O corpo não diáfano
o inverno assombra a pele descamada
na ausência do corpo diáfano concreto,
na imensidão do espaço da tua lágrima,
presa à garganta carregada de amargo,
no mundo sem saída deveras circundante.
o inverno clama o ponto fraco do teu ego
bate em tua face e reata o nó górdio
do teu ser imaterial a esconder-se do sol,
na timidez da tua luta inglória e pálida,
sarcástica a inebriar-te a alma copiada.
o inverno reclama teu corpo imensidão
carregado de fúria na chuva dissolvida
e cheio de franqueza outrora desgastada,
inerte na angústia corrompida pelo orgulho
e prende em quarto escuro a luz apagada.
o contrário ao inverno requer exatidão
computada em tuas vestes agora pesadas
e arrasta o ser intenso no calor impensado
da palavra anulada na frieza da solidez
do teu solo grosseiro de feitura inacabada.
o contrário ao inverno é tremor abrupto
a abalar teu chão cinzento de brutas pedras
acumuladas no impacto do amadurecer
do teu discernimento tardio e inigualável
e que nunca chega a plenamente morrer.
Rosa Acassia Luizari
Nasceu em São Paulo. Reside na cidade de Rio Claro. É membro da Academia de Letras, Ciências e Artes do Brasil (ACILBRAS) ocupando a cadeira 525 e tem como patrono o maestro e comendador Armando Caraaura. É colaboradora das revistas Caderno Literário Pragmatha, Avessa, Literalivre, Evidenciarte, Escritores Brasileiros Contemporâneos, Pixé, Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, Ecos da Palavra, Revista de Poesia e Brasil Nikkei Bungaku. Participa de coletâneas e antologias de poemas, contos e crônicas. Finalista do 28º Concurso Nacional de Poesia Augusto dos Anjos. Membro atuante de grupos de estudos em literatura brasileira e membro do movimento Mulherio das Letras Portugal.
Não deixes que termine
sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz,
sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue
o direito de expressar-te,
que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia
de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer
que as palavras e as poesias sim
podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar,
nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina,
nos converte em protagonistas
de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra,
a poderosa obra continua,
tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar,
porque só nos sonhos
pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso.
Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples,
se pode fazer poesia bela,
sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação,
mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca
ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente
sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro,
e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te
as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida
se passe sem teres vivido…
INSÔNIA
Tem um poema de tez escura
que não me deixa dormir.
Não,
não tenho medo.
Só as estrelas me espocam dos sonhos.
E se são palavras de negrume
abro a janela e deixo a lua entrar.
Iara Maria Carvalho
in Milagreira
Casarão de Poesia, Currais Novos-RN, 2011
Canção Menina
Vem! Amanhã começa o mundo...
A primeira luz. O primeiro alento.
O primeiro rosto. O que os outros
Vão dizer? As mil palavras de sempre
Também talvez algumas novas
Mas as palavras, meu amor, as palavras
Ainda nem se formaram: só amanhã
Começa o mundo. A primeira pele.
A primeira lua. O primeiro susto.
O homem que disse, uma vez, sabia:
Nascer é mesmo muito comprido.
Nascer, meu amor, não termina nunca.
(Fonte: Mariana Ianelli. Canções Meninas. Porto Alegre: Ardotempo, 2019)
DA ROTINA
Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisível
pelo chão,
nos objetos
sobre os móveis da sala.
Varrer amanhã
o pó de hoje.
Varrer,
varrer hoje.
(E domingo quebrar nos dentes
o copo
e sua água de vidro.
Segunda, não esquecer:
varrer todos os vestígios.)
Micheliny Verunschk
In Geografia Íntima do Deserto
Landy, São Paulo, 2003
O Pássaro Azul
Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?
Charles Bukowski
BUKOWSKI, C., The Last Night of the Earth Poems, 1992.
Inspiração
Substantivo feminino
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Estive em Paris e pensei que teria mil inspirações
e escreveria poemas provençais
e teria motivos para versos impressionantes
e enxergaria poesia no ar
e fumaria dez cigarros por dia,
mesmo não sendo fumante,
nem poeta.
Nada aconteceu
que me tirasse deste silêncio.
Nem Paris.
Ana Elisa Ribeiro
in Dicionário de Imprecisões
Impressões de Minas, Belo Horizonte, 2019
O AMOR
o amor é uma pinguela sobre um precipício, quem ama deve verificar todos os dias as tábuas, os parafusos, as porcas, as cordas, proclamar à exaustão alto e bom som: “eu te amo”, “eu te amo”. trazer flores do vendedor do semáforo. programar viagens para Istambul, São Petersburgo. achar água no deserto. inventar miragens. lapidar o diamante bruto do senso comum. deixar-se iludir pelo boca a boca. o amor é um produto falso contrabandeado do país vizinho?
