“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão,
porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34)
Mais uma vez, Jesus e seus discípulos fazem a “travessia” pelo mar, em direção à “outra margem”; a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas as fomes, carências e desesperos. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita violência. Não é gente das cidades importantes. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosos por encontrar-se com Jesus. A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império romano.
Ao ver a multidão, Jesus se comove até as entranhas, porque “eram como ovelhas sem pastor”. Como em outras passagens do Evangelho, Jesus muda o plano de descanso desse dia para acolher a dor que surge de repente em seu caminho. Contempla as pessoas, e em sua maneira de se aproximar do povo está já encarnado em gestos, palavras e olhares, o Reino que anuncia.
Movido por sua compaixão, Jesus “começou a ensinar-lhes muitas coisas”. Sem pressas, se dedica pacientemente a ensinar-lhes a Boa Notícia de Deus e o projeto humanizador do Reino. Não o faz por obrigação; não pensa em si mesmo; comunica-lhes a Palavra de Deus, comovido pela necessidade que as pessoas tem de um pastor.
Jesus não vive olhando para o céu, mas tem os olhos bem fixos na terra, na humanidade sofredora. Por isso, nada lhe escapa, observa tudo. Seu olhar não é neutro: deixa-se afetar por tudo e por todos. E a realidade sofrida tem forte impacto em seu interior, comovendo-o.
Os discípulos precisam aprender de Jesus como devem tratar as pessoas; nas comunidades cristãs é preciso recordar como era Jesus com essas pessoas perdidas no anonimato, das quais ninguém se preocupa.
A primeira coisa que o evangelista Marcos destaca é o olhar de Jesus. Não se irrita porque interromperam seus planos; olha a multidão tranquilamente e se comove. As pessoas nunca lhe molestam. Seu coração intui a desorientação e o abandono em que se encontram, como camponeses daquelas aldeias.
“A fé não só olha a Jesus, senão que olha a humanidade a partir do ponto de vista de Jesus, ou seja, com seus olhos: é uma participação em seu modo de olhar” (Lumen Fidei, n. 18).
Jesus nos convida, no Evangelho de hoje(16º Dom TC), a fazer um exercício especial da visão. Destravar nosso olhar focado em nós mesmos, em nossos interesses e apegos, para expandi-lo em direção aos outros.
Todos os Evangelhos estão perpassados, de ponta a ponta, por um olhar. O olhar de Jesus que chama, conhece, cativa, derrama ternura e misericórdia, que vela, que se antecipa, que revela, que denuncia, que confirma e, também, que restaura. Olhar que o move a um compromisso libertador.
O olhar de Jesus ativa a identidade das pessoas. Olha de uma forma única e singular a cada uma, e nesse olhar desvela quem ela é e ilumina o sentido de sua existência. O olhar de Jesus lança para frente, desperta a confiança, descarrega o peso da culpabilidade e “dá asas” à vida. Por essa razão seu olhar eleva e dignifica o outro, nunca o deixa no mesmo lugar, não só o coloca de pé, mas sempre o leva para mais além...
O olhar de Jesus é reflexo e prolongamento do olhar do Pai; Ele se fixa sobretudo nas pessoas concretas, mas com particular atenção aos mais pobres e necessitados, os quais eram invisíveis para a sociedade de seu tempo: os enfermos, as viúvas, as crianças, o estrangeiro...
Olhar a partir de Jesus, olhar como Jesus, olhar a partir dos olhos daqueles que sofrem... É um convite a iluminar nosso olhar, às vezes muito apagado pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opaco pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Jesus nos confia.
O olhar de Jesus atinge o mais profundo de todos nós e transforma nosso coração; e nosso olhar cristificado nos leva mais além de nossos pré-juizos, nos conduz a um mundo novo de possibilidades inéditas, descobre e revela o melhor de cada um de nós.
Jesus insiste: quem não está alerta, quem não abre bem os olhos, quem não afina a vista, o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “olhar” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos suas pegadas.
A mística cristã é uma mística de olhos dolorosamente abertos. Temos de aguçar a visão para sermos capazes de contemplar a Vida de Jesus entrelaçada com a história do sofrimento das pessoas. Na Igreja precisamos aprender a olhar as pessoas como Jesus as olhava: captando o sofrimento, a solidão, o desconcerto ou o abandono que muitos sofrem. Somente este olhar solidário é que ativará a compaixão. Esta não brota da atenção às normas, à doutrina ou a atenção às nossas obrigações. Ela se desperta em nós quando olhamos atentamente aqueles que sofrem e são excluídos.
Expressão de fraternidade e vivida como serviço, a compaixão é a capacidade de situar-se no lugar do outro, de sentir e sofrer com ele. Comporta um “estremecimento” frente o sofrimento alheio e se traduz numa ajuda eficaz.
A compaixão é provavelmente o máximo grau de maturidade humana. Trata-se de uma das atitudes mais genuinamente humanas; não é casual que ocupe o lugar mais destacado nas grandes tradições espirituais. No budismo, especialmente, afirma-se que, enquanto alguém não seja capaz de pôr-se no lugar dos outros, não poderá alcançar a iluminação.
Mas, o que favorece o emergir da compaixão? de onde ela nasce? O sentimento de compaixão se vê favorecido pela experiência da nossa própria necessidade, fragilidade ou vulnerabilidade. Sem dúvida, ao apalpar a nossa própria limitação, nos “reconciliamos” com nossa humanidade, nos fazemos mais “humanos”. E, a partir daí, pode crescer a capacidade de ativar a empatia para com o outro, particularmente quando se encontra em situação de necessidade e precariedade.
Neste sentido, pode-se dizer que a experiência e a acolhida da própria fragilidade nos humaniza, nos “suaviza” e nos sensibiliza diante da dor alheia. A partir daí, a compaixão pode abrir caminho. Além disso, o encontro com a compaixão de Jesus desperta a compaixão presente em nosso interior, mas abafada pelas preocupações e interesses do nosso ego.
A compaixão requer uma sensibilidade limpa e um afeto livre. Para poder “vibrar” com o outro, é necessário que nossa sensibilidade não esteja congelada nem petrificada; de outro modo, o sofrimento alheio chocaria contra nossa couraça, e seríamos incapazes de senti-lo. Por outro lado, é necessário também que tenhamos liberado nossa capacidade de amar: o bloqueio da mesma nos manteria fechados, impedindo-nos “sair” positivamente em direção à pessoa que sofre.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração:
Senhor, faça que meus olhos sejam claros e simples,
Que meu olhar reflita teu olhar.
Que meu olhar transmita alegria, paz, confiança...
Que eu olhe a vida com assombro e descubra a beleza escondida.
Que eu olhe delicadamente o mistério de cada ser humano.
Que eu me deixe afetar pelo olhar de dor, de busca, de esperança de cada irmão.
Que Tu olhes, Senhor, com meus olhos, os meus irmãos mais necessitados.
Olha-me, Senhor, em silêncio, e faz com que teu olhar percorra toda minha vida.
Que eu volte à vida com o sorriso de Deus em meus olhos. Amém!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13)
A experiência de saúde está profundamente unida ao anúncio e inauguração do Reinado de Deus. A vida saudável pede não só saúde física, mas saúde emocional, espiritual, integração social... Jesus, em sua pregação e realização do Reino, assumiu uma estratégia terapêutica que buscava fazer emergir o ser humano sadio. Com sua presença, despertava e ativava tudo o que era sadio em cada pessoa; esta era sua prioridade e não permitia que ela fosse solapada por outros interesses. Ele se interessava pela saúde como processo de crescimento da pessoa e onde há saúde o Reino faz-se presente
“Curar” e “libertar” eram atividades prioritárias na atuação de Jesus. As verdadeiras curas e milagres de Jesus eram, antes de tudo, gestos de humanização evangélica, que mostravam que o dinamismo final do Reino implicava a destruição da enfermidade e da dor. As curas eram sinais libertadores, sinais da presença e proximidade do Reino. Jesus não pregou saúde, mas gerou saúde, transformando a vulnerabilidade em possibilidade e provocando mudanças de atitudes e formas diferentes de viver.
Ao acessar o Evangelho deste 15º Dom. TC, reconhecemos essa intuição original. O horizonte do envio dos discípulos não é outro que o de favorecer a vida. A “autoridade sobre os espíritos imundos” significa o compromisso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados em favor da Vida, os discípulos sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravando os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença. Para Jesus o mais urgente era remediar o sofrimento daqueles que careciam de uma vida digna e plena. Porque o Deus que Ele nos revelou não é o Deus que nos complica a vida com normas e leis, senão o Deus que se humanizou para humanizar nossa vida. E assim nos indicou que só quando nos fazemos mais humanos, nos fazemos mais semelhantes a Ele que, para aliviar o sofrimento humano, se comprometeu e se identificou com os que mais sofrem.
Jesus, presença visível da misericórdia e com a força da torrente que jorra para a vida eterna, “chama a todos e a cada um em particular” para que toda a nossa vida esteja exposta ao seu amor curador e a prioridade do seu Reino relativize todo o resto. Ele quer fazer de nós discípulos e discípulas, apaixonados por Ele e pelo seu Reino.
Ele se aproxima de cada um de nós para curar as nossas feridas, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da compaixão e da esperança teimosa. Ele que no grão enterrado debaixo da terra já contempla a espiga, revela-nos as possibilidades de vida que se escondem onde parece que a morte tenha dito a última palavra. Ele é o que dá a água viva, o samaritano que cura as feridas, o vencedor da morte, o oleiro da nova Criação.
Só Ele que, ao revelar seu rosto no rosto de tantos excluídos e sofredores, é capaz de despertar o “samaritano” que todos carregamos e que permanece “adormecido” em nosso interior. Por isso, quando o Evangelho de Marcos relata o encargo missionário que Jesus comunicou aos seus discípulos, diz que Ele lhes deu “autoridade para expulsar demônios e para curar toda sorte de males e enfermidades”.
É importante salientar que não se trata de uma “autoridade doutrinal”, para afirmar verdades e condenar erros, senão que se trata de uma “autoridade terapêutica”, para curar doenças e aliviar o sofrimento humano. Jesus, submergindo-se no mar da dor, assume o infortúnio dos inocentes, dos perdedores, das vítimas; Ele experimenta que o amor é paixão.
Tudo se resume em dar vida, erradicar as dores, devolver a dignidade aos que a perderam. Jesus, o “terapeuta do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranqüilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que passa longe de nós e das lágrimas, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que nos estão impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes? Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. Seu caminhar é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Felizes de nós se deixarmos afetar pela capacidade de mobilização desse Samaritano!
Texto bíblico: Mc 6,7-13
Na oração: “Abandonai o vosso mundo de realidades virtuais, sacudi a poeira das vossas sandálias; apagai os computadores nos quais conservais cuidadosamente organogramas, hábitos rotineiros, regulamentos, ativismos, visões distorcidas da realidade... e saí pelas estradas e encruzilhadas para escutar o rumor das pessoas reais e para alargar a vossa vida no contato com elas. Não eviteis as estradas perigosas, porque a novidade aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
A vida que abraçastes é uma paixão, uma aventura, um risco, um itinerário que deve ser percorrido com os olhos e com os ouvidos abertos e no qual a única bússola que guia para a meta é a da misericórdia e a da ternura.
Deixai que o imperativo: “Vai e faze tu a mesma coisa” vos abale. Diante de vós estão abertos os grandes caminhos da adoração e da compaixão, que desembocam na “vida eterna”.
Felizes vós que escolhestes percorrê-los!”. (cf. Dolores Aleixandre – Buscadores de poços e caminhos).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6,4)
Ao longo de nossa vida encontramos pessoas que nos “dão asas”, nos incitam a desbloquear o melhor de nós mesmos e nos sentimos melhores em sua presença. É como se diante de seus olhos pudéssemos recriar continuamente nossa vida, pois nos mostram horizontes próprios que não podíamos nem imaginar. É um imenso presente receber isto e poder também ativá-lo nos outros.
Também sabemos que pode acontecer o contrário. Nós nos acostumamos a fazer uma imagem dos outros, os classificamos e os etiquetamos: inteligentes ou incompetentes, profundos ou superficiais, simpáticos ou cansativos... e os enquadramos dentro de uma aparência que nos custa muito modificar, atrofiando nossos olhos para perceber a novidade surpreendente que pode brotar no outro.
Algo parecido experimentou Jesus com as pessoas de seu povoado. As perguntas levantadas – “como conseguiu tanta sabedoria”; “Ele não é o carpinteiro, filho de Maria...?”; “Suas irmãs não moram conosco?”... – manifestam a simplicidade e a veracidade do processo de maturação de Jesus. Seu caminho humano é tão humano que custa acreditar. É mais um entre tantos, como as pessoas comuns entre as quais convivia, sem apresentar-se nada de especial, crescendo pouco a pouco.
E Jesus não pode fazer nada em Nazaré, pois ali lhe “cortaram as asas”. Ele era muito conhecido para eles, muito comum, muito igual... O problema de fundo está em que quando uma pessoa não se ajusta àquilo que a sociedade e seus parentes e amigos esperam dela, essa pessoa cai em desgraça. A “conduta desviada” de Jesus tem um custo muito alto e acarreta enorme rejeição e sofrimento.
No texto do Evangelho de hoje, os conterrâneos de Jesus, em lugar de abrir-se à novidade que se revela diante de seus olhos, optam por recorrer a etiquetas com as quais desqualificá-lo. Desse modo, colocam em seus olhos uma espécie de filtro que os impede ver em profundidade. Jesus “admirou-se com a falta de fé deles”, ou seja, de sua incapacidade para ver mais além, de sua resistência em conectar-se com o Novo que se faz visível, da ignorância na qual decidiam permanecer instalados.
O relato de hoje está nos falando da humanidade plena de Jesus, que aparece como um entre tantos, filho de uma mulher chamada Maria, de uma família conhecida, simples carpinteiro, sem títulos e sem privilégios. Por isso é tão difícil aceitá-lo como profeta enviado de Deus. No entanto, todo o cristianismo posterior vai depender, de algum modo, desse “curriculum” de Jesus.
Ao contrário das pessoas de seu povoado, Jesus, ao longo de sua vida e, sobretudo, através de seu “ministério terapêutico”, revelou a capacidade de despertar a autoria em cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a conectar-se com seu ser mais profundo para poder “abrir as asas” e voar em direção a largos horizontes. Do mesmo modo, com sua presença instigante, Ele ativava e fazia vir à tona o que de mais humano havia nas pessoas. Frente os doentes, pobres e excluídos, Jesus os desafiava a serem mais humanos, pois via neles a nobreza interior que carregam.
Hoje, Jesus continua inspirando caminhos mais humanos numa sociedade que busca somente bem-estar, afogando o espírito e matando a compaixão. Ele pode despertar o gosto por uma vida mais humana em pessoas vazias de interioridade, pobres de amor e necessitadas de esperança.
