“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7)
A liturgia deste domingo nos motiva a fazer memória dos Santos e Santas, aquelas pessoas que, conhecidas ou anônimas, são presenças inspiradoras para nós que buscamos viver o seguimento de Jesus Cristo com mais autenticidade. Ao mesmo tempo, esta festa vem nos recordar a vocação à qual todos somos chamados: vocação à santidade. E santidade significa, na sua essência, ser presença misericordiosa.
Para Jesus, a Santidade é fundamentalmente a atitude e o modo de agir que deixa fluir os mesmos sentimentos e a mesma ação de Deus Pai: “Sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
O chamado a prolongar o proceder misericordioso de Deus (sua Santidade), sempre tem um “mais” de amor, de paz, de mansidão, de justiça, de consolação..., recebido e vivido na relação com os outros, dentro do acontecer cotidiano e imprevisível da vida.
Portanto, é nas bem-aventuranças que encontramos um “modo de proceder” que nos faz crescer na direção da Santidade de Deus. É na vivência das bem-aventuranças que deixamos transparecer o que há de mais divino em nós; ao mesmo tempo, elas fazem emergir o que há de mais humano em nossas vidas.
A plenitude do humano só se alcança no divino, que já está presente em nós. Ser santo(a) é aspirar ser mais humano a cada dia, destravando e expandindo o amor que Deus derramou em nosso interior.
Quando acreditamos que para ser santo(a) temos de anular os sentidos, reprimir os sentimentos, submeter a vontade, centrar a vida nas renúncias e sacrifícios… nós estaremos nos desumanizando.
Quando colocamos a santidade no extraordinário, estamos nos afastando da referência evangélica. Se cremos que santo é aquele que faz o que ninguém é capaz de fazer, ou deixa de fazer aquilo que todos fazem, já caímos na armadilha do ideal de perfeição. E a perfeição não justifica e nem salva o ser humano. Não fomos chamados para sermos “perfeitos” mas para sermos “santos”; e a santidade é vivida em meio às fragilidades e limitações da vida cotidiana, inspirando-se sempre na santidade de Deus.
É na medida que nos fazemos mais humanos que mais nos santificamos. Ser santo(a) é ser humano(a) por excelência.
As bem-aventuranças desvelam o verdadeiro rosto do(a) santo(a). Quem é ditoso(a)? Quem é bem aventurado(a)? Quem é feliz? Dizer que são felizes os pobres, os que choram, os mansos, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os perseguidos... é um contra-senso para o nosso contexto social, onde ditoso é aquele que mais acumula bens, que tem mais poder, mais prestígio..., sem se preocupar com a situação dos outros.
Só conhecendo a intenção de Jesus é que poderemos descobrir o sentido das bem-aventuranças. Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta do verdadeiro sentido da santidade. Não bastam os meros sentimentos interiores, mas é preciso atitudes práticas que nos fazem sair de nós mesmos e nos movem ativamente ao encontro do outro.
Poderíamos dizer que as Bem-aventuranças são a quinta-essência do seguimento de Jesus.
Jesus, ao subir o monte das bem-aventuranças, promulga seu programa de “felicidade e ventura”.
Ele compreendeu que o meio mais eficaz e mais direto para nos aproximar de Deus, e para que cada um se realize como ser humano que é, não é estabelecer proibições, mas fazer propostas que mais e melhor se harmonizem com nossa condição humana, com aquilo que mais desejamos.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de vida que Jesus nos confiou é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra chave: “Felizes”.
As bem-aventuranças não são leis para simplesmente evitar o mal, mas o potencial humano que, quando ativado, espalha criativamente, por todos os lugares, a Bondade e a Beleza divinas. Expressam, de modo conciso e explícito, o coração mesmo de Jesus e seu desejo ardente de contagiar a todos os que se encontravam com Ele. A felicidade proclamada era já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão.
Jesus nos convida a viver uma felicidade que já está em marcha. A vida é movimento e as bem-aventuranças possibilitam a passagem de uma vida suportada para uma vida plenamente assumida.
Nelas, Jesus nos desperta para sairmos de nossa paralisia e fixação, colocando-nos em marcha através de nossa fome e sede de justiça, através dos lutos que temos de superar e das oposições que temos de enfrentar, através da mansidão, da busca da paz…
O núcleo do ensinamento de Jesus está na quarta e quinta bem-aventuranças. A atitude central do discípulo do Reino é a misericórdia e a fome de justiça; uma fome de justiça que brota da misericórdia, e uma misericórdia que se expande não no mero assistencialismo, mas na fome e sede de justiça. Convertidas em principio de felicidade, a misericórdia e a fome de justiça são o dinamismo e o motor de toda verdadeira humanização; esta é a nota fundante do Evangelho, o princípio de todo amor cristão, entendido de forma universal, como amor que cria, ajuda, pacifica, eleva..., enfim, abre um horizonte de sentido.
As demais bem-aventuranças são como círculos concêntricos que nascem em torno à atitude fundamental da misericórdia e da fome de justiça.
A terceira e a sexta bem-aventuranças: de um lado uma pessoa aflita, condoída, sofredora, com um pesar pela situação do mundo, pela dor das vítimas; ou seja, a fome e sede de justiça e a misericórdia lhe deixam um certo entristecimento, compatível com muitas alegrias. De outro lado, essa dor faz com que, aquele que reage com misericórdia e fome e sede de justiça, tenha o coração limpo: a fome de justiça vivida com esse tipo de dor limpa o coração. E os corações limpos encontram a Deus.
A segunda e a sétima bem-aventuranças: aqueles que tem misericórdia e fome de justiça são mansos. A mera indignação pode torná-los violentos, mas a misericórdia os faz mansos, não violentos. E também, precisamente por essa mansidão, serão atores de paz, serão pacificadores.
E chegamos ao último círculo desta atitude central: quê acontece com aqueles que adotam esta atitude? Tornam-se “pobres com espírito”. A fome de justiça e a misericórdia aproxima-os dos pobres, despoja-os de muitas coisas... Esses são os pobres pelo Espírito. Eles tem o coração desprendido; por isso se tornam pobres e, em paralelismo com isso, são perseguidos por causa da justiça.
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: Marcado pelo espírito das Bem-aventuranças, movido por um olhar novo e um coração ardente, entre em comunhão com a realidade tal como ela é; sinta o mundo como “sacramento de Deus” e seja capaz de descobrir e apontar os sinais de esperança ali presentes; revele uma presença afetiva, marcada pela ternura, compaixão e por isso geradora de misericórdia; presença comprometida solidariamente com o Projeto de Jesus, na vivência da mansidão e na busca a paz...
- Reze as dimensões da vida que estão paralisadas, impedindo-o viver a dinâmica das bem-aventuranças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“...hoje preciso ficar em sua casa” (Lc 19,5)
Os protagonistas da cena do Evangelho de hoje (31º Dom Tempo Comum), Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente. Ao redor deles, encontra-se uma multidão, que parece desordenada e crítica, que até se torna obstáculo: de um lado, impede Zaqueu de ver, e de outro, murmura contra Jesus, contestando-o por estar do lado “errado” ou com quem já estava perdido.
Zaqueu é a uma das poucas pessoas que, nos quatro Evangelhos, toma a iniciativa de encontrar-se com o Mestre gratuitamente: nada tem a dizer e nada tem a pedir. Zaqueu não sabe o que deseja de Jesus, nem o que Jesus deseja dele; esta é a graça: encontrar-se com o “Mistério”, deixar-se “interpelar”... Ele não tinha uma ideia formada, consistente, sobre Jesus. Brota nele, talvez por curiosidade, uma decisão de simplesmente se encontrar com Ele. No seu interior palpita um desejo estranho. Diz o texto que desejava “ver quem era Jesus”. Mas Zaqueu é obrigado a “sair de si”, deixar seu “lugar”; não pode “trazer a si”, “mandar vir”... é forçado a se deslocar.
E, talvez pela primeira vez, esbarra-se de encontro ao muro da impotência. Não podia ver Jesus porque era de estatura baixa e havia muitas pessoas em volta do Mestre. Provavelmente não foi apenas a quantidade de gente que o impediu de aproximar-se d’Ele; foi a sua condição de pessoa rejeitada pela multidão. Zaqueu, pequeno em estatura, baixo em ideais, atrofiado em seus sonhos..., alimentava dentro de si um grande desejo de “querer ver”; tal atitude desvela a busca pela verdade, pelo bem, pela vida verdadeira, que reina latente no coração de cada ser humano.
Jesus se coloca, precisamente, neste espaço, fazendo brotar no interior de Zaqueu o que era novo, surpreendente, enfim, a “hora” da salvação. Não faltava segurança econômica e nem social para Zaqueu. Porém, no fundo, talvez fosse um homem solitário, triste, marginalizado. Sentiu em seu coração um vazio profundo, que se transformou em desejo atormentador, ou seja, uma urgente necessidade de mudança.
Sentiu que não podia continuar indiferente diante da pessoa de Jesus. A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, indicam a clara demonstração de que surgira nele uma estranha inquietude. O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.
O encontro de ambos acontece na estrada, onde transitam, onde ocorrem os acontecimentos do dia-a-dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos...Zaqueu não se preocupa com mais nada: nem com a boa imagem ou com o que a multidão pensaria ao vê-lo sobre uma árvore; o respeito humano, o bom senso, o status social e o “bom nome” não lhe interessam mais. Enfrenta a limitação de sua baixa estatura, esquece a condição de ser um homem rico, “respeitável”, e sobe numa árvore, da qual pensa ver Jesus sem ser visto.
Jesus passa pelo caminho arborizado e vê Zaqueu em seu observatório, e o convida a descer:
“Desce depressa, porque hoje preciso ficar em sua casa”.
Não é uma visita passageira; é o amigo que deseja permanecer em sua casa. Não vai para deixar alguma coisa, vai para ser o próximo de Zaqueu. O próximo entra como amigo, sem impor condições, sem fazer pesar-lhe a sua situação de pecador. Chama-o finalmente pelo nome: “Zaqueu”. Olham-se e entendem-se. O olhar profundo de Jesus, seu amor exagerado, seu convite inesperado, sua voz penetrante, transformam de imediato a vida daquele pequeno homem. E, nada mais foi como antes!
Mas o verdadeiro encontro entre os dois se dá em casa, entre as paredes da vida cotidiana. Jesus quer a mesa de Zaqueu; não lhe importa a sua estatura. O “Senhor”, como dom gratuito e inesperado, entra na casa e no coração de Zaqueu, à busca de quem estava perdido.
Somente depois daquele encontro, fulminado pelo olhar e pelas palavras de Jesus, com o coração transbordante de alegria, Zaqueu se sente renovado e tudo, ao seu redor, lhe parece novo e diferente. Durante a refeição, partilhando do mesmo pão e do mesmo vinho, ambos se conhecem melhor. Não há perguntas, não há conselhos, nem muito menos repreensões, mas apenas uma conversa amigável, sentimentos manifestados, experiências confrontadas.
Jesus não pede nada a Zaqueu: é seu hóspede e se contenta de estar perto dele, partilhar com ele uma refeição. Contudo, o vinho novo de Jesus arrebenta os odres velhos de Zaqueu. Assim, o chefe dos publicanos se torna transbordante, apaixonado, protagonista de uma vida nova. Ele passa da solidão à partilha, da tristeza à alegria...
Zaqueu não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar d’Aquele homem encheu-lhe o coração; a sua casa, agora, não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.
Zaqueu foi amado “excessivamente” e decide corresponder com a mesma moeda, sem medidas. Ele viu, por um instante, a sua vida na nova visão: “Senhor, vou dar a metade dos meus bens aos pobres; e se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais”. E o hóspede sela esta jornada, iluminando o acontecimento e interpretando-o no seu significado de graça, de libertação: “Hoje, a salvação entrou nesta casa”.
O encontro com Jesus significou para Zaqueu abrir-se aos pobres, partilhando seus bens com eles. Tal encontro faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.
Jesus é a única porta, e esta não dá para o vazio; esta porta dá para os outros que possuem um nome, uma identidade, uma história... Os “outros” conseguiram tirar Zaqueu do bloqueio da sua solidão e começou a ver e a ouvir, a caminhar em direção deles e com eles. Este é o sinal claro e evidente de que o próximo foi acolhido.
Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir do observatório do próprio ego. Agora que se encontrou com o Senhor e que saiu de si para conhecê-lo e acolhê-lo, enxerga os outros a partir da perspectiva de Jesus.
Ele sente que não apenas a sua casa está habitada, mas, sobretudo a sua morada interior, onde o seu “eu” tem vivido como um estranho, onde jamais encontrou segurança.
Não bastou descer da árvore: “Não, Zaqueu! Desce! Desce mais! Até o fundo de ti mesmo!”
Texto bíblico: Lc 19,1-10
Na oração: No fundo de nosso pobre coração, entulhado de ídolos, como um quarto de despejo, é aí que o Senhor ajeita um cantinho para sentar-se e ficar à nossa espera.
É dentro do nosso próprio coração que Deus nos espera. Compete a cada um alimentar o desejo do encontro com Ele.
- Desce ao mais profundo de você mesmo e ali, diante da presença misericordiosa do Senhor, estabelece um diálogo íntimo com Ele.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O fariseu de pé, rezava assim em seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens...,
nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)
Nesta parábola, mais uma vez Jesus desvela a presença de dois personagens em nosso interior: o fariseu, expressão máxima do legalismo, do moralismo, do perfeccionismo, e o publicano, expressão máxima daquele que se reconhece pecador, necessitado da misericórdia divina. Ambos vão ao templo (coração) para orar, e, na oração, cada um deles revela seu rosto e sua identidade. Qual deles prevalece em nosso interior? Qual deles alimentamos?
De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Não pode ver nem reconhecer suas imperfeições, mesmo estando dentro dos muros de um lugar sagrado. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre sua perfeição: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar.
Não só é perfeito diante de seus olhos, mas quer também mostrar-se perfeito aos olhos de Deus. A tendência à perfeição favorece um egocentrismo refinado.
Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A autoglorificação impede sua humanização. Petrifica-se em seu legalismo e perfeccionismo.
Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus. Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão. Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais. A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.
Na sua autossuficiência, o fariseu pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus e à frente de todos; sobe o pedestal da “perfeição” e do “legalismo” e distancia-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de ouvir a Deus no seu íntimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento são apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus. E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado crônico, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa.
Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo. O perfeccionista não pode prescindir da comparação. Tem necessidade de um ponto de referência que destaque sua grande estatura legalista. Por isso o fariseu observa a presença de um pecador com quem se compara e diante de quem se sente superior.
Não há perfeccionista que não seja inquisidor, nem inquisidor que não seja perfeccionista. A tendência à perfeição oprime a pessoa até sufocá-la; sendo excessivamente exigente, oprime e sufoca também os outros. Por isso, a tendência à perfeição é uma doença do espírito, um eu em conflito consigo mesmo. O perfeccionista vive uma batalha interior, uma batalha que jamais se vence; sua vida torna-se estreita, ele se desumaniza e mergulha nos escrúpulos.
Quem se deixa guiar pela ideia de perfeição, cedo se dará conta de que não poderá abraçar a vida. Permanecerá confinado num eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de pau. O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.
Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano prostra-se diante de Deus, volta-se para a o chão, reconhece seu pecado, abre-se à misericórdia de Deus, de quem espera o perdão. Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração autossuficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transforar a pessoa.
Jesus sabia que a pessoa consciente das suas imperfeições é mais disponível ao anúncio do Reino. Sabemos que as escolhas de Jesus não caíram sobre os perfeitos. As pessoas com quem Ele entrou em contato não eram conhecidas por suas boas maneiras nem pelas boas ações, antes, eram pecadoras públicas.
O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir. Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.
Nesta parábola, Jesus revela também um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, impor, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...
A misericórdia torna o Deus de Jesus acessível a tudo que é imperfeito, limitado, humano... A misericórdia constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de deter o ser humano naquele processo de autodivinização, própria do fariseu. Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: * Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.
* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Lc 18,8)
Na parábola de hoje, dois personagens ocupam a cena. Um juiz que “não teme a Deus” e “não respeita as pessoas”; é um homem surdo à voz de Deus e indiferente aos sofrimentos dos oprimidos. De outro lado, a parábola fala de uma viúva que tem fé e que protesta, pedindo justiça, apesar da insensibilidade do juiz.
