuais.
O mundo que está mudando ao nosso redor provoca mudanças em nós também. O importante é que cheguemos a “ser” o que devemos ser num mundo que nos arrasta com ele.
“Eu não teria gostado de viver sem haver inquietado alguém alguma vez” (Catherine de H. Doherty)
A questão é se a vida cristã provoca e inquieta o suficiente em nosso atual momento. A verdadeira questão é esta: na velha árvore do cristianismo, ainda surgem brotos para suscitar a energia necessária a fim de tornar mais autêntico o nosso compromisso com o Reino?
Estamos num tempo de mudança, mas também emocionante e santo, para a vida cristã.
Há uma poderosa seiva presente por debaixo das raízes. O único que temos a fazer é não impedir o seu deslocamento em direção aos ramos, para que novos brotos de vida possam aparecer. A impressão que temos é que a vida cristã parece ter muito mais “galhos secos e sem vida” do que folhagem e frutos novos.
Por isso, de tempos em tempos precisamos passar por “abalos sísmicos”, tanto no nível interno de nossas vidas quanto na instituição eclesial, para derrubar o que está seco e caduco e deixar emergir o broto vital, que alimenta nossa esperança e abre um horizonte de sentido.
O “sol” do ego inflado precisa se esvaziar no escurecimento; a “lua” da vaidade precisa deixar de brilhar para si mesma; as “estrelas” do auto-brilho precisam cair... É do meio do “cosmos”, interno e institucional, renascido e reordenado, que poderá emergir o “Filho do Homem”.
Sabemos que o ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.
É preciso retornar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.
É a partir do interior que algo pode mudar.
O evangelho deste domingo tem profundas ressonâncias apocalípticas, ou seja, uma revelação, um desvelamento, um desnudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.
Assim pois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia” = sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor do evangelho quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.
Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho.
Nesse sentido, podemos “ler” o texto do evangelho como se escutasse um sonho revelador. O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo, reencontrando sua dignidade no coração das situações mais difíceis.
A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o des-velar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.
A partir de um imaginário “catastrofista”, o evangelho aponta à esperança, exige atenção e responsabilidade com os sinais menores e cotidianos para indicar que o presente tem futuro, porque Deus não abandona a criação e a humanidade mais ferida; Ele está enraizado no mais profundo dela como uma potência surpreendente que pede nossa responsabilidade e ousadia.
Na verdade, os discursos escatológicos e os anúncios apocalípticos, apesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”.
A autêntica esperança, no entanto, não só não nos afasta do presente, senão nos enraíza nele. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Agora”. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele. Presente carregado de uma Presença providente.
Para meditar na oração:
Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, nos perguntamos:
- É possível “esperançar” quando sinto que a realidade é um “beco sem saída”?
- Como “esperançar” em meio a tanta violência, destruição, preconceito, indiferença?
- Qual tem sido meu suporte e ajuda nesses momentos da vida e como posso oferecê-lo aos
outros?
- Que ou quem me ajudou a despertar a esperança nos momentos mais obscuros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.11.2024
“Tomai cuidado com os mestres da Lei!
Eles gostam de andar com roupas vistosas...” (Mc 12,38)
No evangelho deste domingo, os mestres da Lei (escribas) e a viúva constituem dois símbolos que encarnam maneiras de viver diametralmente opostos. Os primeiros se movem sob o impulso do poder e da vaidade, querendo oferecer uma imagem ostentosa e buscando reconhecimento, privilégios e dinheiro através de qualquer meio, inclusive usando da religião. Jesus denuncia as “largas túnicas” que costumam utilizar, nos ambientes mais diferentes, como sinal distintivo de superioridade.
No nível mais profundo, podemos considerar os “mestres da Lei” como símbolos do ego (religioso) que, carentes de interioridade, vivem em função de suas próprias necessidades e interesses narcisistas.
Por outro lado, a imagem da viúva representa a pessoa capaz de doar e de entregar-se (“tudo o que possuía para viver”), de maneira generosa e desapegada.
O contraste que o relato realça deixa transparecer o que cada um de nós vive em nosso interior. Em nós convivem o melhor e o pior, e em diferentes “doses”, tanto o “escriba” (o ego que gira constantemente em tono a si mesmo), como a “viúva” (a dimensão profunda que vive na compreensão e se expressa no amor que se entrega).