Diante de Jesus “destravador de asas”, somos também chamados a ser presença “ativadora de asas” para aqueles com os quais convivemos e nos encontramos cotidianamente , renovando a confiança nas pessoas, apostando no melhor que cada um conserva em seu coração. Às vezes é difícil viver tal atitude com aqueles que nos cercam, pois nos encanta o grande, o importante, o notável, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração...
Mas, o que é simplesmente humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso é o que tantas vezes menos valorizamos, e é isso o que mais necessitamos, pois é o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos. Daí, a consequência mais perigosa que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos seduz. Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Quando isso acontece, o milagre – a novidade – é impossível; só fica a rotina do sempre visto e conhecido.
O ser humano “abre suas asas” quando matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e criatividade das profundezas de seu ser...
Sabemos que toda pessoa se transforma a partir de seu interior. Mas é através da ação e da presença instigante do outro que ela se sente motivada a transpor obstáculos no seu cotidiano e revelar-se criativa, que sonha e faz o futuro, que apaixona-se pelo que aprende, pelo que cria e realiza.
O vínculo entre as pessoas e o sentimento de pertencer e de ser respeitado em suas potencialidades, limites e necessidades levam as pessoas a reencontrar a essência de sua condição de vida. Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita... respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos permite tomar consciência de nós mesmos e de nossa nobreza. A mediação do outro é muito importante para que possamos nos conhecer melhor e sentir que não estamos sozinhos nos reveses da vida.
Os seguidores de Jesus com sua presença humanizadora, são promotores de habilidades para a vida; com sua presença inspiradora, “dão asas” e despertam nas pessoas as potencialidades do humano que habitam em cada uma delas, levando-as a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com as pessoas e conseguem extrair delas o melhor, fomentam o papel ativo delas, incentivam-nas a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração:
Deixe-se atrair para além de si mesmo pois a vida ainda está muito à sua frente. Mire alto, bem mais alto onde habita o Espírito que deseja renovar o ritmo de seus passos. É Ele que destrava as ricas possibilidades latentes em seu interior.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
A Pedagogia de Jesus é a da pergunta que “des-vela”, que nos coloca diante do mistério de nossa vida, de nossas opções, de nossa fé...; pergunta que nos move a entrar no mais profundo de nós mesmos e encontrar-nos com a fonte que mana e corre. É através das perguntas que Jesus nos abre acesso às nossas reservas interiores de criatividade e imaginação.
De fato, a força criativa de suas perguntas, põe em movimento grandes dinamismos de vida do ser humano; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus, ao destravar a interioridade de cada um, reconstrói “pessoas quebradas” e presas ao passado. As perguntas que Ele faz consistem em libertar o ser humano de sua inatividade e dar-lhe capacidade de ação. Isso implica em abandonar a estreiteza da vida e deixar o coração bater no ritmo do seu coração compassivo.
São as perguntas que, com frequência, nos despertam. Se deixarmos de nos perguntar, o fogo vai se apagando. As perguntas são como a lenha que adicionamos ao fogo. As grandes perguntas permanecem dentro de nós, como uma brasa ardendo. Quando nos perguntamos a nós mesmos, algo se inquieta dentro de nós, o fogo se aviva, brota um impulso que nos desinstala e nos move a buscar o novo. Quem tem medo das perguntas, acovarda-se e fecha-se numa vida sem criatividade e sem busca. Quem não se pergunta é porque quer viver tranquilo, sem necessidade de mudança alguma.
Há perguntas inofensivas, fáceis de responder e que não nos comprometem. O problema está quando nos fazem perguntas nas quais nos sentimos implicados. Há perguntas que parecem ser de pesquisas; e há perguntas que nos desvelam por dentro. Há perguntas secundárias sobre as quais podemos dizer qualquer coisa. E há perguntas essenciais que nos movem a falar de nós mesmos. E essas perguntas doem porque são perguntas que desnudam o fundo de nosso coração. São perguntas que nos implicam naquilo que somos realmente.
O perguntar é ousado, instigante; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência. “Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupèry). As perguntas tem uma força que não encontramos nas respostas. Somente enquanto perguntamos por Alguém, palpita em nós um impulso, um interesse que não se apaga enquanto não sacia nossa curiosidade.
A pergunta é movimento; e só quando pergunta é que emerge a novidade, pois a pergunta ativa a busca por uma resposta criativa. Mais ainda, perguntar põe em crise certas convicções, ideias fechadas, modos arcaicos de viver...e nos mantém em busca permanente.
É neste nível que surge a pergunta de Jesus aos discípulos, na região de Cesaréia de Filipe. Ele não pergunta aos seus discípulos sobre o que pensam a respeito do Sermão da Montanha ou sobre sua atuação curativa juntos aos doentes da Galiléia. Para seguir Jesus, o decisivo é a adesão à sua Pessoa. Por isso quer saber o que eles pensam e sentem, depois de um tempo de convivência com Ele.
Jesus propõe a pergunta fundamental, “e vós, quem dizeis que eu sou?”; uma pergunta exigindo que eles se examinem a sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações que os levam a segui-lo. Responder à pergunta “Quem sou eu para vocês?” é fazê-los comprometer com um novo estilo de vida, é assumir o novo caminho com Ele, é arriscar-se numa aventura.
A pergunta é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé.
É importante para Jesus saber o que as pessoas pensam d’Ele. Mas é possível que isso fosse apenas uma introdução para a segunda pergunta. De modo particular, a Jesus lhe interessava não tanto saber o que sabiam ou pensavam, mas “quê significava Ele para eles?”
É a pergunta que todos deveríamos nos fazer: não o quanto sabemos d’Ele, nem quê doutrinas ou teorias sobre Ele seguimos, nem qual é a nossa teologia sobre Ele. Para Jesus lhe interessa mais “o significado, o sentido de Sua Vida em nossas vidas”.
Muitas vezes a própria comunidade cristã está muito preocupada com a “ortodoxia doutrinal” e não se preocupa em fazer sua a Vida de Jesus. Há mais condenações doutrinais que condenações de falta de vivências. É preciso “mais evangelho e menos doutrina” (papa Francisco).
A fé implica ideias e doutrinas. Mas a fé não é crer em doutrinas; é crer em “Alguém”; e crer em Alguém que seja o centro de nossas vidas, em Alguém que inspira as nossas vidas, em Alguém que dê sentido ao que fazemos e como fazemos.
Começamos a ser cristãos quando nos deixamos impactar pela pessoa de Jesus e decidimos seguir seus passos e viver como Ele viveu. Podemos saber muita teologia sobre Jesus e ter uma vivência d’Ele muito pobre. O que importa é o “Jesus vida e na vida”.
Todos estamos seguros de que Jesus é o centro de nossas vidas, mas não nos atrevemos a nos questionar por dentro. Com isso, nosso seguimento vai se esvaziando e se tornando pura normatividade. Para aprofundar nossa fé em Jesus, é preciso nos perguntar constantemente por ela: quê significado Ele tem em nossas vidas? Quê implicações tem no nosso cotidiano o modo de ser e de viver de Jesus? Porque não basta dizer que cremos nele; é preciso perguntar-nos: em quê Jesus cremos e quem é Ele para nós? Tal pergunta nos conduz a uma identificação com o estilo de vida d’Ele.
Mas hoje, talvez num gesto de ousadia e atrevimento, poderíamos inverter as perguntas. No Evangelho, é Jesus quem pergunta e nós respondemos; agora somos nós que fazemos as perguntas a Jesus. Se Ele está interessado em saber o que os outros pensam dele, também nós estamos interessados em saber o que Ele pensa de nós: “Senhor, quê dizes, quê pensas de mim?”
Talvez, de início, possamos sentir um pouco de medo da verdade que Ele dirá sobre nós. Mas, pensando bem, podemos concluir que Jesus pensa melhor sobre nós que nós sobre Ele. E se nos dá vergonha responder às suas perguntas, certamente que Jesus não sentirá vergonha alguma em responder às nossas.
Aliás, nós estamos mais acostumados a perguntar a Deus que deixar-nos perguntar por Ele. Porque, em tudo o que nos acontece, nossa reação imediata costuma ser sempre: “Por quê, Senhor?”; “por quê aconteceu comigo?”; “por quê não me escutas?”... A agenda de Deus está cheia de nossas perguntas.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: - “Senhor, Tu quê pensas de mim como pessoa? Porque tu me deste a vida não para que a conserve atrofiada mas para que me realize humanamente e chegue a ser uma pessoa livre, madura e comprometida. Tenho amadurecido no amor, chegando a ser essa pessoa que Tu esperas de mim?”
- “Senhor, que pensas e dizes de mim como batizado(a) e teu(tua) seguidor(a)? Sou realmente essa imagem do(a) homem/mulher novo(a) nascido(a) de tua Páscoa?”
- Senhor, que pensas e dizes de mim como: jovem? esposo/a? trabalhador(a)...?”
Como Tu falas ao coração, melhor permanecer em silêncio, que é a melhor maneira de escutar-te.
Fala-me claro e fala-me forte!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
“Passemos para a outra margem” (Mc. 4,35)
“Jamais conseguirei esquecer um certo refrão que ouvi uma vez ao amanhecer, no meio de uma multidão reunida na noite da véspera de uma grande festa:
- Levai-me até a outra margem, barqueiro!, dizia o refrão.
Mas qual o significado desse chamado universal? Sem dúvida alguma, ecoa a sensação que temos de não haver ainda chegado ao nosso destino. No entanto, haveria algo mais? Onde está essa outra margem? Seria algo diferente do que já possuímos? Estaria em outro lugar, além deste, onde estamos?
Não, claro que não. O lugar onde procuramos nosso destino está no próprio coração de nossa atividade. Estamos clamando para que nos levem ao próprio lugar onde já nos encontramos.
Na verdade, ó Oceano de prazer, esta margem e a outra que busco formam em ti uma única margem. Quando digo: “esta minha margem”, a outra me parece estranha, e, quando eu perco o sentido dessa plenitude que existe em mim, meu coração ansioso reclama “outra margem”. Tudo que possuo e tudo que me parece alheio espera para ver-se reconciliado por completo em teu amor. (Tagore)
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que sabe estar longe de seu centro e entende sua missão de busca e peregrinação interior, de colocar-se em movimento...
Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…
A outra margem: lugar provocador, incitador, desperta curiosidade...
: aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...
Os poetas, artistas, místicos... são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.
O Evangelho começa com um forte apelo de Jesus dirigido aos seus discípulos, convidando-os a sair da sua rotina, a abrir-se para o novo, para o diferente, ultrapassando os próprios interesses e preconceitos. “Passar para a outra margem” exige mudança de atitude, pôr-se a caminho, êxodo, sair-de-si.
Jesus se encontra no lado de cá, na margem ocidental do lago de Genesaré, na Galiléia É a margem da vida regrada do judeu piedoso: a margem da Lei, da sinagoga, do Sábado..., tudo o que dá segurança aos judeus. No lado de lá do lago, encontram-se a Traconítide, a Decápole, terras não familiares aos judeus. É a margem dos pagãos, dos excluídos, do afastamento de Javé. Para surpresa e até escândalo, Jesus convida os seus discípulos a passar para a outra margem, para o “outro lado da humanidade”.
Jesus também nos convida a sair da nossa própria margem, para ir à margem do Outro e dos outros.
Ele não diz “passai para a outra margem”, mas “passemos”, “vamos juntos para a outra margem”.
Viver o seguimento é iniciar uma travessia, sem saber exatamente as tempestades ou calmarias que iremos encontrar, porque “o vento sopra onde quer”, como o Espírito. O seguidor de Jesus é “como quem está numa barca, no meio do rio e não rema constantemente, mas, às vezes, se deixa levar pela correnteza” (Péguy).
Isto supõe coragem para enfrentar o risco do diferente, disponibilidade, abertura ao novo.
Para quem inicia este Caminho Espiritual, seguindo as pegadas irrepetíveis do Cristo Jesus, a vida é sempre nova e surpreendente. “Empreendemos com a ajuda dos acasos/as travessias nunca projetadas/... em serviço de Deus e seus roteiros” (J.Lima).
O seguidor de Jesus não sabe o que há do outro lado. A ele lhe custa ver claramente. No entanto, considera que a outra margem é talvez diferente, mas tão apaixonante como esta margem onde ele está; e então, decide animar-se a cruzar o mar.
Uma das teorias mais importantes descobertas atualmente defende que tudo o que é criativo surge quando saímos da nossa zona de conforto, ou seja, do lugar onde nos sentimos cômodos e seguros. Essa teoria levada ao campo da espiritualidade, quer dizer que devemos sair, como pessoas e como comunidade, de nosso espaço espiritual rotineiro e “normótico” para poder nos encontrar com Deus.
Deus não “cabe” nas nossas “margens” conhecidas; Ele está sempre além da nossa “zona de conforto”, instigando-nos a fazer contínuas e ousadas “travessias”.
Deus nos quer a cada um fora de nosso espaço de conforto para poder abraçar a missão original que Ele tem reservada para cada um de nós. Não devemos nos conformar com a espiritualidade que vivemos, devemos buscar como aprofundar nela, em cada palavra, em cada lugar, em cada gesto, em cada pessoa.
Todos os santos e santas foram pessoas que saíram de seu espaço de conforto, “transgrediram” o conhecido e rotineiro, fizeram a travessia…: nova visão, nova missão… Ser santo(a) é sair desse espaço e entrar no espaço de Deus. Cada um à sua maneira.
Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... fugindo de um ambiente e de uma ordem asfixiantes. A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Uma vez passada a zona de conforto, situar-se na outra margem passa a significar colaboração com o Deus presente e ativo em toda situação humana. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Em toda travessia há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, sem limites nem constrangimentos; há o imprevisto, o acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com os companheiros que se mantém fiéis, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão.
Finalmente, a travessia aproxima o peregrino cada dia, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais “puro”, mais “livre”, mais “autêntico”...; numa palavra, Deus, que está no têrmo, já palmilhava a travessia com Ele.
Texto bíblico: Mc. 4,35-41
Na oração: Preparar-se para a travessia
- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, nos põe a caminho... Grandes surpresas interiores estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...e a semente vai germinando e crescendo, mas o agricultor não sabe como isso acontece” Mc 4,27
Conta-se que o notável pintor francês Renoir, já sexagenário e bastante afamado pela vitalidade que deu ao impressionismo, foi procurado por um jovem admirador interessado em aprender as artes do desenho. Porém, alegando um tempo escasso para tal empreitada, o apressado discípulo desejava saber quanto tempo duraria o aprendizado, pois ficara assombrado ao ver que o grande mestre fora capaz de fazer uma bela pintura com delicadas pinceladas, mas com uma rapidez espantosa.
Diz Renoir: “Fiz este desenho em cinco minutos, mas demorei 60 anos para conseguí-lo”.
Esta é a resposta de alguém que é um sábio consistente e que ultrapassa o senso comum e o óbvio, gerando o novo (em vez de produzir mera novidade). É a revelação da sabedoria daquele que consegue maturar, sem pressa, a experiência de vida.