Quê ressonâncias pode encontrar hoje em nós este relato dramático que nos lembra tantas vítimas abandonadas injustamente à própria sorte? Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.
A pobre viúva, no evangelho de hoje(29º Dom TC), longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.
De fato, se observarmos bem o conteúdo do relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a “sede de justiça”. A expressão “fazer justiça” é repetida quatro vezes. A viúva do relato é exemplo admirável de uma mulher corajosa que luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que explora os mais fracos.
Contrariamente àqueles que pensam que não vale a pena sair às ruas e gritar (no plano social e religioso, político e eclesial), o evangelho de hoje nos coloca diante do exemplo da fé e do grito de protesto da viúva, capaz de alterar a ordem injusta do sistema social. Muitas vezes resta só um grito, mas um grito que é mais profundo e eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes... daqueles que corrompem e exploram os mais pobres. O problema está em que a maioria se cala ou se dobra diante da realidade injusta, pedindo míseras migalhas, subsídios, esmolas... para que tudo continue igual. No fundo, querem que os enganem, e assim compactuam com a submissão alienante.
O que acontece é que, muitas vezes, aqueles que deveriam protestar, como a viúva, preferem ajustar-se ao sistema “por um prato de lentilhas”: preferem fazer pacto com o juiz, com o opressor. Essa tem sido a atitude de grande parte das comunidades cristãs, daqueles que dizem que nada podem mudar. No fundo, é a atitude daqueles que não creem em Deus.
Pois bem, contrariamente a isso, esta viúva grita, em gesto de manifestação radical. Não se resigna, não se curva. Com indignação, eleva-se diante do juiz, que representa todos os “podres poderes” deste mundo. Ela, a viúva do grito, é mais forte que os próprios juízes.
Certamente tem razão o teólogo J. B. Metz quando denuncia que na vivência cristã há demasiados cânticos e poucos gritos de indignação, demasiada complacência e pouca aspiração por um mundo mais humano, demasiado consolo e pouca fome de justiça. É preciso somar gritos!
Esta parábola não trata de uma situação particular, mas recolhe a experiência mais profunda da Bíblia, desde os hebreus no Egito que gritam e Deus os escuta. Para que a realidade se transforme, continua sendo necessário o grito das viúvas, a voz de todos os oprimidos do mundo, que clamam diante de Deus e diante dos homens.
Esta é a fé fundamental, a fé da viúva que grita e pede justiça. Esta é a fé na força do protesto. Esta é a fé que se eleva e se opõe ao sistema injusto.
A fé não é “algo” que alguns possuem e outros não; da mesma forma, a fé não se reduz a uma aceitação doutrinal, prática de obrigações religiosas e obediência e uma disciplina. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se expande..., vai se renovando a cada dia e tem implicações na construção de um mundo mais justo.
A constância e a insistência de uma pobre viúva põe em cheque a um autossuficiente juiz que se considera mais valente. A constância é como a gota de água que pouco a pouco vai perfurando a pedra; a constância é capaz de dobrar o mais duro coração.
A viúva “crê” (tem fé) na força de sua insistência pedindo justiça. Numa dimensão mais profunda, o grito dos marginalizados e das viúvas ressoa na mente daqueles que se beneficiam do sistema social injusto. Trata-se não de resignar-se, de não aceitar simplesmente o mundo como está, mas de protestar... Esta viúva é o símbolo das vozes de todos aqueles que gritam e protestam.
Se todas as viúvas do mundo gritassem, se todos os pobres gritassem, se todos os que se sentem enganados por esta sociedade elevassem a voz, o sistema social tremeria diante do grito da vida. O resultado final não estaria no triunfo dos mais fortes e poderosos, nem no poder do dinheiro, mas no grito incessante, de não-violência ativa. O grito dos que clamam diante de Deus e diante dos homens tem uma força infinita; trata-se da onipotência daqueles que gritam.
Vivemos em um mundo que parece dominado pela voz daqueles que vivem para se impor, pela propa-ganda de um sistema que quer silenciar todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras organizadas. Pois bem, contra tudo isso, temos que nos comprometer a elevar nossa voz proféti-ca, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.
Humanamente falando, essa voz parece muito fraca. Como comparar-se com as potentes vozes do império da mídia ou com a injustiça organizada dos “juízes” do mundo? Externamente o grito da viúva parece muito pouco; não é nada e, no entanto, essa voz foi e continua sendo mais poderosa que todas as armas e dinheiro do sistema.
Esta é a pressão popular, esta é a revolução de todas as viúvas do mundo, ou seja, de todos os injustiçados, uma revolução que tem que começar, a partir do Evangelho. Assim foi a voz de Jesus que gritou contra as injustiças, a favor da justiça do Reino, mas foi assassinado. É evidente que não conseguiram calar sua voz, pois esta continua ressonando e perturbando a vida de muitos acomodados. Assim deve ser nossa voz, nosso grito, contra a ordem econômica injusta, contra uma sociedade que engana para manter privilégios, e inclusive contra as religiões que nos obrigam a ficar em silêncio.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: É nossa oração um grito a Deus, mobilizando-nos a lutar pela justiça em favor dos pobres deste mundo, ou será que a substituímos por outra, onde o centro está ocupado pelos interesses do nosso “ego” ?
- Por que nossa comunicação com Deus não nos torna sensíveis para escutar o clamor daqueles que sofrem injustamente? Muitas vezes alimentamos nossas devoções particulares, esquecendo os que vivem sofrendo.
- Continuamos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem nos importar muito com as injustiças que há no mundo. Muitas vezes, em nossas comunidades cristãs, o centro de nossas preocupações não é o sofrimento dos últimos, e sim a vida moral e religiosa dos cristãos.
- Em nossas liturgias ressoa a voz daqueles que clamam por justiça ou elas são ritos vazios de vida que nos mantém anestesiados e alienados frente aos dramas da humanidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
(imagem das vitimas do furacão no Haiti em outubro 2016)
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra e lhe agradeceu; e este era um samaritano”
A tradição judaica transmite este ensinamento: “Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer antes uma oração de gratidão ou uma benção, comete uma injustiça”.
A ação de graças está no coração mesmo da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade do cristão consistem em poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um ateu é não ter a Quem agradecer. A pessoa compreende que “tudo é dom e graça de Deus” e esquecer de agradecer é passar ao lado daquilo que constituí a beleza da vida. Agradecer é muito mais que dar graças. Implica reconhecimento e correspondência. “Ali onde não há gratidão, o dom fica perdido” (Bruno Forte).
Lucas situa o relato de hoje no caminho de subida a Jerusalém, no limite entre Galileia e Samaria, lugar chave de disputas religiosas. Os leprosos que saem ao encontro de Jesus e gritam de longe pedindo-lhe que os cure, são dez. Significativamente, a lepra não distingue entre judeus e gentios, galileus e samaritanos. Todos são irmãos na miséria.
No relato podemos identificar os mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de curas: apresentação da situação de enfermidade (“dez leprosos vieram ao seu encontro”), petição de cura (“Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”), intervenção de Jesus (“Ide apresentar aos sacerdotes”), cura (“enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados”) e reação diante do milagre.
É este último elemento que está mais desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da atitude de um dos leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com a dos outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem senão cumprir as instruções de Jesus: ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas só um tem a suficiente finura espiritual para reconhecer profundamente o dom recebido e, deixando de lado as prescrições legais, dá primazia à expressão de agradecimento.
A gratidão parece apresentar-se aqui como um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade nas relações humanas e na vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente minoritária (um entre dez).
O samaritano sente que para ele começa uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente: poderá viver de maneira mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do samaritano que confia em Jesus, que crê no agradecimento mais que nas leis do sistema religioso. O agradecimento como atitude vital parece requerer, pois, uma especial sensibilidade espiritual, precisamente essa que encontramos nos santos e santas. Caberia perguntar-nos quais são as razões que nos dificultam esta vivência da gratidão, quando esta deveria brotar de modo espontâneo e natural frente a tanto bem recebido.
No início de uma carta de S. Inácio a um de seus primeiros companheiros, Simão Rodrigues, lemos isto:
“À luz da divina bondade me parece que, embora outros possam pensar de modo diferente, a ingratidão é o mais abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor, e de todas as criaturas capazes de aproveitar-se em sua divina e eterna glória. Já que é esquecimento das graças, bens e bênçãos recebidas; e além disso aqui se encontra a causa e começo de todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a gratidão que reconhece as bênçãos e bens recebidos é estimada e amada não só na terra senão também no céu” (18 de março – 1542).
Na vivência cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
Elas adquirem a fina percepção de que tudo é Graça, tudo é “de graça”, são “agraciadas”, “cheias de graça”... Precisamente porque perceberam suas vidas como um presente, voltam-se para Deus, entregando-lhe “tudo o que tem e possuem”.
Marcada pela gratidão, a pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo tipo de mediocridade na entrega e no serviço. O agradecimento é uma atitude fundante e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro “sabor”, com outro “ar”. Do agradecimento brota um estado interior de consolação, de disponibilidade, de agilidade em dar resposta às demandas da vida, de uma sensibilidade mais viva para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de dom e sem ansiedade por não receber compensações ou recompensas.
O agradecimento é a experiência humana que mais ativa a generosidade como atitude vital de nossa existência de criaturas amadas e presenteadas por Deus.
O agradecimento como atitude básica na vida é a tomada de consciência daquilo que estamos recebendo, a acolhida dos bens que nos são dados e das pessoas que nos vem ao encontro; é viver não tanto dependente daquilo que cremos que merecemos e não nos dão, quanto daquilo que, sem haver merecido, nem esperado, nem pedido, recebemos e continuamos recebendo no dia-a-dia.
Esse “agradecer” de fundo, esse viver “agradecidamente” não nos é favorecido pela cultura consumista que nos incita a estar sempre mais dependentes daquilo que não temos que daquilo que nos é dado com abundância; uma cultura que fomenta e aviva uma eterna insatisfação, matando a capacidade de “recordar tantos benefícios recebidos pela criação, redenção e dons particulares” (S. Inácio).
O que é que se encontra “de graça”? Onde? Quem pratica essa aventura da “mão aberta”, da largueza de coração? Há aqueles que não conhecem a palavra “gratuito” e, por isso, são petrificados frente à gratidão. São surdos e mudos para o “muito obrigado”.
A gratidão é alegria, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como uma gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais leve, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: É importante cuidar de nossa gratidão, mantê-la viva e ativa. Não é natural que percamos a memória, a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como seguidores de Jesus, pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser por inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Somos simples servidores; fizemos o que devíamos fazer” (lc 17,10)
O evangelho de hoje nos propõe uma atitude que, à primeira vista, parece inaceitável: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir o jantar. Ele é um simples servidor do Reino, tem de fazer seu serviço, sem discutir.
Mas a intenção de Jesus é outra: Ele aponta para a dedicação integral no servir. A parábola desmascara a atitude daquele que, no serviço do Reino, busca seus próprios interesses, alimenta sua vaidade e busca ser o centro das atenções. Quem não gosta de receber elogios pelo seu serviço ao Reino?
No entanto, trabalhar para buscar o louvor, o interesse próprio, o lucro, o reconhecimento, a fama, o poder... esvaziam o sentido da missão em favor da evangelização, pois são próprios de uma mentalidade calculista e materialista da sociedade em que vivemos, que procura compensação em tudo o que se faz. Na perspectiva de Deus, o fundamental é ativar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.
Generosidade, gratuidade, doação: palavras quase desconhecidas do nosso vocabulário e em nosso contexto social. Mas são elas que nos levam em direção aos outros, libertando-nos de nosso pequeno eu. São elas que nos afastam da mesquinhez, da vaidade, do egoísmo, da busca do “próprio amor, querer e interesse”. Por serem mais afetivas, mais espontâneas, ligadas ao coração, elas revelam-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com as exigências do amor, da solidariedade...
São elas que alargam o nosso coração até dilatar-nos às dimensões do universo, rompendo nossos estreitos limites e lançando-nos a compromissos mais profundos. Sentimo-nos livres para qualquer desafio e cada nova entrega é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
“Somos simples servidores”. Em algumas traduções da bíblia encontramos: “Somos servos inúteis”. Tal tradução é muito limitada, pois fomenta a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve. Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da retidão, da fidelidade e da gratuidade, seremos indispensáveis para o projeto de Deus.
Esta é a grandeza e recompensa do servidor no grande trabalho que realiza em favor do Reino: ultrapassar-se sempre, mas no amor; o êxito? entregue-o a Deus! Afinal, é o Senhor quem realiza em nós o querer e o fazer, para além de nossa boa disposição (Fil. 2,13).
A grandeza, a dignidade, a capacidade redentora de toda atividade em favor dos outros provém do fato de ser vivido numa profunda união pessoal com Cristo e com o desejo intenso de que nossa ação esteja em sintonia com a vontade e a glória do Pai, e não com as nossas buscas de compensações.
O chamado de Jesus é para “colaborar”, para trabalhar com Ele; e deste chamado ninguém é excluído, porque Ele abriu essa possibilidade para todos (“chama todos e cada um em particular”). Qualquer que seja o trabalho , ele se define pelo afeto pessoal a Jesus, pela identificação com seu projeto libertador. Por isso, é decisivo algumas indicações que contribuem para fazer do serviço ao Reino uma “experiência espiritual”: a pureza de motivações (por que faço isso? para quem faço?), a capacidade de “contemplar”, o crescer em gratuidade e a relativização de compensações, o deixar-se ajudar, a capacidade de agradecer...
A atitude de gratidão (consciência viva daquilo que cada dia nos é dado gratuitamente) nos motiva a viver o trabalho como serviço, libertando-o radicalmente de suas dimensões de rotina, de carga, e esvaziando-o de toda pretensão egoísta.
Quando vivemos nosso trabalho a partir da gratidão, o esforço que o mesmo trabalho exige brota de um modo mais natural, mais espontâneo...; por isso, “cansa” menos, “desgasta” menos...
Se vivemos a partir da gratidão, ficamos menos “dependentes” da compensação que os outros poderiam dar à nossa entrega ou ao nosso serviço. Como dizia S. Inácio aos estudantes de Coimbra, “são outros os soldos” que nos compensam.
Uma tentação sutil, presente em todos nós, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas pelo serviço prestado. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan apostólico. Fica a impressão que, no apostolado, ao invés de buscar agradar a Deus, busca-se recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, interpreta-se isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega.
A verdadeira maturidade espiritual coincide com o sentido da gratuidade, ou seja, ajustar-se ao modo de agir de Deus, superando todo autocentramento e todo voluntarismo; quem assim vive experimenta o consolo de sentir-se amado, perdoado e chamado por Deus, pois “o ser humano é fundamentalmente um ser de gratuidade”.
A gratuidade só pode ser vivida equilibradamente em toda sua profundidade e intensidade por aquele que é plenamente consciente de sua pobreza e indignidade radical, por aquele que, por ter-se sentido pecador e amado ao mesmo tempo, não deseja ser nem melhor nem mais perfeito, senão mais filho(a) de Deus pelo compromisso e doação.
E, precisamente movido pelo amor filial, deseja ativar todos os seus talentos e recursos, até o extremo de suas possibilidades, com o desejo de só agradar a Deus que tanto lhe ama. A gratuidade, portanto, é o fruto maduro, resultado espontâneo do consolo do perdão e do amor, que habilita o ser humano a entrar no fluxo da ação salvífica do próprio Deus.
E esta conversão à gratuidade possui uma dupla dimensão:
- é abandono da confiança em si mesmo e esvaziamento do culto ao próprio eu.
A pessoa que confia em seu próprio esforço para se projetar e brilhar, sem abrir espaço à graça de Deus, vê-se condenada à esterilidade, experimenta a aridez interior, a insatisfação de quem se empenha inútilmente, a angústia de quem se esforça sem conseguir a alegria da comunhão, e o desamparo de quem se vê triste, só e desolado.
Eis o que significa “gratuidade”: cair na conta de que tudo é dom e graça de Deus, que as boas obras, por mínimas que sejam, são um presente que Deus lhe concede poder realizá-las, que todo trabalho que se faça (mais ou menos importante, mais público ou mais escondido, com ou sem compensações...) é uma maneira pessoal de co-laborar com Aquele que fez de sua vida uma entrega por pura gratuidade.