O evangelista Marcos só precisou de sete versículos para mostrar duas realidades de alto contraste e que põem em evidência duas formas de situar-se na vida e na religiosidade. O relato deste domingo começa situando Jesus em seu ministério pedagógico. Como verdadeiro Mestre, ensinava às pessoas, ensinava com transparência e a partir da liberdade que o caracterizava. Nesta ocasião, seu ensinamento se converte em um conselho imperativo: “tomai cuidado com os mestres da Lei”. E dá razões pelas quais é preciso proteger-se das atitudes deles.
Certamente os escribas eram os “experts” e intérpretes oficiais e lícitos da Escritura. Gozavam de grande autoridade; buscavam sempre serem vistos e admirados; vestiam de forma especial; Jesus os denuncia porque eles gostavam de andar pelas praças com vestes exuberantes. Não é casualidade que também os denuncie como aqueles que “devoravam os bens das viúvas”, pois costumavam persuadi-las demonstrando serem muito devotos para administrar seus bens e aproveitar-se delas.
Eles são justamente o contrário daquilo que Jesus vem pregando; o conflito está armado. Estes líderes religiosos revelam a superficialidade na vivência e no compromisso de sua fé. Uma religiosidade baseada na aparência, na conservação de uma posição sociocultural, em manter um lugar visível e hierárquico, em alimentar um ego inflado e enaltecido que os conduz a viver de modo egocêntrico e egoísta.
O seguimento de Jesus, no entanto, é um modo de viver descentrado, um compromisso existencial, onde não prevalece a ambição do ego, mas o esvaziamento e a saída de si mesmo para centrar-se no cuidado e no serviço aos demais.
A ambição e a atitude dos “mestres da Lei” não se extinguirão nunca, nem sequer nas comunidades cristãs. Ainda hoje, a figura do “mestre da lei” continua atuante, sobretudo quando os “ministros” (ordenados e não-ordenados) insistem no uso exagerado de vestimentas exóticas que tem sua origem no modo de vestir dos poderosos do império romano. Tal insistência parece indicar a necessidade, consciente ou inconsciente, de manifestar posição de poder ou uma carência de interioridade. A “cultura da exterioridade” e da busca do reconhecimento revelam o “complexo de pavão”, quando predomina a preocupação com as aparências, o espetáculo visual, a insistência em ser o centro das atenções nas celebrações, em buscar o elogio e serem admirados por todos.
Diante do espetáculo visual dos “mestres da lei”, o evangelista Marcos apresenta uma nova situação: a viúva que colocou duas moedinhas no cesto das ofertas e que servirá de contraste para compreender a mensagem de Jesus. Esta mulher é muito mais que uma viúva que depositou uma insignificância no cesto. Jesus realça esta figura simbólica que rompeu os esquemas patriarcais e religiosos dos poderosos judeus e, neste caso, dos escribas. Um simples gesto recuperou a dignidade de uma mulher que, por ser mulher, não tinha nenhuma visibilidade e, por ser viúva, estava numa posição de indigência absoluta, segundo a visão judaica.
O gesto dela desvela a essência do coração da nova comunidade de Jesus: um abandono e confiança em Deus, uma gratuidade plena, um amor solidário, generosidade. Ela não tem poder algum, nem cargos, nem possui “dignidade eclesiástica” alguma; a única coisa que possui é um coração generoso, mas isso conta pouco nas instituições de poder. Para Jesus, o centro da comunidade cristã não é o poder e nem são os poderosos, mas as pessoas simples, a fé e o bom coração dos humildes e misericordiosos.
Jesus admira a pobre viúva. Eles não se conheciam; ela não é discípula, nem cristã..., ela é uma mulher, dos pés à cabeça, que fiel à sua consciência, deposita tudo no Templo, cujo “deus”, manipulado pelas autoridades religiosas, a exclui de quase tudo por ser mulher; no entanto, ela sabe, no fundo de suas entranhas, que Deus não é como propagam aqueles que a oprimem e alimentam uma vaidade vazia, mas é Aquele revelado pelos profetas e salmos, e a Ele se entrega e confia totalmente.
A generosidade desta mulher não está baseada numa obrigação moral, nem em um gesto público para ser aplaudido, mas se apoia na consciência de sua dignidade que a mobiliza a entregar tudo o que ela considera que deve doar.
Jesus já tinha estado no Templo, purificando-o e expulsando aqueles que ocupavam o lugar de Deus. No relato de hoje tudo é diferente; Ele não está irado e tenso, mas se admira da viúva despojada; isso lhe dá força e convoca os seus discípulos para clarear as ideias deles e dizer-lhes onde está o verdadeiro amor e a autenticidade de vida cristã; e que não se enganem, porque o discípulo e a discípula devem ter em Deus seu tesouro.