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação, a pressa e a preocupação se tornam um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade. Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
A pressa constante é mais um dos muitos transtornos que vem afetar nossa qualidade de vida. Quem sofre deste mal sente a necessidade compulsiva de cumprir tarefas durante 24 horas por dia e, se por algum instante, se encontra sem nada para fazer, se sente culpado. Além disso, a pressa, ao nos tornar superficiais, nos impede de perceber o verdadeiro valor e originalidade do trabalho próprio e dos outros. Quanto vale o trabalho de um artesão, uma cozinheira, um mecânico, uma professora, um palestrantes, um médico, uma cientista, um místico...?
O escritor alemão Lothar J. Seiwert, autor do best-seller “Se tiver pressa, ande devagar”, afirma:
“Se você negligencia suas próprias necessidades e trabalha até cair de cansaço, desprezando férias e lazer, se torna uma pessoa de difícil trato e uma ameaça para aqueles com quem convive, desperdiça o tempo por falta de atenção e cria um clima de tensão permanente”.
No fundo a questão é esta: qual o sentido e a direção daquilo que fazemos? Para quê? Para quem? Qual é a intenção ou a motivação que está porr trás de nossa ação?
Esta “dica” pode nos ajudar a superar a ansiedade e a pressa, harmonizando-nos com o “tempo” e fazendo as pazes com o relógio. Igualmente isso vale para viver e saborear, de uma maneira mais tranquila, as atividades cotidianas mais simples.
Normalmente, vivemos ações “insensatas”, ou seja, sem sentido, sem direção. Se fizéssemos uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria rápido no ralo do bom senso. Se examinássemos o baú de nossas prioridades, certamente a arrumação interior seria outra.
Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação... O cotidiano torna-se convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Aliviar a vida, o coração e o pensamento... eis o desafio; não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e sem sentido.
Jesus e suas provocativas parábolas: Ele foi um grande artista na construção de parábolas tiradas do cotidiano. Através delas, Ele nos ajuda a “ver” no centro da realidade “o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano não percebeu”, ou seja, a realidade impensável do Reino de Deus no meio de nós, emergindo como dom.
As parábolas nos Evangelhos não são contos com uma finalidade moral, nem representam uma doutrinação; seu núcleo original busca, antes de tudo, interrogar, provocar, chamar a atenção sobre a realidade presente. Podemos afirmar que Jesus tem a pretensão, através desta linguagem, de provocar a quem o escuta e motivá-lo a uma tomada de posição frente à realidade. Não existe, na parábola, a intenção de pintar um quadro mais bonito da realidade, mas de utilizar o potencial do relato para que as pessoas se aproximem de uma dimensão sempre nova da existência.
Nas duas parábolas de hoje, Jesus revela que a única coisa que a semente precisa é de um ambiente adequado para destravar sua vitalidade. Ela foge da eficácia e dos resultados instantâneos. Não tem pressa.
As duas parábolas nos falam mais de aposta no futuro, de calma, de paciência, de realidade sujeita a inclemências de todo tipo, que de certezas ou finais previamente escritos. Igualmente elas nos desvelam que o resultado futuro não vem de fora, mas que vai se forjando por dentro.
Em cada uma das duas parábolas Jesus quer destacar um aspecto dessa realidade potencial dentro da semente. Na primeira, sua vitalidade, ou seja, a força, o impulso que tem para desenvolver-se por si mesma. Na segunda, nos é revelada a desproporção entre a pequenez da semente, quase imperceptível, e a enorme planta que dela surge, onde, inclusive as aves podem fazer seus ninhos.
Estas imagens nos fazem pensar que as coisas de Deus são de outra maneira e de outro ritmo.
Ao mesmo tempo, elas nos questionam: não vivemos hoje muito rápido? Tudo tem que ser prá já; temos perdido a paciência, o sossego, a paz. Fizemos do verbo “esperar” uma relíquia do passado. Tudo parece imprescindível. Tudo urge. Parece que muitas vezes é a agenda que controla nossa vida. E corremos o risco de esvaziar-nos e nos frustrarmos porque queremos correr muito esperando já os frutos quando temos apenas plantado a semente. Outras vezes sofremos porque não vemos os frutos de nosso esforço.
Mas é necessário a paciência do camponês para respeitar processos e colher os frutos no devido tempo. Oxalá saibamos aproveitar os dias, plantar a semente de algo bom, ativando, pouco a pouco, nossas capacidades no serviço aos outros; que saibamos celebrar a vida, preocupar-nos com coisas que verdadeiramente valem a pena e fugir de nossas manias, pressas e ansiedades. Deixemos as pressas de lado, pois o Amor e a Vida, isso sim, é o mais seguro.
Espere o momento
“Não apresses a chuva, ela tem seu tempo de cair e saciar a sede da terra;
não apresses o pôr do sol, ele tem seu tempo de anunciar o anoitecer até seu último raio de luz;
não apresses tua alegria, ela tem seu tempo para aprender com a tua tristeza;
não apresses teu silêncio, ele tem seu tempo de paz após o barulho cessar;
não apresses teu amor, ele tem seu tempo de semear, mesmo nos solos mais áridos do teu coação;
não apresses tua raiva, ela tem seu tempo para diluir-se nas águas mansas da tua consciência;
não apresses o outro, pois ele tem seu tempo para florescer aos olhos do Criador; não apresses a ti mesmo, pois precisas de tempo para sentir tua própria evolução”.
Textos bíblicos: Mc 4,26-34
“Domine a pressa, purificando-a pela mística da atenção a tudo e todos que compõem o seu existir”.
- Reze sua agenda cotidiana: ativismo? Pressa? Ansiedade? Tarefismo?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se” (Mc 3,25)
Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus. Uma fronteira invisível o separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
O ser humano “dividido” é desfalcado, despojado de seu conteúdo humano, espoliado de sua densidade interior, assaltado por dentro. A “divisão” corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu coração. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, demorada, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitali-dade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal.
Num coração petrificado e dividido o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “dia-bólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos. Com isso nos blindamos, tornando-nos rígidos, petrificados em nossas posições, crenças, valo-res... e não nos deixamos impactar pelo novo, pelo diferente.
Podemos soltar nossa necessidade de segurança e abandonar-nos totalmente ao Espírito para que possa nos guiar? Como desarticular as forças depredadoras do ego em nós? Como quebrar os ferrolhos de nossas intolerâncias, fanatismos, preconceitos, e estender as mãos para acolher o surpreendente e o novo?
Abrir as portas, quebrar os ferrolhos, abandonar as muralhas que nos protegeram, viver a vida e aceitar o desafio, ensaiar um canto, baixar a guarda e estender as mãos, desatar as asas e mover-se de novo a celebrar a vida e retomar os horizontes...; é isso que significa deixar-se “conduzir pelo Espírito”.
Em que consiste a gravidade do “pecado contra o Espírito Santo, revelado pelo Evangelho de hoje.
Só há um pecado contra o Espírito Santo. Se o Pai é Vida, se o Filho é Verdade, o Espírito Santo é Amor. E o pecado contra o Espírito Santo é o pecado contra o amor.
O perdão, por sua vez, é crer no amor; o perdão é expressão de amor. E quem não crê no amor, não abre espaço para o perdão, porque simplesmente no crê no perdão. Permanece fechado dentro dos seus muros e não se abre à amplitude da vida. Quem não ama não perdoa e tampouco é perdoado quem não se deixa amar. O problema não está em Deus, pois Ele continua amando a todos. O problema está em nós, pois se não cremos em seu amor, nunca nos sentiremos amados.
Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem se devia dar ouvido. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.
A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco ao verem as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de Belzebu, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia através de Jesus e atribuia ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!
As acusações contundentes levantadas contra Jesus manifestam um fechamento à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, tornava-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Jesus, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.
Viver humanamente consistirá, então, em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada interior, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem serem visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
O Espírito nos faz fortes em nossa fragilidade e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de proteger-nos é abrindo-nos; seu modo de defender-nos é desarmando-nos.
Um dos aspectos mais empolgantes do ser humano é o fato de ter reservas inspiradoras, úteis e podero-sas que estão adormecidas, ansiando para sair da sombra e ser integradas ao todo da pessoa. Há uma imensa variedade de sentimentos maravilhosos esperando por uma oportunidade de se deslocarem no corpo, trazendo-nos novas sensações e novos níveis de felicidade, alegria e prazer. Precisamos nos desa-fiar a aceitar todas as facetas de nossa humanidade; do contrário, os personagens que foram expulsos do palco, agora reprimidos, se tornarão os orquestradores silenciosos de nossa vida secreta.
É preciso superar a “divisão diabólica” do nosso coração, para recuperar a densidade humana interna. Para isso, ele precisa “re-ordenar-se”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação. Para viver um processo de humanização profundíssimo, é preciso despertar, pacificar-se, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo, corretamente, na condição de filhos e filhas de Deus.
É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que, sob a ação do Espírito, podemos nos inventar a cada dia, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão. Pessoa “dividida” é massa anônima empurrada pela multidão. Quem está “unificado” tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo. Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. Como nosso Mestre interior, nos ensinará a deixar-nos conduzir para a bondade, para a doação, para a reconciliação e a alegria. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro.
Textos bíblicos: Mc. 3,20-35
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue a criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado. No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e nos acolher mutuamente, criar comunidade, multiplicar e expandir o amor para que o sonho do Corpo doado se propague no mundo.
Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e, sobretudo, na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.
Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco).
Corpo de Cristo são todos os homens e as mulheres, a humanidade inteira, pois nela se encarnou o Filho de Deus. Essa é a verdade cristã: que todos comam e bebam em amor solidário e real o pão de cada dia, o vinho da festa da vida.
Corpo do Cristo quer ser em especial a Igreja, comunhão daqueles que celebram expressamente sua festa e compartilham seu pão e seu vinho eucarístico, recordando a Palavra: “o Verbo se fez carne”.
Como é bom termos essa oportunidade de mais uma vez celebrarmos o “Corpo de Cristo”, que nos alimenta e nos faz repensar nossa postura diante dos corpos... tanto do próprio corpo, como do corpo do irmão e irmã que amam e sofrem ao nosso lado!
Como seria bom se pudéssemos olhar, valorizar, respeitar, amar, cuidar dos corpos dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados com o mesmo amor e zelo que temos pelo Corpo de Cristo!... quem fizer isso a um menor dos meus irmãos, é a mim que o fizestes..., corpos, amor, respeito, doação.
Cristo/Eucaristia... perceber e amar a presença real de Cristo no corpo... do outro.
Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo... Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos? Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem... Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo... pão... comunhão, outro, fome, pão... partilha... celebração, amor, corpos...
Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro... do outro corpo.
Jesus, na vivência de sua corporalidade, destrava e dignifica os corpos dos outros: diante dos corpos doentes... cura; diante do corpo pecador... ama, perdoa, abençoa, encoraja; diante dos corpos esfomeados: alimenta, multiplica os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protesta, recusa, não façam da casa de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”... e não vêm o interior.
Seu Corpo mesmo se apresenta como amor compartilhado. O Evangelho nos conduz assim ao princípio de todo amor, que consiste em doar o corpo, a fim de que outro viva. Corpo não é aqui o oposto a alma, exterioridade do ser humano, mas pessoa e vida inteira; é comunicação e crescimento, exigência de alimento e possibilidade de morte, fragilidade e grandeza daquele que enfrenta a violência destruidora e doa sua vida em amor, criando a comunhão com todos.
A celebração de “Corpus Christi” nos revela como será o futuro: uma humanidade reconciliada e fraterna; uma mesa para todos, na qual circularão o Pão e a Palavra; uma comunidade reunida em torno do Corpo Ressuscitado e participando de sua vida.
Ao aproximarmos d’Ele, a partir da experiência dolorosa de um mundo dividido e rompido, nossa esperança se refaz ao celebrar antecipadamente a realização do sonho de Deus sobre o mundo: ser pão compartilhado e presença real do amor de Deus para com os últimos.
Comungar o Corpo de Cristo e não comungar com o outro, é comungar a própria condenação. Não se pode comungar com o Corpo e o Sangue do Senhor sem entrar em solidariedade com corpos violentados, feridos, famintos... “Se em alguma parte do mundo há fome, nossa celebração da Eucaristia fica de algum modo incompleta em todas as partes do mundo” (Pe. Arrupe).
“Na Eucaristia recebemos a Cristo faminto no mundo. Não vem a nós sozinho, mas com os pobres, os oprimidos, os que morrem de fome na terra. Por meio d’Ele vem a nós esses homens e essas mulheres em busca de ajuda, de justiça, de amor expresso em obras. Não podemos, por conseguinte, receber digna-mente o Pão da Vida, se ao mesmo tempo não damos pão para que vivam aqueles que dele neces-sitam, sejam quais forem eles e onde quer que estejam” (Pe. Arrupe).
A Encarnação foi o caminho que a Trindade escolheu para se aproximar da humanidade e fazer história conosco. Nosso corpo humano, feito de barro – vaso frágil e quebradiço – tornou-se o lugar privilegiado da chegada e da revelação do amor trinitário.
“Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós?” (1Cor, 6,19)
O nosso corpo é o “templo” santo e santificado, onde Deus Trino faz sua morada.
A Encarnação de Jesus não autoriza qualquer desprezo da corporeidade; pelo contrário, valoriza o ser humano na sua totalidade. Cuidar do corpo para recuperar a saúde, combater o stress, harmonizar mente e corpo, razão e emoção, isto é benéfico. A deturpação desumanizante do corpo aparece quando ele é visto como fim em si mesmo.
Temos muitas ofertas para o corpo: ginásticas, academias, cosméticos, bioenergéticas, yoga, dança, expressão corporal, cirurgias plásticas, implantes, massagem...
Cuidar sim, idolatrar não; é preciso caminhar para a superação do medo do corpo, mas sem idolatrá-lo.
Texto bíblico: Mc 14,12-16.22-26
Na oração: Sinta todo o seu corpo como um templo. E neste templo acolha o Sopro. Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser. Sinta que você é um corpo de argila e também um corpo de diamante.
Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
A liturgia nos convida, neste domingo, celebrar e viver o Mistério da Trindade. Aqui não se trata somente de uma verdade para crer, mas estamos diante do fundamento e do núcleo de nossa experiência cristã. Em vez do “Mistério da SS. Trindade” (talvez algo distante e estranho para nós), o importante é a experiência história do encontro com a atividade vivificadora “da Fonte” de vida (Pai), “da Rota” do Amor (Filho) e “da Respiração” da esperança, que pacifica, alenta e reconcilia (Espírito Santo).
Para facilitar a experiência da presença e ação da Trindade em nossas vidas, nossa proposta é contemplar a escultura da Irmã Caritas Müller (veja foto abaixo) que está numa casa de oração na Alemanha; toda obra de arte fala mais que muitas palavras. Todo artista capta detalhes do Mistério e nos oferece ricas possibilidades de acesso que a razão nem sempre consegue explicar.
Quem é o Pai-Criador, quem é o Filho Redentor, quem é o Espírito Santificador?
As definições apresentadas pelo “dogma da Trindade” não nos ajudam muito. No entanto, a identidade da Trindade se revela na sua ação salvífica. O Pai, no Filho e pelo Espírito Santo se preocupam com cada um dos seus filhos e filhas. Sua intenção é idêntica; atitudes e gestos o demonstram: uma mesma atenção, uma mesma paixão os move para o ser humano; um mesmo amor para com cada criatura humana brota das entranhas da Santíssima Trindade.
