“E vós, quem dizeis que eu sou? (Mt 16,15)
A liturgia deste domingo nos situa diante de duas revelações feitas a dois grandes e marcantes personagens que deram uma contribuição decisiva para a identidade da nova comunidade inaugurada por Jesus: uma revelação dirigida a Pedro e outra a Paulo. Mas, as duas revelações são profundamente inseparáveis, pois se referem a duas dimensões significativas na vida e na consciência da Igreja, como comunidade seguidora de Jesus.
Uma dimensão centrada na experiência e missão de Paulo, que recebeu o encargo de expandir a Boa Nova do Evangelho para além das fronteiras judaicas; outra, centrada na liderança e ministério de Pedro, que recebeu de Jesus a missão de servir e cuidar dos seguidores e seguidoras d’Ele.
As duas revelações (a Pedro e a Paulo) abrem um espaço e um caminho de universalidade “não excludente”, de maneira que podem vincular-se e enriquecer-se entre si, embora, posteriormente, algumas comunidades tenham dado primazia a Pedro e outras tenham insistido mais no personagem Paulo. Mas os dois devem ser considerados na sua relação e identificação com Jesus Cristo.
De fato, a Igreja como instituição foi sendo formada ao longo do tempo, inspirando-se nos carismas de Pedro e Paulo. Eles não são os “fundadores” da Igreja; esta nasce da Páscoa, da fé no Senhor ressuscitado; a Igreja nasce a partir do mandato missional dirigido a todos: “ide e anunciai”; a Igreja nasce do lava-pés: “vós deveis lavar os pés uns aos outros”; a Igreja nasce quando se deixa conduzir pelo Espírito de Jesus; a Igreja nasce como sacramento de Cristo, porque, após sua Ascenção, continua presente na história através dos seus seguidores.
A Igreja não nasce como uma “sociedade anônima”, mas como um “movimento de vida”, desencadeado por Jesus. Somos todos a grande assembleia daqueles que creem n’Ele: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Por isso, a fé torna bem-aventurada a vida. Ditoso Pedro, ditoso Paulo, ditosos e bem-aventurados somos todos nós. Se não somos felizes, se não vivemos na serenidade e na alegria, talvez não tenhamos chegado ainda a crer profundamente no Senhor.
Uma Igreja, uma comunidade onde predominam intransigências, legalismos, tensões e tristezas, está longe de ser a comunidade dos seguidores que se encheram de alegria ao verem o Senhor (Jo 20,20). O mesmo Jesus que disse a Pedro – “feliz és tu” – também continua dizendo o mesmo a cada um de nós. A fé não é um peso que alimenta culpa, mas uma libertação, um prazer profundo e um horizonte de sentido. Nem sempre podemos estar contentes, mas sempre podemos viver na paz do Senhor.
Nas leituras bíblicas indicadas para esta festa, a revelação de Paulo aparece como fundamento e princípio da missão cristã junto a outros povos e fora do ambiente judaico. Conforme a tradição paulina, a Igreja se fundamenta na grande abertura missionária, prolongando a missão do próprio Jesus que foi alargando as fronteiras geográficas, religiosas, culturais. Assim, houve na Igreja primitiva, uma grande revelação paulina, vinculada à abertura do Evangelho de Jesus para além-fronteiras.
Por sua vez, a revelação petrina, fundada não só na Páscoa, mas na vida história de Jesus, aparece em Mateus como princípio e justificação da abertura também universal da Igreja judeu-cristã. Nesse contexto, a Igreja de Mateus refletiu sobre o sentido do nome Cefas/Pedro/Pedra/Rocha, dado a Simão.
O evangelista Mateus, ao referir-se à identidade de Pedro, deixa transparecer um jogo de palavras: petros-petra. Quando Jesus diz: Tu és “petros”, Ele está afirmando que Simão, em si mesmo, é simplesmente uma pedra, um pedregulho, um cascalho que não tem consistência. Mas Simão recebeu uma revelação especial de Deus, de tal forma que por ela, ele se transforma em alguém diferente, em mediador e garantidor da “Petra” /Rocha firme da fé, fundamento seguro da Igreja de Jesus.
Mateus vincula a palavra masculina Petros com Petra, no feminino, que significa rocha ou fundamento firme, palavra que o próprio Paulo relacionou a Cristo, desde os tempos antigos (1Cor 10,4). A Rocha não é a pessoa de Pedro, mas a fé de Pedro. Sobre esta Rocha-fé de Pedro, Jesus edifica sua comunidade. Do mesmo modo, Jesus continua construindo sua comunidade sobre a rocha-fé de todos os seus seguidores e seguidoras.
Nesse sentido, a afirmação de Jesus a Pedro - “Tu és ‘petros’ e sobre esta ‘petra’ edificarei minha igreja” – tem uma ressonância no interior de cada seguidor(a) d’Ele. Há, em todos nós, uma solidez, uma nobreza interior, uma identidade iluminada pela identidade do próprio Jesus. A pergunta de Jesus – “e vós, quem dizeis que eu sou?” – desvela o “eu sou” de Pedro, de Paulo e de cada um de nós. Na realidade, “nossa identidade está escondida com Cristo em Deus” (Col 3,3).
Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizada na própria identidade de Jesus Cristo.
É na vivência do seguimento de Jesus que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Ele e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade. Mais ainda, saberemos melhor “quem somos nós”, esquecendo-nos e esvaziando-nos de nós mesmos, aceitando perder-nos, deixando que o amor nos liberte de nosso pequeno e limitado “ego”.
No Evangelho deste domingo descobrimos uma peculiar sintonia entre nosso “eu profundo” e a experiência de encontro com Jesus Cristo. É como se uma misteriosa atração nos levasse a descobrir a nossa nova identidade. O encontro e a contemplação d’Ele é também revelação do nosso “eu” verdadeiro, “escondido com Cristo em Deus” , ou seja, revelação da verdade do nosso “eu”, onde descobrimos os traços de nossa própria fisionomia.
Assim, “Petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação... “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor. 4,7). Como cristãos somos a integração de “petros” e “petra”.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experiência do “eu” que devem contrapor-se às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos periféricos, sonhos sem paixão.
Somos ainda, em grande parte, uma “terra desconhecida” para nós mesmos, e a viagem de descoberta é como a viagem imaginária a uma nova terra, estranha e bela, que nos prende aos seus encantos e à novidade de suas mil maravilhas. Percebemos, depois, com surpresa e alegria, que a bela terra nova a que chegamos sem saber é nosso próprio país natal esquecido, subestimado e abandonado.
A redescoberta de nós mesmos é a maior e, sem dúvida, a mais gratificante aventura de nossa vida.
Redescobrindo a nós mesmos, vamos encontrar o nosso lugar e missão na história. Quanto mais conhecemos o nosso verdadeiro ser, melhor será o valor de nossa vida para os outros.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: o que em você é “petros” e o que é “petra”?
- Deixe que a verdadeira identidade de Jesus des-vele sua verdadeira identidade, ou seja, seu “eu” original é livre, criativo, transparente, iluminado...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.06.2025
imagem: El Greco
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Lc 9,20)
As primeiras comunidades cristãs conservaram a recordação deste episódio evangélico como um relato de importância vital para os seguidores de Jesus. Sua intuição foi certeira: sabiam que a comunidade de Jesus deveria escutar permanentemente a pergunta que um dia Jesus fizera a seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” A resposta a esta pergunta não cabe numa fórmula ou numa definição da identidade de Jesus.
Mas, o fato de fazer esta pergunta instigante mantém acesa a chama do seguimento e identificação com Ele.
De fato, se nas comunidades cristãs deixamos apagar nossa fé em Jesus, esvaziamos nossa identidade cristã. Não somos chamados a “seguir uma religião” (com seus ritos, doutrinas, normas...), mas uma Pessoa; isso tem implicações sérias na nossa vocação cristã, ou seja, prolongar o modo de ser e agir do próprio Jesus.
Quando nos distanciamos d’Ele através de “práticas religiosas” estéreis e vazias de compromisso, não conseguiremos viver com audácia criadora a missão que o próprio Jesus nos confiou; não nos atreveremos a seguir os Seus passos; o Evangelho irá se converter em letra morta; nada novo e verdadeiro nascerá entre nós; não teremos a força para construir um mundo mais humano; a comunhão da Igreja se partirá, a nossa esperança apagar-se-á; não nos atreveremos a enfrentar o momento atual, abertos à novidade do Seu Espírito; seguiremos adormecidos na nossa religião burguesa e nos asfixiaremos em nossa mediocridade.
Se não retornarmos a Jesus com mais verdade e fidelidade, a desorientação irá nos paralisando, nosso anúncio da Boa Notícia continuará perdendo credibilidade, nossas orações serão palavras vazias, crescerão as divisões, apagar-se-á o diálogo e aumentará a intolerância...
Jesus é a chave, o fundamento e a fonte de tudo o que somos, dizemos e fazemos.
Segundo o Evangelho deste domingo, ao longo do percurso de sua vida pública, Jesus revelou-se como uma “presença instigante”, ou seja, com suas “perguntas” ajudou cada pessoa a desvelar e aprofundar sua vivência no seguimento, a descrever seus “estados de ânimo”, a vislumbrar o sentido daquilo que estavam buscando...
A originalidade da presença de Jesus não consistia em comunicar uma doutrina, uma teologia, uma moral... nem oferecer “respostas prontas”, mas em ser “provocador” das grandes questões existenciais e desafiadoras, dirigidas a cada um, possibilitando-o acesso às reservas interiores de criatividade e imaginação.
Mais ainda: a presença “provocativa” de Jesus reacendeu nos seus discípulos este atributo tão humano, que é a capacidade de questionar-se para buscar um sentido para a própria existência.
Hoje, as mesmas perguntas feitas pelo próprio Jesus colocam o seu seguidor em contínua busca, sintetizada na expressão “buscar e encontrar a Vontade de Deus”. São perguntas que o abrem para o futuro, para o novo, para uma decisão...
A pergunta de Jesus – que Lucas apresenta em um contexto de oração – é uma pergunta expansiva e nos afeta a todos nós, seguidores(as) d’Ele: É uma pergunta onde não valem respostas secas (“um profeta”) nem respostas aprendidas (teologicamente corretas), porque remetem à vivência pessoal e única de cada um.
Identificar-se com Jesus tem um preço: significa viver a fidelidade a uma causa, a do Reino, até o fim, contando com o risco de perseguição, de rejeição e de cruz.
Uma leitura superficial do evangelho de hoje pode dar a impressão de que o cristianismo é a religião que preconiza o sofrimento, a renúncia, a negação de si mesmo, o esvaziamento da própria identidade. O sofri-mento foi de tal modo exaltado que levou muita gente a viver na passividade e resignação, esvaziando o sentido do seguimento e bloqueando a esperança. De fato, existem sofrimentos que são vazios, sem sentido, in-sensatos..., pois fecham a pessoa em si mesma, na sua aflição e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
Como consequência, a Cruz ocupou o primeiro lugar e tudo passou a girar em torno a ela.
Mas, Jesus não buscou a dor nem negou a vida. Ele não veio complicar a vida com mais leis, ritos, doutrinas..., alimentando culpa e sofrimento naqueles que o seguem.
Pelo contrário, a missão primeira de Jesus foi a de aliviar toda dor humana. Por isso, suas inumeráveis curas relatadas nos evangelhos. Suas palavras não foram uma exaltação do sofrimento, senão que expressaram uma grande sabedoria: elas buscaram “despertar” as pessoas para que pudessem viver mais intensamente e perceber a melhor atitude frente à vida; elas condensaram o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que deseja que todos vivam intensamente.
Aqui encontramos o sentido da verdadeira “renúncia”, anunciada e vivida pelo próprio Jesus. Medíocre é a pessoa que, presa ao seu “ego”, não ousa, não arrisca, pois perdeu a capacidade de criar e inovar. No fundo, “renunciar a nós mesmos” se revela como a grande possibilidade de salvar nosso próprio ser.
A renúncia do próprio “ego” – a virtude da abnegação – é um caminho de libertação, que nega para afirmar, que abandona para acolher, que faz percorrer um caminho de um “ego ensimesmado” a um “eu verdadeiro” e aberto a tudo.
A afirmação – “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la” – não é um exagero e nem um desprezo pela vida. Fazer com que tudo gire em torno ao nosso falso “eu” é dar importância em nós ao que menos vale. Não deixaremos de ser egoístas se mantivermos o apego ao “ego”. Na medida em que colocamos como objetivo último salvar nosso “ego”, viveremos como egoístas e, portanto, nos perderemos como pessoa.
“Perder a vida” (o grego original não diz “bios”, nem “zoos”, mas “psyché” – “eu psicológico”) significa não se reduzir ao “eu superficial” ou “ego”. Trata-se de negar a “ilusão do eu”, para acessar à Vida, que é nossa verdadeira identidade. Porque só quando deixamos de nos identificar com o “ego”, tomamos consciência da Vida que somos. Essa é a Vida de que fala o evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele mesmo estava identificado (“eu sou a Vida”) e que buscou despertar nos seus seguidores.
Todos nós carregamos capacidades ainda adormecidas, potencialidades quase divinas que, em alguns momentos privilegiados, descobrimos em nosso interior. E, no entanto, ao mesmo tempo, estremecemos com nossa fraqueza, com nossa incapacidade, com nossos receios, diante dessas mesmas possibilidades.
Deixar-nos determinar pelo “ego atrofiado” implica cair num conformismo doentio e na mediocridade tranqüila e temerosa; ou seja, medo de ir além de nós mesmos, para além de nossas capacidades. Quem tem medo afunda-se no mar escuro e revolto da vida.
“Renunciar a nós mesmos” – “perder a nossa vida”, desvela um dinamismo ou força de morte em nosso interior, marcado pelo medo de ir além de nós mesmos; trata-se do medo de nossa própria grandeza, o medo da nossa missão, medo da vastidão dos nossos sonhos... Por não termos horizontes, nós nos limitamos ao nosso modo habitual e fechado de viver; acomodamo-nos e não fazemos a travessia; não fazemos as coisas com paixão e com criatividade.
Há uma obesidade espiritual, a do próprio “ego”, que provém de nossa “gula” existencial, ou seja, alimentar-nos dos restos de vaidade, soberba, autocentramento... A configuração com Jesus Cristo exige uma terapia de emagrecimento espiritual, que se realiza através do esvaziamento interior, da abnegação, da renúncia de querer ser o centro de tudo...
Para isso é preciso “renunciar a tudo” para sermos pessoas plenificadas, no amor e na partilha. “Renunciar a tudo” para que outros possam viver, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.
Texto bíblico: Lc 9,18-24
Na oração: Jesus faz duas perguntas comprometedoras aos discípulos: “Quem diz o povo que eu sou?” – “E vós, quem dizeis que eu sou?”
- Agora, inverta o sentido da pergunta: “Senhor, que pensas de mim como pessoa, como cristão(ã)”?
- “Em que situações minha vida tem semelhanças com a tua Vida?”
- “Onde minha vida se distancia de tua Vida, revelando-se achatada, estéril, vazia, sem compromisso?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22/06/25
“Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão” (Lc 9,16)
Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo... Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos dilacerados, explorados, odiados, famintos...? Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem... Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo... comunhão, outro, fome, pão... partilha... celebração, amor, corpos...
Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro... do outro corpo. Jesus, na vivência de sua corporalidade, destravou e dignificou os corpos dos outros: diante dos corpos doentes... curou; diante do corpo pecador... amou, perdoou, abençoou, encorajou; diante dos corpos esfomeados: alimentou, multiplicou os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protestou, rejeitou, não façam da casa de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”... e não veem o interior.
Os Evangelhos nos recordam que foi no gesto do partir e repartir o pão que Jesus deixou transparecer o verdadeiro sentido do seu Corpo: vida que se doa para aliviar todo “sofrimento humano” (curas), para proporcionar a “refeição partilhada” (ceias e multiplicação dos pães) e para ativar “novas relações humanas” (sermão da montanha).
Contemplar as cenas evangélicas é atualizar em nós estas três preocupações centrais da vida de Jesus. Aqui se conecta a essência de Sua vida com a nossa vida de seguidores(as). Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
A “mística da mesa” não só nos recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, onde as diferenças são respeitadas, os espaços de igualdade são construídos, onde o Deus gratuito e cheio de amor e perdão é proclamado. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa e na partilha do pão “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão...Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Jesus, durante sua vida pública, desencadeou um “movimento de vida” e vida em plenitude. E este “movimento humanizador” se visibilizou, sobretudo, junto às mesas da refeição e na partilha do pão.
Jesus entendia e celebrava as refeições como sinal da presença do Deus Pai providente, que alimenta e cuida de todos os seus filhos e filhas; mas deviam ser refeições abertas aos pobres, sem distinções de pureza-impureza. Jesus comia e bebia em meio a um mundo injusto, para iniciar um caminho de revelação do Deus do Reino, partilhando o pão e o vinho com os necessitados, na alegria e na solidariedade.
Por isso, sua religião não era a do jejum, mas celebração de bodas e comunhão de mesa (refeição compartilhada). Fariseus e batistas antigos (e muitos cristãos de hoje) entendiam o jejum como rito de mortificação, uma renúncia centrada em si mesmo e esvaziada de qualquer relação com os outros. Jejuar por sacrifício para assim ter “méritos” diante de Deus. No seu horizonte, o outro não está presente; jejum autocentrado é tortura inútil.
No relato da “multiplicação dos pães”, segundo o evangelista Lucas, a cena acontece em um “lugar deserto”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.
Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.
De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.
O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue.
Enquanto a Páscoa no Templo favorecia os controladores dele, a Páscoa em torno a Jesus favorece e engrandece a todos. Também a centralidade do pão é trocada pela centralidade do próprio Jesus.
Ele dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e o dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado.
Na Páscoa do Êxodo, as pessoas comeram às pressas, em pé, pães sem fermento, cordeiro assado e ervas amargas, cingidas, para viajar imediatamente (Ex. 12,8-11). Na nova Páscoa, elas comem organizadas em grupos, sentadas na relva, tranquilamente, sem pressa, pães e peixes, o tanto quanto necessitam para ficarem saciadas, e ainda sobra abundantemente, para o futuro.
A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas. A partilha acontece quando há corresponsabilidade efetivamente solidária que leva a colocar, em comum, tudo o que cada um tem. Mas não termina aí: a Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece sempre.
Texto bíblico: Lc 9,11-17
Na oração: Qual é o pão que você busca? Como e de que maneira você se torna “pão” para os demais? O pão que você oferece aos outros alimenta o desejo de construir o Reino ou é somente um “pão que engorda e deixa acomodado”?
- Quem é “pão” para você, que alimenta e desperta o impulso para servir os outros?
- Quais são os “cinco pães e dois peixes” que você pode disponibilizar para alimentar a tantos?
- Sua participação na eucaristia implica passagem do “partir do pão” para o ser “pão partido e partilhado”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18/06/2025
“Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade” (Jo 16,13)
Todos nós já experimentamos, muitas vezes, a impossibilidade de comunicar algo muito profundo que sentimos ou vivemos; temos consciência de que não conseguimos nos fazer entender, porque não encontramos as palavras apropriadas para expressar nossos sentimentos mais nobres, nossos desejos mais oblativos, nossas inspirações mais elevadas. As palavras sempre são pobres e limitadas, pois não conseguem abarcar e expressar nossa realidade mais profunda.
As palavras são, de fato, o comunicador menos eficaz. São mais sujeitas a erros de interpretação e compreensão. E por que isso ocorre? Devido ao que as palavras são; elas são meramente expressões orais: ruídos que representam sentimentos, pensamentos e experiências; as palavras são símbolos, não são a verdade, a coisa real. As palavras podem nos ajudar a “entender” algo, mas é a experiência que nos permite “saber”, no sentido de saborear.
Algo semelhante ocorre com o Evangelho deste domingo, festa da Santíssima Trindade. O que Jesus tinha a dizer para seus discípulos, o que gostaria de lhes comunicar, excedia a capacidade de compreensão deles. Foi preciso que eles vivessem um processo no qual o Espírito, lentamente, os conduziu à verdade plena, completa. O verbo que João usa - conduzirá à plena verdade – evoca o colocar-se em movimento, dirigir-se para... Não se trata de compreender algo racionalmente, mas de situar-se de outro modo diante do Mistério de Deus, numa atitude de abertura e acolhida.
Ao longo dos séculos, os teólogos realizaram um grande esforço por aproximar-se do mistério de Deus, formulando com diferentes construções conceituais as relações que vinculam e diferenciam as três Pessoas divinas no seio da Trindade. Esforço louvável, sem dúvida, nascido do amor e do desejo de Deus.
No entanto, eles abandonaram o estilo de Jesus, pensaram que com a razão poderiam ter acesso à intimidade de Deus; esqueceram a centralidade da experiência d’Ele e elaboraram alguns conceitos que passaram longe do mistério inesgotável da Comunidade Divina.
De fato, de Deus só conhecemos o que Ele mesmo revelou de si mesmo. Por isso, o ponto de partida deve ser sempre Jesus, porque o eixo fundamental de quem o segue é crer n’Ele como visibilidade de Deus, sem pôr em dúvida sua humanidade. Deus se dá a conhecer a nós em Jesus e se comunica conosco através de Jesus; portanto, crer n’Ele é crer que, não só seus ditos, mas toda sua vida é “Palavra de Deus”. Ele é a presença visível da comunhão Trinitária. Jesus não fala muito de Deus; simplesmente nos oferece sua experiência de Filho.
E Jesus é bem claro: O Pai vive n’Ele e Ele no Pai; e a Trindade vive também em nós. Somos moradas da Santíssima Trindade. Pertencemos ao mistério de Deus. E Deus pertence ao mistério de cada ser humano.
A Trindade habita em nós e nós habitamos nela. Não estamos vazios; podemos estar sozinhos, mas não vazios. Pode acontecer que não estejamos em nossa casa, mas continuamos habitados; pode ser que não tenhamos com quem falar, mas sempre tem os Três com quem dialogar todo dia. Pode ser que ninguém nos conheça, mas sempre há em nós uma Presença que nos conhece profundamente.
Esta experiência de “habitar” na Trindade e deixar que a Trindade nos “habite” pode transformar a raiz de nossa existência. Quanta nobreza! Esse intercambio mútuo, esta comunhão estreita, difícil de expressar com palavras, constitui a verdadeira relação do(a) discípulo(a) de Jesus com a Trindade. Aqui está a essência da nossa verdadeira identidade: somos sustentados(as) pela força e pela providência trinitária.
É preciso também ter presente que o dogma da Santíssima Trindade se revela muito distante para a linguagem de hoje e a razão não nos ajuda a viver este Mistério. No entanto, se formos além da sua formulação dogmática, poderemos descobrir a raiz evangélica que nela se esconde, ou seja, é em Jesus que descobrimos que Deus é para nós “Abbá, Verbo e Ruah” (Pai, Palavra e Vento).
Contemplando a Jesus vemos, pois, que Deus é o Pai Providente que sempre nos ampara, a Palavra que nos guia pela vida e o Vento que nos ajuda a caminhar. Deus se comunica conosco (Palavra), atua em nós (Espírito) e é nosso Pai (Abbá). E isto significa que Deus não é um ser “misterioso” e insondável, mas um Semeador que espalha a semente da Palavra continuamente e nos consola em nossa peregrinação pela vida.
De fato, quando escutamos Jesus falar de Deus, ou quando Deus nos fala de si mesmo através de Jesus, ficamos assombrados, porque não menciona nenhuma das qualidades maravilhosas que sempre lhe atribuímos, mas nos fala de Abbá, o Pai que sai, a cada entardecer, a esperar pela volta do seu filho perdido.
Jesus chama Deus de “Abbá” e o experimenta como um mistério de bondade; revela como uma Presença bondosa que abençoa a vida e atrai seus filhos e filhas a lutar contra tudo o que causa dano ao ser humano. Para Jesus, esse mistério último da realidade que chamamos “Deus” é uma Presença próxima e amistosa que está abrindo caminho no mundo para construir, conosco e junto a nós, uma vida mais humana.
Quando vemos Jesus dedicar sua vida a ensinar e a aliviar o sofrimento humano sem descanso, ou o vemos rodeado de multidões que lhe seguem fascinados, ou escutamos seus critérios poderosos de vida, ou o vemos capaz de levar sua fidelidade à missão até as últimas consequências... cremos que n’Ele “sopra” um vento irresistível, o “Vento de Deus”; é o mesmo Espírito (a Ruah de Deus) que impulsiona a humanidade e que atua em cada um de nós.
Jesus atua sempre impulsionado pelo “Espírito” de Deus; este é o amor do Pai que o envia a anunciar aos pobres a Boa Notícia de seu projeto salvador. É o alento de Deus que o move a curar a vida. É sua força salvadora que se manifesta em toda sua trajetória profética.
Este Espírito não se apagará no mundo quando Jesus se ausentar. Ele mesmo promete enviá-lo a seus discípulos. A força do Espírito os fará testemunhas de Jesus, Filho de Deus, e colaboradores do projeto salvador do Pai. Assim, como cristãos, vivemos na prática o mistério da Trindade.
Por fim, Jesus se experimenta a si mesmo como “Filho Amado” de Deus, nascido para impulsionar na terra o projeto humanizador do Pai e para levá-lo à sua plenitude definitiva, inclusive acima da morte. Por isso, busca em todo momento o que o Pai deseja. Sua fidelidade a Ele o conduz a buscar sempre o bem de seus filhos e filhas. Sua paixão por Deus se traduz em compaixão por todos aqueles que sofrem.
Em sintonia com o Pai, a existência inteira de Jesus consiste em curar a vida e aliviar o sofrimento, defender as vítimas e reclamar para elas justiça, semear gestos de bondade e oferecer a todos a misericórdia e o perdão gratuito de Deus: a salvação que vem do Pai.
Assim, somos um “mistério trinitário”; somos o mistério do Pai que nos gera; somos o mistério do Filho que nos revela a nós mesmos; somos o mistério do Espírito Santo que nos faz amadurecer em primavera de graça. Cada uma das Pessoas tem sua maneira original de agir em nós; cada uma tem sua própria obra em nós; cada uma tem seu próprio momento em nossas vidas. E nós somos fruto das três Pessoas.
Texto bíblico: Jo 16,12-15
Na oração: - Como traduzir hoje, através da arte, a imagem clássica da Trindade representando um ancião, sentado junto a outro varão mais jovem, uma pombinha no centro e uma multidão de anjinhos ao redor?
- Como traduzimos e vivemos a experiência de Jesus que nos convida a chamar “Abbá” Àquele que nos deu a vida e nos envia a comunicá-la aos outros? Como encarnamos suas palavras, seus gestos, suas prioridades para nos identificar cada vez mais com Ele?
- Como nos conectamos continuamente com o Paráclito que nos foi dado? Com que outras imagens e símbolos o expressaríamos hoje?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.06.2025
“...mostrou-lhes as mãos e o lado; ...soprou sobre eles” (Jo 20,20.22)
Chegamos à Páscoa do Espírito, o grande protagonista discreto que costuma passar desapercebido; chegamos ao recomeço de uma nova história, de um presente criativo e de um futuro diferente. Chegamos, depois de cinquenta dias de encontros ressuscitadores, à possibilidade de “fazer novas todas as coisas”; recebemos Aquele que nos faz estremecer de esperança, que desperta grandes desejos e se revela como Alento vital.
Esta festa se enraíza na tradição judaica da Celebração das colheitas, quando eram oferecidos os primeiros frutos da terra, cinquenta dias depois da Páscoa; uma festa de agradecimento e fecundidade. O Pentecostes cristão, no entanto, vem nos recordar que a humanidade não está abandonada por Deus, mas que o Espírito do Vivente está presente em nosso mundo e nas profundezas do coração humano; é Ele que sempre nos acode, com seu alento e consolo; é Ele que vem em auxílio de nossa fragilidade (Rom 8,26).
Na realidade, este dia festivo desperta a consciência de que somos “seres habitados” pelo Espírito, o Espírito do Senhor em nós. Às vezes, nem conseguimos percebê-lo, porque estamos envolvidos pela superficialidade da vida. Mas, em outras ocasiões sentimos de verdade que Ele está aí, no mais profundo de nosso ser. Ele sacode nossas entranhas diante da dor dos inocentes, e nos enternece com as coisas mais simples. Ele é presença e proximidade; se deixarmos guiar por Ele, não nos sentiremos sozinhos. Quando o esquecemos, Ele continua aí, sempre, paciente, esperando. Está dentro de nós sem nos anular, sem violentar. É companhia e refúgio, fortaleza e mistério, brisa e vento impetuoso.
Podemos, então, afirmar que o Espírito Santo faz parte de nós mesmos e não tem de vir de nenhuma parte. Está em nós, constitui nossa essência, antes mesmo que nós começássemos a existir. Ele é o fundamento de nosso ser e a causa de todas as nossas possibilidades de ser, enquanto humanos habitados. Nada podemos ser nem fazer sem Ele, mas tampouco podemos estar privados de sua presença em nenhum momento.
No início da Bíblia encontramos uma imagem muito bela e real do mistério da vida. Assim é descrita a criação do ser humano: O Senhor Deus modelou o homem do barro da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente” (Gen 2,7). O ser humano é barro; em qualquer momento pode desmoronar-se. Como caminhar com pés de barro? Como olhar a vida com olhos de barro? Como amar com coração de barro? No entanto, este barro vive! Em seu interior há um “sopro” que o faz viver; é o “sopro” de Deus, seu Espírito vivificador.
No relato do evangelho deste domingo, o Ressuscitado também “sopra” sobre sua comunidade, prolongando o Sopro original do Criador. A imagem de “soprar sobre eles” contém uma riqueza profunda: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma pessoa, sua própria “respiração”, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo; trata-se de uma imagem que faz sentir a respiração comum que se compartilha com Ele e com todos os seres vivos.
As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
O Espírito é sopro, hálito, vento que gera vida, que move, impulsiona e sopra onde quer. De onde vem e para onde vai não é fácil dizer. É um Vento leve, refrescante, novo, penetrante, inovador; um sopro sutil, interior, profundo; um sopro que não pode ser detido, sufocado.
Homens e mulheres do Vento somos todos nós, quando nos deixamos mover de acordo com os movimentos do coração de Deus e da paixão pela humanidade. Movidos pelo Vento, pelo Espírito de Deus, acreditamos e construímos mediações libertadoras que promovem, incentivam e enobrecem o espírito humano. Preferimos a proximidade à distância, o dinamismo à inércia, a criatividade à normose.
O Espírito é o sopro que vivifica, anima, restaura e congrega. Pela linguagem do amor, acende a luz da paixão e permite desenvolver os dons da alegria, do entusiasmo, da compaixão, do cuidado, da esperança e da fé inabalável. Tais atitudes construtivas não são obra nossa, mas dom e fruto, isto é, algo de agradável, de fascinante, de belo, de alegre, de espontâneo, de saboroso como um fruto.
Elas nascem da árvore do Espírito. Nós as vivemos, mas é o Espírito que as desperta em nós, pois elas estão presentes como “reservas de humanidade” em cada um de nós. Como “filhos e filhas do Vento” basta deixar-nos envolver, escutar o Sopro daquela voz que habita a dimensão mais profunda da vida e que se aninha nas cavidades mais secretas de nossa existência.
Assim, com a Revelação aprendemos que o ser humano é um “todo” e que o corpo humano está unido à terra e ao céu; é argila que vive do sopro vital de Deus. Tanto o sopro vital como a terra são do Senhor; entre si estão indissoluvelmente unidos e numa constante tensão. Somos “argila” habitada pela “Ruah” de Deus; somos corpo “animado” (com ânima), atravessado pelo Alento divino.
O Espírito necessita do corpo para expressar-se e o corpo sem o Sopro não poderia transcender-se.
O passo mais decisivo nesta integração o encontramos na Encarnação de Jesus Cristo. Numa religião da Encarnação, como o cristianismo, é natural dar toda a sua importância ao corpo e às suas atitudes.
O corpo não é o túmulo da alma, mas o templo do Espírito, o lugar onde o “Verbo se fez carne”.
Por meio da Encarnação e por meio da Ressurreição de Jesus, a carne se converteu em espelho da divindade, atravessada pelo Sopro vital. Assim, o corpo humano começou a ocupar um lugar central.
Por isso, o Evangelho deste domingo também nos recorda algo sumamente importante: o Espírito brota do lado aberto e das mãos feridas do Ressuscitado; portanto, não é alheia à violência, à injustiça e ao sofrimento.
É a partir das marcas das feridas que o Espírito se derrama como bálsamo, como alento, como resistência, como energia..., para atravessar os “infernos humanos”, enfrentá-los com ousadia, denunciá-los e buscar coletivamente eliminá-los. O Espírito aparece sempre como “resistência”, atravessando e curando todas as feridas atuais: ódios, intolerâncias, preconceitos, mentiras, violências...
Por isso, celebrar Pentecostes nos incomoda e nos desinstala; a paz que o Espírito nos oferece não é tranquilizadora de consciência, mas uma provocação profunda para sairmos de nossos esconderijos e trabalhar em favor de uma vida esperançada e da reconciliação entre todos. Receber o Espírito nos move sempre à missão e esta não se sustenta com nossas próprias forças, mas que é recebida e alentada como uma brasa inextinguível que nos move sempre à gratidão e à gratuidade.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: Sinta todo o seu corpo como um templo. E neste templo acolha o Sopro.
- Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você
a força da inspiração e da expiração para que todo o seu
corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser.
- Sinta que você é um corpo de argila e, também, um corpo de diamante.
- Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Imagem: El Greco
“Jesus os levou para fora da cidade, até Betânia.
E erguendo as mãos os abençoou” (Lc 24,50)
Primeiro dado que nos faz pensar: nem Mateus, nem Marcos, nem João, nem Paulo, mas somente Lucas, no final de seu Evangelho e, mais detalhadamente, no começo dos “Atos dos Apóstolos”, narra a Ascensão como um fenômeno constatável pelos sentidos.
Até o século V não se celebrava a festa da Ascenção. Considerava-se que a ressurreição já trazia em si a glorificação. Até então, o importante de toda a mensagem pascal era a certeza de que o mesmo Jesus que vivera com os discípulos, foi exaltado, chegou à meta, alcançou a plenitude que consiste em identificar-se totalmente com Deus.
No entanto, o mistério da Ascensão nos oferece a oportunidade para aprofundar mais uma dimensão do mistério pascal. Trata-se de descobrir que a posse da Vida por parte de Jesus é total. Ele participa da mesma Vida de Deus e, portanto, ascendeu ao mais alto dos “céus”, ou seja, sua presença torna-se universal.