Texto bíblico: Lc. 17, 5-10
Na oração: “Quantas dádivas! Sobrevivemos e crescemos graças a um cem número de valiosos dons; e a natureza é um canto permanente ao Criador que nela se anuncia e espelha – ela é desdobramento de um amor sem limites.
Ao ver-se beneficiado, há quem exclame: “Não precisava tanto!”
Seja você assim. Você participa dessa misteriosa gratuidade. Abra os olhos para essa diversidade a lembrar que as portas para ser e amar estão sempre abertas. Familiarizado com a dádiva, seja eco permanente da gratidão” (Frei Cláudio Van Balen).
- Seu “serviço apostólico” na comunidade: pura gratuidade ou busca de compensações e elogios?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
ITAICI-SP
“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, ficava sentado no chão junto à porta do rico”(Lc 16,20)
Lucas, mais uma vez, nos introduz no tema de ricos e pobres, que, com esta parábola, alcança sua altura suprema. Trata-se de uma parábola forte, clara e inquietante, que corta a respiração e nos situa, a partir de Deus, na dinâmica das relações humanas. Deixar que a parábola se explique, que nos fale, que nos questione e que ilumine nossa vida, essa é a melhor atitude diante dela.
Este é o tema: um rico petrificado e fechado em sua riqueza, se apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito coisas más, senão porque estava cego e não viu o pobre à sua porta. É, sem dúvida, uma parábola de nossa sociedade. Aqui é claro: há um “Mundo Epulón” que esbanja os bens reais da vida, enquanto à porta da casa se amontoam pobres e mais pobres. Nesta parábola Jesus desmascara e denuncia, com olhar penetrante, a realidade cruel da Galileia e também a de nosso mundo atual.
A primeira parte da narração fala de um “rico” poderoso. Suas “vestes finas e elegantes”, indica luxo e ostentação. Só pensa em banquetes suntuosos todos os dias. O rico não tem nome, pois não tem identidade humana. Não é ninguém. “Era tão pobre que só tinha riqueza”. Sua vida, vazia de amor solidário, é um fracasso. Muito perto, junto à porta de sua mansão, está estendido um “mendigo”. Não está coberto de linho e púrpura, mas de feridas repugnantes. Não sabe o que é um festim; não lhe dão nem do que cai da mesa do rico para saciar sua fome. Só alguns cachorros de rua se aproximam para lamber suas feridas. Não tem ninguém. Não possui nada. Só um nome cheio de promessas: “Lázaro”, que significa “Deus é ajuda”.
O pobre está fora da porta, rodeado pelos cachorros da rua, mas só a uns passos da mesa do rico, que desperdiça comida em sua casa. O rico está dentro de casa, poucos metros os separam, mas há um abismo entre eles; não há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta...
A cena é insuportável. O rico tem tudo, sente-se seguro, não parece necessitar de ninguém. Vive fechado em si mesmo. Não vê o pobre que morre de fome junto à sua porta. Lázaro, por sua parte, vive em extrema necessidade, faminto, enfermo, excluído, ignorado por aqueles que lhe podiam ajudar. Sua única esperança é Deus.
Jesus não pronuncia diretamente nenhuma palavra de condenação. Seu olhar penetrante está desmascarando a cruel injustiça daquela sociedade. As classes mais poderosas e os estratos mais oprimidos parecem pertencer à mesma sociedade, mas estão separados por uma barreira invisível: essa porta que o rico não atravessa nunca para aproximar-se de Lázaro. Deus, que é Pai de todos, não pode aceitar essa cruel separação entre seus filhos.
A segunda parte da narração nos situa diante de uma grande mudança de perspectiva. A reviravolta é total. Ambos morrem, a morte os iguala, de maneira que o tema das riquezas passa a um segundo plano. Só permanecem eles, suas vidas..., perduráveis, de formas diferentes.
O pobre se salva porque foi simplesmente pobre. Salva-se pela misericórdia de Deus, ou seja, por graça (porque Deus é Deus). Por isso, a salvação é dom, pura graça. O rico se condena por si mesmo, porque ele escolheu, porque não foi capaz de ver/descobrir/ajudar os pobres que estavam ao seu lado. Nessa linha, a condenação é a rejeição da graça da vida: não ter descoberto o outro.
A conclusão que se deduz da parábola não é que os pobres do mundo devem manter-se como estão, já que esperam a glória futura depois da morte, mas que se abra a porta que separa o pobre do rico, de forma que possam comunicar-se.
Este relato não fala da condenação e salvação futura, mas da nova forma de vida compartilhada que deve se estabelecer neste mundo. O relato não quer que o pobre e o rico continuem vivendo simplesmente em mundos que se encontram hermeticamente selados, afastados um de outro, senão que se encontrem, que o rico abra a porta e ofereça ao pobre um lugar em sua mesa.
Durante o tempo de sua vida, o pobre mendigo e o rico fechado em seu “banquete” egoísta e em seu luxo não se relacionavam entre si, mas poderiam tê-lo feito, pois Lázaro jazia diante da porta da casa do rico: uma porta evoca a possibilidade de comunicação. Depois da morte não tem como mudar as coisas. O tempo de mudança é este, esta vida. Aquela barreira invisível na terra se converte agora em um abismo intransponível. O objetivo da parábola não é descrever o céu nem o inferno, mas condenar a indiferença dos ricos e poderosos.
Deus é o primeiro que deseja que vivamos bem, que sentemos à mesa e tenhamos o que comer, que nos vistamos com dignidade. Deus se alegra quando vê a mesa cheia de alimentos e todas as cadeiras ocupadas, todos com bom apetite, vivendo a partilha com o coração pleno de alegria e fraternidade.
Onde está então o problema? Está numa porta. Cresce cada vez mais o número de portas que nos impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da desnudez que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais existisse.
Diz o ditado que “comer demasiado mel nos faz perder o sabor”; o demasiado bem-estar nos impede ver o mal-estar dos outros; o fato de não carecer de nada, nos faz insensíveis diante daqueles que carecem de tudo; a abundância pode ser um obstáculo para sensibilizar-nos frente à carência dos demais.
Ao ler o Evangelho, nos damos conta de que Jesus, que não tinha nada, era muito sensível àqueles que careciam de tudo; em sua vida não havia nada que lhe impedisse ver a pobreza e o sofrimento dos outros. Isso despertava n’Ele a compaixão, o “sentir-com” os outros. O que os olhos não veem não chega aos nossos sentimentos. O que os olhos não veem não chega ao nosso coração.
Claro que não basta ver. É preciso que o coração seja impactado. É preciso que a realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova. Não basta saber que existem os pobres; não bastam as estatísticas sobre a pobreza no mundo. É preciso dar um rosto ao enfermo, ao desnudo, ao faminto. A dor sem rosto não nos diz nada. A nudez sem rosto não nos afeta; a fome sem rosto não nos impacta.
É preciso escancarar as portas dos nossos preconceitos, da nossa insensibilidade, dos nossos pré-juízos..., portas que nos fazem acostumar a ver famintos, necessitados, explorados... Tudo isso pode nos tornar insensíveis. O que Jesus lamenta é nossa insensibilidade e nossa indiferença frente àqueles que passam penúria. Esta é sua condenação radical: uma barreira de indiferença, cegueira e crueldade separa o mundo dos ricos do mundo dos famintos. A riqueza pode ser um grande estorvo no coração; a púrpura e o linho podem ser um escândalo em um mundo de pobreza; os grandes banquetes podem ser um insulto em um mundo onde impera a fome.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: quê impactos tem no seu coração o mundo da exclusão e da violência?
- Quê atitudes você assume para diminuir a insultante riqueza de uns poucos e a escandalosa miséria de muitos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8)
Um dos piores vírus que ameaça e mina as forças de nossas comunidades cristãs é a falta de iniciativas, é a atitude de acomodar-se com o de sempre, seguir os caminhos trilhados da rotina e da repetição. Rebanho “dócil”, sujeito a manipulações legalistas, sem maiores pretensões e sem criatividade no anúncio da Boa Nova do Evangelho.
Enquanto “dormimos” em nossa apatia e acomodação, outros (a partir de seus interesses próprios ou de grupos) aguçam sua inteligência e afinam novas estratégias, saem pelos caminhos e fazem ouvir sua voz.
Os “filhos deste mundo” tem mais “iniciativas” e ideias que os chamados filhos da luz. Até parece que a luz nos faz adormecer e nos acomodamos em um modo “normótico” de viver. A parábola do evangelho deste domingo (25º Dom TC) não pretende se referir em absoluto à corrupção e ao roubo, mas ela está centrada numa questão radical: “Os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”.
Em cada um de nós convivem a luz e as trevas. A parábola parece conter uma profunda ironia, ao confrontar-nos conosco mesmos e perguntar-nos de que maneira procedemos nos assuntos que concernem às “trevas” (ego) e naqueles que potenciariam a luz que somos.
A experiência nos diz que, quando é nosso ego que toma iniciativa, ele ativa meios, recursos, táticas, estratagemas..., com a finalidade de sobressair vaidoso e assegurar sua sobrevivência (como faz o empregado da parábola, que representa, justamente, o nosso próprio ego e seu mundo de interesses).
O que ocorre com a luz que é a nossa verdadeira identidade? Quê fazemos com o melhor de nós mesmos? Se empregássemos tanta motivação e tantos meios para que nossa verdadeira identidade se manifestasse e deixasse sua marca, nosso mundo seria bem diferente.
Jesus, na parábola, não louva o mal administrador por sua péssima administração e roubos. O que Jesus quer destacar é sua “inteligência” e “esperteza” para garantir seu futuro, a astúcia com que atua para atrair a benevolência dos credores de seu amo.
E aqui começa a “operação futuro” daquele administrador. Astuto e vivo, ele, antes de apresentar o balanço final, consegue fazer reduções nas dívidas dos credores. Objetivo? Fazer “amigos” para que quando fosse despedido do trabalho pudesse ser socorrido por eles em momentos de penúria.
Estamos falando do astuto a serviço de si mesmo (quer que os devedores o ajudem...; está comprando a solidariedade e a colaboração deles). Certamente, este administrador inicia uma subversão, mas o faz em favor de si mesmo, dentro do grande “clube” daqueles que se aproveitam roubando dinheiro. Não lhe interessam os bens do amo (nem a vida dos pobres), mas sua própria subsistência, em um mundo de ladrões que se sustentam a si mesmos, roubando do grande capital para benefício próprio.
Assim como alguns usam sua inteligência e sua astúcia para causar morte (tráfico de drogas e construção de armas, máfias de tráfico de pessoas e de prostituição, corrupção na administração pública...), porque não podemos ativá-la para buscar caminhos de justiça, criar pontes de reconciliação, despoluir o ambiente hediondo que nos envolve?
Subitamente, o relato de hoje dá um salto e nos leva do administrador injusto (que atua astutamente no interesse próprio) à exigência e possibilidade de converter o “dinheiro da iniquidade” (dinheiro que mata) em fonte de justiça e de amizade.
O dinheiro, enquanto mediação necessária, entra na categoria dos meios humanos a serviço de um fim. Trata-se de fazer com que ele seja transparente, na linha da fraternidade e do Reino, ou seja, converter o dinheiro naquilo que deve ser: um meio de “relação transparente entre pessoas”, um meio de justiça e solidariedade amorosa, para que o ser humano atinja a meta de sua vida.
O dinheiro, portanto, aparece como algo funcional, mas facilmente pode se converter em senhor e dono da vida. Por sua própria natureza, ele confere uma segurança e uma autossuficiência que nenhum outro objeto pode fornecer.
Jesus tinha consciência dos riscos e perigos de uma vida enredada no dinheiro. Ele sabia da força de sedução que a riqueza exerce e da capacidade que ela tem de obscurecer a percepção correta da realidade. Jesus expressa isso dizendo: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Com estas palavras, Ele não só desvela nossa tendência a divinizar o dinheiro, mas volta a insistir no dilema anterior: na prática, quê nos interessa mais, o dinheiro ou Deus? Quem, na verdade, ocupa o centro de nossa vida?
Entre as coisas que podem desordenar a pessoa, o dinheiro, sem dúvida, tem um poder de sedução todo especial. Ele revela o risco de gerar uma dinâmica de ganância, sem freio, que a pessoa não controla, endurecendo seu coração e conduzindo-a à presunção de autossuficiência, de se bastar a si mesma e de não precisar de mais ninguém.
Além disso, existem outras manifestações ligadas à ânsia de fazer do dinheiro o centro da vida: o desejo de prestígio, a ilusão de onipotência, de poder, de mando, o anseio de títulos, da aparência, de ciência, de status. E a vida não se ordena enquanto o fator dinheiro, desestabilizador por seu caráter “pegajoso”, não se situa no seu devido lugar.
De fato, o dinheiro, ao se tornar um fim em si mesmo, longe de pacificar, gera sempre novos temores, ansiedades e inseguranças: medo de perder o que foi conquistado, medo de que um rival consiga um bem cobiçado, ou ainda de ser superado na escala social, tornando vãos todos os esforços de uma vida...
Outro sentimento típico do avarento é a tristeza, ligada à frustração de não poder nunca encontrar algo que o satisfaça, fazendo-o sentir-se cada vez mais indigente. Torna-se tão pobre que só tem dinheiro.
Aquele que põe seu tesouro no dinheiro, põe ali o seu coração, seu interesse, sua força e sua afetividade. O dinheiro tem um tal poder de absorção, que ele se torna rival de Deus. Quando uma pessoa faz do dinheiro a orientação fundamental de sua vida, quando o dinheiro é seu único ponto de apoio na vida e sua única meta, então a relação com o Deus e com os outro se dilui.
A razão é bem simples. Porque o coração do indivíduo afeiçoado ao dinheiro se esfria e se petrifica, distanciando-se das pessoas. Tende a buscar somente seu próprio interesse, não pensa no sofrimento, não vê as necessidades nem as injustiças que os outros sofrem. O coração enredado pelo dinheiro corre o risco de matar o espírito solidário, pois já não há mais lugar para o amor desinteressado, nem para a fraternidade. Só vive para acumular coisas e para fazer dos outros seus dependentes. E, por isso mesmo, nele não há lugar para o Deus que é Pai de todos. Assim, não pode acolher a Aquele que é Amor, Gratuidade.
A verdadeira riqueza, que de fato nos pertence, é aquela que recebemos ao partilhar o melhor que há em nós mesmos, tornando-nos assim participantes da generosidade abundante de Deus.
Texto bíblico: Lc 16,1-13
Na oração: A quem sirvo? Quem é o “senhor” Que comanda o meu coração? Deus pôs em minhas mãos tantos dons, tantas possibilidades... E quê estou eu fazendo com tanta “riqueza” que o Senhor me confiou?
Sou um administrador fiel e solícito, ou vou desperdiçando pela vida os “bens” (talentos e oportunidades) que o Senhor me deu e continua me cumulando?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver”… (Lc 15,24)
Revelar o rosto do Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade. O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”.
Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nossa vida e nos abre em direção a um amplo horizonte de sentido.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade. A força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova ainda não ativada.
A misericórdia nos configura à imagem de Deus; é onde nós somos mais semelhantes a Ele. A misericórdia, portanto, é não só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
No evangelho deste domingo (24º Dom TC) encontramos, mais uma vez, o eterno conflito entre “Misericórdia” e “Lei”, entre “perfeccionismo” e “compaixão”. “Legalismo” e “perfeccionismo” andam sempre juntos; onde eles imperam, ali não há possibilidade de futuro, nem de vida nova; quem tem a lei na mão torna-se um juiz implacável, insensível, duro, frio… “Onde há misericórdia, ali está o Espírito de Deus; onde há lei, ali estão seus ministros” (papa Francisco).
Na parábola de hoje, Jesus “pinta” o rosto misericordioso do Pai; ele descreve a tipologia de dois comportamentos em relação ao fracasso do “filho mais moço”. Em 1º lugar, o coração terno do Pai manifesta-se aberto; seu modo de proceder se exprime nessas cinco ações carregadas de sentimentos, afeto e ternura: ver, comover-se, correr, abraçar e beijar.
Em vez de julgar o filho e fazer com que ele se afunde em culpa, o pai o acolhe plenamente. O perdão devolve ao filho mais moço a sua dignidade de homem livre, a autoestima e o sentido de pertença à família. O pai não aproveita a ocasião para praticar a pedagogia da culpa ou para tornar o filho dependente do seu perdão. O encontro não termina com o perdão. Há uma grande festa.