O interessante é que, ao observarmos a escultura, vemos que o ser humano está no centro. Trata-se da pessoa na sua total fragilidade e miséria, caída e sem forças...Essa pessoa está circuncidada pela misericórdia da Trindade. Em Deus o ser humano está no centro, para que o ser humano coloque Deus no centro da sua vida.
Mais uma vez, Deus escolhe para isso o caminho do Amor que se entrega, da inquebrantável misericórdia reconstrutora, da transbordante doação que dignifica cada ser humano.
Percebemos na escultura quatro círculos. O círculo expressa o caráter único de cada pessoa, tanto divina como humana. As Três Pessoas divinas e a pessoa humana encontram-se dentro de círculos. O círculo da pessoa humana está no centro da Trindade, e os círculos das Três Pessoas da Trindade encontram-se abertos em direção a este círculo central. Pela sua Encarnação, Morte e Ressurreição, o Filho é o mediador que introduz o ser humano no coração da Trindade.
É importante notar que os círculos não são fechados, pois as pessoas podem entrar no círculo das outras na medida em que seu amor é atuante e expansivo. O círculo central recolhe uma pessoa humana, que pode ser qualquer um de nós. Não dá para saber se é homem ou mulher, pobre ou rica, jovem ou velha e assim por diante. Parece sim se tratar de uma pessoa ferida nos caminhos da vida.
O círculo, como símbolo de realização, significa que o ser humano, em sua fragilidade e em sua miséria, é chamado à plenitude de vida e de realização. Logo nos vem a lembrança do Bom Samaritano. As três pessoas divinas estão debruçadas, com reverência, sobre a pessoa machucada. É patente que o Deus uno e trino comunga no mesmo sentimento de amor e compaixão. Tudo converge para esta revelação: o ser humano desfigurado e acolhido pela iniciativa amorosa da Trindade. O ser humano desfigurado é transfigurado pelo Amor Trinitário.
A Trindade Misericordiosa envolve a criatura humana por todos os lados. Toda a atenção de Deus está centrada sobre o ser humano.
O Pai (à direita), está carinhosamente inclinado, com um dos joelhos em terra, esforçando-se com cuidado para levantar a pessoa ferida. O sentimento do Pai é de ternura e cuidado, seu rosto se aproxima e beija o rosto inerte da pessoa ferida. Ele revela seu amor misericordioso no calor do abraço, que acolhe e regenera o ser humano. Morre o mal que foi feito e celebra-se a festa da vida nova.
Assim fez o pai que, no regresso do filho pródigo, o abraça, o cobre de beijos e o cumula de seu perdão.
Levantar, rodear de ternura, abraçar, acolhê-lo em seu seio de ternura, tal é o gesto de Deus-Pai para com o ser humano. Gesto de libertação que o coloca de pé, devolvendo sua dignidade.
Jesus, o Filho de Deus (à esquerda), ajoelha e se inclina profundamente. Ele se rebaixa à mesma condição do ser humano. Ele segura e sustenta com suas mãos os pés da pessoa ferida, lava-os, cura as feridas com carinho e beija seus pés. Beijo, gesto de intimidade e de ternura, que convida a pessoa a deixar-se amar. O amor liberta, põe o homem e a mulher de pé.
Jesus nos revela o maior serviço do amor, ao mesmo tempo que realiza o mais humilde serviço. “Eu vim para servir e não para ser servido”. O Filho revela o Deus Amor-serviço, que se põe aos pés da humanidade decaída para restaurá-la, e revela o caminho do serviço como caminha para a vida. Em Jesus Deus se abaixa para estar mais perto da miséria do ser humano. Não o olha a partir de cima, abaixa-se. Não vem ao nosso encontro em nossas perfeições, mas em nossas misérias.
É o que Jesus nos revelou durante toda sua vida e de maneira especial no gesto do lava-pés. Ele põe o centro de sua ação nos seres mais pobres e mais fracos, aqueles que não contam para nada, os descartados, os que sofrem e os pecadores. O ser humano, cada um de nós pessoalmente, é tão importante aos olhos de Deus que Ele o coloca no centro de suas preocupações.
O Espírito Santo, figura que desce do alto e se aproxima do ferido, tanto pode ser a figura de uma pomba, de chamas ou de mãos que trazem vida. O bico da pomba, como o Pai e o Filho, beija a pessoa e lhe transmite o Sopro de vida. Deus quer ter o ser humano, um ser vivente, como interlocutor, um ser capaz de responder seu chamado à vida. Deseja um ser vivente, capaz de amar e de assemelhar-se a Ele.
A Pomba de fogo, voa sobre o ser humano caído e o aquece. A relação entre a Pomba de fogo e o ser humano do centro recorda Pentecostes. Cheios do Espírito Santo, os Apóstolos, antes marcados pelo medo, se transformam em testemunhas audazes de Jesus e do amor de Deus.
Pai, Filho e Espírito se preocupam pela pessoa, criada do barro da terra. A pessoa, no centro, é a figura mais escura de todas. Cor da terra, de húmus, um ser criado por Deus, e que estaria sem vida, se esta não lhe fosse comunicada pelo Criador.
Ao experimentar esta acolhida restauradora, o ser humano é chamado a ser também presença da Trindade Amiga para seus irmãos, construindo a comunhão trinitária no mundo em que vive. Só corações solidários adoram um Deus Trinitário
Texto bíblico: Mt 28,16-20
Coloque-se no lugar do ser humano, no centro da escultura, e faça a experiência de ser acolhido e amado pelas divinas Pessoas trinitárias.
Coloque no coração da Trindade as pessoas que você sabe que precisam da graça desta experiência.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22)
Há muitos ventos e ruídos ao nosso redor: o ruído alucinante das máquinas e das músicas metálicas; o ruído de tanta violência, gritos, maltratos, mentiras; o ruído da intransigência, intolerância, fanatismo, condenações, ameaças... Em meio à tempestade levantam-se ondas de dor e sem sentido, de medos paralisantes e dúvidas angustiantes, de mortes violentas e prematuras que fazem naufragar barcas cheias de sonhos. O planeta terra grita de um modo ensurdecedor: os últimos terremotos, os incêndios, os furacões, as inundações... nos avisam cotidianamente desse grito do Planeta que não queremos escutar.
Além disso, sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando tantas seguranças que nos sustentaram, tantos barcos nos quais subimos, tantos salva-vidas aos quais nos agarramos... As tempestades e as tormentas nos assustam, tem o perigo de nos converter em pessoas medrosas, buscadoras de seguranças próprias, fugitivas caminhantes para os lugares de calma.
No entanto, em meio à tempestade urge não perder a serenidade, não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos ceguem, que as ondas nos levem segundo seu capricho. Nas tempestades também é necessário “soltar amarras e içar velas”, ou seja, atrever-se a “viver no Vento”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos, de nosso consumismo, nossa prepotência, afã de domínio, exclusivismos, fundamentalismos, patriarcalismo, machismo.... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as velas da inculturação, da riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros, indígenas, os sem terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...), acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para receber os novos ventos da história. “Velas que ao içar-se, se inflariam com o vento dos sinais dos tempos” (Pepe Laguna).
Ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino, podemos consentir que os Ventos do Espírito levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos impulsionam para a outra margem..., Este é o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte.
O Espírito insuflou e insufla vida em todas as etapas do universo, na evolução dinâmica para o novo. Ele suscitou ao longo da história, palavras desafiantes, caminhos ainda não percorridos, imagens novas. De fato, tudo se move e se renova: move-se o sol, a lua e a terra, o átomo e a estrela; move-se o ar, a água, a chama, a planta; move-se o sangue, o coração, o corpo, a interioridade. Tudo se move, nada se repete. Tudo é calma e dança, quietude e movimento. Em tudo move-se o Espírito de Deus, energia do amor, possibilitador da Vida. O Espírito é o Mistério que tudo move e tudo impulsiona em direção ao amor e à beleza. Deixemo-nos mover por Ele! Deixemo-nos levar!
Por seu sentido etimológico, “espírito” – “ruah” – na bíblia hebraica, se refere ao vento, ao ar que impulsiona, e ao alento ou a respiração que mantém a vitalidade dinâmica do ser humano. A “ruah” (porque “espírito” é feminino em hebraico) é um modo de descrever a Deus como impulso, alento, força... presença que perpassa tudo, e não se pode retê-la nem dominá-la.
Nós o sentimos soprar no mundo, no amor das mães, no trabalho sacrificado dos pais, na bondade, na ajuda, na ciência, na inteligência, na compaixão... Sentimos a presença do Vento de Deus, que infla as velas de nossas pobres barcas e as leva para outros horizontes. E, mais intimamente, o Vento de Deus é Alento, aquele que faz respirar, que tira o des-alento, o que anima, nos faz viver com ânimo.
Em Jesus de Nazaré vemos soprar o Vento de Deus como em nenhum outro.
As angústias mais radicais do ser humano são reunidas e transformadas pelo sopro do Espírito: um sopro vital que possibilita a vitória da esperança contra o desespero, da comunhão contra a solidão, da vida contra a morte. A voz sopra onde quer, a Palavra vem do alto, o Espírito chega impetuoso rompendo o silêncio da morte. O Vento traz a vida, mas não se sabe de onde vem e nem para onde vai.
Quando experimentamos a desorientação, a fragilidade, a falta de sentido, damo-nos conta que precisamos de um novo Sopro que nos fará sonhar e nos deslocar para além de toda estreiteza da vida. O Espírito age de modo silencioso, mas com extraordinária eficácia: a sua força se mostra irrefreável. O seu sopro, penetrando nossos corpos, nos recoloca de pé e nos faz, finalmente, ressurgir.
A santa Ruah é a energia que cria solidariedade, reconciliação, que constrói e mantém a Grande Aliança.
Deixando-nos conduzir pelo Sopro do Espírito Santo, podemos realizar em nosso interior uma boa “ecologia do espírito”, ou seja, recuperar a utopia frente ao desencanto, promover o espírito de comunidade frente ao individualismo, cultivar a abertura ao outro frente ao preconceito cruel, impulsionar o compromisso frente à mera tolerância, apoiar a justiça frente ao puro assistencialismo, incentivar a criatividade frente ao mimetismo, fomentar a solidariedade frente ao autocentramento, promover o espírito de verdade frente à mentira, inspirar a fé frente a um horizonte sem sentido...
Neste dia de Pentecostes, nós, portadores da “Ruah”, tomamos consciência que o Espírito é movimento que transmite o sopro de vida (vento), reúne no Amor todos os povos (fogo) e comunica a todos o Amor universal (línguas). Nas trevas em que muitas vezes ainda tateamos, o Espírito é fogo que abrasa, ilumina e aquece, para que floresça em todos nós a plenitude de vida. Sua força é uma força humanizadora, libertadora e salvadora.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração:
Santa Ruah, és o Amor do Abbá e de Jesus derramado em todos os corações, na humanidade, na natureza. Estás presente no mais íntimo de toda a realidade. Quão difícil para nós detectar tua presença, tua poderosa ação, tua misteriosa e infalível missão!
Santa Ruah, tu és o Ar que nos faz respirar, a causa de todas as nossas alegrias, a Surpresa de todas as nossas surpresas, a Beleza que permanentemente se revela e se expressa de mil formas, embelezando tudo.
Tu és o Espírito que estabeleces o cosmos em meio ao nosso “caos” provocado pelos maus espíritos que nos rodeiam e nos atacam. Tu és, Santa Ruah, que nos modela à imagem e semelhança do Abbá e de Jesus, fazendo de todos nós teu santuário vivente. Tu tens a missão trinitária de conduzir tudo a bom termo, de ir construindo conclusões, de rematar obras, de fazer emergir a bondade, a beleza, a verdade.
Tu és a Santa Ruah que santifica, que nos torna seres transparentes, luminosos, pouco a pouco habitantes de um novo mundo que não somos capazes de entender. É a ti, Santa Ruah, a quem irá se dirigindo nosso último suspiro. És tu, quem nos acolherá e nos levará para junto do Abbá e de Jesus.
És tu, Santa Ruah, quem nos purificará, nos recriará e nos santificará.
Em nome do Abbá, do Filho e da Santa Ruah. Amém.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte” (Mc 16,20)
Esta cena final do Evangelho de Marcos está em íntima sintonia com todo o seu evangelho. De fato, os versículos hoje propostos à nossa oração falam do mandato de Jesus aos discípulos: “ide pelo mundo inteiro”. Em outras palavras, não há ruptura entre a missão de Jesus e a dos discípulos. O ministério de Jesus se prolonga no testemunho dos seus seguidores. E é importante não esquecer que Jesus continua caminhando nas estradas da humanidade, nos passos e ensinamentos dos seus discípulos. Isso nos leva a afirmar que a Ascensão de Jesus não nos priva de sua presença; pelo contrário, oferece-nos novos modos de senti-Lo e de encontrá-Lo. Começa, assim, definitivamente o tempo da comunidade cristã.
Os discípulos, portanto, darão sequência ao que Jesus fez, ampliando o campo de ação: Jesus anuncia o evangelho na Galileia; os discípulos, por sua vez, deverão fazê-lo pelo mundo inteiro e a toda criatura.
O seguidor de Jesus é impelido continuamente a uma vivência “fronteiriça”: arrancar-se, desinstalar-se, abrir-se a situações novas, assumir novos riscos, renovar-se sem cessar, adaptar-se às condições de tempo e lugar, tenacidade com uma boa dose de paixão…
A fronteira é espaço tenso e conflitivo; ali o Evangelho se faz mais transparente, o seguimento de Jesus se faz mais radical, a vivência cristã deixa de ser neutra e começa a ser conflitante. Dizer “fronteira” é como dizer novidade; fronteira significa lugares novos, experiências novas, desafios novos. Comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da ousadia...
Na história da Igreja muitos homens e mulheres viveram em atitude de permanente êxodo e disponibilidade, numa espécie de itinerância interior e exterior que os converteu em vanguardas da história.
Os grandes desafios atuais exigem 'uma Igreja missionária toda em saída', reafirmou o Papa Francisco.
“A Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que ‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor e, por isso, ela sabe ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar ás encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inesgotável de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva (...) Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo”. (Evangelli Gaudium).
O evangelho de hoje conclui que os discípulos saíram e anunciaram por toda parte o que o Mestre anunciou: a boa notícia do mundo novo inaugurado com Ele. Este anúncio será acompanhado de “sinais”:
- os dois primeiros sinais (expulsar demônios em nome de Jesus e falar novas línguas) mostram que a ação dos discípulos é libertadora e comunicadora do mundo novo, eliminando tudo o que despersonaliza, oprime e marginaliza as pessoas, e libertando as pessoas de todo tipo de alienação.