A Ascensão é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência; ela nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida; sua luz ilumina toda a Criação: a vida de Cristo na vida da Terra nos traz alegria e esperança. O universo inteiro é o “habitat” do Cristo Cósmico. A presença pascal de Jesus já é Ascenção; não é um afastar-se dos seus, mas permanecer com eles de maneira diferente, em amor e em presença transformadora. Também nossa meta de vida, como a de Jesus, é ascender em direção ao Pai, aos outros, à Criação inteira. “Subimos” quando “descemos” à nossa realidade, visibilizando o Cristo glorificado através de nossa presença inspiradora, esperançada e comprometida.
Celebrar a Ascensão de Jesus é ampliar nossa visão, romper com tudo aquilo que atrofia nosso coração, abrir-nos ao novo e saborear a vida que se revela sempre como contínua surpresa.
Muitas vezes, ocupados só com o resultado imediato de um maior bem-estar e atraídos por pequenas aspirações e esperanças tímidas, corremos o risco de empobrecer o horizonte de nossa existência, esvaziando a aspiração de eternidade e perdendo o desejo de uma vida mais expansiva. O ser humano resiste a viver fechado para sempre nesta condição caduca e mortal.
Na verdade, muitos cristãos vivem hoje olhando exclusivamente para o chão, cabisbaixos. Parece que não se atrevem a levantar o olhar mais além do imediato de cada dia.
Nesta festa da Ascensão do Senhor podemos recordar as palavras do científico e místico Teilhard de Chardin: “Cristãos, a só vinte séculos da Ascensão, que haveis feito da esperança cristã?”
Em meio às interrogações e incertezas, os(as) seguidores(as) de Jesus continuam caminhando pela vida, fundamentados numa confiança e numa convicção. Quando parece que a vida se fecha ou se extingue, Deus permanece. O mistério último da realidade é um mistério de bondade e de amor. Deus é uma Porta aberta à vida que ninguém pode fechar.
É belo ver como Deus se manifesta neste desejo que habita todos nós, e coloca no interior de cada um algo tão transcendental e misterioso, ao alcance de nossa vivência e de nossa compreensão. “A eternidade (céu) é importante, mas a eternidade é construída no tempo e o tempo é importante” (Pe. Aldunate). É isso que a liturgia faz: ela nos mobiliza a ir em busca dessa “escada” que nos permita alcançar tão profundo desejo. Foi assim que Jesus e seus contemporâneos entendiam a relação entre o céu e a terra.
A festa da Ascensão do Senhor é frequentemente mal-entendida como “a festa da desconexão” entre o céu e a terra. O Ressuscitado e Ascendido ao céu, não nos deixa órfãos; Ele não se ausenta, mas é Aquele que “sobe” e “desce” para iluminar toda a Criação, Aquele que conecta céus e terra.
O desejo que o Cristo expressa é de vivermos sobre a terra o céu que está em nosso interior. E diminuir a distância, a defasagem que existe entre nossos sentimentos mais elevados e nossas ações mais cotidianas.
Ele nos recorda que em nossas ações sobre a terra já se encontra o nosso céu. E o céu não é um estado que conheceremos somente após a morte, mas é também nossa grandeza interior. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da nossa própria realidade pessoal. Se com Cristo quisermos subir ao Pai, temos primeiro que descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana.
O relato de Lucas, neste domingo, afirma que o Ressuscitado, tirou os seus discípulos do lugar onde estavam trancados e os levou para fora da cidade, até Betânia. Ascensão é festa que amplia nossa visão da humanidade e da realidade, alarga nosso coração para vivermos relações mais sadias com os outros, desperta nossa sensibilidade para acolher a vida, confirma nossa missão de prolongar a mesma missão de Jesus: sermos presenças solidárias e compassivas, acolhendo tudo o que é humano e comprometendo-nos com a transformação deste mundo, ainda carregado de morte.
É como se o Glorificado nos dissesse: “olhem a terra e seus homens e mulheres, deixem-se afetar pelas suas lágrimas e angústias, assumindo tudo como algo próprio dos meus discípulos; ocupem-se em transformar tudo, ajudando as pessoas a fazerem a travessia em direção ao amor, à verdade e à justiça”.
Esta é a aparição, única e universal, de Jesus segundo Lucas, uma “ascensão” que não é subida a outro céu, mas presença nesta terra, até o final dos tempos. Esta “aparição” (presença) tem valor definitivo: não termina, perdura para sempre. Ela continua, não teve nem terá fim, até o dia em que a história chegue à sua plenitude. Isso significa que o tempo da humanidade (discípulos/as de Cristo) está marcado pela permanência e frutos dessa grande visão que fundamenta toda sua existência.
Há uma eterna tentação que se abate sobre nós, qual seja: fixarmos em olhar no céu para não prestarmos atenção ao mundo que nos cerca. Ao nos deixar conduzir pelo Espírito, rompemos com nossos lugares estreitos, vivemos a expansão de nós mesmos, tornamo-nos universais....
Essa ascensão não pode ser feita às custas dos outros, mas servindo a todos. Como Jesus, a única maneira de alcançar a plenitude é descendo para o mais profundo. Aquele que mais “desceu” é Aquele que mais alto “subiu”.
Podemos, também, conectar a Ascenção com o Nascimento de Jesus. Nada nos impede pensar a Ascensão como Natal ao contrário. O Natal é Jesus que vem de Deus para junto da humanidade. A Ascensão é Jesus que faz o retorno a Deus, junto com a humanidade e a Criação inteira. Não se trata simplesmente de dois momentos, mas de dois modos de presença: no Natal, faz-se presente e torna Deus visível na condição humana. Na Ascensão, continua fazendo-se presente, mas de maneira invisível também no humano.
Quando no Natal, Jesus se humaniza, assume nossa condição humana e a assume para sempre. A partir de então, o humano tem cheiro de divino e o divino tem cheiro de humano. Quando na Ascensão se esconde a condição humana de Jesus, este continua fazendo-se Natal na vida da comunidade cristã e de seus seguidores.
No Natal, Deus nos acostumou à sua visibilidade no humano. Na Ascensão, Deus quer nos acostumar à sua invisibilidade no humano. Invisibilidade que não é ausência, mas presença de outra maneira. Assim como Jesus não abandonou seu Pai para “fazer-se carne”, tampouco nos abandona para voltar a seu Pai. Mais ainda, o único objetivo da mensagem evangélica é que todos cheguemos à vivência profunda desse mistério, e vivê-la como Ele a viveu.
Cristo ascende e nos faz ascender à vida plena, neste mesmo mundo, no caminho da Igreja.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade, que é seu mistério íntimo e pessoal que quer se expandir, romper com os limites e as estreitezas da vida.
Viver a Ascenção, desde já, é deixar o Espírito desatar as potencialidades de vida: novas relações, novo compromisso, novas inspirações, nova visão...
- fazer memória das dimensões da vida que estão atrofiadas e que precisam entrar no fluxo da Ascenção.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23)
Nestes últimos domingos do Tempo Pascal estamos tendo acesso a trechos do discurso de despedida de Jesus, relatado por S. João. E cada domingo apresenta uma boa dose de profundidade. Hoje o ensinamento de Jesus revela, de uma maneira muito gráfica, que Deus não está e nem pode estar fora de nós, fora da criação. É um Deus conosco, ou melhor, em nós. Deus habita em tudo e em todos.
O evangelho deste domingo (6º dom da Páscoa) ativa nossa sensibilidade mais profunda, fazendo-nos entrar em sintonia com Deus e com a realidade que nos cerca. “Deus habita e age diretamente no coração” e nos conduz com delicadeza, com carinho e com liberdade, preparando-nos para grandes experiências vitais. E nosso coração aberto, atento, sintonizado com a presença íntima de Deus, dispõe-se, coopera e responde à Graça divina, empenhando-se por encontrar “o que tanto busca e deseja”.
Essa é a experiência mística da vida: “sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
Fazemos a experiência da intimidade, da presença, da comunhão, da proximidade de Deus em nossa própria vida; vivemos embriagados(as) de Vida, vivemos como um peixe no oceano de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência...; sentimo-nos cativados(as), envolvidos(as), amados(as), sintonizados(as), habitados(as) por Deus de tal maneira que nossos olhos, gestos, nossas atitudes, palavras, nosso coração, nossa existência transbordam Deus; percebemo-nos envolvidos(as) pela “onda” de Deus e sintonizamo-nos com o Seu coração. Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por nós.
“Todo ser humano foi criado para ser habitado” (Ir. Roger de Taizé). Trata-se de uma expressão surpreendente, uma frase que, de imediato, descreve algo que parece impossível. No entanto, se pensarmos bem, é o que ocorre com toda maternidade. O filho habita na mãe. Também Jesus um dia falou a Nicodemos que é preciso “nascer de novo” e a surpresa dele foi tal que exclamou: “por acaso, pode um homem entrar de novo no ventre de sua mãe?”. Para Jesus, “nascer de novo” só é possível por obra do Espírito, convertendo-nos em nova criatura. Igualmente, poderíamos dizer que “sermos habitados” só é possível por obra do Espírito; é Ele que torna presente e real o próprio Deus em nossas vidas. Por isso S. Paulo afirma que somos “templos de Deus” ou “templos do Espírito”.
Quando alguém ama e é amado torna-se uma pessoa habitada pelo amado. Como se recebe a uma pessoa no próprio interior? Através do amor. Pelo amor, o amado se torna presente no mais íntimo do outro, habita no mais profundo dele mesmo. Se isto pode ser uma rica experiência antropológica, pode igualmente ser, e com mais razão, uma experiência teologal. Deus se faz o constitutivo mais íntimo de nossa personalidade quando lhe abrimos nosso coração, entrando no fluxo de Sua Vida. E então é possível dizer com toda verdade: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.
Cristo vive em nós: isso é exatamente “sermos habitados”. Vive em nós quando acolhemos sua Palavra e nos deixamos guiar por seu Espírito. E então acontece uma maravilha: nós nos sentimos cada vez mais nós mesmos, ao sentir-nos cada vez mais cheios de Deus. Porque Deus, ao habitar-nos, não anula nossa identidade; pelo contrário, nos constitui. É o constitutivo mais íntimo de nossa pessoa. De forma que o crescimento em humanidade e o estar habitado pela Trindade são diretamente proporcionais, já que crescem na mesma direção.
Disse o Mestre Eckhart: “Deus me é mais próximo que eu mesmo o sou de mim mesmo; meu ser depende de que Deus esteja perto de mim e presente em mim. E quanto mais sei disso, mais feliz sou”.
Muitas vezes nem nos damos conta disso. A Trindade não nos invade, não se impõe, não nos anula. Simplesmente se torna habitante, presença, inspiração.
Quando sentimos que somos habitados por Deus ? Como é possível sentir isso? Quando sentimos a necessidade de algo mais; quando o cansaço não se converte em derrota, mas em parte do caminho; quando nossa imaginação é a porta aberta à criatividade; quando nosso interior está povoado pelos nomes de tantas pessoas as quais amamos e sentimos que são companheiras nesta viagem que é a vida, sempre presentes de muitas maneiras, mesmo quando já não estão ou podem estar longe; quando sentimos estremecer nossas entranhas ao perceber a dor do outro, mesmo que não o conheçamos e o sentimos próximo; quando desejamos que o futuro seja melhor, e compreendemos que nós somos também responsáveis para torná-lo possível; quando temos a intuição profunda de que há limitações e fragilidades na nossa vida porque somos criaturas; quando o sofrimento, a injustiça e a violência nos afetam, mas encontramos a força para enfrentá-los e seguir adiante; quando temos afã de conhecer mais: o mundo, o ser humano, a criação; quando nos atrevemos a perdoar e pedir perdão: descobrimos que algo, muito dentro, começa a ser curado; quando a
alegria e o humor nos invadem e sentimos que não é preciso fazer drama diante daquilo que acontece; quando a beleza nos faz sentir assombro; quando, por um instante, sabemos, sem nenhuma dúvida, que estamos vinculados a outros; quando choramos por amor... Em todas essas faíscas de humanidade estão os reflexos do Espírito que se move em nós e que nos traz, a seu modo, o pulsar de Deus.
Por isso, nossa oração implica em fazer um percurso interior, nossa morada de Deus. No dom da oração, “o coração absorve Deus, e Deus absorve o coração, e os dois se fazem um” (S. João Crisóstomo).
Ao participarmos da mesma Vida de Deus, daquela que o mesmo Jesus participava, experimentamos a completa unidade com Jesus e com Deus. É uma experiência de unidade e identificação tão viva que nada nem ninguém poderá arrancá-la de nós. É uma comunhão de ser absoluta entre Deus e nós. Por isso, quando amamos, é o mesmo Deus quem ama. O Amor-Deus se manifesta em nós como se manifestou em Jesus.
O ritmo frenético e estressante do contexto atual, e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem recuperar a dimensão da interioridade em nossa vida diária. Isso também nos impede perceber e sentir a presença divina que se move em nosso “eu profundo”.
Nesse sentido, a oração cristã facilita perceber as ressonâncias interiores do “toque” presencial de Deus, no mais profundo de nós mesmos, pois o santuário da presença de Deus está nesse espaço de intimidade entre a criatura e o Criador. Ele se comunica conosco através dos sentimentos elevados, dos desejos nobres, dos apelos inspiradores...
Deus quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com Seu coração. Abrir os olhos e os ouvidos à Presença e à ação de Deus nos faz ficar atônitos, fascinados e sensíveis à Sua voz que cada dia ressoa em nosso interior.
Talvez seja preciso colocar outro ritmo em nossa existência, que nos permita estar atentos e à escuta das surpresas que Deus tem reservado a cada um de nós. A nós corresponde nos mobilizar e estar atentos aos movimentos do Seu Espírito e dos acontecimentos.
Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, na nossa própria interioridade. Afinal, caminhamos dentro de Deus; dentro d’Ele nos movemos, somos e existimos.
Quando quisermos saber onde está Deus só precisamos olhar-nos por dentro e ver se estamos habitados por Ele. Quando quisermos saber onde está o céu, não miremos para cima; basta que miremos nosso coração. Esse é o céu de Deus e, oxalá, seja também nosso céu.
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na oração: O amor torna Deus presente em nós até o ponto de que Jesus e o Pai com o Espírito “morem em nós”, habitem em nós, nos convertam em sua casa, em seu céu.
- Todo cristão é testemunha de uma presença contemplada e ouvida no silêncio da oração. Deixe-se levar como se estivesse num rio, observando-se com um olhar interior, escutando, sentindo,...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.05.2025
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35)
Vivemos a cultura da imagem; preocupa-nos e nos interessa a imagem que apresentamos, a imagem que os outros tem de nós e a que vemos nos outros. Certas imagens se fazem “virais” em poucos minutos e elas configuram as conversações, as ideias, valores, gostos...
No contexto do Evangelho deste domingo (5º Dom da Páscoa) podemos nos perguntar: como seguidores(as) de Jesus, qual é a imagem que deixamos transparecer em nossa vida? Quê imagem nos identifica? Quê imagem difundimos? Os primeiros cristãos tinham muito claro que havia um sinal através do qual eram reconhecidos. Sua vida, a partir do momento em que se tornavam seguidores de Jesus, era tão distinta que não passava desapercebida. “Vede como eles se amam!”
No evangelho de João, Jesus destaca o distintivo de quem o segue: “o sinal pela qual todos conhecerão que sois meus discípulos será que vos ameis uns aos outros”. Jesus não está na cultura da imagem, do externo, daquilo que brilha superficialmente... Ele nos fala do amor; mas o amor com um estilo próprio: “como eu vos amei”. O sinal dos seus seguidores(as) não é algo que se “pendura no pescoço”, não consiste em tingir tudo de uma determinada cor, repetir determinadas fórmulas ou praticar os mesmos costumes, inclusive piedosos...O que permite descobrir se uma comunidade que se diz cristã é realmente de Jesus não é a confissão de uma doutrina, nem a observância de alguns ritos, nem o cumprimento de algumas disciplinas, mas o amor vivido no espírito de Jesus. Nesse amor está sua verdadeira identidade.
Vivemos numa sociedade onde se impõe cada vez mais a “cultura da troca”; as pessoas trocam mutuamente objetos, serviços e prestações. Com frequência, trocam sentimentos e até amizade. Eric Fromm chegou a dizer que “o amor é um fenômeno marginal na sociedade contemporânea”. Pessoas capazes de amar, no sentido evangélico, são uma exceção. O que predomina, mesmo entre aqueles que se dizem cristãos, é o veneno do ódio, da intolerância, do racismo, da xenofobia...
De fato, para viver hoje o amor cristão (oblativo, gratuito, aberto...), faz-se necessário resistir ao clima pesado que envolve a sociedade atual. Não é possível viver um amor inspirado em Jesus sem distanciar-se do estilo de relações e trocas interesseiras que predomina, com frequência, entre nós.
Se a Igreja está se diluindo em meio à sociedade contemporânea não é só por causa da crise profunda das instituições religiosas. No caso do cristianismo é, também, porque muitas vezes não é fácil ver em nossas comunidades discípulos e discípulas de Jesus que se distingam por sua capacidade de amar como Ele amava. Falta-nos o distintivo cristão.
Como cristãos, falamos muito do amor. No entanto, não atrevemos a dar-lhe seu verdadeiro sentido a partir do espírito e das atitudes concretas de Jesus. Falta-nos aprender que Ele viveu o amor como um modo de proceder ativo e criativo que o levava a uma atitude de serviço e de luta contra tudo o que desumaniza e faz o ser humano sofrer. Cresce entre nós a vivência de uma religião estéril, egóica, sem identificação com o Jesus dos Evangelhos.