A festa sela o perdão no coração de quem rompeu a aliança. Portanto, a festa não é o prêmio do erro; ela é a expressão tangível, clara, do perdão realizado. O perdão é total: oferece uma inédita possibilidade de vida para o coração de quem viveu a fundo a experiência do próprio fracasso.
O pai revela-se exagerado no perdão diante de quem errou. Ele tem tolerância e paciência com relação ao processo que se abre interiormente no filho que se arrependeu. O processo permanece aberto de maneira que o filho possa amadurecer e o erro possa trazer um ensinamento; em outras palavras, possa dar lugar a uma experiência construtiva para ele. A reorientação que o pai provoca no filho mais jovem, com o seu perdão e a festa, é tão forte, que o jovem será capaz de tirar proveito da sua experiência negativa. A festa vem revelar que ele é amado incondicionalmente.
Ao contrário do pai, o filho mais velho revela um esquema mental fechado ao fracasso do seu irmão por estar ocupado com um “conteúdo perfeccionista”. Por ocasião do encontro entre o filho mais moço e o pai, o “filho mais velho estava no campo”; isto já indica uma característica da sua personalidade: o dever antes de mais nada. Ele havia perdido toda e qualquer orientação para consigo mesmo a fim de perseguir a perfeição.
Queria ser irrepreensível aos olhos do pai sem jamais desobedecer a uma única ordem sua. Ao ouvir “músicas e danças”, perguntou a um servo a razão daquilo; este fato sublinha o quanto estava afastado dos acontecimentos familiares. Enche-se de cólera e não quer entrar para a festa. Mesmo no plano afetivo, ele se encontra completamente longe da família. Ele mostra em suas palavras a sua total solidão. Talvez fosse um homem sem amigos. Tinha uma relação com o mundo das coisas, dos deveres e dos princípios, não das pessoas.
O perfeccionista é um ser muito frio. Vive com a chama do sentimento no nível “baixo”. O sentimento torna as pessoas mais humanas, ou seja, mais vulneráveis, mais frágeis. A perfeição tinha deixado o filho mais velho vazio de sentimentos. Seu comportamento é de incompreensão e de julgamento. Ele não se comove nem diante do destino do irmão nem tampouco diante da revela-ção da ternura paterna. A perfeição o deixou desumano.
Seguiu o “evangelho da perfeição”, não o da misericórdia. O pai precisou sair da festa para procurar convencê-lo a entrar. Trata-se de uma alegria que o filho mais velho não é capaz de compartilhar. Aos esforços paternos para fazer com que participasse daquele evento, ele responde não com a compaixão, mas com o argumento da obediência às obrigações e às proibições: “Já faz tantos anos que eu te sirvo sem ter jamais desobedecido às tuas ordens”. Nenhuma referência à vida de família, ao afeto, às relações...
O filho mais novo teve a coragem de pedir a sua parte, de arriscar, de viver a própria vida, de fazer as suas opções. Ele honrou a vida. O filho mais velho honrou os princípios, as normas... Nem passou por sua cabeça pedir a parte que lhe cabia. Se não consegue perdoar ao irmão é porque sabe que não é capaz de correr riscos. É um ser “autoblindado”.
A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus misericordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventu-rados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina. Como estilo-de-vida cristã a misericórdia nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior.
A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança...
"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, não como justos”.
Texto bíblico: Lc. 15,1-32
Na oração: Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor mi-sericordioso em favor dos outros.
- Recordar experiências onde você se sentiu cha-mado a exercer o “ofício da misericórdia”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo”. (lc.14,33)
Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega. E a palavra é “tudo”. O discípulo pela metade não pode ser discípulo de Jesus. O seguimento pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Jesus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida. Não servem as entregas pela metade.
A entrega parcial não é entrega. O apego a algo ou alguém, que divide a afeição com Deus, anula o resto da entrega e torna impossível que nossa relação com Ele cresça, se desenvolva e plenifique nossa vida.
Deus não pode compartilhar nosso coração com ninguém. Ele é o Senhor absoluto de nossa vida. A entrega total ativa todos os nossos recursos, desperta nossas faculdades e incendeia nossa fé. A fé, se é verdadeira, lança-se por inteira, sem dúvidas e sem reservas. Esta é a atitude genuína e verdadeira diante da vida. Esta determinação é a que abre caminho, nos faz avançar em direção à meta do Reino.
Na experiência humana ressoa, desde sempre, a marca ou o chamado a transcender-se, a ir além de si mesmo. O seguimento de Jesus pressupõe a pessoa capaz de sair de si mesma, de descentrar-se. Deixar ressoar a voz do chamado no próprio interior implica um investimento de toda a pessoa. Estamos inseridos numa cultura onde as entregas são vividas pela metade, as opções são de fôlego curto e os projetos não tem consistência. Vivemos a chamada “cultura líquida” onde tudo parece que nos escapa das mãos. Não há solidez nas decisões ou as decisões são apressadas e superficiais, porque o horizonte está obscuro.
As duas breves parábolas, no evangelho de hoje (23º Dom TC), constituem um toque de realismo: “calcula tuas forças porque só poderás chegar à meta se te entregares com determinação”. Jesus não impõe nenhuma condição, não quer gente que busque carreiras ilustres (para construir torres, para ganhar guerras...). Quer pessoas que sejam capazes de descentrar-se, de renunciar ao próprio ego, de desapegar-se daquilo que as atrofia e as limita, para investir numa proposta de vida que dá direção e sentido à sua própria existência.
Este é o lema de Jesus: renunciar a tudo para partilhar tudo. O mundo está cheio de homens e mulheres que querem construir suas próprias torres, à custa dos outros, para isolar-se nelas; e de outros que querem jogá-las abaixo para poder construir as suas torres. Pura competição de torres (competição de egos). O mundo está cheios de “reis”, de “egos inflados” que querem ganhar guerras, que compactuam com o poder, a vaidade, a riqueza... Quantas guerras são realizadas em nome da religião, pensando servir a Deus! Quanto “poder religioso” que se impõe às consciências das pessoas, alimentando sentimentos de culpa e desumanizando-as! Quanto investimento pesado em “guerras internas” que desgastam e afundam num combate estéril.
Mas Jesus não precisa de torres, não tem que ganhar nenhuma guerra. Nós também não. Mas queremos segui-lo. Pois bem, para estar com Ele temos de “renunciar a tudo”, para poder “ter tudo”, de outra maneira, em gratuidade. Sobram-nos muitas coisas, muitos planos; sobra-nos o desejo de segurança e de viver à custa dos outros. Por isso nos falta comunhão, gratuidade e vida fraterna. Somos construtores de torres desde o grande relato de Babel. Cada um faz sua torre, todos juntos queremos fazer a grande torre da cultura mundial capitalista e neoliberal, que é contada e medida com muito dinheiro e poder. Mas, temos “dinheiro” suficiente para fazer uma torre onde nos resguardamos e nos protegemos para sempre? A terra está cheia de ruinas de torres caídas. Entre elas caminhamos, sem nos dar conta de que logo também nossa torre cairá. Investimos em torres e guerras ridículas com a ilusão de alimentar nosso ego: autoimagem, vaidade, aparência... Tudo ilusão, a queda será retumbante. Todas as torres cairão; não temos refúgio e segurança definitiva neste mundo. No “descampado” estamos, junto com os outros, vivendo a comunhão em gratuidade; assim viveremos, assim morreremos, assim esperamos ressuscitar.
A perseverança tenaz para conservar o rumo nos desertos da vida é necessária para chegar ao oásis final. Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores com liberdade, com decisão e responsabilidade. Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.
O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocentrada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia o que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”. Na vida cristã, o seguimento é questão de sedução, de paixão, de atração, de coração...; isso significa que Jesus Cristo é de fato o “amor primeiro”, aquele que antecede a qualquer outro, de maneira especial o amor aos familiares. Daí nasce a harmonia interior. Quando o seguimento torna-se o eixo central, todos os elementos de nossa vida, todas as afeições, todas as potencialidades do espírito, encontram-se em “seus lugares”, estabelecendo uma deliciosa experiência de paz. Os afetos “orientados” e “ordenados” à pessoa de Jesus, cria um novo referencial, um novo centro afetivo. “É necessário ter um importante objeto de amor para abandonar antigos amores”. Em resumo, trata-se de ordenar o amor, para que amemos com um amor operativo, oblativo...
Portanto, para que haja “modificação afetiva” é necessário investir numa relação personalizante, alicerçada na pessoa de Jesus Cristo e nos valores do Reino. Só há transformação efetiva se houver impacto no mundo afetivo. Para mudar afetivamente é necessário “alguém” que possa despertar em nós um impacto afetivo. Existem dinamismos interiores que podem atrofiar ou expandir o seguimento de Jesus.
Se seguimos Jesus que nos seduz por sua verdade, sua personalidade, sua ternura, suas atitudes perante as pessoas e instituições, sua liberdade, sua presença compassiva, sua coerência na verdade e no amor..., seremos “afetivamente impactados”. E a afetividade ordenada nos fará livres; a liberdade, por sua vez, possibilitará uma abertura a um horizonte de sentido; será movimento para..., nos fará ir além de nós mesmos.
Nesse sentido, no processo de seguimento, a pessoa inteira é mobilizada: corpo, mente, afetividade, coração, sensibilidade...
Texto bíblico: Lc 14,25-33
Na oração: Escolhe e decide. Escolhe teu Senhor e serve-o fielmente. Não duvides, não adies, não esperes. Desterra as meias-medidas de tua vida e decide-te fazer as coisas com plenitude, sobretudo as coisas de Deus. É isto que Ele espera.
- quais são seus “amores” (afetos desordenados que exigem alto investimento) que fragilizam e atrofiam o seguimento de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar” (Lc 14,10)
Em nossa sociedade há um complexo sistema de normas de protocolo através das quais cada um deve se situar, observando uma rigorosa hierarquia na posição social ou religiosa, segundo seu “status” ou importância. Isso revela o afã que o ser humano tem de sobressair-se, de brilhar, de competir, de sentir e de querer estar por cima dos outros. Conviver com este desejo egocentrado parece tão natural que nem percebemos sua presença, em nosso interior e à nossa volta. Basta estar atento ao que acontece nos eventos sociais: casamentos, homenagens, festas...
Sabemos que o ego se move sempre a partir de suas necessidades; dentro dessas necessidades, a mais básica provavelmente seja a de “ser reconhecido”, que se expressa na necessidade de “ser o primeiro” e de buscar que tudo gire em torno dele e de seus interesses.
As palavras de Jesus abordam precisamente estas questões: quê lugar busco?; o que me move a fazer as coisas que faço?; quê interesses estão envolvidos?...
O ego busca “os primeiros lugares”: sonha em se destacar, ser visto, sentir-se reconhecido; ama o aplauso e os gestos de admiração em sua passagem; encantam-lhe as roupagens especiais e os sinais distintivos de sua valia; quer ter sempre razão e busca impô-la aos outros.
Frente a esta tendência, a palavra de Jesus vai à raiz: trata-se de des-identificar-nos do ego. Não somos essas necessidades, não somos o ego com seus interesses. Quando nossa identidade original emerge, deixamos de viver para o ego. Só quando nos vemos em profundidade, somos transformados.
Quando desvelamos e experimentamos nossa verdadeira identidade, nosso ego inflado cai e se esvazia. E com ele, se esvaziam também aquelas necessidades ridículas que guiavam nossa vida. Jesus acaba com todo tipo de protocolo, convidando os seus seguidores à sensatez e ao sentido comum. O conselho de Jesus deve converter-se em prática habitual do cristão.
O lugar do discípulo, do seguidor de Jesus é, por livre escolha, o último lugar.
Suas recomendações no Evangelho de hoje(22º dom TC) mostram as regras de ouro do protocolo cristão: renunciar a considerar-se importante, convidar aqueles que não podem retribuir, dar preferência aos outros, convidar para sentar à mesa da vida aqueles que foram excluídos pela sociedade.
As palavras de Jesus são um convite à generosidade que não busca ser recompensada, a celebrar a festa com aqueles com quem ninguém celebra e com aqueles de quem não se pode esperar retribuição. O cristão ocupa o último lugar para que não haja “últimos” nem excluídos; optar pelo “último lugar” é denunciar, com delicadeza e ternura, toda hierarquia desumanizadora. Maravilhoso gesto que revela a única aspiração daquele que se inspira em Jesus: a de construir um mundo de irmãos, iguais no serviço mútuo.
Quem assim vive merece uma bem-aventurança que vem se somar àquelas outras bem-venturanças do Sermão da Montanha: “Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir”.
À luz das considerações acima, preparar a mesa e fazer a refeição com os outros implica todo um ritual. Comer é mais do que ingerir alimentos, é entrar em comunhão com as energias que sustentam o universo e que, por meio dos alimentos, garantem nossa vida.
Por isso, a mesa, a ceia e o banquete são cercados por uma rica simbologia. O próprio Reino de Deus, a utopia de Jesus, é apresentado como uma ceia ou um banquete na casa do Pai. O Deus que Jesus revela é Aquele que desce das alturas, entra nas casas, toma assento junto à mesa, come com as pessoas, serve-lhes o pão. Na intimidade da mesa, Ele restitui aos excluídos a dignidade e a autoestima, pois eles são os preferidos do Reino da Festa.
“No Filho” o Pai é que entra na casa deles e come com eles; estabelece novas relações; perdoa-lhes, acolhe-os com compaixão e misericórdia, sacia-lhes a fome... Os que tinham coragem de se sentar à mesa com Jesus, não podiam mais sair do mesmo jeito, pois a mesa do pão compromete com o pão, a justiça e o amor.
A chave de acesso ao mundo sagrado da mesa é sempre a relação com o outro. Para esse centro converge o ser humano em busca do alimento, para renovar suas energias, tomar novo impulso... descobrir-se humano. É junto à mesa que se dá o processo de humanização e comunhão.
O nosso hábito de fazer refeição também revela traços de nossa personalidade e de nossos comportamentos cotidianos. O nosso modo de estar à mesa revela nossas habituais atitudes no relacionamento com os outros. A mesa é também lugar de denúncia de nossos fechamentos, de nossas pressas, de nossas resistências ao diálogo, de nossos medos, de nossa dificuldade em acolher o diferente...
Com isso, percebemos que nem todo encontro de refeição alcança a sua finalidade, a sua ressonância positiva em nós humanos. A mesa pode ser corrompida, torna-se o lugar de rupturas, de frieza e de competição. É claro que a “culpa” não é da mesa; ela faz a sua parte: a mesa é sempre oblativa, acolhedora, congrega as diferenças, impele ao serviço... Mas, nem sempre, nossa resposta é de gratidão.
Há mesas para tudo; mesas solitárias, mesas da corrupção, do poder, da exploração..., tudo o que envolve interesses, seduções, vaidades... A frieza tomou conta das relações em torno à mesa; a ausência da ritualidade aumentou a distância entre seus participantes. Há uma verdadeira profanação da mesa ao ser transformada em lugar de conchavos sujos, negociatas interesseiras, tramas maldosas.
Devemos recuperar o sentido da mesa como um altar que deve ser preparado e ornado com carinho, para ser digna de realizar a sua missão sagrada, pois sagrados são também aqueles que dela se aproximam, se apoiam e se reclinam sobre seus dons. A mesa é um sinal de comunhão; ao mesmo tempo que ela sinaliza, ela realiza aquilo que sinaliza, ou seja, a inter-comum-união.
Ela não é agente passivo, mas construtora de novas possibilidades de vida. A refeição em torno da mesa representa um ato comunitário e reforça nos participantes os laços de humanidade, de compaixão, de mútua confiança e de comunhão. Por toda esta carga de simbolismos, a mesa não pode ser posta de qualquer maneira; a sala que ostenta a mesa deve ser um local aconchegante e íntimo, para realizar o milagre do diálogo.
A mística da mesa da refeição, convida, convoca e se coloca na vida do ser humano como fator determinante de sociabilidade, de valores e equilíbrios sociais, enfim, de humanização. Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa é também o lugar onde acolhemos a dor e as tristezas do outro, com quem partilhamos nossa refeição. A mesa-refeição, portanto, é o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Lugar humano e fecundo, onde o imprevisível pode acontecer.
Texto bíblico: Lc 14,1.7-14
Na oração: Que maneiras – consciente ou inconsciente – tem meu coração para levar-me a buscar os “primeiros lugares”?
