"Tudo o que fazemos é marcado pela fragilidade da nossa condição.
Somos esta coisa humana,
provisória,
incerta,
inacabada,
imperfeita.
Mas somos também poeira enamorada.
Há em nós alguma coisa de maior.
Mesmo no erro.
No erro podemos encontrar um caminho."
José Tolentino de Mendonça
Como a árvore a que cortam um galho
e permanece(aparentemente) intacta
-suportar em silêncio certos afrontamentos.
Foi profundo o talho
embora o tronco se ostente sólido
impassível.
Uma flor brotava errante
na parte decepada.
Eu a mereci.
E isto basta
na sucessão das possíveis primaveras.
Affonso Romano de Sant'Anna,
in Vestígios
Ao morrer meu amigo
algo de mim
que já era ele
se foi.
Algo de mim
ressuscitou nele.
Algo dele
que ainda sou eu
ficou.
Algo dele
espera em mim por ressurreição.
O tempo ao passar
parece devorar
todo o amor.
Mas quanto mais afasta
no passado minha recordação,
mais se aproxima
ao encontro sem distância
do futuro.
Ainda que em mim
cada dia tenha
sua poda, sua espera e sua colheita,
para ele
já toda a história se cumpriu
eu cheguei com ele,
e ali estou.
Obrigado, Senhor.
(Benjamin Gonzalez Buelta sj)
(Homenagem do Centro Loyola ao querido Pe. Libânio, falecido dia 30.01.2014)
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
''Sophia de Mello Breyner''
(homenagem ao querido amigo e colaborador do Centro Loyola, o jesuíta e teólogo Pe. João Batista Libânio sj, falecido dia 30.01.2014)
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
Affonso Romano de Sant'Anna
Poesia extraída do livro "Lado Esquerdo do Meu Peito", Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1992.
Viver
é conjugação diária
do presente.
Viver
é presentear.
Mais do que um jeito de doer
é um modo de doar.
E um presente
mais que um objeto
é o elo entre dois olhos
a floração do gesto
o prateado evento
e o cristalino afeto.
Não se dá
apenas pelo prazer
de ver
o outro receber.
Dá-se
para que o outro
entre-abrindo-se ao presente
também dê.
Affonso Romano de Sant’Anna
"... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."
Miguel Sousa Tavares
“Vivi, olhei, li, senti...
Terás então de ler de outra maneira,
Como, Não serve a mesma para todos,
cada um inventa a sua, a que lhe for própria,
há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir
mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem
que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a
corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar
à outra margem, a outra margem é que importa,
A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses rios não tenham
duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela,
a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua,
a margem a que terá de chegar.”
José Saramago,
in A Caverna
Alegria é um vento
que nos levanta do piso
E nos deixa em outra parte,
Um lugar em desaviso.
Não traz de volta, voltamos,
Sóbrios, depois de um tempo.
Novatos para uma tarde
Na terra do encantamento.
Emily Dickinson in: Livro de Horas
na tradução de Ângela Lago
Mistério
Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.
Adalgisa Nery
Campo-santo
Na minha terra a morte é minha comadre.
Subo a rua Goiás, atrás de coisas miúdas, um chinelo, uma travessa, uma bilha nova,
e à medida que subo, mais chego perto do campo
onde dormem sem sobressaltos o pai, a mãe, a irmã,
a menina que no segundo ano se chamava Teresinha.
A grande tarefa é morrer.
Até lá rondo os muros e em qualquer parte da cidade oriento-me
pela mão estendida do Cristo de mármore preto do túmulo do coronel.
No cemitério é bom de passear.
A vida perde a estridência, o mau gosto ampara-nos das dilacerações.
A gradinha de ferro defende o exíguo espaço, onde mais exíguos os ossos se confinam,
ossos que andaram, apontaram e voltaram a cabeça
e sustentaram a língua e os olhos e fizeram o arcabouço para a voz sob o sol:
‘santo remédio, erva-de-bicho, dá na beira do rio’.
O mistério não me fulmina porque a inscrição tem erros
e no túmulo de Maria Antônia – que morreu por mão do marido –
os pedidos maiores são de emprego.
Enegrecidas de chuva e velas, adornadas de flores
sobre as quais sem preconceito as abelhas porfiam,
a vida e a morte são uma coisa só.
Se um galo cantar e for domingo, será tanta a doçura que direi:
vem cá, meu bem, me dá sua mão, vamos dar um passeio,
vamos passar na casa de tia Zica pra ver se Tiantônio melhorou.
Ressurgiremos. Por isso o campo-santo é estrelado de cruzes.
Adélia Prado
O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 173
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
faça uma careta
e mande a tristeza
pra longe pro outro lado
do mar ou da lua
vá para o meio da rua
e plante bananeira
faça alguma besteira
depois estique os braços
apanhe a primeira estrela
e procure o melhor amigo
para um longo e apertado abraço
Rosesana Murray
In: Receitas de Olhar
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Ferreira Gullar
De Barulhos (1980-1987)
O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero.
Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre
Eu sinto a luz desesperadamente
Bater no fosco da bruma que a suspende.
As grandes nuvens brancas e paradas -
Suspensas e paradas
Como aves solícitas de luz -
Ritmam interiormente o movimento da luz:
Dão ao lago do céu
A beleza plácida dos grandes blocos de gelo.
No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto
Há todo um amor à divindade.
No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto
Há todo um amor ao mundo.
No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto
Há toda uma compreensão.
Almas que povoais o caminho de luz
Que, longas, passeais nas noites lindas
Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz
O que buscais, almas irmãs da minha?
Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa
Com os vossos braços longos em atitude de êxtase?
Vedes alguma coisa
Que esta luz que me ofusca esconde à minha visão?
Sentis alguma coisa
Que eu não sinta talvez?
Por que as vossas mãos de nuvem e névoa
Se espalmam na suprema adoração?
É o castigo, talvez?
Eu já de há muito tempo vos espio
Na vossa estranha caminhada.
Como quisera estar entre o vosso cortejo
Para viver entre vós a minha vida humana...
Talvez, unido a vós, solto por entre vós
Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem...
Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas
Porque eu também estou acorrentado
E nem vos passa, talvez, a ideia do auxílio.
Eu estou acorrentado à noite murmurosa
E não me libertais...
Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade.
Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco.
Eu sei que ela já tem o seu lugar
Bem junto ao trono da divindade
Para a verdadeira adoração.
Tem o lugar dos escolhidos
Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam.
Vinícius de Morais
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Adélia Prado
(in "Bagagem" São Paulo: Ed.Siciliano, 1993)
Poema de Adília Lopes
Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os
Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!
Não chames ao mundo morada, não lhe dês um nome
pois falhas a tua Primavera
as sugestões atmosféricas tornam as paisagens equívocas
e nunca chegamos a perceber
como avança uma história
ou uma tempestade
Diante da janela iluminada
acredita apenas na duração
do amor
José Tolentino Mendonça
in: Estação Central. Assírio & Alvim Editora, 2012.
2.5
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
Manoel de Barros
(Os deslimites da Palavras)
Página 15 de 17