Sabemos que, historicamente, os cristãos iniciaram sua expansão numa sociedade na qual havia diferentes termos para expressar o que hoje chamamos amor. Havia muitas formas de amar e sabemos que nem todas estavam em sintonia com o amor vivido por Jesus.
A palavra mais usada era “filia”, que designava o afeto para com uma pessoa próxima e se empregava para falar da amizade, do carinho ou do amor aos parentes e amigos. Falava-se também de “eros” para designar a inclinação prazerosa, o amor apaixonado ou simplesmente o desejo orientado para o prazer e satisfação sexual.
O amor que Jesus nos ensinou com sua pregação e com sua vida era tão novo que os cristãos tiveram que buscar no vocabulário uma expressão que se aproximasse dessa nova maneira de amar. Não queriam que o amor inspirado por Jesus fosse confundido com qualquer outra coisa. Começaram a reservar a palavra “ágape” para designar esse amor que, a partir de então, seria o sinal de identidade dos seguidores do Mestre. Um amor que não nasce do dever, mas da compreensão profunda e da identificação com todos os seres. Um amor que se expressa na inclusão universal e no serviço.
Daí a intenção em formular bem o “mandamento novo do amor”: “eu vos dou um novo mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”.
A maneira de amar de Jesus revelou-se inconfundível. Jesus transitou e ensinou o caminho do amor. E é isso que os Evangelhos mais ressaltam na pessoa de Jesus: sua extraordinária capacidade para amar, para dar e receber amor. Ele não se aproximava das pessoas buscando seu próprio interesse ou satisfação, sua segurança ou bem-estar. Só desejava fazer o bem, acolher, mostrar compaixão, oferecer amizade, ajudar a viver... É assim que Ele será recordado pelos primeiros cristãos: “Passou toda sua vida fazendo o bem”.
Nesse sentido, seu amor tinha um caráter serviçal; amor que se fazia serviço e o serviço vivido com amor. Jesus se colocava a serviço daqueles que mais precisavam. Abria espaço em seu coração e em sua vida para aqueles que não tinham lugar na sociedade e na religião daquele tempo; defendia os fracos e pequenos, os que não tinham poder para se defenderem por si mesmos, os que não eram grandes ou importantes; aproximava-se daqueles que estavam sozinhos e desvalidos, daqueles que não conheciam o amor e a amizade.
Todas as pessoas cabiam em seu coração, mas de um modo especial os últimos, os pequenos, os pobres, os excluídos, os simples a quem o Pai lhes revela os segredos do Reino; tudo isso fazia Jesus vibrar intensamente. Ele fez do amor o único necessário, a razão de sua vida e entrega e, por isso, pode ensinar com autoridade, revelando que ganhamos ou perdemos a vida em função de que tenhamos ou não amado.
O(a) seguidor(a) de Jesus não se caracteriza por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais..., mas por sua capacidade de amar. Ser seguidor(a) de Jesus, portanto, é uma questão de amor; é viver no “fluxo do amor” que tem sua fonte no coração do Pai. Trata-se do amor “ágape”, o amor superabundante, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de nossa carência, mas amar a partir de nossa plenitude. Amar não somente a partir de nossa sede, mas amar a partir de nossa fonte que corre.
Não podemos esquecer que o amor é um sentimento nobre e divino, que é preciso ativá-lo, pouco a pouco, ao longo da vida; muitas vezes, damos por suposto que o ser humano sabe amar espontaneamente. Por isso, é possível detectar tantos erros e tanta ambiguidade nesse mundo misterioso e atrativo do amor.
Nesse sentido, o “novo mandamento”, vivido e proclamado por Jesus, é um convite a viver o que somos (nossa essência), conectados com o Mistério amoroso que tudo anima e sustenta. O amor que Jesus nos pede deve surgir de dentro, não se impõe de fora como se fosse uma lei. Mais que um simples preceito, o Amor é atitude permanente de vida; tal como uma fonte, ele jorra continuamente de nosso interior, gerando vida ao nosso redor.
Todos nós, criados à imagem e semelhança do Deus Amor, carregamos a “faísca do amor”, que deve ser ativada na relação com os outros e com o próprio Deus. Na medida em que vamos conhecendo e vivendo nosso verdadeiro “eu”, o amor vai abrindo caminho e nós vamos nos parecendo mais e mais com o Deus que é puro Amor.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: O Amor originante e fontal de Deus lhe envolve permanentemente; marcado pela gratidão, queira entrar em sintonia, “ajustar-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, aberto, e que se “revela mais em obras do que em palavras”.
- Movido pelo Amor transbordante de Deus, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através de suas obras.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.05.2025
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
Todo quarto domingo de Páscoa é dedicado ao tema do “Bom Pastor”; embora não tenhamos mais relatos que falem de “aparições do Ressuscitado”, o evangelho deste dia deixa ressoar a voz d’Aquele que vive: “Eu lhes dou a vida eterna”. O tempo pascal é fonte de vida e vida em crescente amplitude.
Nesse sentido, a experiência pascal é uma verdadeira “escola de vida”, cuja aprendizagem nos conduz ao centro de nosso ser, para enraizar nossa vida no coração do Ressuscitado, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus. Tomamos consciência de uma dimensão profunda que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A vida, desde o mais íntimo de cada ser humano, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. Vida plena prometida por Jesus. Enquanto “experiência profunda”, o tempo pascal visa despertar nossa vida interior, redescobrindo nossa verdadeira riqueza; ao mesmo tempo, ensina-nos a gerar vida, a partir do “eu profundo”, fazendo-nos viver extasiados diante da gratuidade do amor divino, revelado na Ressurreição de Jesus.
A imagem do Pastor e das ovelhas nem sempre foi bem compreendida; em primeiro lugar, nossa cultura urbana está muito distante da cultura pastoril daquele tempo; em segundo lugar, há uma resistência velada quando se fala de “ovelha” e “pastor”, pois dá a impressão de negar a autonomia e autoria da própria vida. Além disso, esta imagem tem sido aproveitada por muitas “autoridades religiosas” para justificar o poder religioso, controlar e manipular consciências, gerando, na vida cristã, submissão, subserviência, infantilismo e atrofia da própria autonomia. Ser “pastor” não significa “ter poder”, domínio ou imposição sobre os outros. O próprio Jesus se esvaziou de todo poder e combateu com rigor a tendência dos seus discípulos de aspirar poder e prestígio. Ele fundou uma comunidade de amigos e amigas, centrada na vida d’Ele, e entre amigos não há poder ou controle. Na Igreja não pode haver “pastores” que dominem sobre o rebanho, mas líderes servidores, pessoas que animem e deem testemunho, que impulsionem e abram caminhos, buscadores da verdade, fomentadores da vida. O decisivo é pastorear amando.
No centro da vida cristã está Aquele que se revela como o verdadeiro Pastor, porque desperta e ativa a vida dos seus seguidores e seguidoras. Inspirados pela vida oblativa do Pastor Ressuscitado, todos nós devemos deixar emergir a força do amor e do cuidado na relação com todas as pessoas. Nada mais contrário à imagem do Bom Pastor do que hierarquias petrificadas, busca de poder e prestígio que desumanizam, atitudes egocentradas que matam o espírito de iniciativa das comunidades cristãs. Por isso, o evangelho deste domingo insiste na atitude que deve ser comum a todos, independente dos diferentes ministérios na Igreja: “As minhas ovelhas escutam a minha voz”.
Segundo os antigos, “fides ex auditu”, a fé vem pelo ouvido e, por isso, Jesus nos convida a aguçar a nossa escuta: “Quem tem ouvidos para ouvir que ouça!”. Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano.
O próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano. É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos seus filhos e filhas e os torna atentos(as) para a escuta. Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos desnuda e nos traz à nossa verdade original.
Nós cristãos esquecemos que o dever de escutar nos foi dado por Aquele que é o “ouvinte” por excelência, em cuja obra nós somos chamados a colaborar. A escuta é a ocasião para não viver do passado, porque quem escuta de verdade recebe toda palavra como nova e toda música como recém-nascida.
Falamos, falamos demais, mas escutamos e nos escutamos muito pouco. No entanto, temos dois ouvidos e uma só boca, indicando-nos que deveríamos escutar o dobro do que falamos.
A escuta do “Bom Pastor” consiste, em primeiro lugar, escutar-nos a nós mesmos, isto é, o mais profundo e autêntico de nós, fruto da iniciativa criadora e amorosa do Senhor; trata-se daquele lugar e daquela dimensão profunda de nossa vida pessoal onde ressoa aquela Voz inconfundível do Pastor Vivente. Por isso, não só precisamos aprender a escutar, mas também escutar-nos. Escutar nosso silêncio para poder dialogar com nosso eu profundo, para ver o que há por detrás de nossas palavras, de nossos sentimentos, de nossas atitudes e intenções, de nosso comportamento e vida. É preciso escutar-nos para tentar ir ao coração de nossa verdade, pois, com frequência, repetimos fórmulas vazias, frases ocas, expressões estéreis. Para cultivar o silêncio é imprescindível aprender a calar-nos.
Só poderemos escutar o outro diferente quando nos calamos.
A partir do interior, a atitude de escuta do Mestre se expressa numa atitude de escuta atenta dos outros; a voz do Bom Pastor chega até nós através da voz das pessoas, da criação, da história...
Francesc Torralba assim expressa: “Escutar é um ato de hospitalidade. Consiste em proporcionar um lugar ao outro, em ceder-lhe espaço e um tempo mental e cordial. Escutar é acolher, dar tempo e espaço ao outro, fazer um vazio para que ele permaneça”.
Escutar é um ato de amor, de esvaziamento das próprias ideias e interesses, mas de valorização do outro. Negar a palavra ou a escuta a alguém é ignorá-lo. Saber escutar é o melhor remédio contra a solidão e contra as tensões e conflitos. A melhor atitude para motivar e ajudar uma pessoa é escutá-la. Quando alguém é escutado, ele se sente considerado como pessoa.
Quem não sabe escutar com tempo e paciência, falará sem verdadeiramente “tocar” o outro, sem convencer a si mesmo... Quem crê que seu tempo é muito precioso para ser perdido na “escuta”, não terá tempo para Deus e para o irmão, mas sempre e somente para si mesmo, para suas próprias palavras e preocupações...
No meio da gritaria ensurdecedora do mundo moderno como sintonizar na onda da Voz do Bom Pastor? Como distinguir, no meio de tantas vozes, aquela voz verdadeira que não fala aos ouvidos, e sim aos nossos corações? Jesus não nos pede que sejamos cordeirinhos, mas pessoas adultas e responsáveis por nós mesmos e pelos outros.
Nossa atitude de escuta deve estar antenada na realidade ou nos reduzimos a um mero “ouvir”, sem maiores compromissos. Como ativar uma atitude de escuta, deixando ressoar em nós os clamores que chegam de todos os lados? São diferentes expressões da “voz do Bom Pastor”: o grito da terra e da ecologia, os movimentos de libertação das minorias marginalizadas, as lutas antirracistas, as iniciativas por outra economia e organização social possíveis e que tenha no centro a preocupação pela vida e nas quais as pessoas e o cuidado da Casa Comum estejam em primeiro lugar... A nossa qualidade de escuta está na disponibilidade em fazer do mundo um lugar habitável, sem primeiros nem últimos, segundo o modo de agir de Jesus.
Texto bíblico: Jo 10,27-30
Na oração: O Divino Pastor, continuamente vem ao seu encontro e o(a) arranca sua vida dos limites estreitos e atrofiados, expandindo-o(a) em direção a horizontes inspiradores.
Inimiga número um da escuta é a “nomofobia” (dependência excessiva dos meios eletrônicos) que impede a escuta e a comunicação sadia com os outros.
A voz do Pastor não se dirige à multidão anônima, mas é chamado pessoal: cada um tem rosto e nome.
- Que voz você está seguindo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.05.2025
“Logo que pisaram a terra, viram brasas acesas, com peixe em cima, e pão” (Jo 21,9)
O relato da última aparição de Jesus ressuscitado aos seus discípulos tem uma cena belíssima. Novamente juntos, na praia e entre redes, como no começo; novamente diante de um trabalho cansativo e ineficaz, como tantas vezes; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem Jesus, como antigamente.
No relato deste domingo, a comunidade eclesial é representada por sete discípulos (Pedro, Tomé, Natanael, Tiago, João e mais dois discípulos anônimos). No pensamento semítico, sete é o número simbólico da plenitude. Nos sete discípulos está representada a plenitude do novo Povo de Deus, a Igreja. Mas, dos sete discípulos só cinco são nominados. Como no Evangelho de João, tudo é simbolicamente elaborado, também esse detalhe tem seu significado. Podemos dizer que, nessa comunidade dos sete, nem todos encontraram a sua identidade. Estão em busca de um nome. Tudo ainda está aberto. Os discípulos anônimos também representam aqueles que mais tarde crerão em Cristo e farão parte da nova comunidade do Reino.
Os relatos das Aparições nos Evangelhos nos põem em contato com a situação de uma longa série de pessoas desoladas. O “golpe” da Sexta-feira Santa não pôde ser bem interpretado, de imediato, por aquele grupo de pescadores e que tinha convivido com Jesus. Todos “fizeram mudança” em tempo de desolação. As esperanças se perderam, a bondade de Deus parecia se esconder para sempre, a lembrança de Jesus fora reduzida a um cadáver a respeitar, e, quem sabe, uma bonita história a esquecer.
O vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a rotina do trabalho corriqueiro domina a paisagem do relato da Aparição do Ressuscitado junto ao mar de Tiberíades. O que mudou na cotidianidade pós-pascal da comunidade? Aparentemente, tudo voltou à normalidade da vida corriqueira. No entanto, a presença e o reconhecimento do Senhor dão ao trabalho profissional da pescaria uma nova dimensão. Não se trata mais de uma simples pescaria. Pescaria e pescadores tornam-se imagem da plenitude da vida e da unidade da missão. Pedro e João representam qualidades humanas que precisam ser integradas na vida de cada um e nas comunidades: ação e contemplação, liderança e amabilidade.
No retorno à praia, depois da abundante pesca, encontram algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno à qual, alguns dias antes, o velho pescador Pedro jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lava com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em pedra fiel. A fidelidade e o amor de Jesus, sua graça sempre pronta, o humaniza de novo, reconstruindo sua vida e reativando em Pedro a liderança para o serviço. Sem ironia, sem indiretas, sem pagamento de dívidas atrasadas. Por pura graça, gratuitamente.
O Pedro que emerge das cinzas, atravessado pelo fogo terapêutico do amigo Jesus, é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, capaz de superar preconceitos antigos. Jesus percebe que por debaixo das cinzas da negação e da traição de Pedro está escondida a nobreza de um homem que precisa ser ativada.
O mundo e o contexto social e religioso no qual vivemos não é o mesmo dos primeiros discípulos. No entanto, se a vida cristã tem alguma coisa a dizer ao mundo atual, não pode se fixar nos velhos moldes de uma religião fria, arcaica, centrada no ritualismo e no legalismo, entupida de cinzas e carente de brasas vitais. A essência do cristianismo está na identificação com o Crucificado-Ressuscitado; somos seguidores(as) de uma Pessoa que pôs abaixo uma religião tóxica, que alimentava medo, culpa e angústia.
O que os cristãos precisam claramente, neste momento de desânimo e de abatimento, não é de resignação medrosa, mas de vida e vitalidade. Precisam da ardente fé para empreender novos caminhos, com entusiasmo renovado e sem temor.
A vida cristã não morrerá se ativarmos as brasas das bem-aventuranças em nosso interior. Esse é o fogo que nunca se apaga, deixado por Jesus. Segui-lo significa viver no calor de sua intimidade, de sua amizade.
Se o cristianismo sofre um esvaziamento no momento presente, talvez seja porque se rende com muita facilidade diante do perigo de extinção, sem se dar conta do que significa “manter as brasas e avivar o fogo”. Onde deveria reinar a ousadia reina a resignação e a passividade; onde deveria estar presente o ardor, a criatividade, encontra-se a frieza, a indiferença, a petrificação da vida. A tentação consiste em fazer da sobrevivência a máxima aspiração, em vez de viver a vida plenamente, com toda profundidade e o entusiasmo que essa vocação cristã exige.
Foi isso que o Ressuscitado fez ao encontrar-se com os seus amigos e amigas: reacendeu as brasas do amor, da compaixão, da amizade, da missão, do sonho do Reino... A “vida ressuscitada”, mais que prudência, conformidade ou conservadorismo que pretendem preservar as coisas do passado em lugar de sua sabedoria, requer audácia, precisa de membros adultos que resistam ao envelhecimento da vida e de jovens que resistam ao envelhecimento da alma.
Somos já “seres ressuscitados” e esta certeza não justifica uma vida ancorada numa maneira tradicional de “pescar”. A capacidade de lançar as redes do outro lado do barco revela criatividade, ousadia e desejo de sair do túmulo do tradicional e da normose (normalidade doentia). A capacidade de arriscar é a virtude que faz a ponte entre a vida cristã atual e o novo que está para vir.
É preciso passar das “cinzas” dos conflitos, ódios, intolerâncias... às brasas da praia do mar da Galiléia: brasas de vida, de amor, de encontro, de partilha, de amizade, de missão. Ali, as brasas são fogo, calor, alimento, eucaristia, páscoa, paz, comunidade... A comunidade cristã é novamente reconstruída pelo Ressuscitado em torno às brasas, e não em torno às leis frias, aos ritos vazios, às devoções estéreis...