- Quando convido alguém à minha mesa, o faço pensando na recompensa que me poderá devolver?
- Qual a compensação afetiva que espero?... Qual minha “agenda oculta”? O que espero “ganhar ou perder”?
- Quê lugar ocupa a mesa da refeição em minha casa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra?” (Lc 12,51)
A vida e a mensagem de Jesus revelaram uma novidade de tal magnitude que gerou uma radical conflitividade com as instituições sociais e religiosas de seu tempo. De fato, com a presença desconcertante de Jesus, chega até nós a “Boa-Nova”, não precisamente para pôr remendos à lei, ao culto e aos ritos, mas para revelar a possibilidade de uma nova maneira de viver, uma nova atitude frente àqueles que a religião excluía: pecadores, pobres e marginalizados.
Jesus não buscou o conflito (já que trazia uma mensagem de misericórdia e fraternidade) mas conheceu uma das experiências conflitivas mais dramáticas da história humana. Do começo ao fim, a crise e o conflito estiveram presentes em sua vida e em sua missão.
Tudo o que Ele fazia – suas atitudes, seus gestos, suas palavras – revelava uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, um novo movimento, um novo projeto. Sua presença, inspiradora e provocativa, colocava em questão e desmontava toda uma estrutura social e religiosa que desumanizava.
Jesus tornou-se um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
O conflito não foi uma surpresa para Ele, nem uma espécie de fatalidade à qual se encaminhou sem saber porquê. O conflito foi algo que adquiriu densidade cada vez maior em sua consciência, primeiro como uma possibilidade, depois como uma exigência de sua fidelidade ao Projeto do Pai em favor da vida do ser humano.
Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da fidelidade de Jesus. O que tem valor em sua vida é seu amor fiel, e não os conflitos em si mesmos; o que é conflitivo é sempre ambíguo; o que lhe dá sentido é a causa justa que o provoca e a fidelidade a essa causa que gera um ambiente de tensão.
Esse é o sentido da bem-aventurança dos perseguidos por causa da justiça do Reino.
A Cruz vai ser o sinal e a síntese da dimensão conflitiva de Jesus e de sua missão. Por ter vivido como viveu, não podia terminar de outra maneira. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus à missão é o resultado inevitável do embate entre sua missão, que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças, e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino. Sua existência não foi “neutra” no sentido de uma vida que passa sem ser percebida.
Jesus disse a verdade e desmascarou o poder em todas as suas formas: religioso, político, intelectual. Desmascarar o poder é desmascarar os ídolos que causam a morte. Por isso, os conflitos enfrentados por Jesus são consequências de uma opção, de um caminho, de uma prática feita de amor e de solidariedade com os que mais sofrem e são oprimidos.
Jesus não só sofreu a perseguição e os conflitos, mas também nos apresenta as consequências do seu seguimento. Quem vive radicalmente o Evangelho, vai ser rejeitado, perseguido... O conflito faz parte da vida do(a) seguidor(a) de Jesus; ele(ela) vive em meio a uma realidade que resiste à novidade e à transformação de vida exigida pelo Reino.
De uma forma por si mesma desconcertante e misteriosa, o conflito constitui um chamado do Senhor, uma graça para seguir Jesus perseguido, com uma opção mais madura e com motivações mais purificadas, segundo o Evangelho.
Tendo por referência inspiradora a pessoa de Jesus e o modo de agir das primeiras comunidades cristãs, nós, seguidores de Jesus, devemos enfrentar com seriedade o sentido cristão dos conflitos pelos quais atravessamos. Deus também se revela no conflito; nos conflitos há uma manifestação do Espírito.
Não há só conflitos puramente “exteriores” (perseguições, acusações, oposições...), por causa do Evangelho. Todo conflito sempre apresenta uma dimensão interior, mostra-se como uma crise do espírito. Conflito e crise andam juntos.
A crise é um período de insegurança, que convoca a uma nova síntese de valores e a uma vivência evangélica dos mesmos. O conflito gera a crise porque obriga a repensar, a aprofundar, arrancando-nos da aparente estabilidade e do conformismo.
Nesse sentido, o conflito e a crise são um apelo a uma progressiva conversão. São um convite a um aprofundamento da totalidade do compromisso cristão e a um crescimento em todos os valores que o conflito pôs em crise. Pode-se afirmar que não há seguimento cristão, nem aprofundamento de uma maturidade adulta que não passem pelas crises do conflito.
O conflito leva à maturidade e pressupõe a maturidade para ser assumido e superado. O conflito pode converter-se em fonte de crescimento quando uma pessoa ou uma comunidade cristã deixa de negá-lo ou evitá-lo, mas quando aprende a manejá-lo com atitudes de integração, discernimento e compreensão. O conflito aprofunda e purifica a existência; aprende-se a discernir entre o essencial e o acidental e a despojar-se do inútil ou supérfluo para ficar com o que é mais importante.
O conflito se converte numa experiência positiva quando nos motiva a desenvolver novas destrezas, nos anima a buscar meios para manejar problemas, estimula nosso interesse pela comunidade e nos aproxima dos outros, nos leva a esclarecer nossos pontos de vista e a reexaminar nossas posturas...
Os conflitos demandam nossos maiores recursos criativos.
Tanto no processo pessoal do seguimento de Jesus como na configuração de uma comunidade cristã, os momentos de conflitos são inevitáveis; nesses momentos densos, de encruzilhada e de resistência, abre-se a possibilidade de descobrir um renovado sentido de unidade e consistência, que permite ao sujeito (pessoal ou comunitário) sentir-se a si mesmo no meio de constantes tensões.
Os conflitos abrem a possibilidade de intuir novas potencialidades ou pôr em jogo recursos que, até o momento da crise, talvez não tivesse necessidade de ativá-los. Por isso, os conflitos obrigam geralmente a uma tomada de decisão inadiável.
Os conflitos revelam o movimento da vida. A realidade é dinâmica, move-se, evolui. O absurdo de querer fixá-la em esquemas teóricos e modos ultrapassados de comportamento, fatalmente conduz ao confronto de forças, de ideias, de visões diferentes...
Os conflitos não são negativos. Eles nos ajudam a aceitar melhor a verdade e fazer nascer o novo, mais rico e mais amadurecido. O Evangelho nos lembra a morte da semente e a mulher grávida que aguardava sua hora, terminando por contribuir com vida nova para o mundo.
Em meio aos conflitos, também nossas comunidades cristãs podem crescer em amor fraterno. É o momento de descobrir que não é possível seguir a Jesus e colaborar com Ele no projeto humanizador do Pai sem trabalhar por uma sociedade mais justa e fraterna, mais solidária e responsável. O conflito é um “ensaio da esperança”, uma certeza de que o Espírito “renova todas as coisas” sobre a face da terra.
Texto bíblico: Lc. 12,49-53
Na oração: Rezar as atitudes pessoais frente aos conflitos. Como viver o Evangelho em meio a conflitos?
Como crescer e amadurecer no conflito? Como aprofundar nossa missão no conflito?
Descobrir a presença e o chamado de Cristo dentro dos conflitos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)
As insistentes recomendações que recebemos, ao iniciar uma viagem aérea, contém um tom de advertência séria: somos informados que vamos passar por um momento de certa gravidade e nos recordam que a decolagem e a aterrissagem são momentos de risco e de instabilidade; por isso é preciso preparar-se e dispor-se. O aviso “afivelem seus cintos de segurança” corresponde ao imperativo “tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas”, proferido por Jesus no Evangelho deste domingo. Tal apelo equivale a mobilizar-nos para realizar um trabalho, uma viagem, uma missão...
As advertências são necessárias, porque facilmente nos fechamos ao nosso habitual modo de viver, caindo na acomodação e na falta de atenção àquilo que acontece ao nosso redor. Continuamente estamos diante do novo e do imprevisível e preferimos nos fixar no que é passado e já conhecido, pois nos dá a impressão de segurança. Com isso não avançamos e nem crescemos. Perdemos ricas oportunidades.
É inútil se esquivar da passagem do tempo e suas consequências, não escutar seus avisos e dissimular seus efeitos. Facilmente enterramos nossa cabeça na areia, evitando tomar consciência daquilo que pede de nós uma atitude, colocar-nos de pé e sair ao seu encontro bem cingidos. O tempo exige decisão, pois o tempo é sempre novo e nos abre a novas possibilidades. Somos “seres de travessia” mas a tentação a permanecer na “margem conhecida” é contínua.
Em que consiste, então, “ajustar o cinto” e “cingir-se”? De imediato, consiste na decisão de assumir a frágil existência, habitá-la com sentido e começar a acolher as mudanças que a passagem do tempo vai introduzir nela. Gostemos ou não, estamos diante de uma etapa diferente das anteriores, na qual, junto a evidentes perdas, apresentam-se novas oportunidades. E dispomos também a assumi-la a partir de uma atitude de radical confiança em Deus, seguros de Sua presença e Sua companhia, em todo e qualquer tempo.
As palavras de Jesus são também hoje um chamado a viver com lucidez e responsabilidade, sem cair na passividade ou na letargia. Vivemos tempos densos, carregados de presença e que pedem de nós uma prontidão. Tempo para tomar consciência dos medos, receios e resistências despertados pela “travessia” da vida; tempo para tirar de dentro de nós aquelas amarras que impedem o fluir da vida.
Não é a hora de apagar as luzes e irmos dormir. É a hora de reagir, despertar nossa fé e seguir caminhando para o futuro, projetando e promovendo caminhos novos de fidelidade ao projeto de Jesus.
Como manter viva a esperança? Como não cair na frustração, no cansaço ou no desânimo? Nos Evangelhos, encontramos diversas exortações, parábolas e chamados que só tem um objetivo: manter viva a responsabilidade do seguidor de Jesus. Uma das advertências mais conhecidas é a que encontramos no Evangelho deste domingo: “Tende cingido vossos rins e suas lâmpadas acesas”.
As duas imagens são muito expressivas. Indicam a atitude que os empregados devem ter quando, à noite, estão esperando que regresse seu senhor para abrir-lhe a porta da casa quando ele os chamar. Devem estar com a “cintura cingida”, ou seja, com a túnica presa à cintura para poder mover-se e atuar com agilidade; devem estar com as “lâmpadas acesas” para ter a casa iluminada e manter-se despertos.
A vida do seguidor de Jesus é um contínuo estar em alerta, estar sempre despertos, estar sempre em espera, estar sempre dispostos. Ele precisa viver com os olhos abertos às vindas surpresas de Deus; precisa estar com os ouvidos atentos para escutar seus passos; precisa viver sempre em prontidão para abrir a porta de seu coração.
As palavras de Jesus não contém nada de ameaça nem de cobrança; não alimentam um ego fechado nem sustentam nenhuma ideia de mérito. São palavras de sabedoria que convidam, ao contrário, a despertar para a Realidade que somos. Despertar é uma das palavras básicas de todas as tradições de sabedoria. Todas elas nos alertam de que facilmente nos submergimos no sono da ignorância, crendo ser o que não somos e desconectados do que realmente somos; e esta é a fonte de muitos sofrimentos.
A condição humana pode ser definida em termos de “espera radical” ou de “esperança”. Porque nos definimos como radical espera, caímos na tristeza, quando vislumbramos um futuro ameaçador, ou nos entusiasmamos, pensando alcançar algo que nos agrada. O filósofo Gabriel Marcel fez uma análise penetrante das atitudes humanas de esperança e desespero. Esperar, para ele, é passar do “tempo fechado” para o “tempo aberto”, da superfície do “devir” para a profundidade do eterno, da fugacidade do “ter” para a plenitude do “ser”.
A esperança, ao abrir-se para o futuro imprevisível, benfazejo e plenificante, cria o espaço vital que permite a realização daquilo que interiormente é desejado e buscado (“buscar e encontrar a Vontade divina”). Desesperar, pelo contrário, é fechar-se sobre si mesmo, enclausurar-se no tempo, que não faz mais que passar mecanicamente, sem trazer nada válido para a construção de algo novo. O futuro perde toda sua surpresa e mistério, feito mera repetição de experiências cristalizadas.
A espera tem, sem dúvida, um significado ativo; a espera não pode se separar da busca e do encontro, do atuar. Esperar é ousar re-nascer, vir-de-novo, re-começar... na fulgurante arte de tecer a vida naquilo que ela tem de mais íntimo e profundo. A espera, quando é carregada de amor e presença, faz crescer e conhecer regiões do coração até então desconhecidas e inexploradas. Não mais confundir espera com impaciência. A dinâmica da espera inclui a surpresa. Esta certeza constitui o centro da experiência de fé. Por isso, a espera é sempre agradecida e confiada, uma autêntica sede de Deus. Brota uma certeza: o Esperado, quando chega, ultrapassa sempre o que se espera.
“Da aurora ao anoitecer, estou sentado à minha porta. Sei que, quando menos o penso, virá o feliz instante em que o verei. Enquanto isso, sorrio e canto sozinho; enquanto isso, o ar está se enchendo do aroma da promessa” (Tagore).
A esperança, neste início de século e de milênio, parece ser ainda mais urgente e necessária. Os homens e mulheres deste tempo, carentes de certezas, parecem ter perdido a firmeza das antigas “verdades eternas”, rocha onde se alicerçava a esperança cristã.
A esperança é como uma “memória do futuro”; tem caráter profético. E, enquanto o anuncia, de certa forma, o prepara. Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa esperança. Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava-se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).
A esperança é a disponibilidade de alguém engajado numa experiência de comunhão, que oferece o penhor e as primícias do que se espera. Nesta esperança nos alegramos, mesmo nas horas mais difíceis e escuras da nossa vida. Esta é a esperança que desejamos viver comunicar ao mundo; é a esperança que dá calor e sentido às nossas esperas.
Texto bíblico: Lc 12, 32-48
Na oração: O ser humano é um ser de “espera”. Nesta vida, todos nós esperamos algo que está sempre à nossa frente, além das nossas possibilidades atuais. O nosso coração está habitado por esperanças de todo gênero. O que nos diferencia é a qualidade, a consistência e o realismo das nossas esperanças.
- Em quê estou colocando a minha capacidade de esperar?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Então poderei dizer a mim mesmo: meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (Lc 12,19)
O monólogo do “homem rico”, no Evangelho de hoje (18º dom. TC), revela que, tudo na sua vida, gira em torno do próprio eu: "meus celeiros", "meu trigo", "meus bens". Em sua vida, não existe espaço para Deus e para o próximo. Tudo é pensado em função de sua satisfação pessoal: solidariedade, partilha, misericórdia são palavras banidas de seu vocabulário.
Este homem reduz sua existência a desfrutar da abundância de seus bens. No centro de sua vida está só ele e seu bem-estar. Deus está ausente. Os empregados que trabalham em suas terras não existem. As famílias das aldeias que lutam contra a fome não contam. Ele é expressão mais visível do dinamismo negativo que nos desumaniza: a avareza e a cobiça.
De onde vem a avareza e a cobiça? Onde se encontra a raiz do instinto de posse?
A parábola do “homem rico”, dominado pelo “ego possessivo”, é contada por Jesus a partir de uma demanda de alguém que d’Ele se aproxima e lhe suplica que resolva uma questão da partilha de bens com seu irmão, que lhe faça justiça. Jesus sabe colocar-se em seu lugar: Ele não veio ao mundo como juiz jurídico, legal. Como bom pedagogo, Ele parte de uma questão colocada por alguém e vai mais além da exterioridade da situação; ou seja, Ele vai à raiz dos problemas, que está no coração do ser humano.
Para Jesus é mais importante desmascarar a cobiça e a avareza que nos dominam que fazer valer os direitos na partilha da herança.
Podemos dizer que por detrás desse impulso de acumulação se esconde uma experiência de empobrecimento humano. Na origem da avareza, parece existir um vazio afetivo, uma infantil experiência de inse-gurança e, em último termo, uma desconexão de nossa verdadeira identidade.
O vazio afetivo “exige” ser preenchido compulsivamente: esta é a fonte da ansiedade, que se traduz em variadas dependências, uma das quais, pode ser a afeição desordenada pelo dinheiro ou pelos bens materiais. Neste sentido, a cobiça ou avareza é esforço – inútil e estéril – de preenchê-lo. Mais em profundidade, a avareza, enquanto necessidade ilimitada de acumular, se explica – como todos os comportamentos egóicos – a partir da desconexão de nossa verdadeira identidade.