Ao contemplar a pobre viúva, talvez Jesus pensasse em sua mãe, em todas as mulheres pobres que, ao longo da história, mantém os lares, as comunidades cristãs, visitam os doentes, partilham o pão com famintos e, sempre com um detalhe nobre: com ternura, com dignidade, com compaixão. Esta viúva, contemplada por Jesus, continua caminhando por nossas ruas e paróquias, anônimas, mas com um coração generoso. Porque é essa capacidade de entregar tudo sem medida que converte uma pessoa em discípula de Jesus.
Jesus nos convida a olhar este exemplo vivo para ilustrar o modo de nos situar no seu seguimento, em contraste com os escribas e fariseus. Critica estes personagens, certamente, mas propõe uma alternativa: a de uma vida conectada à dignidade e que tem como consequência gestos de entrega, de simplicidade e liberdade. O modo de viver a vida e a fé não é questão de quantidade, das vezes que repetimos os ritos, das vezes que fazemos gestos generosos, do dinheiro que doamos ou outros atos repetitivos que vão se esvaziando de sentido. É muito mais uma questão de qualidade, de uma autoconsciência de nos percebermos enraizados numa Presença Providente que nos mobiliza a colocar toda a nossa realidade humana sob a influência da sua energia criadora.
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: O Evangelho desvela dois personagens que habitam nosso interior; o doutor da lei, centrado em si mesmo, vive da aparência, usa da religião para se projetar, para brilhar... É a cultura da vaidade, da exterioridade... Por outro lado, a pobre viúva representa aquilo que em nosso interior não valorizamos ou rejeitamos, mas que, na sua pobreza e humildade, desvela-se diante de Deus com um coração generoso. Não pensa em si, mas nos outros; partilha tudo o que tem. Não busca a glória e o elogio.
- Qual dos dois personagens eu alimento? Vivo da aparência e da vaidade ou do descentramento e serviço?
- O que em mim é “doutor da lei”? O que em mim é “pobre viúva”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.11.2024
“Quem quiser entre vós ser grande, que se faça vosso servidor” (Mc 10,43)
Enquanto fazem o caminho de subida a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos seus discípulos o desenlace trágico de sua missão na capital. Mas os discípulos não o compreendem, pois estão disputando entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos de primeira hora, se aproximam d’Ele para pedir diretamente que, no Reino, pudessem sentar-se “um à sua direita e outro à sua esquerda”.
Tiago e João pedem privilégios a Jesus e, diante deste pedido atrevido, os outros dez discípulos ficam indignados contra eles. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está dividindo o grupo. Ninguém no grupo dos discípulos entende que seguir Jesus de perto, colaborando em seu projeto de vida, nunca será um caminho de poder, de grandezas e ambição, mas de doação e compromisso fiel. Por isso, Jesus reúne a todos para deixar claro seu modo de ser e pensar. Recorda-os que aqueles que são reconhecidos como chefes utilizam seu poder para “tiranizar” os povos, e os grandes “oprimem” seus súditos. Jesus é taxativo: “entre vós, não deve ser assim”.
Jesus dá tanta importância ao que está dizendo que se apresenta a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que lhe sirvam, mas “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”. Ele não ensina ninguém a triunfar em sua nova comunidade, nem alimentar uma ambição que acaba envenenando as relações entre seus seguidores. A atitude essencial no seu Reino é o serviço, desgastando-se em favor dos mais fracos e necessitados.
O ensinamento de Jesus não é só para os dirigentes religiosos. A partir das funções e responsabilidades diferentes, todos devemos nos comprometer a viver com mais entrega no serviço de seu projeto. Na Igreja, não precisamos de imitadores de Tiago e João, mas de seguidores(as) de Jesus. Quem quiser ser importante, que desça do pedestal do poder e se coloque no lugar mais baixo, para trabalhar e colaborar com o Reino.
É muito próprio do ser humano o impulso egóico por sobressair sobre os outros, ter privilégios, conquistar fama. Esta é uma das grandes tentações que afloram, sobretudo em muitos membros das comunidades cristãs, ou seja, o avassalador desejo de serem protagonistas, de se imporem sobre os outros, de subirem o pedestal para serem o centro das atenções; essa é a desejada posição onde possam ser vistos, serem obedecidos e receberem algum tipo de bajulação. Todos estamos expostos à tentação de nos sentirmos indispensáveis, insubstituíveis e únicos.
E grande parte das tensões nos relacionamentos nas comunidades cristãs surge da confusão que fazemos entre “poder” e “autoridade”. Poder: é a faculdade de forçar, coagir ou pressionar alguém a fazer sua vontade, por causa de sua posição ou força; exige submissão ou obediência cega.