Estamos vivendo tempos de profundas mudanças, mas também emocionante e santo, para a Igreja.
Existem poderosas brasas debaixo das cinzas. O único que temos de fazer para avivar a chama é acolher o momento e vivê-lo com intensidade até suas últimas consequências. Se não se pode agregar carvão ao fogo, então é preciso enterrar as brasas, levá-las a novos lugares para que possam arder de novo. Como manter o fogo neste momento? Agregar carvão e proteger as brasas são, simplesmente, diferentes partes do mesmo processo chamado vida em Deus, crescimento no compromisso, na espiritualidade, na santidade: “em sabedoria, idade e graça”.
No interior do Brasil, onde o fogão a lenha é ainda comum, as pessoas têm o hábito de enterrar, à noite, as brasas entre as cinzas, e assim manter vivo o fogo até a manhã seguinte. Em lugar de limpar completamente o fogão, conservam-se as brasas incandescentes debaixo de camadas de cinza para poder acender o fogo rapidamente no dia seguinte. A preocupação principal é, pois, não deixar que o fogo do dia anterior se apague completamente ao final da jornada. Pelo contrário, as brasas escondidas debaixo da cinza durante a longa e escura noite ficam bem protegidas para que o fogo possa voltar de novo à vida, com as primeiras luzes da manhã.
O velho fogo não morre, mas conserva o seu calor, a fim de estar preparado para acender o novo fogo. A verdadeira questão é se permanece ainda suficiente fogo debaixo das cinzas de nossa vida para suscitar a energia necessária a fim de tornar nossa vivência cristã mais autêntica e comprometida. O encontro com o Ressuscitado é confirmação da missão recebida: “Tu me amas? Apascenta...”
Texto bíblico: Jo 21,1-14
Na oração: Todos e cada um de nós, que vivemos hoje o seguimento do Ressuscitado, somos portadores do novo fogo. Cada um de nós é transparência de Sua Vida.
- Para vislumbrar o amanhã, o que temos de fazer é olhar para nós mesmos e nos perguntar: “brota uma energia profunda no meu coração? Percebe-se nele o desejo de um compromisso com o Evangelho? Aí há lugar para a audácia, a coragem, o fogo novo...? Ou se apagou o antigo fogo? É a vida agora simplesmente questão de suportar os dias e agir por inércia ou ela é lugar da criatividade, do calor humano, da energia inspiradora? Permanecem algumas brasas sob as cinzas da minha vida cristã?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.05.2025
imagem: Sieger Koder
“Põe o teu dedo e olha as minhas mãos; estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo 20,27)
O que os textos pascais querem expressar com a palavra “ressurreição” é a chave de toda a mensagem cristã. Mas é algo muito mais profundo que a reanimação de um cadáver. Sem essa Vida que vai mais além da vida, nada do que dizem os evangelhos teria sentido. Os relatos das aparições do Ressuscitado é a maneira de transmitir a vivência pascal dos discípulos, depois da experiência da paixão e morte de Jesus. O que os evangelistas querem comunicar aos demais é a experiência pascal de que Ele continua vivo e, além disso, está comunicando a eles essa mesma Vida. Esta é a mensagem de Páscoa.
O relato pascal deste 2º domingo da Páscoa é a chave para entender o sentido de todas as aparições pascais, que não pretendem nos dizer o que aconteceu em Jesus, mas nos transmitir a vivência interior dos discípulos.
A experiência pascal demonstra que somente na comunidade se descobre a presença de Jesus vivo. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus. É a comunidade que recebe do Ressuscitado o principal mandato de anunciar a Boa Notícia, de ser sinal do perdão, de comunicar a paz... Ele é para a comunidade a fonte de vida, referência e fator de unidade. A comunidade cristã está centrada em Jesus e somente nele.
“No primeiro dia da semana”: o Ressuscitado dá início à nova Criação, no primeiro dia de uma nova semana; é o tempo de outra criação, desta vez definitiva. A criação do mundo havia durado seis dias e, no sétimo, Deus descansou. O “dia oitavo” é o dia primeiro da criação definitiva. A nova criação do ser humano, que Jesus realizou durante sua vida, culmina na cruz, no dia sexto, e chega à sua plenitude na Páscoa. Em Jesus ressuscitado, a Criação inteira chega à sua plenitude. O Ressuscitado é o Cristo Cósmico. S. Paulo vai dizer que “Cristo é tudo em todas as coisas” (Col. 3,11) e “tudo subsiste nele” (Col. 1,16). Ele recapitula tudo. Por isso a Epístola aos Efésios afirma: “importa unir sob uma só cabeça todas as coisas em Cristo” (1,10).
Jesus se manifesta, se põe no meio dos discípulos e os saúda. Não são eles que buscaram a experiência do encontro; tudo foi iniciativa do Ressuscitado. Os sinais de seu amor (as mãos e o lado) evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Não há lugar para o medo da morte. A verdadeira vida ninguém poderá tirar de Jesus, nem tirar deles. A permanência dos sinais indica a permanência de seu amor. A comunidade tem a experiência de que Jesus comunica vida.
João é o único que desdobra o relato da aparição aos apóstolos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos de aparições. Tomé tinha seguido Jesus, mas, como os outros, não o havia compreendido totalmente. Não podia conceber uma Vida definitiva que permanece despois da morte. Separado da comunidade, não tem a experiência de Jesus vivo; está em perigo de perder-se. Uma vez mais se destaca a importância da experiência partilhada em comunidade.
Temos aqui outro ensinamento chave: os testemunhos nunca são suficientes, não podem suprir a experiência pessoal da nova Vida; sem ela Tomé é incapaz de dar o passo. No oitavo dia, reintegrado à comunidade, Tomé pode, então, experimentar o Amor. A resposta de Tomé é tão extrema como sua incredulidade. Negou-se a crer se não tocasse as mãos e o lado transpassado de Jesus. Agora renuncia à certeza física e vai muito mais além daquilo que vê. Ao dizer – “Meu Senhor meu Deus!” – reconhece a grandeza do amor de Jesus e o aceita dando-lhe sua adesão. Ao dizer “meu”, expressa sua proximidade. Jesus cumpriu o projeto, amando como Deus ama.
A mensagem para nós hoje é clara: sem uma experiência pessoal, vivida no seio da comunidade, é muito difícil acessar à nova Vida que Jesus anunciou antes de morrer e agora está comunicando. Trata-se da passagem do Jesus conhecido ao Cristo experimentado. Sem essa mudança não há possibilidade de entrar na dinâmica da ressurreição. O fato de Jesus continuar vivo não significa nada se nós não vivemos sua mesma Vida.
A Páscoa é presença gloriosa do Crucificado. O Senhor ressuscitado é o mesmo Jesus que fez de sua vida uma contínua entrega em favor das vidas feridas e excluídas. Como sinal de identidade, como expressão de permanência de sua paixão salvadora, o Ressuscitado mostra aos seus discípulos as mãos feridas e o lado transpassado, um gesto que depois vai receber novo conteúdo frente à resistência de Tomé.
Crer e viver a Páscoa é descobrir o rosto do Crucificado nos crucificados, é descobrir a Jesus crucificado como Senhor glorioso. No fundo deste mistério está a mais profunda experiencia de solidariedade: Jesus ressuscitado está naqueles que sofrem neste mundo.
Parece que nas primeiras comunidades cristãs crer na ressurreição não foi grande dificuldade. O problema estava em unir as chagas com a glória, o ressuscitado com o executado na paixão. Dá a impressão de que havia uma certa tendência a não falar das chagas, a não recordar aquele fatídico dia em que Jesus morreu na cruz. Não é de estranhar porque, de fato, a cruz era um trauma pessoal e social, uma marca perpétua, uma exclusão para sempre. Por isso, era melhor não falar disso. Mas os evangelistas se empenham em dizer que o Crucificado e o Ressuscitado são o mesmo, que é preciso unir chagas e ressurreição. Mais ainda: acabam dizendo que uma das melhores maneiras de crer no ressuscitado é tocar suas chagas, tocar toda chaga para saná-la. Por isso, a insistência de Jesus para com Tomé: “põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos; estende a tua mão e coloca-a no meu lado”.
Tomé é a expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado. Provavelmente ele acreditava em Jesus, mas em um Jesus “espiritual” (puramente interior), sem necessidade do compromisso comunitário e social, sem chagas nas mãos e no lado. Provavelmente acreditava em um Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das mãos que tocaram os pobres e doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade.
Pois bem, contra isso, a comunidade lhe diz que é preciso “tocar em Jesus”, que o ressuscitado é o mesmo Jesus da história, o das chagas nas mãos e no lado. O Senhor ressuscitado continua sendo aquele que traz em suas mãos e no seu lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. Este Jesus pascal continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos machucadas, na ferida do costado dos homens e mulheres que sofrem. Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Jesus ressuscitado, que continua sendo o mesmo Jesus da História que morreu por causa do Reino de Deus.
O que importa de verdade não é o aspecto externo da ferida, a forma como Jesus apresenta seu lado aberto e suas mãos chagadas. Nova é a experiência da corporalidade transformada: o corpo de morte se tornou princípio de Páscoa. O mesmo corpo do amor concreto e da entrega, o corpo ferido com lanças e cravos, se converte assim em um sinal de ressurreição, sinal que continua presente na realidade da humanidade.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Crer na ressurreição não é ter algumas ideias religiosas, acatar alguns dogmas, confessar uma fé. É, sobretudo, um modo de amar o frágil, curar as chagas daquele que está ferido, amparar o desorientado. “Tocar” as chagas dos sofredores é uma das melhores formas de crer no Ressuscitado e de viver como ressuscitado.
Anunciemos o Jesus glorioso, porque é Páscoa; mas não esqueçamos do Jesus do madeiro, dos pobres, dos injustamente tratados pelos mecanismos sociais, políticos e econômicos. Uma ressurreição na qual não são levados em conta os mais frágeis, não é a de Jesus.
- Que chagas somos chamados hoje a tocar para curá-las?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.04.2025
imagem: Caravaggio
“Confio que todos, especialmente aqueles que sofrem e estão atribulados, possam experimentar a proximidade da mais afetuosa das mães, Maria, que nunca abandona os seus filhos; Ela que é, para o Povo santo de Deus, sinal de esperança certa e de consolação” (Papa Francisco - Bula n. 24).
Iniciamos o Tempo Quaresmal sendo convocados a refletir sobre a “Ecologia Integral”. Tal como Jesus, a natureza é também lugar do padecido, da harmonia quebrada, da bondade violentada, da beleza ferida... “A criação geme em dores de parto” (Rom 8,22).
Há uma crise ecológica que se alastra rapidamente, quebrando o equilíbrio vital que sustenta a natureza toda. O uso desordenado dos recursos naturais e o “descuido” como modo habitual de viver, faz sofrer tanto o ser humano como a própria natureza.
No entanto, a novidade do universo é expressa pelo Apocalipse: “Eis que faço novas todas as coisas” (21,5)
A Ressurreição de Jesus nos oferece uma perspectiva para ver essa novidade, enquanto a “comunidade de vida” se desenvolve e caminha em direção ao “Grande Mar Cósmico”.
À luz da Páscoa podemos afirmar: “creio na esperança da ressurreição cósmica”
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
A luz da Ressurreição ilumina toda a Criação: a vida de Cristo na vida da Terra nos traz alegria e esperança. O universo inteiro é o “habitat” do Cristo Cósmico.
A aparição de Jesus Ressuscitado no primeiro dia da semana foi entendida como a aurora do “primeiro dia” da Nova Criação de todas as coisas. À luz deste “novo dia” de Deus, Cristo aparece como o primo-gênito de toda a Criação, que reconcilia todas as coisas no céu e na terra.
O “primogênito entre os mortos” é também o “primogênito de toda criatura”, por quem todas as coisas foram criadas. A Ressurreição pulsa em nós e na natureza com o coração de Deus.
Os cravos arrancados aos pés da Cruz, a pedra removida, os lençóis dobrados dentro do sepulcro vazio, são os sinais que falam de uma fidelidade duradoura, de um cumprimento certo, de uma esperança que se cumpre, de um além que se faz sempre mais próximo, de uma vida ainda a caminho da plenitude.
A esperança é brasa, é pés, é caminho, é narrativa, é assombro, é antecipação.
Não há esperança na solidão das próprias seguranças e das próprias expectativas. A esperança se realiza no encontro, que impele a sair, a caminhar, a ir ao encontro, narrar aos outros o fogo que se acendeu por dentro. A esperança é o canto que empresta coragem frente os corredores escuros da história.
Os evangelistas destacam que as corajosas mulheres revelaram uma presença fundamental nos relatos da Páscoa. Elas seguiram e serviram a Jesus com seus bens pelos caminhos da Galiléia (Lc 8,1-3) e perma-neceram fiéis até o final, até a Cruz. Foram testemunhas, como tantas mulheres de hoje, da fidelidade nas situações limite, onde o que lhes cabia fazer era estar e acompanhar, na sua impotência e luto, até que emergisse a nova Vida. Foram testemunhas da semente do amor entregue, que, embora invisível no ventre da terra, vai pouco a pouco abrindo caminho para a luz, afastando pedras e abrindo sepulcros, dando à luz o novo, porque o Deus de Jesus não é um Deus de mortos, mas de vivos.
Frente à traição e a ausência dos discípulos, as mulheres foram significativas por sua lealdade. Enquanto o grupo de homens se trancou na passividade covarde, elas optaram pelo enfrentamento da realidade, vencen-do o medo, colocando-se a caminho.
Das mulheres que foram ao sepulcro na manhã de Páscoa levando perfumes podemos aprender sua capacidade de enfrentar os acontecimentos com sabedoria e audácia.
Elas são as mulheres “mirróforas”, ou seja, portadoras de perfumes, que madrugam para ir ungir o corpo de Jesus. São conscientes do tamanho da pedra e de sua impossibilidade de removê-la, mas isso não é um obstáculo em sua determinação de ir ao túmulo para fazer memória d’Aquele que abriu para elas um horizonte de sentido. A alusão ao “primeiro dia da semana” e o “nascer do sol” acompanham a entrada delas em cena, na madrugada da Páscoa: estamos no começo da Nova Criação e a luz da Ressurreição as envolve em seu resplendor.
Pela Ressurreição, romperam-se todas as amarras do espaço e do tempo. Cristo ganhou uma dimensão cósmica. A evolução se transformou numa verdadeira revolução.
A terra é o palco da vinda do Reino de Deus, por isso a ressurreição para o Reino de Deus é a esperança desta terra. Sobre esta terra, embebida em sangue, esteve a Cruz de Cristo; por isso Deus lhe permanece fiel
e afastará dela toda dor, sofrimento e morte, para Ele mesmo nela vir morar.
O Deus que ressuscita os mortos é o mesmo Deus que chamou todas as coisas do nada à existência; Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos é o Criador do novo ser de todas as coisas.
Ressurreição e Criação constituem, portanto, uma unidade, pois a ressurreição dos mortos e a destruição da morte são a completude da criação original.
“O Reino de Deus é o reino da ressurreição na terra” (Bonhoeffer).
Para os evangelistas, voltar à Galileia significou retomar e prolongar a mensagem e a proposta do Reino de Jesus. Foi ali na Galileia que Jesus começou sua vida pública e atuou como aquele que veio aliviar o sofri-mento humano, despertar uma nova esperança, com a certeza de que o Reino tinha chegado e que Deus faria mudar a forma de vida dos homens e mulheres, partindo precisamente dos mais pobres e excluídos. Dessa forma, inicia-se um grande “movimento humanizador”, a partir de baixo, dos últimos, anunciando e preparando a chegada do Reinado do Pai.
Por isso, os(as) discípulos(as) devem entrar em sintonia com o modo original de ser e de viver de Jesus na Galileia. É ali que se devem encontrar todos os que são de Jesus (Pedro, as mulheres, os discípulos de Jerusalém), para também ali retomar e prolongar o movimento iniciado pelo Mestre de Nazaré.
Somos já “seres ressuscitados”: sentimos hoje a urgência de seguir os caminhos de uma ética ecológica integral para que possamos nos situar, na Criação, numa atitude participativa e de cuidado responsável. Cres-ce um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental e uma vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza.
Todos os seres, vivos e não vivos, são parceiros numa verdadeira “dança cósmica”, numa grande comunhão universal. Fazemos parte de uma “rede” de relações múltiplas e recíprocas, nas quais o próprio Cristo Ressuscitado se faz presente, como fonte de vida.
Esse é o caminho do Evangelho, carregando em nossas pobres mãos, como as mulheres da Páscoa, o perfume da esperança, da Nova vida ressuscitada.
E, assim como o mau odor repele e afugenta, o bom odor atrai e convida ao seguimento.
É através do “modo cristificado de ser e viver” que os(as) seguidores(as) de Jesus exalam um bom odor, criam uma atmosfera perfumada ao seu redor.
Textos bíblicos: Mc 16,1-7 Mt 28,1-10 Lc 24,1-12
Na oração: Fico maravilhado(a) com a nova comunidade universal de vida que emerge da Noite Pascal.
A Luz da Ressurreição integra tudo.
- Considero como nosso Senhor ressuscitado revela toda a vida futura do universo como uma comunidade em evolução de esplendor e diversidade crescentes. Reflito como Cristo me leva a evoluir para uma humanidade em plenitude, vivendo uma relação plena com todas as criaturas.