O que somos – em nossa identidade profunda – é Plenitude. Mas, quando nos distanciamos de nosso “eu profundo” ou o ignoramos, começamos a viver como seres separados e carentes, em luta permanente e esgotadora por dissimular aquela carência que cremos ser. Mendigamos migalhas – “ajuntamos tesouros para nós mesmos” – sem reconhecer que já somos “ricos diante de Deus”.
Esta carência existencial é reforçada pelo ambiente no qual vivemos, marcado pelo consumismo; a publicidade continuamente nos impõe a idéia de que só tem valor quem tem e acumula bens e riquezas.
Nesse ambiente, cada um de nós vai alimentando uma espécie de ego, vivendo centrados em nós mesmos e separados do resto do mundo. Tal ego é possessivo. Muitas vezes manifesta-se como um desejo insaciável de dinheiro e de bens. Daí a obsessão pela riqueza. Toda a nossa economia está baseada na poderosa força impulsionadora do interesse individual. O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. A partir da riqueza, ganha força a busca do poder e do domínio sobre os outros.
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Esse ego não confia em ninguém a não ser em si mesmo. É essa falta de confiança que nos torna tão inseguros. Ficamos inevitavelmente cheios de medos, preocupações e ansiedades. O nosso ego, ou individualismo egoísta, torna-nos solitários e temerosos. O ego não ama ninguém além de si, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvelar e desmascarar nosso ego com todas as suas maquinações e duplicidade. Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade. O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo o Evangelho a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação. Porque só assim deixa refletir algo da maneira de ser de Deus. Nisso consiste também em ser “rico para Deus”.
As palavras de Jesus, nesse sentido, são magistrais: “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância...; a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (v. 15). O Evangelho não nos convida ao conformismo. O primeiro é a justiça, querida por Deus, pregada e vivida por Jesus: que todos tenham pão, moradia, saúde... fruto da comunhão, da solidariedade, novo nome da justiça; isso é o Reino, a Nova Humanidade. Mas pode ocorrer que quando tenhamos o justo, o que nos corresponde como filhos e irmãos, ambicionemos mais. Esta cobiça, pecado de raiz, nunca nos permitirá descansar.
Na vida, todos precisamos de algumas seguranças. E aspiramos condições dignas de vida. Mas, há uma linha que separa a necessidade verdadeira da ansiedade imposta, a segurança do necessário e a insegurança do excesso e do abuso. Há uma tentação muito humana que a todos nos habita: a de ter mais, acumular sempre, apossar-se de tudo... Parece que não nos satisfazemos nunca com aquilo que conseguimos. Tudo revela-se insuficiente, e o impulso por acumular – riquezas, bens, relações ou experiências – se converte em voracidade.
É preciso estar sempre alerta para não se deixar determinar pelo dinamismo da cobiça. Até onde chegar na acumulação de bens?
A resposta cristã é “viver como Jesus”: viver confiados nas mãos providentes do Deus Pai/Mãe, buscando o Reino-Utopia como o mais importante. “O resto virá por acréscimo”. A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do des-centramento de si mesmo em favor do serviço ao outro, o das obras em favor dos mais pobres e desfavorecidos...
Porque “ser rico diante de Deus” não significa ter “acumulado” méritos, mas deixar cair nossa falsa identidade, tomar distância do ego e, pacificado e aquietado nosso interior, fazer-nos conscientes da Plenitude que somos.
“Ser rico diante de Deus” significa, antes de mais nada, descobrir a nobreza de nossa identidade profunda, identidade unitária e partilhada, a salvo de ladrões, enfermidades e mortes. Trata-se da identidade pela qual nos experimentamos no “céu”, a Presença divina que somos e na qual vivemos.
Texto bíblico: Lc 12,13-21
Na oração: Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como “verdade”- de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.
- Dar “nomes” aos apegos que travam o fluir de sua vida.
- Quais são suas “verdadeiras riquezas” pelas quais investe o melhor que há em você.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Pedi e recebereis; buscai e encontrareis; batei e vos será aberto” (Lc 11,9)
O Pai Nosso é a única oração que Jesus nos ensinou e resume de maneira simples sua mensagem, sua intenção e sua missão. Nela, Jesus expressa intimidade com o Pai e seu compromisso com os outros, especialmente os mais pobres e sofredores. Se rezado com atenção e profundidade o Pai Nosso é também, para nós, um itinerário de expansão de nós mesmos, uma proposta de descentramento.
Tanto em sua forma reduzida (Lucas) como em sua forma mais extensa (Mateus), a oração do Pai- Nosso não faz referência a nenhum dogma específicamente cristão: nem Trindade, nem Jesus como Filho de Deus, nem Espírito Santo, nem Igreja, nem Eucaristia, nem sacramento... Também não contém nenhuma referência que seja exclusivamente judaica (nome de Javé, patriarcas, Moisés, Lei, Templo, cidade sagrada de Jerusalém, expiação ritual, tradições nacionais, alimentos puros, purificações, festas...).
Jesus orou como um judeu e assim nos ensinou a orar. Mas, ao mesmo tempo, o Pai-Nosso é uma oração universal, pois pode ser assumida por todos aqueles que crêem em Deus e se atrevem a invocá-lo com a expressão “Pai”, pedindo-lhe que seu Nome seja santificado, que venha seu Reino, que o pão seja partilhado, que o perdão seja um estilo de vida.
O Pai-nosso é uma oração universal porque ela é dirigida a todo ser humano, de qualquer raça, cultura, religião, mas em especial àqueles que tem coragem para se esvaziar de si mesmos e se tornar eternos aprendizes, àqueles que procuram a serenidade e a mansidão, àqueles que tem sede e fome de justiça, àqueles que querem construir uma nova sociedade.
Apesar de Deus ter muitos nomes nas diversas religiões, a deslumbrante oração ensinada por Jesus só aponta um nome: Pai. “Pai” é um nome que qualquer ser humano compreende, um nome que não fere nenhuma cultura e não fomenta qualquer sectarismo. Por isso, tudo o que a oração do Pai-Nosso pede é universal (pai, pão, perdão), sendo, ao mesmo tempo, muito judaico, muito cristão, ou seja, muito humano.
Isso é ser cristão: na intimidade com Deus, poder dizer “Pai” (ou “Mãe”). Saber que estamos envolvidos pelas mãos providentes e cuidadosas do Pai, que somos presença de Deus no mundo (que Ele vive e se expressa em nós), essa é a essência da oração cristã. Nada mais, só isso: “Abba”, Pai/Mãe, proclamado e vivido... para assim crescermos e sermos humanos a partir de Deus.
Como todo judeu, Jesus orava com freqüência em forma de súplica e petição. E o Pai-Nosso é uma grande petição. Nela manifestamos nossa atitude filial: reconhecer a Deus o direito de ser Pai. O ser humano recorre a Deus como pobre, limitado, extraviado... A oração de petição é uma atitude do pobre que tudo agradece e tem consciência de esperar tudo de Deus.
A petição como atitude, nos desarma de nossa auto-referência e nos faz sair de nós mesmos numa dupla direção: ao Pai e aos outros. Ela tem um sentido muito nobre porque com isso confessamos a nossa indigência diante de Deus, manifestamos a nossa confiança e reconhecemos a Sua grandeza, o Seu Santo Nome e o Seu amor para conosco. Ao mesmo tempo, nossa vida se abre para as necessidades de todos, tornando-nos porta-vozes dos mais carentes. Nesse sentido, a petição arranca de nosso egocentrismo, expandindo-nos e fazendo-nos participar do mesmo fluxo do amor e do cuidado do Deus Pai/Mãe que tudo sustenta e ampara.
A oração do Pai-Nosso, portanto, resgata-nos da acomodação e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo; é instigadora e provocativa, uma fonte inspiradora que nos liberta da rotina “normótica” (vida sem criatividade e sem inspiração). Pedir não é dobrar a Vontade de Deus a nosso favor; é, antes, colocar-nos em sintonia com Ele, e assim entendermos o que é melhor para o verdadeiro bem de todos.
Na petição, expressamos a Deus, com simplicidade e confiança, todas as nossas carências, nosso ser radicalmente necessitado. Expressamos diante de Deus nosso limite e nossa impotência. Manifestamos a Ele nossa confiança plena, baseada justamente no contraste entre nossa mesquinhez e o surpreendente “muito mais” da bondade e do amor de Deus, pois Ele está, a todo momento, comunicando-nos tudo, agindo sempre em nosso favor e para nosso bem. Tudo procede das suas mãos providentes e cuidadosas.
Na expressão “pedi e recebereis”, Jesus procura despertar, naquele que ora, a confiança no Pai. Isso é o que nos ensina, também, a parábola do amigo inoportuno no evangelho de hoje; o que esta parábola recomenda não é tanto a perseverança na petição, mas a perseverança na confiança; não nos diz que Deus se colocará ao nosso lado pela insistência com que o pedimos, mas que Deus sempre está de nosso lado, querendo dar-nos tudo o que de verdade necessitamos.
Ao entrarmos no fluxo do Amor providente do Pai, a oração de petição dilata o nosso coração para receber aquilo que pedimos. É uma mudança no coração de quem reza. O sentido da petição não está, pois, no pedir, mas nas atitudes fundamentais da pessoa que pede. O que tem sentido não é a petição em si, mas a humilde gratidão, a acolhida agradecida, a confiança incondicional.
As diferentes petições dirigem a nossa atenção no sentido de orientar a nossa vida e as nossas necessidades a partir de Deus. O pólo de atenção passa da nossa necessidade para a bondade de Deus. Sempre é uma oração em Deus, uma oração daquele que vive para Deus e confiando em Deus. Aquele que vive assim, sabe com segurança que todas as suas petições feitas “em Deus” são escutadas prontamente. Este é o mistério da oração suplicante.
Um outro aspecto deve ser ressaltado na oração de petição: não é só Deus que ouve o que lhe é pedido, mas aquele que ora, continua a orar, até se tornar ele mesmo, ouvinte do que Deus deseja para todos os seus filhos e filhas. A petição o arranca do individualismo e o situa no horizonte do outro. Todos somos seres carentes e necessitados. Orar é saber ouvir o que Deus quer de nós: não para fazer Deus entrar nos nossos planos, mas para que nós entremos em sintonia com a Vontade d’Ele.
A oração de petição nos revela se realmente cremos. Nela confessamos que dependemos de Deus e que sozinhos não nos bastamos. A oração bem feita é a pedra de toque de nossa fé e de nossa humildade. Aqui o que se destaca é a certeza de que Deus nos escuta. Nesse sentido, a petição nos mobiliza a buscar aquilo que pedimos.
Quando rezamos encontramos a força para fazer o que nós íamos pedir a Deus. Esse é o autêntico sentido da oração de petição.
Texto bíblico: Lc 11,5-13
Na oração:
- Aqui, não se diz o quê é que se pede. O importante é a atitude de pedir, buscar, chamar...
- É a experiência da paternidade divina que fundamenta nossa certeza e justifica nossa insistência.
- Quem é o centro em sua oração de petição? Você, os outros, a glória e o louvor de Deus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Maria, recebeu-o em sua casa” (Lc 10,38)
Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da “hospitalidade”. É um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compreensão sobre a relação com nossos semelhantes.
A hospitalidade é uma “experiência existencial”, situa-se no nível do ser. É uma acolhida gratuita. Aquele que é acolhido tem direitos, mas também tem deveres e aquele que acolhe está disposto a mudar sua rotina, e ambos estão disponíveis a renovar, a redefinir sua identidade: “Antes de representar um problema para a minha identidade, ele (o hóspede) é estímulo para uma convivência sempre a reescrever, atualizar, enriquecer...” (Dal Corso, Marco).
A diaconia (serviço) da hospitalidade é um movimento que vem de dentro da pessoa e se estende no vaivém das relações humanas mais distantes e mais próximas. É abertura e disponibilidade àquele que interpela as nossas convicções, nosso modo rotineiro e estreito de viver.
Em contexto de hospitalidade, anfitrião e hóspede podem revelar suas riquezas mais preciosas e trazer vida nova um ao outro. Só quem tem coração dilatado vive a hospitalidade como surpresa provocativa. A hospitalidade é antes de mais nada uma disposição da alma, aberta e irrestrita. Acolher o outro significa multiplicar a alegria do encontro, da novidade e da partilha, não só do pão, mas da vida.
Como comunidade seguidora de Jesus somos chamados a oferecer espaço aberto, hospitaleiro, onde os estranhos possam libertar-se de sua estranheza e transformar-se em nossos companheiros. Talvez o conceito de “hospitalidade” possa oferecer uma nova dimensão à nossa compreensão de um relacionamento saudável e à formação de uma comunidade festiva e alegre em um mundo que sofre visivelmente de alienação, estranhamento e preconceito.
A hospitalidade envolve a escuta respeitosa daquilo que o outro tem a dizer, em uma abertura humilde do coração e da mente para compreender as diferenças e novidades que o outro nos traz. Aqui revela-se a diferença entre a hospitalidade de Marta e a de Maria, no evangelho deste domingo. A ansiedade e a preocupação de Marta impedem-na viver a hospitalidade com alegria. Seu ativismo compulsivo atrofia sua gratuidade e, quando se elimina a gratuidade, a vida pode perder seu sabor e seu sentido.
Como integrar Marta e Maria?
Marta é a eficácia do amor serviçal e hospitaleiro a um amigo muito querido que foi acolhido com todo carinho na casa familiar. Maria é a gratuidade que escuta absorta a novidade que Jesus traz. As duas dimensões da vida são necessárias.
Marta deve escutar o que diz Jesus e compreenderá que sua vida não fica limitada à tarefa de atender bem a familiares e amigos entre as quatro paredes da vida doméstica, senão que deve abrir-se para cuidar e servir o Reino de Deus que chega por todas as partes.
Maria não só deve estar atenta às palavras de Jesus, mas ao que dizem milhões de pessoas no mundo, suas solidões e suas alegrias, para que a novidade de Deus que se gesta em suas vidas encontre um rosto de lar onde possa ser acolhida e nascer na história.
Todos temos de ser Marta e Maria, o serviço eficaz e a gratuita contemplação de Jesus, irmanados em um modo original de viver a hospitalidade, onde o serviço pequeno e gratuito, a proximidade de portas abertas, o viver a cotidianidade como dom se constituem como a identidade cristã.
Essa é a nossa vocação: converter o “hostis” em “hospes”, o diferente em convidado, o estranho em amigo, e criar o espaço livre e sem medo, no qual a fraternidade pode ser experimentada em plenitude.
Na realidade, aqui se trata de um movimento expansivo onde se dá a travessia da hostilidade à hospitalidade. Tal passagem é repleta de dificuldades: nossa sociedade é marcada pela presença de pessoas temerosas, defensivas e agressivas, agarrando-se ansiosamente ao seu modo fechado de viver, inclinadas a olhar ao redor com suspeitas, sempre à espera de que um inimigo de repente apareça e cause algum dano.
A hostilidade campeia nas redes sociais e a xenofobia circula como um veneno: daí a agressividade preconceituosa no campo político-social-racial-sexual... De fato, ultimamente, os “estranhos” e “diferentes” tornaram-se mais sujeitos à hostilidade do que à hospitalidade: protegemos nossas casas com cães e trancas duplas, nossos edifícios com vigilantes, nossos colégios com guardas, nossas estradas com policiais, nossos aeroportos com seguranças, nossas cidades com polícia armada...
Nosso coração pode querer ajudar os outros e mostrar simpatia para com os pobres, solitários, rejeitados, minoritários...: no entanto, rodeamo-nos com um muro de medo e de sentimentos hostis, evitando instintivamente pessoas e lugares que possam nos lembrar de nossas boas intenções.
Em um mundo tão competitivo, mesmo pessoas próximas, como colegas de classe, de equipe, de trabalho, todos podem ficar infectados pelo medo e pela hostilidade quando sentem o outro como uma ameaça à sua segurança pessoal.
Muitas vezes, instituições criadas para oferecer espaço e tempo propícios para o desenvolvimento da hospitalidade (família, escolha, religião...), tornam-se tão dominadas pelo “defensismo” hostil que acabam atrofiando e bloqueando o melhor que cada pessoa traz em seu coração.
Hospitalidade não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas divisórias. A hospitalidade não é um convite sutil para adotar o estilo de vida do anfitrião, mas a dádiva de uma chance para que o hóspede descubra o seu próprio estilo.