- o terceiro e quarto sinais (pegar serpentes ou beber veneno mortal) falam dos confrontos e conflitos que aparecerão no caminho daqueles que, a partir da fé no Ressuscitado, vivem o compromisso com a vida: quem anuncia e realiza o projeto de Deus sofre oposições imprevistas e veladas (serpentes) ou evidentes e abertas (tentativa de matar os discípulos por envenenamento).
- o quinto sinal (impor as mãos sobre os doentes, curando-os); os discípulos, em estreita comunhão com a ação de Jesus, prolongam Suas mãos, curando, abençoando, levantando os caídos, sustentando os fracos.
Como o pe. Vitor Codina sj, podemos também nós, sonhar e permitir que a festa da Ascenção desate em nós um profundo dinamismo pascal e eclesial:
- passagem de uma Igreja poderosa, distante, fria, endurecida, medrosa, reacionária, da qual as pessoas se afastam e abandonam... a uma Igreja pobre, simples, próxima, acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontro e da ternura;
- passagem de uma Igreja moralista, legalista, doutrinária... a uma Igreja que vai ao essencial, que se centra em Jesus Cristo contemplado e seguido, que difunde o bom odor do Evangelho e convida a que todos coloquem Jesus Cristo no centro de suas vidas;
- passagem de e uma Igreja centrada no pecado e que fez do sacramento da confissão uma tortura e converteu o acesso aos sacramentos em uma alfândega inquisitorial... a uma Igreja da misericórdia de Deus, da ternura, da compaixão, com entranhas maternais, que reflete a misericórdia do Pai, uma Igreja sobretudo hospital de cam-panha que cura feridas, que cuida da criação, na qual os sacramentos são para todos, não só para os perfeitos;
- passagem de uma Igreja centrada nela mesma, autorrefencial, preocupada com o proselitismo... a uma Igreja dos pobres, preocupada sobretudo com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego juvenil, os anciãos, onde os últimos sejam os primeiros, onde não se possa servir a Deus e ao dinheiro; uma Igreja profética, livre em relação aos poderes deste mundo;
- passagem de uma Igreja fechada em si mesma, relíquia do passado, com tendência a olhar para o próprio umbigo, com cheiro de mofo, que espera que os outros venham até ela... a uma Igreja que sai às ruas, que vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; uma Igreja que seja semente e fermento, que abra caminhos novos, que vá sem medo para servir, uma Igreja ao ar livre, que sai às sarjetas do mundo, uma Igreja em estado de missão;
- passagem de uma Igreja que discrimina os que pensam diferente, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, dialoga com não crentes... uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos;
- passagem de uma Igreja com tendência restauracionista e que tem saudades do passado... a uma Igreja que considera que o Vaticano II é irreversível, que é preciso implantar suas intuições sobre a colegialidade, desclericalizar-se, evitar o centralismo e o autoritarismo no governo, caminhar em meio às diferenças, confiar maiores responsabilidades aos leigos, dar maior protagonismo à mulher...;
- passagem de uma Igreja com pastores fechados em suas paróquias, clérigos de despacho, que buscam fazer carreira, que estão no laboratório e às vezes acabam sendo colecionadores de antiguidades...a pastores que “cheiram a ovelha”, que caminham na frente, atrás e no meio do povo;
- passagem de uma Igreja envelhecida, triste, com gente com cara de velório, a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência, sem nada a ocultar, com flores na janela e cheiro de lar, onde os jovens sejam protagonistas, pois são como a menina dos olhos da Igreja;
- passagem de uma Igreja ONG piedosa, clerical, machista, monolítica, narcisista... a uma Igreja Casa e Povo de Deus, mesa mais que estrado e tapete, que respeita a diversidade, onde os leigos, as mulheres, as famílias jogam um papel relevante. É a Igreja de Aparecida, de discípulos e missionários para que os nossos povos em Cristo tenham vida, uma casa eclesial onde reina a alegria.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: É Ele o Senhor que com seu chamado planta a Igreja em cada coração, filialmente configurado por e com seu Espírito. O seguidor descobre n’Ele o centro de sua vida e Ele o vai levando à Igreja, como os seus primeiros discípulos. Essa identificação progressiva com Ele desemboca na comunidade eclesial. Por isso, a Igreja é o lugar dos identificados com Cristo. Ser de Cristo, trabalhar para Cristo, é não só ser da Igreja, senão ser Igreja, sentir-se Igreja.
Rezar a sua pertença e seu compromisso na comunidade eclesial
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
”Eu vos digo isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo 15,11)
É profundamente sábia a afirmação acima, feita por Jesus no contexto da Última Ceia. E é profundamente significativo que Ele pronuncie estas palavras no contexto de seu “único mandamento”. Alegria e Amor são dois nomes da Realidade que somos. E não podem andar separados. Não se trata de nenhuma crença, nem tampouco de uma exigência moral. A Vida é Alegria e Amor.
O evangelho de hoje parece nos indicar que a alegria, junto com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos: nos centra e nos descentra, nos resitua, nos abre a dimensões de infinito, tirando-nos de mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo doentio.
Todos nós podemos fazer a experiência de que, quando nossa capacidade de amar se encontra liberada, a alegria flui espontaneamente. E quando nos sentimos conectados à alegria, o amor flui na mesma medida.
Por isso, caminhamos na direção adequada na medida em que permanecemos conscientemente conectados a ambas realidades. E não por uma exigência moral, mas porque descobrimos que se trata de nossa verdadeira identidade.
Como dom do Espírito, a alegria brota do interior da pessoa e se expande; nesse sentido, a alegria é mais que um estado de ânimo; é o estado da pessoa inteira. Por isso, a alegria não é algo que acontece na pessoa: é a pessoa mesma acontecendo. A alegria é gerúndio: é a pessoa alegrando-se.
A alegria se dá na mesma medida que a vitalidade; de fato, ela é seu primeiro sinal. Quando não há nada que “deprima” a vida da pessoa, automaticamente experimenta a alegria de viver. Só quando a vida se vê bloqueada – geralmente por falta de amor – a alegria de apaga, até o ponto de se crer que ela desapareceu.
Nossa alegria é Cristo ressuscitado. Ele é a causa de nossa alegria. Ele nos dá vida em plenitude.
A alegria é um elemento central da experiência cristã. Nisto consiste a verdadeira alegria: em sentir que um grande mistério, o mistério do amor de Deus, visita e plenifica nossa existência pessoal e comunitária.
“A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo sempre nasce e renasce a alegria” (Ev. Gaudium).
Jesus é um homem vital e alegre. Não é um moralista que busca algum tipo de comportamento específico, nem é um legalista que controla a vida das pessoas. Só lhe interessa que as pessoas possam experimentar a Alegria profunda.
Os Evangelhos nos revelam que Jesus vivia sereno, feliz ,alegre . As bem-aventuranças são o fiel reflexo de sua vida; seu íntimo trato com o Pai, sua paixão pelo Reino, suas relações pessoais, suas amizades, seu estilo de vida, sua vivência sob a ação do Espírito... são vividos na paz e na alegria.
Diante dos sinais e prodígios que realiza Jesus exulta de alegria no Espírito Santo; revela-nos que Deus é alegria em si mesmo e para nós e que a salvação definitiva é “entrar na alegria do seu Senhor” (Mt 25,21).
A alegria, sentimento pascal, é um sinal palpável de saúde mental-emocional-espiritual, tanto nas pessoas como nas comunidades. A ausência da alegria, ao mesmo tempo que revela algum mal-estar não resolvido, costuma traduzir-se em rigidez e dureza para com os outros. É como se, ao não poder estar eu alegre, não posso permitir que ninguém esteja.
Esta alegria não está livre da presença de dificuldades, problemas, conflitos... Tudo isto faz parte de nossa condição e da porção da existência. Mas a Alegria de que fala Jesus é aquela que abraça os “bons” e “maus” momentos, do mesmo modo que a calma profunda do oceano permanece estável, haja serenidade ou tormentas em sua superfície. Trata-se de uma alegria unificadora que experimentamos quando estamos em contato com nossa verdadeira identidade.
“Somos Alegria”, embora nos toque passar por momentos de obscuridade, dor, aflição...
Cristãos tristes? Talvez, pela presença da dor, da injustiça, da prepotência, do mal humor, dos sorrisos superficiais e irônicos..., por tantas coisas contrárias ao amor. Mas alegres no Senhor, seguros de seu triunfo, tranquilos por não ter que aparentar o que não somos, sem medo de fracassar, prontos para conversar como autênticos irmãos. Quê alegria saber-se salvos! Que sabor infinito poder ser simplesmente humanos!
Traços característicos desta Alegria Cristificada. Quando a experimentamos ela transforma a vida; ela é o estado de espírito onde seguramente Deus habita. É o melhor presente: produz contágio e atração; é sintoma evidente de uma vida sadia; é a que ativa a confiança e segurança a tudo o que está ao redor. Ela é opção para que os outros respirem, descansem. Requisito imprescindível é que alargue horizontes, que seja compartilhada com outros. Acompanha toda pessoa aberta que assume o futuro com ombros largos onde cabem outros. É o termômetro do tempo doado, de uma cruz assumida e que pode libertar a muitos.
É a linguagem da novidade, a oferta irrenunciável e, talvez, o desafio mais necessário: recordar ao mundo que Pai se diz sorrindo, que Filho se pronuncia rindo e que é o rastro indiscutível de um Espírito que só pode ser Santo.
A Igreja, por vocação e missão, deve ser alegre. Toda ela é profecia de alegria e esperança.
Na Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, do papa Francisco, aflora um sentimento vivo da alegria do evangelho que enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus, em contraste com o risco da tristeza individualista, busca de prazeres superficiais e o isolamento do mundo atual. O Evangelho é fonte de alegria e de vida, um contentamento que brota do encontro com o Cristo ressuscitado. É genial que a primeira experiência do Ressuscitado tenha ficado associada ao regozijo extremo, ao júbilo irrefreável e à animação incontrolável. Alegria com sabor de reencontro, satisfação por uma vitória (nada menos que frente à morte), glória bendita.
Esta alegria é a que impulsiona os cristãos a evangelizar, a anunciar a boa e sempre nova notícia da salvação e do amor de Cristo. Por isso, os cristãos não devem ter cara de funeral, nem de quaresma sem Páscoa, mas irradiar ao mundo a alegria de Cristo.
Páscoa é passar de uma Igreja envelhecida, triste, com rosto amargo a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito.
Texto bíblico: Jo 15,9-17
* A aceitação da própria condição humana lhe ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
* Reze de coração alegre uma oração nova, a “oração do sorriso”. Chore os seus pecados, mas ria do pecador que você é. A partir de então, o ruído do riso solto, inexplicável e explosivo, lhe avisará de que Ele está por perto. Abra-se à presença misteriosa do Ressuscitado que quebra a rigidez da vida e desata a alegria contida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“...e todo ramo que dá fruto, Ele o poda, para que dê mais fruto ainda” (Jo 15,2)
O tempo pascal é o tempo litúrgico que nos desperta para esta realidade: “a sabedoria em tempos de poda”. A “passagem pascal” é passagem pela poda para que a vida se manifeste em sua plenitude.
A sabedoria consiste, justamente, em saber ler e perceber a inspiração e novidade que Deus nos oferece em toda poda; o Pai é o agricultor e pode converter os golpes da poda em um futuro de vida de mais qualidade para tempos novos.
Tal como Jesus, todos nós hoje vivemos, de maneiras diferentes, tempos de poda, tanto na vida eclesial e social como na vida pessoal. Buscamos discernir por onde brota e cresce hoje a novidade de Deus nos ramos podados. Não existe nenhuma situação pessoal ou social onde Deus não esteja trabalhando e onde não possa ser encontrado para criar com Ele sua novidade na história.
A poda pode ser ocasião para nos perguntarmos como enfrentar de maneira criativa os grandes desafios do serviço ao Reino numa cultura que globaliza a sedução, a superficialidade e o consumismo; e, ao mesmo tempo, como deixar-nos conduzir pelo Espírito que trabalha escondido nesta mesma cultura como a seiva na videira. Sem poda, não há criatividade, nem futuro.
Sentimo-nos impulsionados pela seiva do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Conectar-se com a videira possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o equilíbrio nas relações; viver em profunda fusão com a videira desperta as energias criativas, todas as grandes motivações adormecidas, toda bondade aí presente.
Sem a seiva divina que nos atravessa nunca poderemos dar o verdadeiro fruto.
Nas podas o importante é permanecer unidos ao tronco de onde nos chega a vida, embora tudo parece morte. Nesse sentido, “permanecer” é a palavra chave no Evangelho de hoje: permanecer nos compromissos assumidos, nos passos que buscam abrir caminhos novos; permanecer nas lutas por defender os direitos dos mais fracos e pobres, na incansável denúncia daquilo que atenta contra toda vida por mais insignificante que pareça; permanecer na misericórdia entranhável, no serviço escondido...
Permanecer ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino e consentir que as podas nos libertem de todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos conduzem a uma vida expansiva...; permanecer conectados somente na pessoa de Jesus e no sonho do Reino como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte.
A imagem que João apresenta no Evangelho de hoje é deveras instigante. Quando se poda a videira, ela é despojada de todos os ramos, os sarmentos. Só fica um tronco áspero e escuro, sem uma mínima folha verde. Qualquer um que não entenda de podas dirá que a videira está absolutamente morta em meio ao inverno. Só ficam presos ao tronco alguns centímetros de ramos que deram fruto em outro tempo e que agora parecem cotocos sem futuro.
A “poda” faz parte essencial de todo o processo de crescimento. Poderíamos expressar assim: a poda significa morrer ao que não somos (falsas imagens de nós mesmos, vaidade, prestígio...) para que possa brotar, a partir de nossa interioridade, o que realmente somos. Trata-se da poda do ego (fechado, petrificado, sem vida...) para que possa destravar-se a Vida que carregamos por dentro e que é a nossa verdadeira identidade.
A seiva de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-la, abrir-nos a ela, fazer-nos transparentes a ela e vivê-la cada dia constituem a plenitude de nossa realização. É seiva divina, presente no eu mais profundo, que nos arranca de nosso fechamento e nos faz ir para além de nós mesmos; ela nos abre a uma Realidade maior que nos transcende; é ela que nos faz perceber que temos no coração um espaço que está feito à medida de Deus.
A presença da seiva é um reforço, um suporte, um energético do eu, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes em nós. É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do eu. Por isso, precisamos viver mais nas raízes de nosso ser; precisamos aprender a viver de uma maneira mais profunda e autêntica, a partir do núcleo mais íntimo de nosso ser, a partir de nosso ser essencial.
Partindo da imagem da videira, podemos extrair dela algumas conclusões (cf. Benjamin Buelta):
- Quando se poda um ramo, podem continuar saindo pelos cortes pequenas gotas de seiva como se a videira chorasse a perda. O importante é acolher a poda, fazer o luto, despedir-se do perdido, e não petrificar-se numa queixa obsessiva que gira sobre si mesma paralisando o futuro. Se não se vive o luto e não se assume a perda, as feridas se prolongam no tempo e deixam um rastro de dor que nunca cicatriza.