- Como as mulheres “mirróforas”, tomo consciência dos aromas que levo para perfumar os ambientes com odor de morte, de rigidez, de indiferença, de medo... para que se transformem em espaços com cheiro de vida, de liberdade, de ternura e acolhida.
- Fui ungido(a) com o óleo santo no batismo, fui besuntado(a) e massageado(a) com um bálsamo cristificante. Por isso trago a força sanadora do perfume de Cristo, para ser presença esperançada em lugares que cheiram à morte e poder manifestar a beleza da vida cristã com a qualidade do meu aroma.
- Fraternizo com todas as criaturas e me faço humano em toda minha plenitude.
Páscoa: um salto para a transcendência... para o Novo Céu e Nova terra.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.04.2025
“Lacraram a pedra e deixaram ali a guarda” (Mt 27,66)
O Sábado Santo é o dia do grande silêncio: “Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne” (de uma antiga homilia de Sábado Santo: no Ofício de Leitura deste dia).
Neste dia de silêncio recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Envolve-nos a “noite sabática”, que deve realimentar a paixão pela vida.
O Sábado Santo nos fala do silêncio de Deus - “como a Divindade se esconde” (S. Inácio -EE. 196) – e nos convida a adentrar-nos no Mistério que está presente em toda existência: ausência, dor, fracasso, morte... Sem Cruz não há passagem para a Vida, não há Ressurreição.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloquente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus. Loucuras do amor de Deus. Só o amor que se entrega, salva.
Com seu sepultamento, Jesus “desce à região dos mortos”, radical solidariedade com a Criação e a humanidade inteira que, por sua vez, fazem a “travessia” da morte em direção à Nova Vida.
Neste dia, nos associamos a Jesus sepultado em sua “descida” para “subir” com Ele, arrancando de nosso próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte, para nos deixar possuir pela glória de Deus.
“Descer” com Ele para aquilo que está morto em nós (no nível corporal, afetivo, espiritual, social). A luz da presença solidária de Jesus ilumina tudo o que é sombrio em nosso interior. Ali estão presentes germes de vida que ainda não tiveram possibilidade de irromper e crescer.
Somente porque Jesus desceu nos “infernos” da vida é que pode salvar-nos deles, transformá-los em caminho. “Porque foi provado no sofrimento, pode ajudar os que são provados” (Heb. 2,18).
A “Terra crucificada”, os “crucificados da história”, os sofredores e as vítimas, são lugar de encontro com Aquele que “desceu” até às extremidades mais profundas da Criação e da Humanidade, revelando-se solidário com todos; Aquele que viveu a Paixão em favor da vida é sepultado, ou seja, colocado na terra como a semente, para novamente germinar e gerar Nova Vida, Nova Criação, Nova Humanidade.
Por isso o Sábado Santo da dor, da tristeza, do fracasso..., se revela também como Sábado Santo da espera e da esperança.
S. Inácio, na 3ª. Semana dos EE, nos sugere que a oração seja feita a partir da solidão de Maria. Aqui se trata de unir-nos à esperança de Maria e das mulheres, uma esperança contra toda esperança. É o muro da esperança que é preciso atravessar.
Maria “em tanta solidão, dor e fadiga” (EE. 208), mas aguardando... Trata-se de experimentar a esperança daquilo que não se vê, mas na certeza daquilo que virá.
A morte de Jesus, com todas as marcas de ser um condenado pelos homens, pelos poderes políticos e religiosos de sua época, certamente colocou Maria na maior crise possível; crer na ressurreição de Jesus foi o máximo de fé e esperança por parte dela.
O enfoque deste dia de luto está no fato de que é preciso esperar no silêncio e na calma. Às vezes queremos passar da morte à vida sem espaços de esperas.
Sabemos que a vida da Igreja, como também a nossa vida pessoal, é feita de longos sábados santos, nos quais nem a dor da Paixão nem o consolo da festa Pascal marcam significativamente nossos dias e nossas noites, mas simplesmente a dura e paciente espera, na fé mais despojada, de um Senhor, que se faz esperar tanto que parece que já não vai chegar mais.
É o Sábado Santo de um credo pascal que sabe que amanhã florescerá a messe. Submergido no sepulcro do Senhor, esperamos simplesmente.
Ao sentir nossa própria incapacidade de levar adiante a exigência do Evangelho, nos apresentamos no sepulcro do Senhor de onde pode irromper a força transformadora da manhã da Ressurreição.
O Sábado Santo é um dia sem liturgia, em silêncio, não passa nada, não sucede nada, recorda a solidão do sepulcro, a tristeza das mulheres e dos discípulos, a desilusão diante do fracasso.
No entanto o Sábado Santo é seguramente o tempo da Igreja e da liturgia que nos toca viver mais longamente em nossa vida.
Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-nos a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja nazarena. O Sábado Santo é ao mesmo tempo “sepulcro e mãe”, como diziam os antigos Padres da Igreja, ao falar do batismo.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, ainda que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo.
É o Sábado Santo que nos abre às surpresas de Deus, o “Amigo da vida”.
Já vislumbramos, no horizonte, as luzes da madrugada da Ressurreição.
Textos bíblicos: Jo 19,25-30 Jo 19,38-42 Mc 15,42-47
Na oração: contemplar Maria em sua “segunda Anunciação”; na “primeira Anunciação” deu-se o início da
vida de Jesus. Agora, essa Vida se revela a ela como Vida Ressuscitada.
Que Maria eduque nossa confiança; que ela nos encha de esperança.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.04.2025
“A esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do coração de Jesus trespassado na Cruz”
(Papa Francisco, Bula n. 3).
O mistério Pascal constitui o núcleo central da fé cristã, ou seja, a paixão-morte e ressurreição de Jesus de Nazaré e a efusão do Espírito sobre toda a Criação.
Este mistério pascal se estende também a todo o povo crucificado, ou seja, a esta grande maioria da huma-nidade que vive explorada e marginalizada, vítima dos interesses de uma minoria. Por isso, crer no Crucifica-do implica fazer descer da Cruz todos os que estão dependurados nela.
Mas a imagem da crucifixão se aplica também à situação de nossa Terra, explorada, desertificada, contami-nada, com a biodiversidade destruída e os oceanos transformados em cemitérios.
Por sua atitude de arrogância e de autossuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a Terra herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar do seu jardim e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte. O desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. Estamos diante da “Terra crucificada”.
A vida cristã significa encontro e seguimento de Jesus de Nazaré, libertador e fundamento de nossa esperança. Na realidade, a esperança cristã nasce a partir da morte de um homem simples e pobre, assassi-nado numa cruz, desprotegido, abandonado, condenado injustamente como um homem perigoso, porque se rebelou contra as estruturas religiosas e contra os poderosos daquele tempo.
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.
A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos sabem viver, porque incapazes de re-inventar a vida no seu cotidiano e alimentar uma ousada esperança. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.
A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de cada um, enquanto vive: sonhos, criatividade, intuição, esperança. “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Quando fazemos o percurso em direção ao Gólgota, em comunhão com Aquele que foi fiel até o fim, não estamos fazendo um ato derrotista, nem de tristeza inútil, nem de mergulho na escuridão existencial. Estamos fazendo uma profissão de fé na força da esperança.
Esperança é uma virtude vencedora. Quando tudo parece perdido, irremediável, destruído, ela comparece
para salvar. Ela é capaz de transformar a derrota em vitória, o perigo em alívio, o desespero em alegria. A esperança é tão poderosa que consegue tirar do domínio da morte os que não veem mais razões para viver.
A esperança transforma as cinzas em fênix, a cruz em sinal de vida, as lágrimas em vitória. A esperança é a última que morre, diz o jargão popular. Ela é desprezada pelos pessimistas, ameaçada pelos gananciosos, agredida pelos incrédulos. Da esperança tudo renasce, ainda que pareça impossível recomeçar.
O pecado costuma bloquear a esperança, causar o desânimo e desiludir quem ia bem e de repente cai. A esperança é uma senhora que vem dar a mão àquele que se desiludiu consigo mesmo ou com a situação em que foi precipitar-se.
Embora tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para não desistir, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada, a fidelidade a uma causa nobre.
A esperança é filha da fé e ambas se juntam para que aconteça a caridade.
Ao entrar no caminho do Calvário, mergulhamos no mar da esperança e dele saímos transformados, renovados em nosso ânimo e certos de que a morte não tem a última palavra, pois a Cruz já aponta para a Ressurreição, e aquilo que parecia não ter mais remédio encontrou vida nova.
Podem nos roubar a paz, a honra, a dignidade, a saúde, a alegria, a confiança, mas não podem nos roubar a esperança, se cremos na força criativa de nós mesmos, na capacidade de reerguer do chão, mesmo se a queda se repetiu três vezes no caminho do Gólgota.
O Jesus que seguimos até o Calvário nos levará à Páscoa. A esperança não nos será roubada, a alegria voltará a acontecer, pois não estamos sozinhos. Ele vive entre nós!
“Esperamos contra toda a esperança”, como Abraão, Maria e o próprio Jesus.
Textos bíblicos: Mc 14 e 15
Na oração: A dor, como consequência de uma opção de vida, é o subsolo do qual brota a esperança.
O sofrimento não se anula nem se nega, mas está sempre transpassado pela esperança.
A esperança que brota do sofrimento possibilita um “perene nascer do coração”.
Na Paixão, tornamo-nos solidários com a dor de um Homem que espera, apesar de tudo, e que se abre à dor de todos, encontrando na solidariedade e na dor dos outros, razões para relativizar sua própria dor.
Jesus foi realmente o homem solidário com a dor da humanidade para contagiar a todos com sua esperança de vida plena e definitiva. Jesus assume a dor de todos e des-vela o ser humano à luz da esperança.
Esperança de vida: a Cruz – que se completa com a mensagem da ressurreição, com a qual forma um único acontecimento – proclama que a Vida não morre; que, inclusive naquelas circunstâncias nas quais parece que tudo é fracasso, a Vida abre caminho; nenhuma morte é o final.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.04.2025
“Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,5)
Jesus, durante sua vida pública, revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só participou de muitas refeições, mas instituiu a grande Mesa da festa, da intimidade, da memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despojou-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”), pegou o avental (toalha, “ferramenta” do servo); “derramou água numa bacia...” (água derramada com extrema delicadeza, com atenção e amor); “...e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha” (Jesus inclinou-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém; lavou os pés de todos igualmente).
Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve. Ele é o Senhor que assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas para seus seguidores. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.
No “lava-pés”, Jesus deixa transparecer um amor que escandaliza, porque rompe todos os cânones estabelecidos. Um amor “subversivo”, porque subverte os critérios sociais e religiosos de seu tempo, desloca advérbios, adjetivos, nomes: acima-abaixo, dentro-fora, mais-menos, primeiros-últimos, poder-serviço, sábios-néscios, cegos-videntes, justos-pecadores, sãos-enfermos... Com sua atitude, Jesus subverte as crenças religiosas de seu tempo (centradas na lei) para reivindicar os atributos próprios de Deus em quem Ele acreditava; Ele deixa transparecer o rosto amoroso e cuidadoso do Pai.
Um amor inclusivo: não discrimina a ninguém, constitui uma comunidade de iguais, unindo em torno a si homens e mulheres, crianças e idosos... Um amor universal e preferencial: todas as pessoas cabem em seu coração, mas de um modo especial as pessoas excluídas por qualquer razão: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os considerados pecadores, judeus e pagãos...
Um amor que se faz estremecimento das entranhas e que gera uma atitude de compaixão operativa. Um amor que, como a água pura, se “derrama” e se expande no cuidado simples, despojado, acolhedor...
Para revelar seu extremo amor, Jesus toma em suas mãos o elemento da natureza mais universal: a água. Ele “derrama água numa bacia”: gesto simples, mas carregado de significados; é símbolo de vida derramada, doada, entregue. A água dá vida, regenera, purifica, é disponível a todos; não vive para si mesma, senão para quantos dela necessitam; adapta-se a todos os tempos, recipientes e lugares. Sabe estar em jarras de barro e em vasilhas de ouro. Sabe manchar-se para que os outros estejam limpos. Não faz distinção das criaturas: a todas molha, lava, põe frescor e beleza.
A água é canção, alegria, paisagem, espelho de sonhos e poesia. Ela transforma, regenera e põe vida em toda a Criação. Ela abre os povos à comunicação, à cultura e ao encontro. Ela está sempre disponível e aberta a todos os campos, terra, plantas, animais e pessoas que dela precisam.
Na cultura hebraica, a hospitalidade exige que se ofereça água fresca ao visitante, para que lavem seus pés, a fim de assegurar a paz de seu descanso.
A Campanha da Fraternidade deste ano vem nos lembrar que no princípio eram as águas; águas que criam e recriam o universo. Elas tomam as mais diferentes formas. Na natureza, contornam todos os obstáculos, esculpem as pedras dos rios e o fundo dos mares; elas se manifestam tranquilas nos lagos, rebeldes nas cachoeiras, abençoadas nas chuvas, sempre em movimento. “A água nunca descobrirá o que ela é. Mas, precisamente por ser água, continuará a brotar, a cantar e a lavar a terra e a buscar o mar”.
Apesar de tomarem as mais variadas formas, nem perdem sua identidade, são sempre flexíveis, maleáveis, por vezes teimosas a percorrerem seus caminhos ao encontro do mar.
Águas, dádivas divinas. Águas que matam nossa sede e nos curam; águas que nos purificam e refrescam; águas que nos descansam e nos reanimam. Águas que envolvem e acolhem a todos sem distinção; águas sem preconceitos; águas que não se recusam em umedecer territórios ressequidos, nem se espalhar em lugares sujos.
Deus cria a partir das águas. Só podemos ser cocriadores a partir das águas. Quem não cuida, não respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas, não pode ser criativo.
Urge recomeçar, recriar a partir da água, antes que seja tarde demais. No princípio era a água, mas ela também poderá chegar ao fim. O clamor das águas contaminadas de nosso tempo chega aos céus. Como profetizas, as águas consolam os cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça. Os rios fervem o sangue de indignação contra cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam o “sangue da terra” como se fosse receptor de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!
A trajetória do Povo de Deus foi marcada pela experiência com a água. Ela está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da Terra Prometida, etc... Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou cisternas.
Segundo o relato bíblico de Gen. 2,1-10.15, a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. As águas foram feitas para irrigar o jardim da vida.
Para os povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica.
A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços de água. “Todo deserto contém um poço escondido” (Saint-Exupèry). Em uma região árida, cada fonte, cada olho d´água, cada poço é quase um milagre. Toda fonte é sinal forte da benção divina, um presente de seu amor.
As fontes fazem parte da promessa de Deus para o seu povo (Dt. 8,7-8).
E a Água se fez “carne” e habitou em todas as criaturas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos mais: somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria... Estamos vinculados à Criação toda através da água. Devemos nos espelhar na gestualidade de Jesus que derrama água para lavar os pés de seus discípulos.
O desafio de viver uma “ecologia integral” convoca todas as tradições humanistas e religiosas a salvarem o planeta Terra. Se a água nos trouxe à vida, o dia que ela acaba não restará nenhum ser vivente. É através da água que é possível estabelecer uma profunda unidade entre todos os seres vivos e não vivos.
Pertencemos todos à água e ela nos pertence; ela é o sangue que circula pelas veias da Criação inteira, possibilitando e recriando a vida; é ela que alimenta a interdependência entre os seres. Assim como os minerais combinam e intercambiam moléculas e cores, a água é a mediação através da qual os seres vivos compartilham suas vidas.
“Tal qual poça d´água deixemos o céu refletir em nós” (D. Helder)
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: É preciso compreender que o gesto do “lava-pés” constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade d’aqueles que seguem Jesus e exercem algum serviço em sua comunidade. Gesto que é revelação e ensinamento, amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
Na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”: vestir o coração com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço gratuito...
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.04.2025
“Ao cair da tarde, Jesus se pôs à mesa com os Doze”
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” da Última Ceia, uma refeição tão especial e carregada de sentido. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os seguidores de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Jesus quis cear com os seus amigos mais próximos e, por isso, precisa encontrar uma sala na qual houvesse espaço para estarem juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que acontecem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino. E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Jesus fez questão de se confraternizar com o círculo dos amigos, do qual Judas fazia parte.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que se serviu comigo do prato é que vai me entregar". Esta maneira de anunciar a traição acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus sugere assim que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Na descrição da paixão de Jesus do evangelho de Mateus acentua-se fortemente o fracasso dos discípulos. Apesar da convivência de três anos, nenhum deles ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus conta isto, não para criticar ou condenar, nem para provocar desânimo nos leitores, mas para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos.
Preparar a mesa e fazer a refeição implica todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e, por meio dos alimentos, garantem a vida.
Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai
É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão; a partir desse ato sagrado, podemos olhar o outro mais de perto, escutá-lo mais de perto, senti-lo mais de perto... pois “a comida, o alimento de nossas refeições, não é somente o que aparenta, mas, remete a algo que está atrás de si, para além de si. Portanto, o gesto de sentar-se à mesa para comer revela um tipo de relação social de um determinado grupo humano” (Manuel Diaz Mateos).
É assim a comunidade dos cristãos, a Igreja: juntos, “conspirando”, mãos dadas, comendo o pão, bebendo o vinho e sentindo uma saudade/esperança sem fim...
À luz do tema da CF (Fraternidade e Ecologia integral) podemos dizer que no pão e no vinho chegam até nós os quatro elementos da mãe natureza: a terra, o sol, a água e o ar. Através do pão e do vinho entramos em comunhão com essa natureza que nos envolve e nos protege maternalmente. Comungamos com ela e dessa comunhão surge nossa humanidade, na qual se encarna o Filho de Deus.