A hospitalidade não é uma tática para fazer de nossa fé e de nosso caminho critérios de felicidade; é abrir uma oportunidade para que os outros encontrem sua fé e seu caminho. O paradoxo da hospitalidade é que ela deseja criar o “vazio”, não o vazio temeroso, mas um vazio amistoso no qual os estranhos podem entrar e descobrir a si mesmos livres como foram criados; livres para cantar suas canções, para falar suas línguas, para dançar suas danças; livres para expressar seus sentimentos e para seguir suas decisões. E isso não só no espaço físico da casa, mas nas redes sociais, nos diferentes grupos de interesse, nos relacionamentos...
O verdadeiro hospitaleiro é aquele que oferece o espaço onde não temos nada a temer, onde podemos ouvir nossa voz interior e descobrir nossa maneira pessoal de sermos humanos. A verdadeira hospitalidade é inclusiva e dá espaço para uma grande variedade de experiências humanas.
Texto bíblico: Lc 10,38-42
Na oração: Continuamente nos deparamos com um Deus que chega gratuito e imprevisível em nossa vida, suplicando hospitalidade. Quando Ele é acolhido, nossa cotidianidade se converte em milagre.
- na relação com os outros, quê lugar ocupa a hospitalidade em sua espiritualidade cotidiana?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o com-portamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém”.
(Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
Os relatos evangélicos destacam que a atuação de Jesus está sempre inspirada, motivada e impulsionada pela misericórdia para com todo ser humano. É a misericórdia a que explica e define Sua maneira de ser e de atuar. O sofrimento das pessoas comove suas entranhas, penetra até o fundo de seu ser e se converte em seu princípio de ação transformadora.
O importante é entender que esta misericórdia não é um sentimento a mais, mas a reação básica de Jesus, que dirige e configura toda sua atuação. Não vem motivada por interesse algum. É amor gratuito que brota de sua profunda sintonia com o mistério insondável de Deus Pai-Mãe, fonte de misericórdia.
A partir desta misericórdia entende-se todo seu compromisso em aliviar o sofrimento humano. Esta presença misericordiosa de Jesus está presente, de maneira contundente, na parábola do “bom samaritano”, onde o próprio Jesus “pinta” seu auto-retrato.
Jesus, o grande samaritano, se aproxima de todos e de cada um de nós para curar as nossas feridas e derramar sobre elas o óleo da sua consolação e o vinho da sua força; Ele se ocupa de nossas fragilidades, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da compaixão e da esperança teimosa.
Com justiça, os padres da Igreja gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve misericordiosamente junto a nós pecadores, descendo de sua “cavalgadura” e fazendo-se nosso companheiro de viagem.
Na parábola, o samaritano se sentiu impactado, se deixou afetar, seu coração se estremeceu..., ao “olhar um corpo estendido no chão”. A partir desse momento, ele “desvia” do seu caminho e se desloca em direção àquele de quem todos se desviavam e “passavam do outro lado”. Gasta do que é seu, dedica tempo, mobiliza toda sua atenção frente ao ferido. Mistura sua vida com a de um necessitado e rompe solidões. Muda seu esquema de vida e se deixa levar pela misericórdia criativa.
Dito de outra maneira: o samaritano começa a viver novos registros do que são a solidariedade, o amor e a liberdade. Seu coração tocado pela compaixão o anima a modelar a vida em prol dos outros.
Quando acolhemos a realidade e nenhuma venda nos impede ver o sofrimento do outro, a reação imediata é a compaixão. A compaixão samaritana não se reduz a um mero sentimento empático; inclui, além disso, a ação por aliviar o sofrimento do outro e o risco de compartilhar seu destino.
Em pouco mais de uma linha, o evangelista Lucas, na parábola do Bom Samaritano, ajunta uma infinidade de ações: o samaritano se compadece, se aproxima, enfaixa suas feridas, coloca-o em seu próprio animal, o conduz à hospedaria e o cuida.
Compadecer-se, aproximar-se, curar, levar, cuidar... tecem a rede de ações que definem a ajuda samaritana, diferenciando-a de propostas meramente retóricas, modelos assistencialistas e ajudas estruturais desencarnadas.
A compaixão derruba as diferenças que podem dar-se na relação ajudador-ajudado. Compadecido e compadecedor se sabem igualmente vulneráveis. A compaixão prevê reciprocidade e move a descer em direção ao outro: “hoje por ti, amanhã por mim”.
A compaixão nos coloca ao lado das vítimas e, a partir daí, nos ajuda a ler o drama interno da história em termos de injustiça, desigualdade e opressão. A compaixão pergunta pelos desajustes estruturais que estão por detrás de cada desgraça. Por que nas catástrofes naturais o número de mortos costuma ser inversamente proporcional ao PIB per capita? Quê “grau de escala Richter de desgraça” é necessário para provocar um sismo em nosso interior e despertar o “samaritano” ali presente?
O ícone do “bom samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o próximo concreto, histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas decisivas, em relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do necessitado. O “próximo” não é somente o outro para mim, mas eu para o outro.
O “próximo”, no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca uma resposta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco, para socorrer o ferido. Mais ainda, o encontro com este ícone da ternura desperta dentro de nós o samaritano que permanece “adormecido”. Somente a Misericórdia de Deus, que revela seu Rosto no rosto de tanta exclusão, violência e sofrimento, é capaz de despertar o “samaritano” que todos carregamos.
Isso implica em abandonar a estreiteza de nossos projetos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos sofredores e excluídos, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O “bom samaritano” é todo aquele que se detém ao lado do sofrimento de outra pessoa, quem quer que seja. Não deve, porém, ser uma parada curiosa, estéril, inútil ou escandalosa, mas de comoção, compaixão, disponibilidade, ajuda concreta. É doação de si mesmo.
Felizes de nós se deixarmos afetar pela mobilização do samaritano!
Diante da presença do homem semi-morto, o sacerdote e o levita dão a volta; o samaritano se aproxima. Dois itinerários que determinarão não só a sorte da vítima, mas também a dos viajantes. Os dois primeiros, recusando seu auxílio, revelam sua desumanidade, com a desculpa de manter sua pureza religiosa. O samaritano é um exemplo de humanidade, mesmo com o risco de tornar-se “impuro”.
Muitas das ações samaritanas nos colocam em situações de aperto: aproximar-nos até ficar “impuros”. O compromisso samaritano passa por “manchar-se”, exige tomar partido pelos últimos, arriscar-se a perder subvenções, expor-se a ter o nome na ficha policial. Em suma, ficar “impuro” perante os olhos da “religião oficial” do Estado.
A parábola ainda nos faz cair na conta do profundo valor simbólico que se esconde por detrás do simples ato do samaritano de fazer o ferido montar sobre sua própria cavalgadura. O samaritano conduz o animal para a pousada como um servo conduz seu senhor. A distinção entre aquele que monta e aquele que conduz o animal é muito forte, ainda hoje, no mundo oriental.
Desejar que outro mundo é possível a partir das vítimas, significa pôr-se a seu serviço, descer de nossa cavalgadura e ser presença compassiva junto a elas. São elas as que deveriam marcar nossos modos de vida, nossos consumos, nossas políticas. E para isso é preciso começar por escutar o quê dizem, o quê esperam, por quê lutam, o quê temem?...
Não é fácil escutar a voz das vítimas, a maioria das vezes a encobrimos com tranqüilizadores discursos românticos que convertem a pobreza em um lugar idílico de solidariedade espontânea. Ser samaritano é um estilo de vida.
Texto bíblico: Lc 10,25-37
Na oração: O evangelista Lucas não deixa dúvida: todos os personagens da parábola “vêem” o homem ferido à beira da estrada.
Adentremo-nos no movimento de olhares proposto pela parábola do bom samaritano, para descobrir as atitudes básicas dos personagens e que nos levam a nos aproximar da realidade tal qual ela é, e a nos comprometer com um “outro mundo possível”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
Nos evangelhos sinóticos, esta pergunta sobre a identidade de Jesus ocupa um lugar destacado. Ela nos oferece as respostas do povo e da comunidade de discípulos, personalizados em Pedro.
Como seus seguidores, devemos continuar nos perguntar “quem é Jesus?”. Aqui não se trata do conhecimento externo da pessoa de Jesus: quando e como viveu, quem são seus pais, em que cultura viveu, qual era seu entorno social e religioso; nem sequer se trata de conhecer e aceitar sua doutrina.
Nosso seguimento está fundamentado no Jesus que encarna o ideal do ser humano querido por Deus, Aquele que nos revela, ao mesmo tempo, quem é Deus e quem é o ser humano. Por isso, a pergunta que devemos responder é: “quê significa Jesus, para mim?”
É preciso deixar muito claro que não se pode responder a essa pergunta se não nos perguntamos ao mesmo tempo: “quem sou eu?” . O encontro com a identidade de Jesus desvela nossa própria identidade.
Na realidade, a pergunta pela identidade é a mais importante de todas aquelas que podemos nos fazer: “Quem sou eu?” A rigor, essa é a primeira e essencial pergunta. A resposta adequada à mesma nos liberta da ignorância, da confusão e do sofrimento. Faz-nos livres e nos possibilita viver na luz.
Porque o objetivo de nossa vida não pode ser outro que o de viver o que somos. E isso não é algo que devemos “alcançar”, “conseguir” ou “conquistar”..., mas, simplesmente, reconhecer. Trata-se de cair na conta ou compreender quem somos. Ao compreender isso, emerge a plenitude, a sabedoria e a alegria.
Dito de outro modo: a causa de muitos sofrimentos existenciais não é outra que a ignorância ou inconsciência de nossa identidade profunda. O grande místico cristão do séc. XIII, Mestre Eckhart, repetia essa expressão contundente: “Meu solo e o de Deus são o mesmo”.
Em outras palavras: a Rocha é o divino que nos habita. No caminho do Seguimento de Jesus vamos tirando os véus que bloqueiam e obscurecem nossa visão, permitindo que aflore resplandecente nossa radiante identidade.
No evangelho de hoje, Jesus revela sua identidade (“Messias, o Filho do Deus vivo”) e, ao mesmo tempo, desvela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra”(rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”) quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).
Pedro, que era “petros” (pedra de tropeço no caminho), foi sendo transformado, através da identificação com Jesus, em “petra”, rocha firme da primitiva comunidade cristã. Dessa forma, o Simão que era “petros”/pedra se converte em “Petra”/rocha firme, porque o mestre desvelou a nobreza que estava escondida no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus iria edificar sua igreja.
Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “EU original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o lado mais positivo da pessoa. É aqui onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do CORAÇÃO, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde parte as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
O próprio ser é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. Com confiança em si e na rocha do próprio interior todas as forças vitais se acham disponíveis para crescer dia-a-dia, para a pessoa se tornar aquilo que originalmente é chamada a ser.
Descobrir a própria identidade pessoal é situar-se na linha da orientação e sentido da vida. A pessoa deve ter a capacidade de voltar sobre si mesma e perceber por onde está sendo conduzida e porquê. Concretamente, isso pressupõe uma atitude de atenção e escuta que permitem à pessoa situar-se diante do “para onde” e “para quê”, diante da motivação básica do viver e do agir, diante da “intenção” com que faz as coisas...
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo aquilo que é, o porquê do que se faz, se espera, busca e deseja.
“Descobrir a si mesmo” é descobrir que no próprio interior há um movimento infinito de construção de si, de identidade em expansão... que se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e da paralisia existencial que impedem o fluxo da vida.
Nossa existência não pode ser de anonimato e indefinição. Ela exige identidade clara e bem definida. Normalmente confunde-se a identidade com certas “marcas distintivas”: o nome, a profissão, a posição social, política ou religiosa, a função...
A identidade, no entanto, é dinâmica, histórica, fecunda, aberta ao desconhecido, aventureira...; ela é lugar de expansão e de manifestação da livre circulação do impulso vital, que faz de cada ser humano um “sopro divino vivo”.
Esse movimento não permite mais que se responda à pergunta: “Quem sou eu?”, pois o ser humano não é, ele se “torna”. O ser humano é um contínuo “tornar-se”, um “vir-a-ser”, um “ek-sistir”, capacidade de ir além de si e adiante de si, no movimento de infinita transcendência.
Só transcende quem se aproxima da própria interioridade, do próprio coração.
Ter identidade é viver em contato com as raízes que nos sustentam. Em contato com a fonte e na viagem para dentro, clareia-se a visão de nós mesmos, da nossa originalidade e dignidade. Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos a nossa própria identidade e a verdadeira paz.
“Que eu me conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu interior! Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam” (S. Agostinho).
De “petros” a “petra”: esse é o desvelamento que acontece em todo seguidor de Jesus quando escuta e vive sua Palavra, proclamada no Sermão da Montanha.
Nossa identidade profunda é constituída pela fragilidade/petros e pela fortaleza/petra. Só no encontro com Aquele que é a Rocha firme é que transparece a “petra” que está oculta em nosso interior.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: A oração é o caminho interior que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo da pessoa, mas o mesmo Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundancia, onde a pessoa “mergulha” no silêncio à escuta de todo o seu ser.
Através da oração a pessoa desce a uma dimensão mais profunda e assim chega à corrente subterrânea.
Aqui ela experimenta a unidade de seu ser.
Coloque-se diante da verdade de Deus, na verdade de si mesmo:
- que resposta você daria, agora, se um repórter lhe entrevistasse e lhe perguntasse: “quem é você?”
- o que você colocaria na sua carteira de identidade que lhe diferenciasse de todas as outras pessoas? Quais seriam os seus sinais digitais mais originais? Quais os seus sinais digitais divinos? (as “marcas” de Deus);
- o que em você é “rocha” consistente, fundamento inabalável?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quem põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62)
O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.
O corpo humano é um receptor e um transmissor de emoções e a principal mediação para comunicá-las e transmiti-las é através do olhar. A maneira de conhecer melhor uma pessoa, criar laços de empatia com ela e inclusive saber se o que está dizendo é verdade ou mentira... é através do olhar.
O olhar é o recurso não verbal mais expressivo e sincero que nós, seres humanos, possuímos, porque com um simples olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade. “Se eu morrer, morre comigo um certo modo de olhar”, disse um poeta. Mas o hábito contamina os olhos e tira seu brilho expressivo. Acostumamos a ver as coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai se estreitando e tudo se torna rotina.
Faz-se necessário, então, despertar a criança que ainda habita nosso interior; ela vê o que o adulto não vê, pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).
A saturação de imagens, informações e efeitos especiais, tão característica de nossa cultura, está minando, progressiva e sutilmente, a capacidade tanto de apreciar as realidades simples como de perceber a profundidade e o mistério que há nelas. O pior desta situação não é somente a perda da visão contemplativa, mas sobretudo não ter consciência do que acontece ao nosso redor.
Seria de grande ajuda conhecer as “enfermidades” mais frequentes de nossa visão. Detectá-las e reconhecê-las constituiria um avanço decisivo para eliminar os obstáculos que impedem penetrar no significado do mistério da vida em seu estado mais “puro”. Mas não basta pousar os olhos sobre a realidade para captar a profundidade e transcendência do que é contemplado. É difícil ver o evidente. Exige uma tarefa prévia de “desvestir” os olhos para olhar de novo e descobrir o que verdadeiramente existe. “Ver é um esforço, e olhar, literalmente, é um milagre” (Luis Rosales).
Todo olhar não é neutro; ele tem sua intencionalidade. No olhar revelamos algo de nossa identidade: onde está o nosso olhar, aí está o nosso coração. Vemos muitas coisas, mas só “olhamos” aquilo para o qual se dirige nossa atenção. Nesse olhar três aspectos se interrelacionam: aquele que olha, o objeto do olhar e o ato de olhar, ou seja, como olhar. Sempre precisamos ter presente o processo de olhar, mas especialmente os pólos: quem olha (aspecto subjetivo) e onde se olha (aspecto objetivo).
Normalmente, nossa tendência é focar a atenção mais no pólo objetivo, ou seja, para onde se olha, qual o conteúdo do objeto do olhar. No caso do Seguimento, os olhos estão fixos em Jesus, deixando-nos afetar pela Sua identidade, Suas relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...
Mas o caminho do Seguimento possibilita também centrar a atenção no pólo subjetivo, ou seja, sobre quem olha: quem é aquele que olha, sua liberdade interior, seus movimentos internos diante da pessoa e do chamado de Jesus, a sedução que sente por uma grande causa...; da mesma forma, os obstáculos que percebe ao olhar a pessoa e o projeto de Jesus, a resistência em encontrar-se com o olhar d’Ele, o medo de ser visto em sua fragilidade...