- Durante semanas, na videira podada não acontece nada por fora, mas por dentro, no escondimento da interioridade, célula a célula, ela vai sendo novamente gestada através de processos pequenos e invisíveis. O ritmo é lento e não responde às impaciências do agricultor nem a hostilidade do clima que abate sobre ela. Todo o trabalho é interior e silencioso.
- Quando chega a primavera, a casca ressecada e endurecida da videira começa a abrir-se a partir de dentro pela força da vida que cresceu em seu interior. O rigor do frio vai se afastando de seu entorno. Aparecem os brotos, os ramos, as folhas e cachos de uvas.
É tempo de surpresa, uma vitalidade assombrosa em sua pequenez e vulnerabilidade, que já não é possível esconder e deter debaixo da casca. As uvas maduras deixam transparecer o dinamismo da seiva vital.
Texto bíblico: Jo 15,1-8
Na oração: rezar as “podas” na vida pessoal, familiar, profissional, eclesial... como oportunidade para o surgimento do novo: nova vida, nova visão, nova sensibilidade...
Somos chamados a assumir nossos tempos atuais de poda com “fidelidade criativa”, pessoal e institucional, nas “fronteiras existenciais” da realidade onde nos encontramos, ao lado do povo de Deus, podado mais cruelmente que nós, que caminha pela história mutilado e ressuscitado ao estilo de Jesus.
Somos desafiados a nos deixar podar de tudo o que amarra e impede o passo, os pesos mortos que nos paralisam, o ranço que faz perder o sabor e o sentido em nossa missão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI
“Eu dou minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,15)
Embora o Evangelho de hoje já não fale mais de Aparições do Ressuscitado, na realidade não nos afastamos do tema pascal, pois Jesus afirma expressamente: “O bom Pastor dá a sua vida por suas ovelhas”.
A Vida é o verdadeiro tema da Páscoa. E “a vida sempre tem razão” (Rilke). Para o evangelista João, a “vida” é, antes de tudo, totalidade, vastidão, amplidão ilimitada e que se expressa em infinidades de formas, todas elas habitadas pela mesma e única Vida. Falamos da vida presente, a vida atual, uma vida carregada de tal plenitude e de tal densidade que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, e que nem mesmo a morte poderá com ela.
Mais ainda, o Deus que Jesus nos revela O encontramos na vida, ou seja, Deus se fundiu com a vida, essa vida que nos entra pelos sentidos. Encontramos Deus, antes de tudo, pelo que vemos e sentimos, pelo que apalpamos com nossas próprias mãos, por tudo aquilo que, ao senti-Lo, se faz vida em nós.
Deus entra pelos sentidos.
Quando alguém se deixa invadir pelo humano, quando uma pessoa se humaniza de verdade e é sensível à dor do mundo, é sinal que Deus entrou pelos seus sentidos. E então justamente é quando, de verdade, se encontra com o “Deus desconcertante”, o Deus que Jesus de Nazaré nos revelou. Por isso, na vida humana, é tão determinante a sensibilidade, o afeto, a ternura, a bondade, a compaixão, o cuidado, tudo o que gera amor, carinho e doação de uns para com outros.
Para fazer-se presente neste mundo, Deus não veio impor-nos uma nova doutrina e uma nova lei, mas apresentou-se a nós na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os pobres e que “morreu de tanto viver”. Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; em outras palavras, está em viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus de verdade é que ela se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, que sente o que Jesus sentiu, que ama o que Jesus amou. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.
Nas comunidades cristãs precisamos viver uma nova experiência de Jesus, reavivando nossa relação com Ele, colocando-o no centro de nossa vida. Assim, a Vida de Jesus vai se fazendo vida em nós. Esta relação intensa em fazer caminho com Ele se expande na vivência de novas relações com os outros e com a realidade que nos cerca.
Por isso, quem se percebe assim, só pode viver o cuidado para com tudo e com todas as expressões de vida. Um cuidado que Jesus expressa na imagem do “pastor”, imagem que não expressa sua densidade e seu sentido para a maioria de nossos contemporâneos, mas que continha uma extraordinária riqueza no contexto em que Jesus a utilizava. Certamente, não somos “ovelhas” em sentido literal, mas pessoas. Jesus, bom pastor, abre a porta da Vida e nos permite sair para o Espaço da Liberdade e da Páscoa.
O decisivo é “escutar a voz do Pastor” em toda sua limpidez e originalidade. Ele é a voz da Vida. Não confundi-la e nem nos deixar distrair ou enganar por outras vozes estranhas, que, mesmo escutadas no interior da Igreja, não comunicam sua Boa notícia.
Todos nós “conhecemos a voz” da Vida. Por isso, cada vez que vemos, ouvimos ou lemos algo carregado de vida, produz-se uma ressonância em nosso interior. É uma voz que “ressoa” em nós, embora tenha estado apagada durante muito tempo.
Em nosso contexto há muitas vozes e de todo o tipo. São tantas que corremos o risco de ficar confusos. Algumas delas podem apresentar-se especialmente atrativas porque parecem encaixar perfeitamente com o que são as necessidades do ego. Há vozes que prometem, vozes que compensam, vozes que entretém, vozes que distraem, vozes que seduzem, vozes que inflam, vozes que assustam, vozes que ameaçam, vozes que nos dão a razão, vozes que nos rejeitam... Tantas vozes... e não é estranho que, em algum momento, as sigamos. No entanto, se não são a genuína voz da Vida, não nos alimentarão; seu encanto se revelará passageiro e, com frequência, frustrante.
Jesus fala a partir da Vida, ou melhor ainda, como a Vida. Só pode falar a partir da Vida quem se reconhece nela, que descobriu que a Vida é sua verdadeira identidade. Compreende-se, assim, que quem disse “eu sou o bom pastor”, disse também “Eu sou a vida”. Nesse sentido, a vivência pascal está focada na missão de favorecer a vida. “Dar vida” não é algo que o ego possa fazer. A Vida dá-se a si mesma; ela é expansiva, aberta... Necessitamos unicamente reconhecer-nos nela, de um modo cada vez mais consciente e, portanto, destravada, para que flua e se expresse através de nós, em gestos concretos.
Essa é a experiência pascal da vida: experiência da intimidade, da presença, da proximidade, da comunhão, da aliança, da glória de Deus, em nossa própria vida. Vivemos embriagados de vida, sentimo-nos como um peixe no oceano de Deus, dizendo um profundo “sim” às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Como ressuscitados, sentimos e sabemos: se Deus não pode ser encontrado no próprio coração e no coração da vida, não será encontrado em lugar nenhum.
Seguir o Bom Pastor e ouvir a sua voz é deixar-se “configurar” por Ele, é movimento pelo qual cada um vai sendo modelado à imagem d’Ele. O seguidor do Bom Pastor sente-se cativado, envolvido, amado, entusiasmado, sintonizado, habitado por Ele de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência transbordam Deus.
O olhar transparente e livre do Bom Pastor ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual com amor, com entusiasmo e criatividade.
O encontro com o Bom Pastor ativa em nós o “pastor escondido” para que possamos ser a voz de vida que faz a diferença e indique a todos a porta de liberdade ; todos nós temos de ser pastores que os ajudem a encontrar o caminho e o sentido para suas existências..
Queremos ser “bons pastores” que se ajudem mutuamente a sair do aprisco onde estamos fechados (moralismo, legalismo, ritualismo, religião sem vida...), para assim busca e celebrar a liberdade, com o Bom Pastor e com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Texto bíblico: Jo 10,11-18
Na oração: revisar a própria vida à luz da Vida Maior do Ressuscitado. Perceber o dom da vida na sua origem, seguindo a voz do bom Pastor, para prolongar seus gestos e o seu cuidado em favor da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
“Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!”
Lucas descreve o encontro do Ressuscitado com seus discípulos como uma experiência fundante. O desejo de Jesus é claro. Sua missão não terminou na Cruz. Ressuscitado por Deus depois da execução, entra em contato com os seus para pôr em marcha um movimento de “testemunhas” capazes de contagiar a todos os povos com sua Boa Notícia: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”.
Não é fácil converter em testemunhas aqueles homens afundados no desconcerto e no medo. Ao longo de toda a cena do Evangelho de hoje, os discípulos permanecem calados, em silêncio total. O narrador só descreve seu mundo interior: estão cheios de medo; só sentem perturbação e incredulidade; tudo aquilo lhes parece muito bonito para ser verdade.
É Jesus quem vai regenerar a fé em seus corações. Apesar de vê-los cheios de medo e de dúvidas, Jesus confia em seus discípulos. O mais importante é que não se sintam sozinhos. Hão de senti-Lo cheio de vida no meio deles. Estas são as primeiras palavras que escutam do Ressuscitado: “A paz esteja convosco!” “...por quê tendes dúvidas em vosso coração?” Ele mesmo lhes enviará o Espírito que os sustentará. Por isso lhes recomenda que prolonguem sua presença no mundo.
Eles não ensinarão doutrinas sublimes, não vão pregar grandes teorias sobre Cristo, mas irradiar seu Espírito, disponibilizando suas mãos e pés a serviço do Reino.
“Vede minhas mãos e meus pés”: para despertar e ativar a fé dos seus discípulos, Jesus não lhes pede que olhem Seu rosto, mas suas mãos e pés. Quer que vejam suas feridas de crucificado, que tenham sempre diante de seus olhos seu amor serviço entregue até a morte. Não é um fantasma: “Sou eu mesmo!”, o mesmo que conheceram e amaram pelos caminhos da Galileia. Jesus é o mesmo, é o crucificado.
Quando o Senhor Ressuscitado se apresentou diante de seus discípulos, não tinha poder nem prestígio; não veio sentado em um trono de ouro nem desembainhou a espada para derrotar seus algozes. Simplesmente mostrou as feridas da crucifixão, as marcas da doação total. As cicatrizes que ele mostrou em seu corpo depois da ressurreição, nunca mais desapareceram.
Olhando as mãos de Jesus, os discípulos faziam “memória” das mãos que curavam os doentes, cuidavam dos frágeis, elevavam os caídos, abençoavam e acariciavam as crianças, acolhiam os pecadores e pobres...
Olhando os pés de Jesus, os discípulos faziam “memória” dos pés peregrinos, que rompiam distâncias, que faziam a travessia em direção à “margem”, que O aproximavam dos excluídos, que ultrapassavam fronteiras religiosas e culturais... Com suas mãos e pés Jesus tecia seu dizer e seu fazer.
Contemplando as mãos e pés de Jesus, os discípulos tomam consciência que eles estavam com as mãos atrofiadas e os pés paralisados pelo medo e pela dúvida. As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência do amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
A experiência do encontro com o Ressuscitado destrava as mãos e pés dos discípulos, arrancando-os do lugar fechado e lançando-os para os outros. Suas mãos e pés serão o prolongamento das mãos e pés de Jesus Ressuscitado. Mãos e pés marcados com as feridas da doação, da entrega. Mãos e pés carregados de vida: pés que facilitam fazer-se presentes juntos às vidas feridas, excluídas...; mãos que se fazem vida ao sustentar a vida fragilizada.
O ser humano se define pelas mãos e pés, e não pelo rosto; não adianta ter um rosto se as mãos e os pés estão petrificados. As mãos e os pés expressam aquilo que vem do coração: se o coração está cheio de medo, dúvidas, perturbações, ressentimentos, mágoas... as mãos e os pés revelam-se atrofiados; se o coração está cheio de compaixão, de acolhida, de espírito solidário... as mãos e os pés se expressarão como serviço, colocando a pessoa em movimento em direção aos outros.
É o coração transformado que dirige as mãos santificadas, delicadas, que move os pés solidários. É o coração agradecido que transforma as mãos e pés em instrumentos de graça. Por isso, Ressurreição é movimento e ação: é movimento, porque é saída de si; é ação porque é construção, compromisso em favor da vida, serviço expansivo e criativo.
Para encontrar-nos com o Ressuscitado hoje, temos de percorrer o relato dos Evangelhos: redescobrir essas mãos que abençoavam os enfermos e acariciavam as crianças, esses pés cansados de caminhar ao encontro dos mais esquecidos; redescobrir suas feridas e sua paixão. Esse é Jesus ressuscitado pelo Pai e que agora vive.
A verdadeira identidade do seguidor de Jesus está nas mãos e pés que se fazem vida, que se humanizam e humanizam os outros. Mãos e pés que destravam as mãos e pés petrificados e atrofiados dos outros. Somos chamados a ser testemunhas das mãos e pés do Ressuscitado.
As mãos e os pés são os membros que nos alargam, nos ampliam para o encontro; eles nos tiram de nossa estreiteza de atitudes, de ideias , nos arrancam de nossos preconceitos e de nossos medos...... Mãos e pés ressuscitados que nos fazem sair de nossos lugares fechados , e nos movem em direção a largos horizontes. Por isso são membros que mais nos “humanizam”, ou seja, nos fazem “descer” ao “húmus” de nossa existência, ao chão da vida, abrindo-nos aos outros.
Nossas mãos e pés... sacramento de Deus. Fazem presente as mãos e os pés do Ressuscitado. Seremos a Sua mão amiga e carinhosa, forte e libertadora, criadora de vida, que protege e cuida a vida.
Seremos os Seus pés desgastados para pisar os solos sagrados da humanidade.
Texto bíblico: Lc 24,35-48
Na oração: Fazer a experiência da Ressurreição é ter mãos e pés do Ressuscitado: membros a favor da vida.
- em direção de quem me levam os pés?
- em favor de quem uso as minhas mãos? A serviço de quem?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana
”Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo 20,27)
Estamos vivendo uma cultura profundamente desconectada do sensitivo. Os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Extirpamos nosso olfato pelo temor a um mau odor. Desprezamos com indiferença os odores de nosso entorno, das pessoas, dos objetos... se não vem com a garantia de um perfume etiquetado. Buscamos espaços descontaminados, assépticos..., pois o odor da pobreza, da exclusão, da fome... nos inquieta e nos causa medo. No entanto, nossa mente está cheia de recordações olfativas...
Em estreita relação com o olfato, nossa respiração, fonte vital de energia, se faz cada vez mais doentia. Praticar uma respiração profunda e tranquila está se transformando em um luxo.
O “viver com sabor” transformou-se numa loteria onde poucos tem possibilidade de acessá-la. Ficamos cada vez mais impossibilitados de “gostar” a fruta pelo sabor, para passar à alimentação ingerida mais pelos olhos. São os invólucros de nossos alimentos que nos alimentam. O sabor não conta para os experts em manipulação genética. O saborear as coisas pertence ao passado. A arqueologia não tardará em incluir o elemento gustativo em suas anotações de campo.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparelhos tecnológicos nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais. Vemo-nos assaltados pela cidade de cimento e asfalto, nossos lugares de trabalho se reduzem a “bolhas cúbicas” e nossos olhos se vêem obrigados a ocultar-se, com o pretexto de proteção, sob óculos de sol.
No tempo de férias, no afã de fugir da cidade para espaços de beleza natural ou artística, nossa máxima preocupação é registrar tudo em câmaras fotográficas. Em nossas agências de viagens não consta um programa para deter-nos numa atitude contemplativa.