É o Papa Francisco que, em sua importante encíclica (Laudato sí), faz alusão a esta dimensão cósmica da Eucaristia. Porque, no pão e no vinho se concentra toda a essência da Criação, a exuberante riqueza de seus recursos, a fecundidade inesgotável da terra, a beleza deslumbrante de suas fontes, de seus mares e rios, de seus bosques, de suas montanhas...
Assim expressa o para no n. 236 da encíclica: “A Criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. No auge do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz a partir de cima, mas a partir de dentro, para podermos encontrá-lo-Lo em nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, e é o centro vital do universo, o centro transbordante de amor e de vida inesgotável. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a Criação. No Pão Eucarístico, a Criação está orientada para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”.
O texto é, sem dúvida, de uma grande densidade teológica. Os dons eucarísticos, o pão e o vinho, por sua condição material e terrena e por sua vinculação ao trabalho do ser humano, são parte da Criação, são algo nosso, um “pedaço de matéria”; pertencem à nossa condição mais própria e íntima. Tudo isto nos faz tomar consciência de que, no insondável mistério eucarístico, os dons apresentados são uma representação do cosmos. Todo o universo cósmico é assumido e representado na Eucaristia. Deste modo a Eucaristia se torna o centro do cosmo, o centro vital do universo; ela é celebrada sobre o altar do mundo.
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.
Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).
A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica. Sentimo-nos conduzidos pela força do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Ao mesmo tempo ela nos convida a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e levarmos a sério a responsabilidade que temos sobre a Criação.
E a “eucaristia cósmica” se prolonga nas refeições cotidianas. A comida-bebida é expressão de dependên-cia, de nossa condição de criaturas. Por esta ação, manifestamos e experimentamos que necessitamos sair de nós mesmos para subsistir. Nela nos encontramos com algo que nos vem de fora e que necessitamos vitalmente, já que não podemos tirá-la de nosso interior.
Somos solidários do universo porque dependemos dele. É nossa dimensão cósmica mais palpável. Vivemos graças aos frutos da terra. Este sentido de religião já nos insinua o religioso.
O fato de tomar juntos uma refeição é sinal de comunicação inter-humana, pois comemos em companhia e não sozinhos. Na sua raiz, a refeição é uma ação que implica comunidade, comunhão, comunicação. Se falta esta dimensão, a refeição se torna uma simples ingestão de alimento; não é um ato humano integral: comer e beber é expressão de nossa unidade de origem e de nossa solidariedade na condição humana; compartilhamos uma mesma origem e um mesmo destino, um mesmo enraizamento na terra, no cosmos.
Texto bíblico: Mt 26,14-25
Na oração: Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Re-visitar o sentido e o lugar da mesa-refeição no seu ambiente familiar: é lugar facilitador de partilha e convivência?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.2025
“Um de vós me entregará... Era noite”
A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever de todos em lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão e, depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
De fato, na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas, no fundo, ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro? Por que traímos o amor de Deus por todos nós?
Judas ficou decepcionado com o chamado de Jesus. Tinha outros interesses e não conseguiu entrar em sintonia com o coração e o projeto do Mestre; ele destoa porque não captou que em torno a Jesus tudo é gratidão e gratuidade.
Judas aparece nos três relatos evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira), não como protago-nista, mas como alguém deslocado, frio e insensível diante do drama que Jesus está vivendo; aliás, é ele mesmo que alimenta mais ainda o drama da dor e da perseguição imposta a Jesus.
Os evangelistas não deram muita importância à figura de Judas; na realidade, sentiam-se incomodados com ele e não aceitavam suas posturas e suas atitudes. No entanto, dada a importância do tema da traição, é Jesus quem intervém diretamente e des-vela as questões espinhosas que este discípulo carregava em seu coração. Há coisas que estão muito além do dinheiro: a delicadeza com as pessoas, os gestos de ternura e compaixão, o cuidado com os mais necessitados, o espírito gratuito de serviço...
A vida da comunidade cristã deve estar fundamentada nas atitudes oblativas e não nas conveniências do próprio “amor, querer e interesse”.
Na Última Ceia, que Jesus mesmo preparara com tanto cuidado, Judas só está fisicamente presente no ritual, mas seu coração está ausente, não consegue entrar no clima da refeição. Ele tem outras coisas para fazer e desaparece na noite, sem inteirar-se do sentido deste momento. Na verdade, ele está “vendido” a outros poderes; recebe promessas “de fora”, mas não se sente bem dentro da comunidade. Chegar à traição é só um passo.
O tema da CF deste ano – “Fraternidade e Ecologia integral” – vem denunciar a grande “traição” vivida pela humanidade inteira; recebemos do Criador a nobre missão de “cuidar e guardar” a Casa Comum; no entanto, traímos a confiança que Deus depositou em cada um de nós; traímos a Criação inteira porque nossa presença se revelou destruidora da grande rede de vida; traímos as pessoas porque a insensibilidade ecológica é expressão de nossa insensibilidade diante do outro, sobretudo o outro violentado e excluído.
Por trás da palavra “traição” se esconde o drama da existência humana. Esse drama mostra-se trágico, pois revela uma aparente situação insolúvel que dilacera o coração e estraçalha a esperança humana.
A experiência de traição é de desvio de rota, de frustração da própria vocação, experiência que nos desu-maniza e nos faz viver uma existência vazia; com isso passamos a viver exilados, desterrados, solitários...
Nossa comunhão sagrada com a natureza, nossa fonte de vida e de significado, foi substituída por um profundo desespero. De fato, temos lavrado nosso próprio “inferno”.
Hoje constatamos as chagas ecológicas estampadas por toda parte e os próprios seres humanos deformados pela miséria e exclusão: buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas são pecados do nosso dia-a-dia...
O drama do ser humano é perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial. A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: petrificação de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo belo e pelo bem, o extravio da ternura e da transcen-dência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...
Há muitas causas que nos fizeram chegar à atual crise ecológica. Mas é preciso chegar à última: a traição do ser humano que significa ruptura permanente da re-ligação básica que ele introduziu, alimentou e perpetuou com o conjunto do universo e com seu Criador.
Com sua traição, o ser humano rompe com a solidariedade natural entre todos os seres, contradiz o desígnio do Criador que o quis como co-criador e que, através de sua inteligência completasse a criação imperfeita.
A salvação reside na re-ligação com todas as coisas. Não precisa necessariamente ser mais religioso, mas mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. Ele precisa voltar à Terra da qual se exilou e sentir-se seu guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural. E, ao se abrir ao Criador, saciará sua fome e sede infinita e colherá como fruto a paz.
É preciso aprender da Mesa deixada por Jesus: ela pode ser lugar da traição ou lugar de novas relações.
Jesus, o Homem do Cuidado e companheiro de mesa, nos convida a ser mesa de acolhida e de partilha, se quisermos ser seus amigos e amigas.
Ecologicamente falando, o relato da última Ceia nos indica várias lições:
Em primeiro lugar, ela expressa uma comunicação com a Terra da qual o pão e o vinho procedem. Comer e beber é entrar em comunhão com as energias e forças cósmicas; é receber a energia que renova a vida, regenera cada pessoa, que experimenta uma sensação de plenitude não só fisiológica, mas existencial, rela-cional, espiritual... A Terra e o Cosmos são, ao mesmo tempo, símbolos máximos de Vida, epifanias de uma Energia renovadora através do campo, de sua fertilidade, de seus frutos; através do sol, da lua com seus ciclos e estações, do mar... estamos conectados com o Transcendente e, portanto, com o religioso, in-separável do antropológico e do ecológico. Entramos em comunhão com toda a realidade cósmica, primeiro através da respiração, do banho nas águas, na recepção dos raios solares e, finalmente, no ato de comer.
Através desta união entre o cósmico, o humano e o divino, nasce a nova Criação; ela nos possibilita viver a ecologia integral redentora, ou seja, através do alimento há uma reconciliação entre o homem-mulher, a natureza e Deus. Há união, harmonia entre criação cósmico-humana e Criação. Há uma reconciliação pacificadora que é comunhão entre humanidade, cosmos e Deus.
Texto bíblico: Jo 13,21-33.36-38
Na oração: dê nomes às diferentes “traições” que podem se manifestar no cotidiano da vida: na relação com o Criador, com os outros, com a natureza...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.04.2025
Estamos entrando na Semana Santa, a semana da Páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1). A liturgia de hoje coloca diante de nós o início do capítulo 12 do evangelho de João, que faz a ligação entre o Livro dos Sinais (cc 1-11) e o Livro da Glorificação (cc.13-21).
Somos convidados a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, da comunidade de amor e coração de humanidade:
- Com Jesus Mestre, para nos tornar mais humanos e próximos;
- Com Marta, para professar a fé e a servir na diaconia;
- Com Lázaro, para passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;
- Com Maria, para quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.
Assim é a vida: amizade, gratidão, refeição, perfume que invade tudo...
Betânia é “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez abençoada e nossa fragilidade iluminada; mas, também é lugar onde se fazem visíveis as pobrezas de nosso mundo, da humanidade e da Criação inteira, que afetam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus.
A casa deve ser escola de encontro e fraternidade. A comunicação (comum união) se celebra entre suas paredes que, em seguida, se expande para além de seus limites, despertando uma sensibilidade solidária.
A casa prepara para a vida, pois é ali que os fundamentos de uma personalidade vão se solidificando.
A casa é mais do que uma realidade física, feita de quatro paredes, portas, janelas e telhados.
Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre aqueles que a habitam e com aqueles que nela são acolhidos.
A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos; ela nos fixa no solo e nos fornece orientação; ela é o lugar seguro que nos possibilita repouso e revigoramento afetivo, bem-estar e proteção...; ela nos oferece um espaço estabilizador e nutridor, suscitando vigor e saúde integral.
Negar casa a alguém é negar-lhe o útero que protege e acolhe, é tirar-lhe a segurança necessária para viver, é fazê-lo um errante sem pátria e sem rumo. Perder a casa é se perder-se a si mesmo.
A casa é também o lugar da nova comunidade inaugurada por Jesus; é a casa do Pai (Jo 14,2).
Para Jesus, ser “humano” é ser casa aberta e acolhedora. Tal atitude pede “mais portas e janelas e menos espelhos”. No espelho nós nos vemos; e o que vemos não é o que somos, mas o que aparentamos ser. Desta percepção não saímos. O horizonte perceptivo é mínimo. O espelho é incapaz de revelar a verdade de nosso ser e de ampliar nosso mundo afetivo e social.
As portas e janelas, pelo contrário, ampliam nosso horizonte. Através delas renova-se o ar denso e irrespirá-vel do interior da casa que geramos fechados em nós mesmos. As portas e janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a sociedade, sem a qual não existe relação humana. Elas servem para apontar aos outros que eles fazem parte de nossa vida e que, abertas, indicam que podem entrar em nossas vidas.
Como seguidores(as) de Jesus, habitando em casas construídas sobre a rocha do Evangelho, deveríamos nos preocupar mais com as portas e janelas e menos com os ornamentos dos espaços interiores. É preciso descobrir outros rostos e de maneira especial, rostos feridos, machucados e necessitados de abraço.
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados.
São muitos os lugares por onde transitamos, mas o mais importante deles é a nossa casa.
“É preciso que você saiba acolher o outro. Existe uma crise de moradia muito mais grave que
a falta de casas: é a escassez de pessoas interiormente disponíveis para seus irmãos.”
O ícone da “casa em Betânia” revela-se instigante diante do processo destrutivo da “Casa Comum”;
“Somos terra e esta é nossa casa, nossa irmã e nossa mãe”. Assim começa o Papa Francisco sua encíclica “Laudato si’”. No fundo desta encíclica, pulsa esta intenção: aspiramos nos salvar juntos, porque tudo nos afeta a todos no único mundo que temos.
A Terra, nossa casa ameaçada por processos de aquecimento e ruptura dos equilíbrios da vida em comum, se converte cada vez mais em um imenso depósito de lixo.
Frente a uma realidade que apresenta múltiplos aspectos, todos intimamente relacionados, o Papa Francisco propõe uma grande virada no discurso ecológico, passando da ecologia ambienta à “ecologia integral”.
Somos, pois, “Casa Comum”, conectados numa vasta rede de relações no qual vivem, convivem e interagem, muitas outras pessoas e criaturas, muitas delas sobrevivendo em condições de grande penúria, escassez e violência. Cuidar da casa comum supõe, portanto, cuidar da maneira como somos “casa”, como influímos nas vidas de outras pessoas, como contribuímos para que se sintam acolhidas e acompanhadas em seu meio. É descobrir aí um desafio que vai muito mais além do mero cuidado de algo externo: cuidamos de nós mesmos, de nossa humanidade e da rede de relações que nos mantém vivos.
Nosso mundo está interrelacionado, fazemos parte da única terra, vivemos dentro de ecossistemas, atmosfera, vegetação, animais e seres humanos; fazemos parte dessa vasta rede vital, mas não podemos destrui-la sem afetar a todos; qualquer mudança repercute em todo o cosmos.
Um passo a mais damos quando reconhecemos a Natureza, nosso planeta, como “casa comum”. Sentimo-nos implicados com ela ao reconhecê-la como nosso habitat necessário, habitat por sua vez compartilhado com outros seres humanos; podemos assim nos posicionar de maneira criativa, reconhecendo a necessidade de não a deteriorar ainda mais e de conservá-la, e inclusive melhorá-la, para as gerações futuras.
Na unção em Betânia, Maria pode ser considerada como um ícone da nova sensibilidade que o evangelho
nos oferece. Ela está dotada de uma sensibilidade muito superior à dos discípulos, tanto para perceber o que acontece como para expressar seus sentimentos com admirável fineza e liberdade.
Os dirigentes judeus andavam buscando uma ocasião para matar Jesus. Maria, certamente havia escutado os rumores que chegavam da vizinha Jerusalém e que circulavam em voz baixa entre as pessoas do povo. Ela sintonizou com este momento dramático. Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que esse momento transbordava seu coração. Maria investiu num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado.
O excesso de seu gesto sintoniza perfeitamente com o amor sem medida de Jesus, mas ultrapassa a limitada capacidade de compreensão dos presentes à mesa, sobretudo Judas Iscariotes.
Os perfumes e os aromas estiveram muito presentes na vida de Jesus, em seus momentos de dor e prazer. O perfume revela e oculta ao mesmo tempo, aviva o desejo, a abertura à surpresa de uma presença. Jesus os recebeu agradecido, e sua própria vida tomou o símbolo do frasco, precioso e caro, que se quebra para poder derramar-se em favor de muitos.
Quando a Vida nos unge, estamos potencialmente equipados para anunciar a boa nova, a luz, a cura, o cuidado... Ações que nos plenificam.
Texto bíblico: Jo 12,1-11
Na oração: A casa “imprime caráter” ou nós imprimimos caráter à casa? Tudo vai depender como se encontra a "casa interior”, o próprio coração.
Nesse sentido a casa torna-se Templo do Espírito pois ela nos ajuda a fazer contato com nossas “moradas interiores”: lugar de intimidade com Deus, espaço de contemplação, ambiente de discernimento e construção de decisões.
- É do “interior habitado por uma Presença” que brota o impulso para a saída de si e viver a “cultura do encontro”.
- Seja “casa cristificada” onde a mão estendida se revela como gesto contínuo, sinal visível de um coração compassivo e acolhedor; quebre o “frasco” do perfume mais original, presente em seu interior, para perfumar os ambientes fétidos de mentiras, ódio, intolerância, preconceito...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.2025
“Jesus caminhava à frente dos discípulos, subindo para Jerusalém” (Lc 19,28)
Depois de uma longa caminhada Quaresmal, chegamos à Semana Santa, onde celebramos os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, os acontecimentos centrais de nossa fé cristã. O toque principal é dado pela Páscoa: “passagem” da morte à Vida.
Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos da Galileia, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
“Estavam subindo a Jerusalém”. A paisagem familiar da Galileia foi ficando para trás e a fadiga da subida pesava agora sobre seus corpos cansados; sabiam o que lhes esperava, sobretudo pela inquietação que enchia seus corações de obscuros presságios. O Mestre, eterno Peregrino, alimentava a esperança de levar vida a uma cidade carregada de morte; por isso, caminhava com passos rápidos, seguido dos seus discípulos.
Jesus, entra nesta cidade aclamado pelo povo simples. Há muitas formas de entrar na vida, nas situações, nos problemas, nos povos..., por razões e interesses muito diferentes e, portanto, com atitudes diferentes. Muitas são “entradas” de poder, seja de ordem política, militar, desportivas, eclesiástica... Jesus entrou em Jerusalém de maneira provocativa e ousada. Sua “entrada em Jerusalém” pode também ser uma ocasião privilegiada para questionar nossa presença nos grandes centros urbanos.
Assim, o percurso quaresmal desemboca na cidade e nos convida a examinar nossa presença cristã nas cidades: como torná-las mais humanas, acolhedoras e possibilitadoras da vida.
A Campanha da Fraternidade deste ano pede de todos nós, seguidores(as) de Jesus, uma atitude ecológica, também nos grandes centros urbanos, através de uma “incidência política”; cada vez mais nossas cidades se revelam irrespiráveis, contaminadas, com diferentes expressões de muros que alimentam conflitos e divisões; é preciso criar “oásis de humanidade”, onde todos possam se sentir em casa.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos. “Entrar Jerusalém” com Jesus é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o(a) seguidor(a) de Jesus tem em quem se inspirar.