Autoridade: é a capacidade de convencer, atrair, seduzir..., pelo seu modo de ser e viver, pelos seus valores, pela sua causa mobilizadora. Desperta “seguimento”.
O poder é definido como uma “faculdade”, enquanto autoridade é definida como uma “habilidade”. Uma pessoa pode estar num cargo de poder e não ter autoridade sobre as pessoas. Ou, ao contrário, uma pessoa pode ter autoridade sobre os outros sem estar numa posição de poder.
Outro modo de diferenciar “poder” e “autoridade” é lembrar que o poder pode ser vendido e comprado, dado e tomado. A autoridade, por sua vez, não pode ser comprada nem vendida, nem dada ou tomada.
A autoridade diz respeito àquilo que a pessoa é em sua essência, em sua identidade original; diz respeito ao seu caráter, à sua interioridade nobre e à sua presença inspiradora junto aos outros.
Acontece que, muitas vezes, aqueles que não vivem a autoridade descentrada, se apoiam no poder. Deixam de convencer e passam a se impor; perdem o apreço pelos outros e se mantém à base de força e opressão.
O poder é uma tentação permanente, inclusive nas comunidades cristãs; isso se manifesta pela quantidade de vezes que encontramos no NT advertências às lideranças eclesiásticas para que não corrompam sua autoridade, convertendo-a em poder (1Ped 5,1-4).
O poder encontra sua expressão visível e sua força numa instituição de estrutura piramidal, hierárquica. Neste paradigma “de cima para baixo”, todos estão olhando para cima, tentando agradar aqueles que ocupam cargos, e não dirigem o olhar para os lados, onde a verdadeira realidade de uma instituição está acontecendo.
A estrutura hierárquica-piramidal fortalece a estrutura de poder, controle, vigilância, supervisão...; tal estrutura acaba por afetar e asfixiar a liberdade interna, a motivação e o compromisso dos membros da instituição; além disso, ela suprime iniciativas, criatividade e incentivos, em relação aos novos projetos.
O poder religioso é o mais tóxico, pois manipula consciências, alimenta culpa e medo de Deus, centraliza as decisões, é incapaz de escuta e de discernimento... Quão distante está da “sinodalidade”, modo original de ser e proceder das primitivas comunidades cristãs! Na Igreja não há poderes, e sim funções diferentes. Nela, a autoridade é exercida como um serviço fraterno.
Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus discípulos como o superior que exige “obediência” de seus súditos, mas como o amigo exemplar que desperta “seguimento” de seus fiéis “amigos” (Jo. 15.15). Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem. Portanto, os Evangelhos não falam de “obediência” a um poder que se impõe, submete e manda. A relação que se estabelece entre os discípulos e Jesus é a do “seguimento”.
De fato, nos evangelhos o verbo “obedecer” nunca é aplicado a indivíduos ou grupos que se submetem a um superior. Com efeito, o verbo “obedecer” aparece nos Evangelhos apenas três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc. 4,41); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma amoreira silvestre lhes obedeceria (Lc. 17,6); e, quando as pessoas ficam espantadas ao verem que Jesus “manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Mc. 1,27).
No entanto, o verbo “seguir” aparece 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e aqueles(as) que creem e confiam n’Ele.
A autoridade de Jesus, portanto, não se fundamenta na submissão e nem se sustenta no poder que manda, que controla e que dá ordens, mas suscita seguimento, pois Ele se apresenta numa atitude exemplar que atrai e dá sentido à vida das pessoas que o circundam.
A partir deste pano de fundo, o evangelho deste domingo aparece como um manual de uma Igreja de servidores (as), onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...
Já é tempo de uma revolução. Há de ser uma revolução original e não violenta que brota do evangelho. Uma revolução de gente boa, simples, inteligente, sábia, que pratica a empatia, a ética e o sentido comum, que valoriza o silêncio e a palavra, que acolhe a todos, brancos ou negros, homens ou mulheres...
Falamos da revolução do serviço. Jesus não atua por meio do poder, mas do serviço. Por isso, seus seguidores devem renunciar o poder (isto é, a imposição sobre os outros). Aqui se expressa a Nova Comunidade que nasce do coração do Compassivo e Servidor, invertendo o desejo de poder dos “filhos de Zebedeu” e dos outros dez que queriam organizá-la a partir de cima. Por isso, frente à manipulação messiânica dos “filhos de Zebedeu”, Jesus estabeleceu as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão serviço, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).