Fazemos constantemente “zappin” num afã desesperado de alcançar experiências pontuais, registradas mas não sentidas e, menos ainda, vividas e compartilhadas.
O tato supõe proximidade, imediatez... Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. No entanto, nosso mundo está cheio de alambrados, muros, valas e fronteiras; usamos de artimanhas para “ver de longe”. Com isso nos defendemos dos que são de outra raça, cor, religião, sexo, classe social... e nos fechamos no preconceito e na rigidez dos relacionamentos.
Precisamos de um autêntico transplante de pele.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia.
As contemplações dos relatos das Aparições se apresentam como “uma aprendizagem, um aprofundamento e um discernimento deste sentir de Jesus” (Melloni). Na realidade, trata-se de querer ter sempre – na expressão de S. Paulo – os “mesmos sentimentos de Cristo Jesus”, a quem o cristão deseja seguir mais de perto.
Através dos nossos sentidos, o mundo de Jesus entra imaginativamente em nossa intimidade, e por meio deles respondemos também à realidade de um modo novo. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
Segundo o relato do evangelho de hoje, para fazer o encontro com o Ressuscitado não podemos colocar entre parênteses o uso de nossos sentidos; pelo contrário, trata-se de introduzir “pneuma”, sopro em cada um deles, para que se tornem órgãos contemplativos e facilitadores da experiência de Deus.
Quando falamos de “sentidos espirituais” estamos fazendo referência aos sentidos espiritualizados, habitados, animados pelo Espírito de Deus. Os sentidos não são destruídos, mas transfigurados; eles se tornam “sentidos divinos”, pois tornam o ser humano cada vez mais “capaz de Deus”.
“Ressuscitar os sentidos” significa harmonizá-los com a presença do Espírito, torná-los silenciosos, despojados diante d’Aquele que é.
Quando falamos em “cristificar a sensibilidade” , apontamos diretamente a um “plus de humanidade” que “sai de dentro” e permite que os cinco sentidos não se limitem somente a ver, ouvir, gostar e tocar – que podem ser respostas só mecânicas - , senão que aprendem, além disso, a “olhar, escutar, saborear, acariciar e beijar”.
Nascemos com olhos, mas não com o olhar; temos, sim, ouvidos, mas não sabemos escutar; podemos cheirar e gostar as coisas, mas nem sempre somos capazes de desfrutar e saborear a vida. Tocamos e abraçamos os outros, mas quantas vezes nossos “toques” não chegam a ser “carícia”.
Uma opção de seguimento evangélico que não conte com a “ressurreição dos sentidos” está destinada ao fracasso, pois, sem uma identificação com a sensibilidade de Jesus nossos sentidos passeiam vazios e sem bússola pelo mundo, como que afundados na noite.
Inversamente, uma sensibilidade evangelizada é uma graça que permite um seguimento constante. Como conseqüência, a conversão evangélica tem que chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva.
“...mostrou-lhes as mãos e o lado”: suas mãos chagadas e seu lado aberto – credenciais de sua entrega e expressão de seu amor radical. Chagas para serem contempladas, sentidas, tocadas..., lembrando que não amaremos de verdade enquanto não mostrarmos nossas chagas no serviço aos outros.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores do Ressuscitado.
“O pedido de Tomé de querer colocar os dedos nas chagas das mãos e dos pés de Jesus e suas mãos na chaga do seu lado, é uma afirmação muito importante para a nossa fé: o Jesus ressuscitado ainda traz as marcas e as chagas da sua paixão. A ressurreição de Jesus não o fez retroagir ao passado, como se sua morte nunca tivesse acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e ainda traz as marcas da crucificação. A ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o ser humano. As chagas de Jesus dizem que o ressusci-tado carrega em si todas as chagas de todos os humilhados do mundo. Elas dizem também que nenhu-ma chaga, por mais injusta e humilhante que seja, pode nos impedir de nos tornarmos pessoas de cabeça erguida no coração do mundo. De agora em diante, nenhuma das nossas chagas pode nos impedir de ser livres: Jesus ressuscitado é, em primeiro lugar, aquele que carrega as chagas da nossa condição humana. De maneira clara, não esperemos nos livrar dos nossos males para vivermos de cabeça erguida. Jesus ressuscitou e é hoje que, mesmo com as nossas chagas, podemos nascer para a liberdade". (Jean Debruynne)
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Após sua ressurreição, Jesus só permite que se toquem suas feridas. A questão é esta: onde estão hoje as feridas de Jesus? Ou dito de outra maneira: onde Jesus põe hoje seu coração? Jesus põe seu coração em suas feridas que permanecem abertas neste mundo: os pobres, os doentes, os excluídos, os violentados... É ali onde devemos pôr a mão se queremos encontrar o coração de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Duas frases mais repetidas pela Igreja neste domingo são: “Cristo Ressuscitou” e “Deus ressuscitou a Jesus”. Elas condensam as afirmações mais frequentes do NT sobre este tema.
No entanto, o evangelho indicado para este domingo não tem como protagonista nem a Deus, nem a Cristo, nem confessa sua ressurreição. Os três protagonistas que menciona são puramente humanos: Maria Madalena, Simão Pedro e o discípulo amado. Nem sequer há um anjo. O relato de João se centra nas atitudes muitos diferentes destes três personagens.
Maria Madalena reage de forma precipitada: ao ver que a pedra tinha sido retirada da entrada do túmulo logo conclui que alguém tinha levado o corpo de Jesus; a ressurreição nem sequer passa pela sua cabeça. Simão Pedro atua como um inspetor de polícia diligente: corre ao sepulcro e não se limita, como Maria, a ver a pedra removida; entra, observa as faixas de linho no chão e o sudário enrolado, num lugar à parte. Algo muito estranho. Mas não tira nenhuma conclusão.
O discípulo amado também corre, inclusive mais que Simão Pedro; mas quando chega ao sepulcro, espera pacientemente. E vê a mesma coisa que Pedro, mas conclui que Jesus ressuscitou. O evangelho de João oferece hoje uma mensagem esplêndida: diante da Ressurreição de Jesus podemos pensar que é uma fraude (Maria), não saber o quê pensar (Pedro) ou dar o salto misterioso da fé (discípulo amado).
Há, neste texto, um progressivo caminho de fé. Começa com Maria Madalena: ela busca, sai de seu esconderijo vai ao encontro de um corpo. Ainda está presa à morte e ao passado, mas é levada pela coragem a buscar um sentido para sua dor e tristeza. Trata-se de um primeiro passo, embora incipiente: colocar-se em movimento, sair, romper com seu lugar estreito...
A atitude de Pedro é um pouco mais profunda: depara-se com os sinais de Ressurreição e busca entender o que tinha acontecido. Certamente ficara confuso diante do sudário dobrado, colocado à parte: “como é possível, alguém, no momento glorioso de sua vida, encontrar tempo para dobrar um sudário!”.
A razão ainda não é suficiente para mergulhar no mistério da fé.
Somente João é capaz de dar o salto da fé: mergulha no mistério. Deixa-se afetar pelos sinais, não buscando razões que expliquem o que tinha acontecido. Assume a atitude de acolhida do mistério. Seu olhar é um olhar contemplativo: vai além dos sinais.
Os três viram os mesmos sinais; João, com um olhar contemplativo, vai além das aparências; é preciso ter os olhos destravados para “ler” os sinais da Ressurreição. João fica assombrado diante de tantos sinais; ele “entra” no túmulo de maneira diferente; não faz de maneira apressada, como Pedro. Ele pára, dá um tempo, tem paciência... Tem uma atitude de acolhida e não de investigação.
Os relatos dos próximos dias de Páscoa nos ajudarão a alcançar a terceira atitude.
Qual atitude prevalece em mim?
“No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada...”
No relato do evangelho de hoje, a ressurreição é apresentada como uma “nova Criação” levada a termo pela intervenção providente de Deus. Não nos damos conta de que é o primeiro dia da semana, e que tudo mudou, que tudo é novo; é o primeiro dia da nova criação, do tempo novo, da vida nova, do ser humano novo.
A Páscoa deixa tudo igual enquanto o coração humano não faz a experiência de que Deus está vivo.
Tudo é Vida, que pode expressar-se como vibração, energia... A Vida não é algo que temos, mas o que somos; o que temos, podemos perder; o que somos, permanece. Desse modo, nos experimentamos conectados à Fonte de tudo o que é e à Vida que somos. Nisto consiste a sabedoria e a libertação: na conexão consciente ao Mistério da Vida, a Deus, sem nenhum tipo de separação, nem distância, sem costuras.
“Agora” é a Vida, “agora” é a Ressurreição, embora tenhamos dificuldade para descobri-la, como os três personagens da cena de hoje. O ego corre, como os discípulos, pensando que no futuro se sentirá melhor. Com frequência, corre tão depressa que não repara em nenhuma outra coisa que não seja sua própria expectativa. Em algumas ocasiões, parece receber a graça de poder ver as “faixas de linho” e de ver através delas. Na realidade, para quem está atento, tudo são “faixas”, sinais, aberturas, ranhuras, gretas... por onde a Vida se infiltra. Tudo pode ser oportunidade para nos despertar para quem realmente somos e reconhecer-nos conectados à Vida. Isso é viver ressuscitados.
Mas, para poder ver o significado que as “faixas” contém, requer-se atenção. Uma atenção que nos faz estar no momento presente e calar o falatório mental. Nesse Silêncio, poderá desvelar-se diante de nossos olhos a Presença que nos chama pelo nome.
Maria Madalena madruga para encontrar-se com a morte na sepultura; e Deus madruga mais ainda para recuperar a vida. Madalena madruga para a morte e Deus madruga para a vida. Enquanto estamos a caminho da morte, Deus está a caminho da vida; enquanto continuamos presos no passado, Deus já está no presente novo; nós visitamos sepulcros e Deus visita corações que vivem e tem garra de viver; nós nos empenhamos em encher os sepulcros, e Deus se encarrega de esvaziá-los.
Os sepulcros não são lugares de encontro com Ele; a Ele o encontramos na comunidade reunida no amor. A verdadeira Páscoa não acontece ao lado do sepulcro; ela acontece quando os corações começam a pulsar de novo com um novo ritmo de vida e de esperança.
É Pascoa não só quando Deus ressuscita Jesus de entre os mortos mas quando Deus se faz acontecimento de vida em nós. Deus celebra a Páscoa não junto à pedra do sepulcro mas na vida das pessoas.
É de madrugada, e nós ainda continuamos com os olhos vendados do passado. Mas Deus já faz resplan-decer a luz da madrugada, esperando iluminar as mentes e despertar os corações para acolher a Vida.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: A Luz da Ressurreição desperta em nós a nostalgia de outra luz, de outra beleza...
A tensão de luz e sombra também está viva em nosso interior, no espaço interior de cada um de nós. Somos filhos da luz e do dia, pertencemos ao dia e à luz. Mas ninguém pode apagar esta luz nova que busca expressar-se no cotidiano de nossa vida.
Em sua tensão de luz e obscuridade... contemple o Ressuscitado.
Uma Santa e Inspirada Páscoa.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eles tomaram o corpo de Jesus e o envolveram em panos de linho com aromas...
e o depositaram no sepulcro” (Jo 19,40)
Podemos começar este dia recordando outra experiência muito humana: imaginemos o regresso do enterro de uma pessoa querida, depois de uma longa temporada de lutas e temores, com um tratamento pesado, com momentos de otimismo, momentos de frustração, etc..., até o instante último em que dizemos em nosso interior: “descansou”. Quem não regressou alguma vez do cemitério com esta sensação?
Partindo desta experiência, contemplemos um momento como descem do Gólgota Maria, o discípulo amado e algumas mulheres que estavam junto à Cruz, com a horrível sensação de que tudo acabara. Nós nos identificamos com aquele pequeno grupo que volta triste para casa; nossa vida cristã se situa neste tempo intermédio entre a morte de Jesus e sua posterior ressurreição. Por isso, o teólogo Uns von Balthasar nos diz que a vida cristã precisa de uma boa teologia do Sábado Santo: uma reflexão profunda sobre essa situação que nos constitui: o Senhor se foi e ainda não temos o Ressuscitado...
É preciso aceitar essa ausência, depois de examiná-la em muitos momentos de nossa vida. Mas, ao mesmo tempo é preciso reconstruir a esperança porque sabemos que a Páscoa de amanhã ilumina a Cruz, embora não a elimina. E essa esperança é dupla: é a esperança de uma vitória sobre o mal e a injustiça; é também uma vitória sobre a morte.
Sábado Santo, portanto, é tempo não só de espera mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a dar fruto, é tempo de um inverno que tornará possível as flores da primavera, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma Igreja nazarena. O Sábado Santo é ao mesmo tempo sepulcro e mãe, como diziam os Pais da Igreja, ao falar do batismo.
É o sábado para acompanhar Maria meditando em seu coração à espera da Páscoa. É o sábado no qual a Mãe não espera junto ao sepulcro mas em seu coração. Sábado da ausência; é um dia vazio, sentimos que falta algo no mundo; a liturgia guarda silêncio; as igrejas estão fechadas...
Sábado do silêncio; cala a palavra mas fala o coração; cala a palavra mas o coração sente a voz daquele que já está no silêncio do sepulcro. É o silêncio do coração que espera o momento, que escuta o mistério por dentro; é o silêncio do coração que medita e guarda dentro o mistério, que espera a nova palavra pascal. É o sábado das esperanças que começam a verdejar.
Este espaço de silêncio não é de morte senão de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida cristã que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear ainda que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo. O Espírito também não abandona os seguidores do Crucificado, dá-lhes vida, porque é o mesmo Espírito que ressuscitou Jesus no meio dos mortos e que se derramou em Pentecostes sobre a Igreja nascente e sobre toda a humanidade.
Abre-se aqui um horizonte de esperança, de justiça, de paz, de cuidado da criação. Por isso se diz com forte convicção que “outro mundo é possível”.
Nós cristãos temos muito que dizer e compartilhar com nossos contemporâneos a respeito da esperança. O cristianismo é esperança, olhar e orientar-se para frente; e é também, por isso mesmo, abertura e transformação do presente. Nossa fé no Deus da história se transforma em esperança: “a fé que mais amo é a esperança” (Charles Péguy). Esta é a herança que temos recebido: o Evangelho da esperança.
A esperança é uma virtude teologal, ou seja, é como uma “patía” (paixão) que se apodera de nós e nos determina. É uma “teopatia” (paixão por Deus) que nos faz participar do amor fiel e dinâmico do Deus da Aliança.
Esta teopatia nos dá a certeza de que Deus cumprirá todas as suas promessas e que o Reino de Deus se realizará. O causante desta teopatia da esperança e o Espírito Santo, derramado em nossos corações, que geme pela manifestação da Glória de Deus, em nós e na criação inteira.
Esta teopatia, dom que é preciso acolher e cultivar, modifica nossas atitudes vitais, eleva nossa tensão, ativa todo nosso ser, elimina nossos medos e nos envolve no compromisso; ela nos faz criativos, inovadores, impacientes antecipadores daquilo que esperamos.