Ruy Proença
É preciso ficar submerso
É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo. É preciso aprender.
Há dias de sol por cima da prancha,
há outros, em que tudo é caixote, vaca,
caldo. É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, é preciso aprender
a persistir, a não desistir, é preciso,
é preciso aprender a ficar submerso,
é preciso aprender a ficar lá embaixo,
no círculo sem luz, no furacão de água
que o arremessa ainda mais para baixo,
onde estão os desafiadores dos limites
humanos. É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, a persistir, a não desistir,
a não achar que o pulmão vai estourar,
a não achar que o estômago vai estourar,
que as veias salgadas como charque
vão estourar, que um coral vai estourar
os miolos – os seus miolos -, que você
nunca mais verá o sol por cima da água.
É preciso aprender a ficar submerso, a não
falar, a não gritar, a não querer gritar
quando a areia cuspir navalhas em seu rosto,
quando a rocha soltar britadeiras
em sua cabeça, quando seu corpo
se retorcer feito meia em máquina de lavar,
é preciso ser duro, é preciso aguentar,
é preciso persistir, é preciso não desistir.
É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, é preciso aprender
a aguentar, é preciso aguentar
esperar, é preciso aguentar esperar
até se esquecer do tempo, até se esquecer
do que se espera, até se esquecer da espera,
é preciso aguentar ficar submerso
até se esquecer de que está aguentando,
é preciso aguentar ficar submerso
até que o voluntarioso vulcão de água
arremesse você de volta para fora dele.
Fonte: Alberto Pucheu. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Azougue, 2013, p. 9
És precária e veloz, Felicidade.
Custa a vir, e quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
Cecília Meireles
In Viagem
ORAÇÃO
A todos os ventos
eu peço coragem
a cada estrela e estrada
ao mar que não morre nunca
eu peço coragem
e ao sol e à lua
e a todo o firmamento
a cada pássaro
a cada pedra
a cada bicho da terra e do ar.
Peço coragem a tudo o que vive agora
e ainda viverá
coragem para cavalgar os dias
navegar nas horas
e a cada minuto e segundo sonhar.
Roseana Murray
4º Motivo da Rosa
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília Meireles
In Mar Absoluto
em dias de vento e frio
a mãe se levantava de noite
abria a cômoda desempacotava panos
toalhas fronhas lençóis e tudo
o que pudesse cobrir um corpo
a geada passava perto
estendia-se sobre os campos
sem coragem de abater
a pirâmide de trapos e tramas
que ela edificava sobre nós
Vera Lúcia de Oliveira
in Minha Língua Roça o Mundo
Patuá, São Paulo, 2018
"Manifestou-se a graça de Deus. Graça é sinônimo de beleza. Nesta noite, na beleza do amor de Deus redescobrimos também a nossa beleza, porque somos os amados de Deus. No bem e no mal, na saúde e na doença, felizes ou tristes, sempre aparecemos lindos a seus olhos: não pelo que fazemos, mas pelo que somos. Em nós, há uma beleza indelével, intangível; uma beleza incancelável, que é o núcleo do nosso ser. Deus no-lo recorda hoje, tomando amorosamente a nossa humanidade e assumindo-a, «desposando-a» para sempre.
A «grande alegria», anunciada aos pastores nesta noite, é verdadeiramente «para todo o povo». Naqueles pastores, que santos não eram certamente, estamos também nós, com as nossas fragilidades e fraquezas. Deus, tal como chamou a eles, chama a nós também, porque nos ama. E, nas noites da vida, diz-nos como a eles: «Não temais» (Lc 2, 10). Coragem, não percais a confiança nem a esperança; não penseis que amar seja tempo perdido! Nesta noite, o amor venceu o medo, manifestou-se uma nova esperança; a luz gentil de Deus venceu as trevas da arrogância humana. Humanidade, Deus ama-te e, por ti, fez-Se homem; já não estás sozinha."
Papa Francisco
Homilia na Celebração do Natal 24.12.2019
Cântico VI
Tu tens um medo de
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Cecilia Meireles
Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1963 (fragmento).
A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
Manoel Bandeira.
Publicação original: in Estrela da Tarde (1963)
"Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração."
António Ramos Rosa - Viagem através duma nebulosa, 1960.
E então, pergunto, por que esta vida
de pão e horas moídas?
Por que não somente um pássaro
na insciência da tarde clara,
uma árvore verde embutida
no musgo da manhã... Por que esta vida?
Por que não uma pedra severa
que não procura, não erra, não espera,
ou então outra vida, outra vida
que não esta, de sal e lâminas finas,
que não esta, de sal sobre as feridas?
Renata Pallotlini
De Obra Poética (1995)
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