Texto bíblico: Mc 10,35-45
Na oração: Diante de Jesus servidor deixe que Ele desvele sinais de “zebedeus” presentes em sua vida, quando busca poder, alimenta vaidade, tem desejos de imposição e controle sobre os outros, manipula consciências...
- Na sua comunidade (paroquial, religiosa, familiar...) predomina o poder que cria subservientes ou a autoridade que alimenta subsidiariedade (partilha, confia serviços e ministérios...).
Pe Adroaldo Palaoro sj
17.10.2004
“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”
Uma pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração. Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas, fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência cotidiana?
Aqui não se trata uma aspiração a mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê. Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...
O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!
Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.
É nesse contexto que alguém, de maneira inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de “Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano: “que devo fazer para herdar a vida eterna? Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade, mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.
Jesus intui que o homem que está prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A cada um Ele diz o que ainda “falta”.
Jesus não se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.
Jesus revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa, nas suas limitações e apegos.
Jesus viu, em profundidade, que o rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade presentes no mais íntimo do seu ser.
No diálogo com ele, Jesus o ajuda a discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar... Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar a segurança nos bens...
É uma indicação preciosa também para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?
A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus mais se preocupa?
Jesus o desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como? Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso, dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.
Tal desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.
O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos ídolos que nos desumanizam).
Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de viver...
Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos, projetos, desejos profundos...
Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a coragem do seguimento.
Carregamos em nosso coração um “gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.
S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.
Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.
Texto bíblico: Mc 10,17-30
Na oração: diante de Jesus, que desafia a todos a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons? O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do esbanjamento?...”
Pe Adroaldo Palaoro sj
11.10.2024
imagem: pexels.com
“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6)
Os fariseus apresentam a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez não é uma questão sem importância, mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.
Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.
A resposta de Jesus surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Esta lei “machista”, em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.
Jesus aprofunda no mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não deve haver dominação por parte de ninguém.
A partir desta visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega, sem imposição nem submissão.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de maneira clara: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Com esta posição, Jesus está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.
O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade.
Esta proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?
Hoje descobrimos, talvez com mais claridade que em outros tempos, o quão difícil para muitos casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser tão forte.
São muitos os fatores dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as incompatibilidades, as divisões..., que esfriam o romance entre os casais. Hoje também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.
A partitura que o Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de vida e de aliança sem volta atrás.
Jesus, na sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele que tem palavras de vida (transmissoras de vida), afirma taxativamente: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Estas palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.
Jesus convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi unindo através da aventura e do romance amoroso.
Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la; às vezes não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.
O Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa Nova da misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A Igreja não é alfândega, mas casa paterna-materna onde há lugar para cada um com sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.
Não se trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa determinar pela lei que julga e condena; mas, deixa transparecer um coração compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de amor mútuo.
O próprio Jesus, que condena o adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério, quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa e lhe oferece um novo futuro: “Nem eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.
Os fracassos matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais, emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis não podem nunca solucionar.
Temos de redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos, independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as) divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja, nem pelas comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.
É precisamente nestas circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos, para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores, provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.
Temos de nos perguntar: que ajudas as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?
É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro.
Mais misericórdia e menos rigorismo!
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: fazer memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que não encontram apoio na comunidade cristã.
- Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida misericordiosa?
Pe Adroaldo Palaoro sj
02.10.2024
imagem: pexels.com
“Eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34)
Continuamos o percurso contemplativo, deixando-nos ensinar pelo Mestre Jesus. No evangelho deste domingo, Ele atravessa a Galileia, a caminho de Jerusalém; e faz isso de maneira reservada, sem dar publicidade. Ele deseja se dedicar inteiramente à instrução dos seus discípulos. É muito importante o que Ele quer gravar em seus corações: seu caminho não é um caminho de glória, de êxito, de poder. Pelo contrário: é o caminho da fidelidade à causa da vida, do compromisso em aliviar o sofrimento humano, da entrega radical em favor dos últimos.
Jesus frustra os planos e as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço aos outros; estabelece como critério de honra o cuidado dos pequenos. Esta é a lógica do Reino: esvaziamento de toda pretensão de poder e vaidade, que envenenam as relações entre as pessoas, para poder construir a fraternidade sobre outros fundamentos: serviço solidário, atenção compassiva, cuidado amoroso.
Ao chegarem em casa, Jesus sentou-se; quer ensinar aos discípulos algo que eles nunca deverão esquecer. Desmascara a competição entre eles para saber quem era o “maior”. Chama os “Doze”, aqueles que estão mais intimamente associados à sua missão e os convida a que se aproximem, pois os vê muito distanciados d’Ele. Para seguir seus passos e identificar-se com Ele, é preciso aprender duas atitudes fundamentais.