Ao mesmo tempo que é paixão criadora, a teopatia da esperança é paixão-sofrimento. A esperança inclui também uma tremenda dose de sofrimento: foi assim que Jesus experimentou a esperança na sexta-feira santa. É a esperança que grita a Deus e que se atreve a exclamar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”. Na celebração da Sexta-feira Santa a Igreja se atreve a cantar: “Ave Crux, spes única!”.
O Sábado Santo, ao fazer memória de Jesus no sepulcro, torna-se “memória da esperança”. Por ela, tantos outros a atravessaram anteriormente; nela, experimentaram a distância de Deus e seu maior sofrimento foi, precisamente, essa distancia.
Esta é a esperança que brota da dor do Sábado; esta é a esperança que o Espírito concede àquele que é pobre, que chora, que é perseguido por causa da justiça, que tem limpo o coração, que responde com ternura à violência. É a esperança das bem-aventuranças de Jesus. É a esperança daqueles que sofrem com os outros e pelos outros.
A virtude teologal da esperança tem, portanto, uma face luminosa e outra face escura: é paixão criadora e é paixão-sofrimento. É tensão criativa para o futuro e resistência dolorida diante das contradições do presente. Na vida cristã também experimentamos as duas faces da esperança: sua noite e sua luz. A esperança – como luz e noite – rejuvenesce a vida cristã. A esperança suscita perguntas, novas perspectivas, lança para frente, abre futuro.
A teopatia da esperança nos leva ao Sábado Santo. O sábado santo foi o dia do silêncio de Deus Pai e o dia da descida de Jesus, morto e sepultado, “aos infernos”. Foi o dia do Espírito Santo que não tinha “onde repousar” e fica como sem alento.
Normalmente o Sábado Santo não merece maior reflexão de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma intensa experiência.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança.
Texto bíblico: Jo 19,38-42
Na oração: depois de um dia de luto, de silêncio e ausência... os sinos voltarão a soar, o glória voltará a ser cantado, o aleluia ressoará pelos espaços. Em meio às sombras da noite, o Círio Pascal começará a iluminar. E cada um de nós poderá acender em sua chama a vela de nossas vidas.
Com voz forte, gritaremos: “Ressuscitou!” e tudo ressuscitará em nós. É a alegria pascal. Novamente a primavera se fará presente em nossos corações ; o que parecia ausência, agora se fará presença; o que parecia fracasso, agora se fará esperança; o que parecia morte, agora se fará vida; o que parecia ser o final de tudo, agora tudo se fará começo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar, nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada.
A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o autoengano toma conta de nós. A angústia sempre acompanhará nossa confrontação com a morte.
Na perspectiva de fé, nossa cultura prescinde do Getsêmani na nossa vida cotidiana; no entanto, este é o lugar de depuração radical, o lugar no qual devemos situar nossos fracassos e nossas solidões; é no Gólgota que devemos pôr nossas enfermidades e nossas mortes. Nossa cultura nos impede pôr a vida nesses lugares porque nega e não quer ver a fragilidade da condição humana, fonte de dor e sofrimento.
Em Getsêmani, quando todos o abandonaram e fugiram, o Compassivo permanece em radical solidão, ninguém se interessa mais por Ele; esta solidão vital lhe provoca uma angústia de morte, o sacode e o aflige, levando-o à prostração. No Gólgota, Jesus experimenta, junto ao abandono, o fracasso, tudo se dilui, o mundo lhe cai em cima.
Adentrar-nos em nosso próprio Getsêmani e Gólgota é abordar nossa radical solidão. Mesmo que produza vertigem e nos enche de angústia, é preciso olhar o túnel de frente e entrar nele. Então, invocamos Àquele que nos pode sustentar e saímos do túnel com uma solidão habitada, com o sentimento de uma presença, com a vida enraizada no único que é fonte de vida e liberdade. Começamos a ver tudo com olhos novos, o sofrimento e a angústia transformam-se em Vida.
O teólogo e mártir Bonheoeffer afirma: “Em Jesus crucificado se rompem todas as ideias sobre Deus que as pessoas construíram através da história. Nele aparece a debilidade e o sofrimento de Deus. Só um Deus que sofre pode ajudar-nos”. É a partir da Cruz onde Deus nos diz que o mais divino que há em nós é a luta solidária por fazer um mundo mais justo e mais humano. Nossa missão será a de fazer descer da Cruz os crucificados da história, e unir-nos, indignados, aos milhões de pessoas que se manifestam a favor de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Contemplar a paixão e morte de Jesus em toda sua crueza, nos leva a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia.
Junto à Cruz somos levados a crer que aliviar o sofrimento neste mundo não é uma questão puramente analgésica, quando, na realidade, o que se trata é da implicação compassiva nesse território tão humano e tão divino no qual nossas razões, doutrinas e morais fracassam: a “loucura” de um Deus Comunidade implicado no sofrimento de suas criaturas.
A crucifixão não foi um ato isolado, mas o cume de uma vida comprometida. Não agrada ao Pai a Cruz pelo que tem de sofrimento, mas porque supõe uma vida que se entrega até esse extremo. A Cruz não é um adorno, nem um objeto de culto, nem um amuleto. É um sinal; e, como todo sinal, indica algo: nos indica até onde pode chegar a brutalidade humana, quando os interesses, as ideias políticas ou religiosas, as leis... são colocados acima do ser humano.
E indica algo mais: até onde chega o amor e a generosidade de Jesus, que não duvidou em sua entrega; até onde chega o amor do Pai que em Jesus se fez visível.
Por isso, aquele que pensa que, diante da Cruz, temos de oferecer atos dolorosos a Deus não sabe “ler” a Cruz. Aquele que pensa que carregar a cruz de cada dia é aguentar a injustiça, não sabe “ler” a cruz. Aquele que converte a Cruz em uma condecoração para premiar um ato de violência ou uma joia que pode ser presenteada à pessoa amada, não sabe “ler” a cruz. Aquele que coloca a Cruz nas paredes das repartições públicas (delegacias, hospitais, tribunais, assembleias legislativas, câmara e senado federal), onde as sentenças são barganhadas e compradas, onde a corrupção é a moeda mais forte, onde os pobres morrem sem atendimento... não sabe “ler” a Cruz.
Sabemos “ler” este sinal, quando escutamos Jesus que nos diz: “Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos”. Não podemos tirar nenhum espinho da coroa de Jesus, nem diminuir as chicotadas nas suas costas, nem a humilhação e a dor de sua tortura. O que podemos hoje fazer é tomar posição solidária ao lado dos excluídos, humilhados e desgraçados de nosso mundo, como Ele fez; nossa primeira responsabilidade é aliviar o sofrimento do outro, lutar contra o sofrimento provocado pela injustiça sobre os mais pobres e excluídos.
O mistério da Cruz nos des-vela (tira o véu) e re-vela que toda entrega generosa, que a prepotência esmaga com a morte, não acaba em morte, mas em vida, e em vida que não termina. Podemos, então, fazer dois tipos de Via Sacra: uma, fixando-nos em Jesus, porque assim nos aproximamos da fonte do Evangelho; outra, fixando-nos nas brutalidades, violências, sofrimentos de nosso povo para ativar em nós uma generosidade ainda tímida. E, então, é quando começaremos a compreender o Evangelho.
Com os olhos fixos no Crucificado vamos aceitando com maior cordialidade e gratuidade que somos “faíscas da criação”, que nos cabe redimir a parcela da criação que nos foi encomendada e que a compaixão solidária é tecida com muita humildade, sem prepotência; ao mesmo tempo vamos descobrindo que a vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa.
Texto bíblico: Jo 19,31-37
Na oração: No silêncio, convém permanecer um bom tempo olhando “Aquele que traspassaram”. Para muitos olhos é só a imagem de um entre tantos “terroristas” que cruzavam as ruas de Jerusa-lém a caminho do Gólgota. Você pode se perguntar como é que, de todos aqueles, só a imagem e o nome deste Compassivo atravessaram a espessura dos tempos, chegaram até nós e hoje nos congrega em seu entorno.
E, dando um passo a mais, pergunte: creio de verdade n’Aquele crucificado que gritava: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI
“Se eu, o Senhor e mestre, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros”
(Jo 13,14)
Jesus sente que sua “hora” se aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e de hospitalidade.
Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Pode ser que Ele esteja colocando uma relação muito estreita entre o comer e o servir, melhor dizendo, entre a Eucaristia e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convida-dos para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir outros. O dom recebido é partilhado entre os seus, mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão. A força que ele traz é para conduzir à vida em abundância.
Jesus “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”.
“Levantou-se da mesa”: este gesto de Jesus assume um significado especial. Revela-nos que não se pode servir permanecendo em nosso comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
“Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo.
Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar?
“Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.
“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo.
As autoridades religiosas vestiam-se do distintivo de autoridade-poder para servir o povo. Jesus despe-se dele para servir. Ele serve verdadeiramente como servo. Os outros serviam como senhores.
É necessário arrancar “todos os mantos do poder” para poder redescobrir a verdadeira dignidade humana desnuda e despojada de todas as aparências. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio. Não é possível amar colocando-se longe do outro.
“Coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido”. Normalmente os preparativos ficam por conta de outros; é o servo que prepara a bacia com água para que o senhor lave os pés de outro. Aqui Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor. Amar é tocar de perto, ajudar, caminhar juntos...; nesse gesto de elevação Jesus revela um amor “físico”, de contato corporal e de serviço, de ajuda humana e de dignidade. Ele não quis só ensinar, dar comida, mas aproximar-se, ajoelhar-se, lavar.
O gesto que Jesus faz expressa o que Ele é. Ele é inteiramente servo. Todo o seu ser está a serviço. Ele se dá naquilo que faz, e faz o que propõe aos discípulos.
Lava os pés dos discípulos. Inclina-se aos pés deles, até o chão. Com reverência, o mestre lava os pés dos discípulos: essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. E se os pés são, na mentalidade judaica, símbolo de infância e prazer, seus pés precisariam, sem dúvida, ser lavados de todas as suas memórias negativas. Cada discípulo era uma criança doente, e era preciso, em primeiro lugar, curar essa criança antes que ela se colocasse a caminho para anunciar o Evangelho, a Boa-Nova.
“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia em forma de círculo a fim de atingir a todos. O novo modo de exercer a autoridade é praticado primeiro entre todos os que participam da ceia, mas deve ser exercido sem limite de tempo ou de espaço, isto é, deve atingir toda criatura em todos os tempos até a plenitude.
Todos os gestos do lava-pés possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: Seja você alguém que, na admiração da gratidão, se aproxima deste gesto ousado de Jesus (tirar o manto e vestir o avental), a fim de purificar sentimentos, endireitar caminhos e aprofundar a caminhada na convivência com os irmãos.
A sua identificação com Jesus lhe confere um novo modo de ver, avaliar, escolher e posicionar. É a contemplação, a postura mais envolvente, que lhe pode fazer enxergar o milagre; e, sensibilizado, abrir-se-á à dimensão do maior serviço, por pura gratuidade.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
“...encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado; desamarrai-o e trazei-o aqui”
Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproximem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.
Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o papa Francisco, o frescor original do Evangelho.
E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.
Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade... desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpre a esperança dos povos.
Jesus sobe a Jerusalém anunciando a chegada do Reino de Deus que deveria manifestar-se ali, mas de uma forma diferente: com um Templo sem culto sacrifical, aberto para todas as gentes, com uma nova estrutura humana aberta ao senhorio de Deus.
Jesus, Filho de Davi, tinha que subir à cidade de seu antepassado Davi, não para conquistá-la militarmente e reinar, a partir dela, sobre o mundo, mas para instaurar ali outro Reinado, fundado precisamente nos pobres e expulsos dos reinos da terra. Para Jesus, Jerusalém deveria ser entendida como centro da nova humanidade messiânica, capital do Reino dos excluídos da velha história humana.
Jesus tomou a cidade sem conquistá-la. Dom do Reino. A subida a Jerusalém foi um gesto profético, de caráter pacífico (não violento) e por isso de forte conotação política, não na linha da tomada do poder (Jesus não conquistou Jerusalém), senão de oferecimento e comunicação de vida. Não quis invadir a capital com armas e exército, para que mudasse simplesmente de dono (sentando-se sobre o trono de Davi para reinar), nem quis estabelecer um Estado melhor (com bons administradores), senão algo mais revolucionário: “tomou” a cidade sem dominá-la, com seu anúncio do Reino e com seu ensinamento.
A entrada de Jesus em Jerusalém nos revela que Ele foi transgressor e rebelde frente ao poder estabelecido, sobretudo o poder religioso que impõe suas normas de verdade e de pureza acima da vida. Jesus sabia que com isso arriscava a vida. Mas, ao pressentir seu final violento, não arredou pé, senão que fez frente ao Templo e ao Palácio. O que estava em jogo era mais que sua vida, era a Vida: era a antiga promessa de todos os profetas, era a libertação universal esperada, era a igualdade de homens e mulheres ainda sem construir, era a erradicação de toda violência e poder, era a instauração do Reinado da justiça e da paz. Tudo isso estava em jogo, e a fé de Jesus, mansa e rebelde, foi maior que seu medo. Montou sobre um humilde jumentinho e desafiou o Império e o Templo, com suas cortes e legiões e todas as suas inumanas ordens sagradas.
Jesus entra em Jerusalém rodeado do povo, das pessoas simples. Este povo escravo e oprimido o aclama porque vê em n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação. Escutaram suas palavras e viram seus feitos durante alguns anos. Escutaram palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...
Viram seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de dar alimento aos famintos, de reabilitar os desprezados, de acolher os marginalizados, de enfrentamento dos opressores...
Jesus quer continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quer também humanizar esta cidade para que ela seja sol de justiça e paz para todos os povos.
E nós, se queremos continuar a percorrer o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas. Vivemos em uma sociedade na qual parece que já não é possível outra economia nem outra política, que temos de nos resignar com o que é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico que nos rodeia.
Hoje, nós seguidores do Nazareno, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, uma sociedade diferente onde a fraternidade, a igualdade e a verdadeira democracia se façam realidade. Um mundo, em definitiva, em que se respeitem os direitos de todas as pessoas e os direitos da mãe Terra, onde o compartilhar seja o mais normal e natural.
“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não nos podem impedir que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidade. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele” (Doc. Aparecida, n.514).
A espiritualidade da presença cristã no meio urbano convida a descobrir e indicar as presenças reais do Deus que in-habita em pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário de Deus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder)
O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” de nossas cidades.
A cidade que Deus quer: uma praça e uma mesa para todos. A praça é de todos e todos podem caber na praça quando esta começa pelas vítimas e pelos últimos, onde todos podem circular livremente, criar relações e convivência, com a experiência de ser aceito e reconhecido como humano.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de aceitação e de encontro, lugar de chegada e entrada da pluralidade e diversidade como a Nova Jerusalém.
“Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o seguidor de Jesus tem em quem se inspirar.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: rezar sua presença na cidade onde mora: é presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras?...
Fazer “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? o suporta? denuncia? atua?...
Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
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