
Alvará de demolição
O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes
os caixões de janela se desprendem.
o que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Adélia Prado
In: A duração do Dia, Editora Record, 2ª Edição, 2011, página 37.

(...) "Tomara que a gente não desista de ser quem é por nada nem ninguém deste mundo. Que a gente reconheça o poder do outro sem esquecer do nosso. Que as mentiras alheias não confundam as nossas verdades, mesmo que as mentiras e as verdades sejam impermanentes. Que friagem nenhuma seja capaz de encabular o nosso calor mais bonito. Que, me......smo quando estivermos doendo, não percamos de vista nem de sonho a ideia da alegria. Tomara que apesar dos apesares todos, a gente continue tendo valentia suficiente para não abrir mão de se sentir feliz. As coisas vão dar certo. Vai ter amor, vai ter fé, vai ter paz – se não tiver, a gente inventa!” (...)
Caio Fernando Abreu


CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles
De Viagem (1939)

“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
Manoel de Barros
In:Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001).

DESCOBRIMENTO
a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio
a juventude um caiaque
a descer a correnteza
sem pensar em desembarque
a velhice é caravela
terra à vista
Líria Porto
In: Olho Nú - Ed. Patuá, 2018

"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
José Saramago

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.
Maria Esther Maciel

Há inevitalmente, em qualquer período
entre catástrofes, uma noite de chuva boa.
O trabalho termina mais cedo e pensamos
ainda ontem tudo era cálculo, sordidez
e sangue, mas agora a paz respira amplamente.
Ainda há, inevitavelmente, o amor
que ainda se ergue, que ainda caminha
como um animal sem medo dos relâmpagos.
Daniel Francoy

Depois de tudo
Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.
Cassiano Ricardo

A FOME
dera para lamentar-se de fome
não de um prato de comida
não de um copo de água
era fome que o roía que bramava
dentro noite e dia, se
alguém perguntasse que fome
era aquela ele não saberia
dizer não saberia
dizer
Vera Lucia de Oliveira

"Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer".
Adélia Prado
[in Filandras, São Paulo, Record, 2001, p. 121]

Introdução à arte das montanhas
Um animal passeia nas montanhas.
Arranca a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima o animal é um imã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.
Fonte: Leonardo Fróes. Trilha. Poemas 1968-2015. Rio de Janeiro: Azougue, 2015, p. 25.

(Certas ruas
certas ruas têm um bosque
- armadilhas - que se chamam
que se chamam exclusão...)
Fernando Campanella

Tenho fome de boas-novas,
cartas com letra floreada,
postais, quem sabe,
de faróis
no Mar Vermelho.
Mas raro batem
à minha porta.
Por isso invento
meus milagres
(e então os lanço
dos telhados
em aviões de papel).
Ana Santos
In: Móbile (Ed. Patuá)

Pés sujos de Tereza
(Caravaggio)
Aprende o rosto que se mostra.
Mas Tereza tem os pés descalços e sujos.
Depois do humano estampado na tela,
conspiram contra ele os poderosos.
Atribuem à verticalidade das cenas projetadas,
afronta à nobreza encomendada.
Tereza responde aos inescrupulosos:
- a beleza mora nos pés sujos.
Respiro aliviada, embriagada
pelas migalhas de arte
nos pés sujos de Tereza
Alzira Maria Ribeiro Araújo
In: Pés sujos de Tereza (- primavera de trapos -) - Ed. Mosaico 2018

Deixa o dia de ontem
Deixa
o dia de ontem
com Deus
E vive
em paz
a espera
A cada dia
basta
a sua pena
E
o amanhã
é
como o arco-íris
Um anjo
está contigo
quando desanimas
Um anjo
está contigo
quando te alegras
Sempre
um anjo
está contigo
E
o arco-íris
brilha
como a água
que corre
Fonte: Adília Lopes. Dobra. Poesia reunida. Lisboa: Assirio & Alvim, 2009.

Lá na Vila das Riquezas
As casas da vila,
sem reboco e sem beleza,
abrigam sonhos.
Os seus homens
e suas mulheres
com seus filhos
ao redor de si,
e seus cães e gatos
mansos,
dormindo sempre ao sol,
passam os dias e noites,
atravessam as misérias e
se ocupam só em viver.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
As casas da vila,
lá onde as portas se abriram,
são mais ricas que as riquezas
porque elas ainda abrigam os sonhos,
e sonham com os cães e gatos ao sol.
E nem sempre é céu azul,
entre uma e outra tristeza.
André Merez

MACIEIRA
Amanheci arbórea,
raízes longas,
um ninho
novo
em cada braço.
(Janela aberta.
Um farfalhar de ramos.)
Eu agito
meu cabelo:
o quarto se enche de maçãs.
Ana Santos
In: Móbile - Ed. Patuá

O Jardim e a casa
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen.
In: Obra poética. Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 92)
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