Primeira atitude: “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”. O discípulo de Jesus deve renunciar toda pretensão de ambição, de ser importante, de honras e vaidades. Em sua comunidade ninguém deve pretender estar acima dos outros. Pelo contrário, deve ocupar o último lugar, descer ao nível daqueles que não tem poder e nem ostentam título algum. E, a partir daí, ser como o próprio Jesus: “servidor de todos”.
A segunda atitude é tão importante que Jesus ilustra com um gesto simbólico provocativo: coloca uma criança no meio dos Doze, no centro do grupo, para que, aqueles homens ambiciosos deixassem de se preocupar com honras e grandezas, e centrassem seus olhos nos pequenos, nos frágeis, nos mais necessitados de defesa e cuidado.
Deste modo, Jesus denuncia nossas tendências egóicas que estabelecem hierarquias de mando, divisão entre “superiores e inferiores”, vaidade religiosa. Para Ele, a atitude de serviço não é questão meramente ascética, mas uma proposta profética que quebra qualquer pretensão de divinizar estruturas, de justificar privilégios, de compactuar com os poderosos deste mundo.
Jesus tem plena consciência de que nenhum poder é mediação de salvação; e o pior poder é o “religioso”, pois alimenta medo e culpa, cria dependência doentia e trava toda autonomia pessoal. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...
O poder “mata a criança” que todos carregam em sua essência, impedindo-a de se expandir.
A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é aquele que ocupa um cargo de importância, mas quem vive servindo e ajudando os outros. Os primeiros na Igreja não são os hierarcas, mas as pessoas mais simples que vivem ajudando àqueles que encontram em seu caminho.
O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia. Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros...
A palavra “poder” indica sempre uma relação de dependência, manifesta uma desigualdade. Aquele que exerce o poder está acima daquele que se submete a esse poder. Jamais, nem se insinua nos evangelhos, que Jesus se relacionasse com o ser humano a partir da superioridade de quem manda sobre o inferior que obedece. A relação de Jesus com os discípulos e com as pessoas se expressa sempre, nos evangelhos, mediante a experiência do “seguimento”, que nasce da “exemplaridade”, nunca da “submissão”, que é a resposta do fraco ao forte, do pequeno ao grande.
Jesus nunca teve “poder” e nunca transmitiu “poder” aos seus discípulos. Ele deu-lhes “autoridade”, o que é bem diferente. E o evangelho destaca que se trata de uma autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É uma autoridade terapêutica, para aliviar sofrimentos e fazer felizes as pessoas em suas relações com os demais e sua relação com Deus.
Quem tem poder, o centro está em si mesmo; quem tem “autoridade” o centro está fora, no outro. Significa despertar a autonomia, a autoria do outro; não alimenta dependência, mas ativa o melhor que há no outro.
Jesus, que foi tão tolerante com os discípulos em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”
Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer os mais fracos e necessitados.
O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.
Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...
Nesse contexto, o fato de Jesus propor as crianças como paradigma das relações da comunidade do reino, supõe uma mudança radical, eliminando hierarquias. Isso implica identificar-se com os mais desfavorecidos, de considerar dignos aqueles que não são contados, a “massa sobrante”; é preciso uma mudança de mentalidade e compreender que, para os seguidores e seguidoras do Mestre, os primeiros e mais importantes lugares são para os últimos; e não é só por um gesto de compaixão, mas porque essa é a chave para abrir o sentido da conduta no seguimento de Jesus e para compreender o coração do próprio Deus.
O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes... O Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como seus representantes.
A estrutura da “nova comunidade” não é piramidal ou hierárquica, mas circular. O centro já está ocupado por uma “criança” nos braços de Jesus. Ao redor deles estamos todos, com serviços e ministérios diferentes.
Aqui não há lugar para alimentar “egos inflados”, prepotentes, autoritários...
A casa cristã é o lugar de benção, onde todos são acolhidos, começando pelas crianças, por serem as mais frágeis e necessitadas. Jesus funda a “comunidade da ternura”.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: A palavra-chave do evangelho deste domingo é “acolhida”: ela expressa uma atitude de descentramento e sensibilidade diante dos mais vulneráveis; ela quebra toda tendência de imposição sobre os outros e revela que é anti-evangélico alimentar competição para saber quem é mais importante ou mais poderoso.
- Seu espaço familiar, sua comunidade, seu ambiente de trabalho... se revela como lugar de acolhida e de bênção ou ambiente que alimenta competição e ativa o apetite de poder e de vaidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.09.2024
“Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 24° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B que corresponde ao texto bíblico de Marcos 8,27-35.