Nossos olhos refletem nosso interior. Eles podem estar em condições favoráveis para contemplar a cena do chamado de Jesus. São olhos sadios. Sadios porque há uma correspondência direta e uma profunda intimidade entre aquele que olha e Aquele que é olhado.
Há pessoas que olham de forma bastante objetiva, transparente. São pessoas internamente mais livres, cujo olhar se deixa impactar pela presença e pela proposta de Jesus. Desse olhar brota o assombro, a admiração e o impulso em assumir o mesmo sonho do Jesus peregrino: a realização do Reino do Pai.
No entanto, há também os olhos feridos que não ousam ir mais além; os ferimentos podem vir do interior, bem como do exterior da pessoa. São ferimentos de sua história, de seu passado, das experiências frustrantes que viveu até o momento presente. Muitas pessoas passam grande parte da vida fortemente impactadas por experiências negativas, de desamor, de solidão e desvalorização...
Existencialmente, em seu olhar a pessoa pode revelar seus ferimentos afetivos, experiências de rejeição e de “olhares pesados” dos outros sobre ela. Elas escondem o olhar quando expostas a realidades externas difíceis, de violência, de exclusão... Elas acabam pensando que o mundo e a realidade das pessoas se reduzem a isso, e projetam uma visão deturpada sobre a própria pessoa de Jesus. Dói-lhe fixar os olhos n’Ele.
Com isso, seu olhar fica atrofiado e não ousa levantar-se para contemplar diante de si a pessoa de Jesus. É o que poderíamos chamar de “cataratas” existenciais e espirituais. São obstáculos que impedem uma experiência mais profunda e objetiva na vivência do Evangelho.
Todos somos testemunhas de como pessoas internamente feridas no amor expressam um rosto um tanto sofrido e os olhos revelam certa tristeza e amargura. Por isso, temos a clara convicção de que a objetividade do olhar e a capacidade de fixá-lo em Jesus requer um mínimo de liberdade interior, de ter experimentado o amor em suas múltiplas expressões.
Há um outro aspecto no Evangelho de hoje(13º dom tempo comum) que é preciso ressaltar: precisamos também aceitar que o “objeto do olhar” (Jesus e seu chamado) pode melhorar nossa visão. Isso significa que a experiência do encontro com a pessoa de Jesus, seu olhar misericordioso e marcado pela ternura, a proposta ousada e desafiante que Ele nos faz... podem ajudar a purificar nossos olhos e a melhorar nossa visão.
A própria pedagogia de humanização ampla de Jesus vai beneficiar nossa própria identidade, despertar dinamismos e desejos ocultos em nosso interior, sacudir nossas amarguras e ampliar nosso atrofiado olhar.
Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Texto bíblico: Lc 9,51-62
Na oração: o que me impede de ter um olhar límpido e transparente na tentativa de me configurar ao olhar de Jesus? O que busco ao fixar os olhos em Jesus? O que sinto ao perceber os olhos de Jesus fixos em mim?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici
“Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” Lc 9,23)
Uma leitura superficial do evangelho de hoje pode dar a impressão que o cristianismo é a religião que preconiza o sofrimento, a renúncia, a negação de si mesmo, o esvaziamento da própria identidade. O sofrimento foi de tal modo exaltado que levou muita gente a viver na passividade e resignação, esvaziando o sentido do seguimento e bloqueando a esperança.
De fato, existem sofrimentos que são vazios, sem sentido, “insensatos”..., pois fecham a pessoa em si mesma, na sua aflição e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. Como consequência, a Cruz ocupou o primeiro lugar e tudo passou a girar em torno a ela. Mas Jesus não buscou a dor nem negou a vida. Pelo contrário, a missão primeira de Jesus foi a de aliviar toda dor humana. Por isso, suas inumeráveis curas relatadas nos evangelhos. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, senão que expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para que possa viver com mais plenitude e perceber a melhor atitude frente à vida; elas condensam o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.
Todos nós carregamos recursos ainda adormecidos, potencialidades quase divinas que, em alguns momentos privilegiados, descobrimos em nosso interior. E, no entanto, ao reconhecer nossa fragilidade humana, estremecemos diante de nossas ricas capacidades.
Deixar-se determinar pelo “ego atrofiado” implica cair num conformismo doentio e na mediocridade tranqüila e temerosa; ou seja, medo de ir além de si mesmo, para além de suas capacidades. Quem tem medo afunda-se no mar escuro e revolto da vida.
“Renunciar a si mesmo” desvela o dinamismo ou força de morte no interior de cada pessoa, marcado pelo medo de ir para além de si mesma; trata-se do medo de sua própria grandeza, o medo da sua missão, medo da vastidão dos seus sonhos... Por não ter horizontes, ela se limita ao seu modo habitual e fechado de viver; acomoda-se e não faz a travessia; não faz as coisas com paixão e com criatividade.
Quando não se vive em profundidade só resta a rotina, a superficialidade, o tarefismo sem sentido, o desânimo, o “vazio vital”; renunciando à tensão do “mais” a pessoa revela incapacidade de tomar a vida nas próprias mãos e dar-lhe uma direção mais ousada e criativa.
É nesse contexto que surgem inúmeros sofrimentos “insensatos” (sem sentido). “Negar a vida” (o grego original não diz “bios”, nem “zoos”, mas “psyché” – “eu psicológico”) significa não reduzir-se ao “eu superficial” ou “ego”. Trata-se de negar a “ilusão do eu”, para acessar à Vida, que é nossa verdadeira identidade. Porque só quando deixamos de nos identificar com o “ego”, tomamos consciência da Vida que somos. Essa é a Vida de que fala o evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele mesmo estava identificado (“eu sou a Vida”) e a que buscava despertar nos outros.
Nós somos continuamente bombardeados com slogans, imagens, mensagens... que nos obrigam a permanecer na superfície de nós mesmos, ativando o nosso “ego” a ser o centro da nossa vida: “você vale”, “você pode”, “você merece”… “bem-vindo à república independente de sua vida” “o mundo à sua medida”, “pensa em você”, “seja você mesmo”, “viva a sua vida”, “sinta”, “experimente”, “aproveite”... Quantas mensagens centradas o tempo todo no restrito campo do nosso ego!
Se o mundo se converte em uma competição de egos, então não sobra espaço para o diálogo, para o encontro, para o amor. Se a pessoa só se constrói a partir da auto-complacência e do olhar centrado em si mesma, termina fechando-se numa bolha que a isola. E essa bolha, finalmente, se torna uma prisão na qual ela fica só.
Vaidade, orgulho, soberba... revelam a atitude daquele que se volta sobre si mesmo e se coloca tão no centro, tão no pedestal, tão inflado e cheio de si, que se faz cego ou indiferente aos outros. É estar encantado de si mesmo, mendigando aplausos, esquecendo-se de seus pés de barro e de suas limitações. É acreditar ser o umbigo do mundo.
Mas o Evangelho de hoje(12º dom.Tempo comum) nos convida, mais uma vez, a alargar o círculo, a olhar para fora, a descentrar-nos para encontrar o outro, a Deus, e, provavelmente, por esse caminho, também o olhar mais autêntico e completo sobre a nossa própria vida. Ali Jesus fala em “renunciar a si mesmo”. O modo mais simples de traduzir isso poderia ser: “deixa de viver para teu eu estreito”, “não gires em torno ao teu ego, porque esse modo de vida te aprisionará cada vez mais, e tua vida será vazia e estéril”.
Dito positivamente: trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.
Por isso, estamos diante de uma boa notícia: “Desperta!” “reconhece quem tu és!”. “Descobrir-se a si mesmo” é descobrir que no próprio interior há um movimento infinito de construção de si mesmo, de identidade em movimento... que se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e do auto-centramento existencial, que travam o fluxo da vida.
Só transcende quem se aproxima da própria interioridade, do próprio coração. A verdadeira identidade, ou “eu expansivo”, é dinâmica, histórica, fecunda, aberta ao desconhecido, aventureira... Ela só se desvela para aquele que se desprende das defesas e projeções do falso eu.
Como fazer para sair de um “estado de aprisionamento” e encontrar um lugar de expansão e de manifestação da livre circulação do impulso vital, que faz de cada um de nós um “sopro divino vivo”?
Ter identidade é viver a partir das raízes que nos sustentam. Em contato com a fonte e na viagem para dentro, clareia-se a visão de nós mesmos, da nossa originalidade e dignidade. Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos o sentido de nossa existência e a verdadeira paz.
O sentido de nossa existência consiste, portanto, em “passar da morte à vida”: é a isso que as palavras de Jesus nos convidam. O destino do eu atrofiado é a morte: viver para o eu equivale a perder a vida. Pelo contrário, quem começa a descobrir sua verdadeira identidade, já está morrendo ao seu ego, porque descobriu que é “outra realidade”: a Vida que não morre. E, a partir desta nova percepção, toda a visão da própria existência se modifica.
“Aquele que quer salvar seu ego, perde a vida; mas aquele que perde seu ego, salva a vida”. E Lucas acrescenta o “por minha causa”, para destacar nossa unidade em torno ao seguimento do Mestre. Nesse sentido, “negar-se a si mesmo” e “carregar a cruz “ equivalem a fazer nosso o caminho de Jesus. Ele se negou a tomar o poder, nem usou a força e o prestígio como meios para servir e salvar a humanidade. Jesus escolheu o único caminho que conduz ao coração do ser humano: a solidariedade com todos os excluídos da terra. Este foi o caminho d’Ele e este deve ser nosso caminho se queremos estar com Ele.
Textos bíblicos: Lc 9,18-24
Na oração: Diante da presença de Deus, esteja aberto ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu viver. Dirija seu olhar para o mais íntimo de si, onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça.
- Cesse de buscar-se como “eu” e deixe-se repousar no Silêncio, na Presença que anima tudo o que é. Não faça do “eu” o centro de sua existência nem de sua identidade. Neste esvaziamento do “ego” um “eu cristificado e expansivo” vai renascendo e plenificando sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus”. (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus, presença visível da misericórdia, revela um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai: “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36). Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
“A misericórdia de nosso Senhor se manifesta sobretudo quando Ele se inclina sobre a miséria humana e demonstra sua compaixão, para quem necessita de compreensão, cura e perdão. Tudo em Jesus fala de misericórdia; mais ainda, Ele mesmo é a misericórdia” (Papa Francisco).
Jesus, com sua presença desconcertante, relativiza costumes, ritos e práticas religiosas, inclusive o Templo, e se relaciona com gente excluída e de má reputação. Ele faz muitas coisas e em muitos lugares (ensina, cura, denuncia, alimenta, dialoga, etc), mas a misericórdia é a que inspira e move tudo em sua vida e ação. Sente a fundo o sofrimento das pessoas; antes de preocupar-se com o pecado, preocupa-se em aliviar a dor da marginalização e exclusão.
Este “princípio-misericórdia” é o que há de iluminar e conduzir a vida dos seguidores de Jesus, e da Igreja como comunidade misericordiosa. A misericórdia é, pois, um sentimento profundo e dinâmico, que não permite que quem o sente permaneça imóvel ou passivo diante de tanto sofrimento que há na humanidade. Ela é a alma da solidariedade, da ação social, do compromisso com a justiça... Por um lado, a misericórdia é propriamente a atitude permanente que se revela em qualquer situação, sempre que há fraternidade e amor, e por outra parte, a misericórdia é a compaixão para com a pessoa que sofre. Uma atitude profunda, uma comoção do coração, que conduz a atos de solidariedade...
A presença misericordiosa de Jesus aparece claramente no jantar em casa do fariseu Simão. O relato de Lucas põe em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma, de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância. Uma mulher, pecadora pública, aparece inesperadamente no jantar na casa do fariseu, sem ter medo do que dirão a respeito dela. Há nela como uma espécie de ansiedade e desejo de sair daquela situação; há nela uma necessidade de sentir-se pessoa, de sentir-se mulher de verdade, de recuperar sua dignidade, de sentir-se livre.
Busca alguém que não a veja como simples objeto de prazer; busca alguém que saiba reconhecê-la como pessoa, que possa devolver-lhe sua dignidade. E não se importa com as reações de julgamento. Prostra-se aos pés de Jesus, derrama o perfume que possivelmente era fruto do seu pecado. Lava os pés de Jesus com suas lágrimas de angústia e confiança ao mesmo tempo, antecipando o gesto que Jesus realizará na última Ceia. Seca-os com seus cabelos como expressão de sua esperança.
Jesus revela-se um convidado perigoso, porque é capaz de desvelar o que está encoberto. Sua presença cria problemas para o anfitrião, coloca em risco o seu prestígio, a sua reputação. Jesus desmascara a maneira medíocre de amar do fariseu, desprovido de compaixão e calculista no julgamento. O fariseu perfeito tem comportamento frio, legalista, insensível, indiferente, rígido.
O perfeccionista e o legalista é um ser anestesiado e petrificado: nele a misericórdia permanece atrofiada; ele ficará confinado dentro de um eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de barro. Onde o legalismo prevalece, ali a misericórdia não encontra espaço para reconstruir relações quebradas. Por isso, Jesus revela o abismo que existe entre a posição em que o fariseu se encontra e a da mulher que, através de tantos gestos afetivos, expressa sua ternura e humanidade.
“Entrei em sua casa e não me derramaste água nos pés... Não me deste um ósculo... Não me derramaste óleo na cabeça”. Aquele fariseu tinha muitas coisas para dar a Jesus, mas não lhe deu nada de amor; aquela mulher não tinha nenhuma coisa que dar-lhe, mas lhe deu o melhor: muito amor. O fariseu não esperava nada de Jesus, aquela mulher esperava tudo d’Ele. Aquele fariseu e os demais convivas a julgam como pecadora pública, mas Jesus a reabilita diante deles; Ele a acolhe com respeito e ternura. Descobre em seus gestos um amor limpo e uma fé agradecida. Diante de todos, fala com ela para defender sua dignidade e revelar-lhe como Deus a ama.
Jesus é capaz de reconstruir o que os outros haviam destruído; é capaz de devolver a alegria a uma mulher que os outros tinham tirado; é capaz de dar a vida àquela que os outros deram morte.
Jesus não se fixa na vida passada da mulher; por isso, não a julga, pelo contrário, valoriza todos os seus gestos de acolhida e ternura. Não importam “seus muitos pecados”, mas o amor de seu coração. Jesus não é daqueles que se entretém contabilizando pecados; Ele é daqueles que olha o coração do pecador; e quando descobre amor, aí mesmo perdoa. Porque a melhor expressão de amar é perdoar; a melhor expressão de sentir-se perdoado é sentir-se amado.
O perdão não é um problema de justiça; o perdão é algo que nasce do amor; o perdão é fruto da compreensão, da misericórdia. O comportamento de Jesus era diametralmente oposto ao do fariseu e dos seus convivas: todas as mulheres que se encontraram com Ele sempre saíram reabilitadas, até o ponto de chegarem a se converter em protagonistas do fato mais importante de Sua vida, a ressurreição.
A linguagem de Jesus para aquelas pessoas que praticavam uma religiosidade vazia, só ritual e elitista, era muito dura e crítica. Como no caso deste fariseu religioso, legalista refinado, são muitos aqueles que afirmam e honram a Deus com os lábios, mas seu coração e seus atos estão muito longe d’Ele.
A maioria das religiões dá muita importância ao cultual, às cerimônias, aos ritos. Gastam muito dinheiro em objetos, roupas, ornamentos, imagens, ostentações, etc..., mas o compromisso com os grandes valores do Evangelho, que são o essencial da mensagem de Jesus, fica ofuscado ou esquecido. É urgente retornar à fonte do Evangelho, onde a misericórdia é o atributo essencial e o modo de proceder de todo seguidor de Jesus.
Texto bíblico: Lc. 7,36-50
Na oração: O olhar de misericórdia deve ser continuamente ativado para poder perceber a nobreza escondida no interior de cada um, sobretudo naqueles que estão mais excluídos.
Para despertar este olhar cristificado necessitamos de uma revolução do afeto e da ternura; só assim poderemos olhar a nós mesmos e as pessoas com o olhar carregado de misericórdia.
- O que prevalece em seu agir cotidiano: misericórdia? Preconceito? Suspeita? Julgamento?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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