As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de seu interior, sonhos de rara beleza, uma esperança ousada, um sentimento de profunda comunhão com tudo e com todos (ecologia integral). São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço de acolhida, de convivência, de proteção e cuidado da vida, de fraternidade... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.
Este é um dos grandes desafios nas nossas grandes cidades. Romper com o individualismo e as estruturas petrificadas que marcam as relações entre os homens e as mulheres, para criar um marco novo, humanizador e aberto a Deus Pai, através de pequenas comunidades. Comunidades daqueles que confessam o seu amor comum pelas mesmas coisas – as mesmas esperanças, os mesmos sonhos, a mesma utopia da “Cidade Nova” do Reino.
Esta Cidade Nova deve estar circundada por “Novos Céus e Nova Terra”, assentada no centro de uma Nova Criação; portanto, em equilíbrio e beleza ecológica visível, integrada neste horizonte mais amplo da Nova Criação, que é manifestação da chegada de toda a realidade à sua plenitude. Todas as expressões de vida devem estar interligadas e interdependentes, constituindo uma Ecologia Integral, perpassada pelo mesmo Sopro do Espírito.
O mundo urbano é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação é a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo.
No meio das cidades encontramos pessoas “especiais” que se comprometem alegremente com a humanização dos espaços, e se convertem assim em fator essencial de esperança para um futuro novo; são pessoas que “gastam” suas vidas, sua acolhida e seus cuidados em favor das vítimas da violência e da destruição.
A cidade é uma realidade humana que pode e deve ser iluminada pelo Evangelho, sustentada pela graça, animada pela esperança da vinda do Reino. É necessário aprender a ler a cidade com os olhos caridosos, pacientes, misericordiosos, amigos, fecundos, cordiais...
Para o(a) seguidor(a) de Jesus, a cidade é também o espaço para a busca e o encontro de Deus. Podemos falar de um “típico modo de proceder cristão” em sua referência ao espaço urbano.
É Deus que constrói a cidade perene, a cidade sem muralhas, a cidade da plenitude e da amizade, a cidade da fraternidade na qual todos se reconheçam como irmãos e irmãs sob um único Nome e sob um único Céu. Deus é o grande arquiteto; é Ele quem constrói, para a humanidade, a imensa cidade na qual todos se reconhecem fraternos, próximos, ternos... É nessa direção que somos chamados a sermos colaboradores para “pôr o coração de Deus no coração da grande cidade”, e renová-la a partir de dentro.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica, portanto, romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...
Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.
Este pode ser nosso “Domingo de Ramos”: desejar, sonhar, alimentar esperanças, ver a Jesus nos pobres, nos excluídos, nos sofredores, e forrar seu caminho com nossos mantos, alegrar-nos com Ele, bendizê-lo e sermos benditos por Ele, enquanto, cuidando dos pobres e da Criação, neles cuidamos de nosso Rei. Podemos, então, proclamar em alta voz: “Hosana”, “hosana nos céus e nas criaturas”, “hosana em todas as pessoas”, “hosana na Criação inteira” ...
Texto bíblico: Lc 19,28-40
Na oração: O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde, da ecologia..., onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
- Traga à “memória” o que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...
- Procure descobrir “sinais do Reino de Deus” no meio do ritmo frenético de sua cidade.
- Traga à mente nomes de pessoas corajosas e criativas que contagiam e fazem crescer a esperança na sua cidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.04.2025
“Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” (Jo 8,5)
Há em todos nós uma dificuldade básica de nos tornar conscientes e responsáveis pelos nossos erros. Em muitas ocasiões atua em nós um mecanismo de defesa, em forma de negação e de cegueira, que pretende evitar a dor e a ferida interior da culpa, preservando nossa autoimagem e nosso narcisismo. Introjetamos em nós a falsa ideia de perfeição; há uma cobrança social de que não podemos fracassar; temos resistências em assumir nossa condição humana (húmus) pobre e frágil; pesa sobre nossos ombros a força da falsa imagem de que somos semideuses. Com isso, alimentamos escribas e fariseus em nosso interior, centrados na lei e com as mãos cheias de pedras.
Efetivamente, no relato evangélico deste domingo, Jesus desmascara aqueles que, com a lei na mão, assumem a cátedra de juízes e projetam sobre os outros as próprias mazelas: “quem dentre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. A “primeira pedra” é a que provoca todas as violências, alimenta ódios, intolerâncias, rompe relações...; a primeira pedra é ponto de partida de toda desumanização.
É verdade que, literalmente, aquela “primeira pedra” é algo incômodo para quem deseja lançá-la. No entanto, quando se trata de palavras, maledicências, fofocas, calúnias, murmurações, suspeitas, “fake news”, julgamentos ..., não pensamos nisso. São diferentes expressões da “primeira pedra”. São piores as pedras da língua que as pedras que atiramos com a mão. Todas as desgraças sociais e religiosas dependem da primeira pedra.
Depois da primeira pedra produz-se uma chuva de meteoros. E todos correm para socorrer, defender e justificar, não a pobre vítima, mas àquele que lança as pedras, integrando suas violentas pedradas às daquele que iniciou a lapidação. Tudo por culpa da primeira pedra, lançada com frequência e sem medir as consequências. Na verdade, a primeira pedra, a primeira palavra, a primeira suspeita..., lançadas com rapidez, são as mais contundentes e desencadeiam um processo destruidor.
Os olhos, a língua e as mãos são expressões do coração; um coração petrificado é gerador de pedras mortais. Normalmente, a petrificação interior é sempre recheada de devocionismos externos, de práticas religiosas alienadas, de ritualismos repetitivos, de moralismos estéreis... O legalismo intransigente e inflexível desemboca no orgulho e na vaidade, levando a pessoa a subir no seu tribunal, fazendo-se juíza dos outros.
Quando alguém não reconhece a própria culpa, porque o próprio perfeccionismo o impede, facilmente ele a projeta sobre os outros, num claro mecanismo de defesa. E descarrega sobre outros a própria insatisfação, frustração e os próprios sentimentos de culpabilidade. Assim, ele elege alguns “bodes expiatórios” sobre os quais se projeta o próprio mal interno e, desse modo, procura aliviar o íntimo mal-estar e o peso moral. Quem tem o coração petrificado não tem bênçãos a oferecer, mas pedras a serem atiradas.
Um coração petrificado se expressa numa atitude de intolerância e insensibilidade frente aos outros.
Tal atitude a encontramos claramente na cena da mulher surpreendida em adultério, relatada por João. Aqui temos a “pedra na mão”, magnífico símbolo da culpabilidade, disposta a ser lançada sobre alguém em quem se projeta a própria maldade não reconhecida.
Numa postura arrogante, os escribas e fariseus tomam para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que eles pensam que merecem (recompensa ou castigo, a vida ou a morte).
O “arrogante” é um ser petrificado: a lei é a sua; a palavra é a sua; a verdade é a sua; o momento é o seu.
É por isso que Jesus apela ao grupo dos agressores a que dirijam o olhar sobre seu próprio interior e, no reconhecimento de seu próprio pecado, a pedra possa cair de suas mãos.
A mulher ficou livre. Os agressores, de outra maneira, também livres do engano de negar sua culpa para projetá-la maldosamente sobre aquela pobre mulher.
Silêncio e palavra configuram as duas faces do relato do evangelho deste domingo.
Jesus escreve sobre a terra; isso tem gerado especulações. Segundo France Quéré, com sua escrita misteriosa, Jesus traça as grandes linhas do “código da misericórdia”, que não pode se encerrar nos artigos de uma norma jurídica, nem pode ser esculpida sobre a pedra.
Não se escreve a misericórdia sobre matéria dura, e tampouco ela pode ser fixada sobre o papel. Traça-se a misericórdia sobre a superfície delicada de um coração de carne, simbolizada na matéria fofa da terra. A vida surge da argila, porque a argila é maleável. Deus não tirou o ser humano da pedra.
Só a terra é fértil; a pedra é estéril. E as pedras lançadas nunca produzirão frutos. A misericórdia, sim, é fecunda: cria, recria, abre um novo horizonte de vida...
“Ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos”. Também aqueles que queriam lapidar a mulher receberam a luz da misericórdia, visível no rosto de Jesus. O Mestre tirou a máscara que cobria o rosto de cada um deles; tirou-os do anonimato e da maldosa cumplicidade do grupo, do corporativismo, para pôr cada um frente à sua própria consciência. Obriga-os a se olharem por dentro e não olhar mais a adúltera. Habituados a notar os defeitos dos outros e a denunciá-los com ira, tinham perdido o costume de notar e preocupar-se com as próprias más ações. Habilíssimos para descobrir as infrações dos outros, estavam desacostumados a se sentirem pecadores, tendo sujas as mãos e a boca. Convencidos de ter autorização para desempenhar o papel de juízes, já não perguntam se, por um acaso, também eles não pertenciam à categoria dos malfeitores, dos iníquos. Forçando os outros a dar conta de suas ações, acreditavam finalmente dispensados de se olharem no espelho.
Desembarcam como “justos” e agora regressam às suas casas com a patente de “pecadores”. São colocados dentro da comunhão dos pecadores, ponto de partida obrigatório para chegar a uma profunda conversão. No fundo, Jesus obrigou os juízes a se julgarem a si mesmos. Deste modo, o processo que devia acabar com um escândalo, se interioriza. Desenrola-se a portas fechadas; cada um “rumina” em sua casa. Nem sequer é preciso luz porque o rubor do rosto deles podia ser percebido até na obscuridade.
Como diz S. Agostinho, no final se encontram a sós “miséria e misericórdia”. Provavelmente a mulher do relato não precisasse sequer de escutar aquelas palavras de Jesus: “também eu não te condeno”. O que ela precisava era levantar os olhos. No momento em que faz isso, a adúltera se encontra com alguém que a olha de maneira diferente dos outros. Nunca tinha visto nenhum homem olhá-la dessa forma.
Nada tem a temer diante daquele homem que traça sinais misteriosos sobre a terra. Ela toma consciência de que corresponde a ela dar finalmente uma resposta à provocação dos sinais esboçados sobre o pó. Trata-se de aproveitar daquela página de misericórdia, de confiança, de perdão que leu, não sobre a terra, mas no olhar dele. Volta para sua casa transformada, recriada.
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: A “pedra na mão” é fácil encontrá-la também em nossas vidas. O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essa pedra não caia sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança.
A arrogância também é nossa; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias.
- Contemplar as “pedras” presentes na própria mão (contra quem costuma lançá-las?...)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.04.2025
“Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2)
Com seu talento artístico, Lucas nos relata a Parábola do Pai Misericordioso, contada por Jesus, de tal forma que, ao longo da história, as pessoas sempre se sentiram tocadas e provocadas por ela.
A parábola é a expressão humana da misericórdia divina. A ênfase é menor no filho do que no Pai. Na verdade, Jesus “pinta” o rosto do seu Pai e nosso Pai. Todos os detalhes da figura do Pai-Mãe – seus gestos afetivos de acolhida – falam do amor de Deus pela humanidade, amor que existiu desde sempre e continua.
Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, normalmente, as diferentes religiões projetam sobre a divindade.
Esta é a melhor imagem de Deus: um pai comovido até suas entranhas, acolhendo os seus filhos perdidos e suplicando a todos que se acolham mutuamente com o mesmo carinho e afeto; um pai compassivo que busca conduzir a história da humanidade até a festa final onde se possa celebrar a vida e a libertação de tudo o que escraviza e degrada o ser humano.
Esta experiência da compaixão de Deus foi o ponto de partida de toda a atuação revolucionária de Jesus que o levou a introduzir na história da humanidade um novo princípio de atuação: a compaixão.
(Nota: as traduções bíblicas empregam indistintamente os termos “misericórdia” e “compaixão”. Melhor falar de compaixão, pois sugere maior proximidade (padecer com aquele que sofre). “Ter misericórdia” pode fazer pensar em uma relação que se estabelece com quem está mais abaixo).
É a compaixão o princípio que deve inspirar a conduta humana. Ela não é, para Jesus, uma virtude a mais, mas a única maneira de se assemelhar a Deus, o único modo de olhar o mundo como Deus o olha, a única maneira de sentir as pessoas como Deus as sente, a única forma de reagir diante do ser humano como Deus reage. Fomos criados à imagem e semelhança do Deus compassivo.
Sem o horizonte inspirador da compaixão divina o ser humano deixa aflorar o que é mais destruidor: ódio, intolerância, preconceito...
Na parábola, Jesus descreve duas atitudes que todos nós conhecemos: os dois filhos representam os dois polos que também encontramos em nós mesmos. Um dos polos é nosso desejo de escapar dos limites impostos por regras e leis: o filho mais jovem quer fugir das limitações familiares e simplesmente conhecer a vida com todos seus altos e baixos; e há o outro polo, aquele que se aborrece com a misericórdia do pai.
O filho mais jovem não quer viver sua vida conforme as expectativas dos outros, quer viver sua própria vida e desfrutá-la ao máximo. Esse anseio por vitalidade, por uma vida no aqui e agora, de não querer se preocupar com o futuro, é típico dos nossos tempos. Mas, essa atitude leva o filho a perder-se a si mesmo. Ele vive desenfreadamente: perde toda estrutura e estabilidade, desperdiça sua riqueza, desgastando-se com coisas inúteis, que logo o esvaziam e passa a sentir-se cada vez pior. Ele, que sempre quis estar livre, agora precisa submeter-se à dependência de um estranho para sobreviver; no final, encontra-se num chiqueiro entre os porcos, que, para os judeus, era a pior degradação que um ser humano poderia cair.
O “filho mais novo” parte para o exterior, “para uma terra longínqua”. Pensa resolver seus problemas partindo para longe de seu coração profundo, para longe de si mesmo. Deixa-se arrastar por um impulso desordenado, que o domina por inteiro. Perdeu toda a liberdade verdadeira. Mas, parte também para longe de sua fonte: o Pai. Passa a decidir sua vida sem referência alguma ao lar, às relações filiais e fraternas; não pode mais se alimentar com o pão da sua casa, mas com a comida que os porcos comiam. É assim que vai viver a fome interior e exterior.
A conversão do filho mais novo só pode ser vivida na volta do exílio, no retorno ao centro.
O caminho de volta é expresso em poucas palavras, de maneira extremamente densa, fulgurante: “e, caindo em si, disse...” Ele faz o caminho em sentido inverso: volta ao seu coração, à sua fonte.
Ele próprio é quem descobre o seu caos, sua desordem. Através de um doloroso e, provavelmente, longo caminho, sai da ilusão sobre si mesmo e descobre sua verdade. Retoma contato com o seu coração profundo. No silêncio, escuta, deixa-se ensinar e, então, cavando fundo em si, como se cava em um campo, descobre o tesouro, a fonte de sua existência, a presença do Pai. Embora não o conhecesse totalmente, encontra um Pai justo, que nunca o expulsará. Pela primeira vez, toma conhecimento de um amor seguro, estável, sólido que, ao mesmo tempo, é verdadeiro.
Nesse momento, iluminado a partir do interior, pode dizer: “Pequei”. E o faz de maneira honesta, sem reserva, sem se justificar. Não esconde mais a sua verdade interior. Agora, o seu olhar modificou-se: pode assumir aquilo que é, aquilo que viveu. A misericórdia do pai é uma misericórdia paciente, que sabe esperar; e é, ao mesmo tempo, uma misericórdia inquieta, apressada, que corre ao encontro do filho para devolver-lhe a filiação perdida. Por isso ordena aos servos que sejam eliminados imediatamente todos os sinais da degradação e da escravidão do filho e todos os sinais dos sofrimentos e das humilhações que sofreu.O pai veste o filho com todos os sinais de liberdade; a liberdade que fora buscada longe de casa, agora é encontrada no calor do seu próprio lar.
Por outro lado, “filho mais velho” exprime vivamente a sua revolta: “jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. O problema fundamental dele é acreditar-se sem pecado. Crê-se justo e, consequentemente, possui um coração de justiceiro. Ele está cheio de si mesmo e se engana.
Jamais encontrou o amor, provavelmente porque foi incapaz de deixar-se questionar ou de se converter. Busca, antes de tudo, um legalismo e um perfeccionismo de ordem superficial e ilusória. Assim, fica de fora, sozinho e sem alegria, longe do relacionamento e da festa.
O Pai faz a festa para o filho perdido e reencontrado. Mas ama também aquele que ficou em casa, ao seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai também procurar aqueles que tem um coração de pedra, egoístas e invejosos. O surpreendente não está só no fato do pai correr ao encontro do filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.
O pai não repreende e nem acusa seu primogênito; ele o convida para a alegria – e esse convite se estende a nós, que também temos esse lado do irmão mais velho. A parábola não diz se o irmão mais velho aceitou o convite. Deus não nos força a nada. Ele nos convida: se aceitarmos o desafio da parábola e a ouvirmos com o coração, ocorrerá uma ampliação do nosso espaço interior confinado, o nosso coração se abrirá. Então poderemos perdoar a nós mesmos e aos outros; o rosto divino da misericórdia se resplandecerá em nós. Seremos presenças misericordiosas.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: todos nós deixamos transparecer as marcas de cada um dos personagens da parábola.
- Considerar, diante de Deus, quando você vive atitudes do filho mais novo, do mais velho e do pai.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.03.2025
imagem: Filho Pródigo - Rembrandt
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