O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória.
Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.
No evangelho deste domingo, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a autoafirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.
Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus.
A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.
Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim...”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.
Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.
Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as).
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.
“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um auto-menosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.
Texto bíblico: Marcos 8,27-35
Para meditar na oração
Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está en-raizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Sua vida cotidiana: Descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?... Ou: Auto-centrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.09.24
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc7,6)
O relato do evangelho deste domingo se abre com a apresentação dos personagens. Jesus aparece como ponto de referência frente a dois grupos de indivíduos (“os fariseus e alguns mestres da lei”), representantes do poder religioso oficial, ou seja, grupos de piedosos que exerciam uma pressão religiosa sobre o povo em sua pretensão de submetê-lo a uma existência marcada pelo rigorismo religioso e pelo legalismo.
Como se explica esse fenômeno do farisaísmo religioso, tão frequente também entre nós? Estamos falando da eterna tentação, de ontem e de hoje: apresentar-se em nome de Deus para impor pesados fardos sobre as pessoas, ameaçando-as e impedindo-as de viver com mais leveza. Segundo o Papa Francisco, trata-se do terrível “poder de consciência”, exercido por autoridades religiosas, e que são profundamente manipuladoras e destruidoras da verdadeira identidade das pessoas. Na verdade, percebemos nas comunidades cristãs um florescer de práticas devocionais vazias, ritos estéreis, normas inúteis..., que só alimentam medo de Deus e culpa doentia.
Quando a religião (no sentido original de “re-ligar”) se transforma em culto vazio, em palavras ocas que são levadas pelo vento, em simples rotina..., esvazia-se a vida, fragiliza-se o compromisso com o outro e se distancia do verdadeiro Deus revelado por Jesus. De fato, para o Mestre de Nazaré, “Deus é leve”, não complica a vida humana com mais cobranças e ameaças; basta ser transparência do Seu Amor.
Aqui está a chave para compreender o conflito de Jesus com os homens mais religiosos e observantes de seu tempo. Tal conflito se centrou em questões relativas à imagem de Deus, ao caráter absoluto das leis e normas religiosas, descendo inclusive até às chamadas “normas de pureza”. De um modo esquemático, o conflito poderia resumir-se nestas contraposições: a gratuidade frente ao mérito; o valor da pessoa acima da lei; o cuidado da interioridade frente à absolutização das tradições.
De um lado, encontramos o “ritual” e o “sagrado” como componentes essenciais da religião dos sacerdotes, fariseus e mestres da lei; de outro, encontramos nos evangelhos que o central na vida e na mensagem de Jesus não foi nem o “ritual”, nem o “sagrado”, mas o “humano”. O centro da mensagem e da atividade d’Ele não estava no templo, nas observâncias das normas e leis, na preservação da tradição religiosa..., mas na saúde dos enfermos (curas), na alimentação das pessoas (refeições), nas sadias relações humanas.
Jesus viu claramente que a religião dos ritos e do sagrado (com seus poderes, privilégios e dignidades) gerava exclusão, culpa, medo... Tal realidade era o impedimento mais imediato e mais forte para as pessoas entenderem e viverem o que significava o “Reinado de Deus”.
O Evangelho deste domingo nos situa, portanto, diante desta desumana realidade provocada por uma falsa compreensão da religião. Para Jesus, nada do que vem de fora contamina o ser humano. Isso significa que toda pessoa possui uma interioridade impoluta e resguardada, que nada nem ninguém de fora poderá destruir. No mais profundo de cada ser humano há um “sacrário”, dotado de recursos e beatitudes originais que não podem ser alcançados pela “mancha” externa do legalismo e do moralismo. Dessa forma, Jesus declara o valor absoluto da pessoa humana como portadora de valores que ninguém poderá atingir.
O que mancha a pessoa é o que sai de dentro dela. Ninguém pode manchá-la, mas ela pode manchar-se a si mesma, porque “é” um ser de coração do qual brota o bem, a verdade, o amor..., mas pode brotar também o mal, o ódio, a intolerância... O ser humano é um “ser interior” que pode desenvolver-se de forma criativa, mas também de maneira destruidora. Esta é a maior revelação de Jesus, que anuncia o Deus que quer salvar a todos, mas a partir do lugar da verdadeira interioridade. O que decide o ser humano é o coração; se este estiver petrificado, é preciso arrancá-lo e colocar em seu lugar um coração de carne, capaz de crer e amar.
Este “princípio da interioridade”, indicado por Jesus, é que define e marca a novidade do evangelho; por isso, como Libertador, empenha-se por livrar as pessoas de tudo aquilo que lhes podia oprimir e destruir a vida. Jesus interpreta a pureza ou impureza como realidade que brota do coração e, dessa forma, devolve ao ser humano sua autoria, sua autonomia. A missão da verdadeira religião é facilitar para que homens e mulheres sejam autônomos na linha do bem, que ativem seus recursos internos, que sejam livres no compromisso e no serviço da vida dos outros.
Nenhuma religião pode ter a pretensão de anular a consciência das pessoas. Seria um fatal erro atrofiá-la com ritualismos, preceitos e normas, impedindo a manifestação da voz de Deus, única e original, no interior de cada um. Despertar essa consciência é a tarefa de todo ser humano para chegar à plenitude de seu próprio ser. Daqui nasce a verdadeira sabedoria, unindo mente e coração. Nessa proximidade de Deus, que habita em nós e nos conecta com o universo, se forja nossa verdadeira identidade de filhos(as) d’Ele e irmãos(ãs) de todos. Quando conectamos com esta realidade interior toda nossa vida se equilibra e adquire sentido. Esbarramos na fonte não contaminada e que nos humaniza.
Nós vivemos a fé dentro da religião cristã, com raízes judaicas. A fé é nossa adesão de coração a um Deus que nos cria e nos ama, a um Pai que nos salva em seu Filho. Sem essa experiência fundante, nossa religião torna-se vazia, fica restrita a uma aparência vistosa, sujeita a manipulações de todo tipo.
Quanto “farisaísmo” há em nossos costumes cristãos! Quanto ritualismo, tradição, conservação e normas sem sentido! Quando perdemos a relação com a pessoa de Jesus Cristo tudo se converte em doutrina e ritualismo que nos conduzem a uma religião intimista e egóica. O que vem depois se enche de pré-juizos, julgamentos e sentenças. Esquecemos a medida do amor de Deus para impor a nossa medida moralista, excessivamente pobre, egoísta e insensata. Isso atenta contra nós mesmos e envenena as relações sadias que deveriam sustentar nossa vida.
O texto de Marcos nos situa, portanto, diante de duas maneiras opostas de entender e viver a religião: a estéril (ou perniciosa), que coloca a lei acima das pessoas, e a de Jesus, centrada no compromisso com os mais pobres e excluídos. Esta dicotomia na forma de entender a religião acontece em todos as épocas e culturas da história; por isso, a religião tem sido a mediação que fez emergir tanto o melhor quanto o pior da humanidade; ela tem possibilitado o surgimento de experiências sadias e profundas como também tem gerado tantas “doenças” nas pessoas, provocadas pela culpa e pelo medo.
Uma religião absolutizada, carregada de normas, leis, penitências, tradições... se faz indigesta e provoca automaticamente rejeição nas pessoas mais livres, lúcidas e abertas; estas se rebelam contra a imposição, o autoritarismo e qualquer pretensão exclusivista. E, na medida em que as pessoas crescem em espírito crítico, descobrem com facilidade que, detrás da fachada de solenidade com a qual muitas “autoridades religiosas” costumam se apresentar, se esconde uma incoerência humana que elas mesmas condenam. Jesus as chama de “hipócritas” e os desmascara porque manipulam Deus e usam da religião em proveito próprio.
Como cristãos, somos seguidores(as) de um Homem tremendamente livre diante das leis, das tradições, dos ritualismos..., pois o centro de sua missão está em despertar a vida e vida em plenitude. Suas palavras e seus gestos ousados despertam em nós uma atitude de sentinela diante deste “vírus” de aparência inofensiva, que entra em nós sob a forma de mero cumprimento de leis e sai com uma pesada carga de julgamento, de imposição, de condenação e controle sobre aqueles com quem convivemos. Um vírus antigo e contagioso, uma “covid do espírito”.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: Reze tuas “mãos”. Tuas mãos... sacramento de Deus, pois tornam presentes e visíveis as mãos d’Ele.
Tens no coração o Amor de Deus. A força que te leva a amar o outro como Deus o ama. Serás a mão amiga de Deus, tua mão terna e carinhosa, tua mão forte e libertadora, tua mão criadora de vida, tua mão generosa que protege e cuida a vida.
Mãos para unir, criar, curar, abençoar... como as de Jesus.
Mãos abertas para compartilhar. Mãos que não retém o que o irmão necessita. Abrir a mão, abrir o coração, abrir as entranhas de misericórdia. Caminhas tu pela vida com tuas mãos abertas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.08.2024
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