SEXTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Na Cruz, um diálogo feito de silêncio...
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
- O “Deus Crucificado” é, junto à Ressurreição, a realidade mais radical de nossa fé. Ela nos fala da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente às outras sendas construídas sobre o ódio, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão num mundo onde muitas pessoas são etiquetadas como indignas de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio ou indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos de compromisso, de uma aliança inquebrantável e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e de verdugos inconscientes que não sabem o que fazem; fala-nos da fidelidade de Deus no seu diálogo com a humanidade, mesmo diante da rejeição do ser humano a entrar em sintonia com esse diálogo amoroso....
Portanto, a Cruz se revela como a expressão mais radical do diálogo amoroso de Deus: um diálogo sem palavras, mas ela é a mais eloquente, pois fala de entrega, de solidariedade, de fidelidade total...
- Falar do silêncio de Deus e de “como a Divindade se esconde” (EE. 196) é adentrar-nos no Mistério que está presente em toda existência: ausência, dor, fracasso, morte... Sem Cruz não há passagem para a Vida, não há Ressurreição.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
A Cruz, por um lado, é símbolo da indiferença que mata toda possibilidade de diálogo, gerando sofrimento, exclusão e violência. Por outro lado, a Cruz de Jesus Cristo é sinal fecundo de que o ser humano não se rende à indiferença, que é capaz de se compadecer, amar e entregar a própria vida pelos outros.
- Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
-“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer que todos vivam intensamente.
- Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.
Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.
- Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
- Em meio à impotência, elas não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.
Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus.
Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.
Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.
- Através da contemplação, entre no caminho com Jesus, até o Calvário (cap 19 de João). Olhe as pessoas, escute o que elas dizem; observe as diferentes reações das pessoas: os soldados, as mulheres, Pilatos, a multidão... Basta estar presente, silenciosamente, deixando-se afetar pelas cenas e pelas atitudes das pessoas diante de Jesus, com a Cruz às costas.
- Faça seu colóquio a Jesus, o homem da fidelidade ao Projeto do Reino em favor da vida. Ele doa vida para que todos tenham mais vida.
- Finalize sua oração, rezando “Alma de Cristo”.
- Registre no caderno os apelos, moções... que brotaram da oração
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.04.2021
QUINTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Lava-pés: para uma “Igreja da toalha”
+ Prepare sua oração, ativando uma disposição interna para viver o Mistério do Lava-pés.
- Dê especial atenção às “adições”: lugar, posição corporal, pacificação interior, consciência de estar diante de Deus...
+ Faça sua costumeira oração preparatória, bem como a composição vendo o lugar, a petição da graça...
+ Mobilize seus sentidos para que eles o ajudem a fazer uma contemplação; os “pontos para a oração”, indicados abaixo, podem preparar o terreno interior para acolher o gesto ousado de Jesus no Lava-pés:
- O gesto do “lava-pés” é exemplar para todo(a) seguidor(a) de Jesus Cristo; constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade para aqueles que exercem algum serviço em sua comunidade. É revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...
A cena do lava-pés revela profundidade e delicadeza, mútuo dom e acolhimento, comunhão e pressentimento. É um gesto profético, repleto de generosidade e de humildade.
Jesus deixa transbordar os segredos de seu coração. Ele revela o rosto de Deus, que é Amor.
Não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. Não se trata também de se “humilhar”, de se colocar “abaixo” de seus pés, mas de cuidar de seus pés para que esse alguém possa se manter de pé, para que ambos possam estar face a face e caminhar juntos.
- Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. Amar alguém não é querer que ele fique deitado a seus pés, mas é querer que ele se mantenha de pé, na plenitude de sua grandeza. Amar alguém é querê-lo com os pés “livres, leves e soltos”. Lavar os pés é gesto de humanização e gesto humanizante. É devolver ao outro a dignidade e capacidade de dar destino à sua vida.
Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve; por isso “despoja-se do manto” (sinal de dignidade do “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” do servo). É o Senhor que se torna “servo”. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço.
Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar.
A cena é fortemente simbólica: Jesus continua sendo sempre aquele que serve.
A partir de então, o lava-pés passa a ser o “modo de proceder” ou o “estilo de vida” da comunidade dos seus seguidores.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”. “Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
“Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço (nossa redoma, nossa máscara, nossa capa de proteção); é mover-nos, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade de “incluir” o outro no nosso próprio projeto de vida.
- Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem...
Sempre teremos, também, a necessidade de nos “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redo-brarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus.
“Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus.
+ Na contemplação do Lava-pés (Jo 13,1-17), observe silenciosamente os gestos de Jesus, pois todos eles possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado.
+ “Levantou-se da mesa”: gesto que nos revela que não se pode servir permanecendo no comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
+ “Ficar de pé” é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo. “Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.
+“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.
+“Colocou água numa bacia...” Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor.
+ “...e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha”.
Jesus inclina-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém. Lava os pés de todos igualmente.
+ “Depois... voltou à mesa...” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente. Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos.
- Depois de contemplar com “todo acatamento” os gestos de Jesus, converse com Ele sobre a sua admiração e sobre o seu desejo de prolongar estes mesmos gestos no seu cotidiano.
Traga à memória as pessoas que você precisa lavar os pés...
- Revele sua gratidão para esta experiência tão íntima e tão intensa.
- Registre no seu caderno as “moções” mais fortes experimentadas na oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.03.2021
QUARTA-FEIRA DA SEMANA SANTA
“Em tua casa vou celebrar a Páscoa...”
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; por isso, disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Um cuidado especial com os preâmbulos: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
- Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os seguidores de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
- Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino.
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes.
E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
- Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem protagonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como o desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, sem nome, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Cristo como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não. Não é isso que acontece na História da Salvação.
- Aquele homem desconhecido, representa a todos nós; cabe-nos mostrar o caminho do local da Ceia, cabe-nos palmilhar, sobre as pedras do cotidiano, o rumo que leva à casa do Pai.
E devemos fazer com que outros nos sigam, para que se cumpra tudo que foi instituído.
Orientadores do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize ali o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
- Ontem o evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Na descrição da paixão de Jesus do evangelho de Mateus acentua-se fortemente o fracasso dos discípulos. Apesar da convivência de três anos, nenhum deles ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus conta isto, não para criticar ou condenar, nem para provocar desânimo nos leitores, mas para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos!
- Podemos destacar duas dimensões na Paixão: uma acontece no grupo interno (traição, negação, busca de poder, incompreensão da missão...); isso provoca profundo sofrimento em Jesus. A outra paixão é provocada pela oposição, perseguição externa... Geralmente ficamos impactados com os sofrimentos físicos cometidos pelos opositores. O sofrimento interno não é visível, mas é maior.
- Jesus faz questão de se confraternizar com o círculo dos amigos, do qual Judas faz parte. Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que comigo põe a mão no prato". Esta maneira de anunciar a traição acentua o contraste. Para os judeus a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus sugere assim que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição!
- Quê aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Mateus deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade. Esta é uma mensagem muito importante que colhemos do evangelho durante a Semana Santa.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
- Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
- Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição. Reserve um momento de colóquio com Jesus, expressando a Ele seus sentimentos.
- Finalize sua oração, manifestando profunda gratidão. Depois, registre no caderno de vida as experiências e sentimentos vividos neste momento.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.03.2021
TERÇA-FEIRA DA SEMANA SANTA
A despedida com rosto de ternura
+ Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Faça a oração preparatória (de entrega), a composição vendo o lugar (a última Ceia), e peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
+ Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
- Estamos na terça-feira da Semana Santa, às vésperas da execução de Jesus. Como ontem, somos convidados a participar de outra ceia de despedida. A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tomou a trágica decisão, e depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
- Na contemplação da Última Ceia, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas no fundo ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
O ato de trair implica romper uma aliança que uma pessoa fez com outra. Trair é uma ação que implica consequências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Traição dói na proporção inversa da distância. Quanto mais próxima se sente a pessoa traidora, tanto maior a dor do traído. A traição se situa no mundo das amizades, das vinculações afetivas intensas, das ligações íntimas, das proximidades de vida.
- Judas se tornou o símbolo da traição porque fazia parte do grupo íntimo dos apóstolos. Foram anos de convivência nas mesmas caminhadas, nas noites ao relento, nas pregações, nas refeições simples do dia-a-dia e nas festas. Jesus e Judas viviam elos de amizade, de confiança, de esperança entre si.
De repente, rompe-se tal aliança e Judas entrega Jesus aos adversários.
Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.
- Quando Jesus, na Última Ceia anuncia que um deles vai lhe entregar, todos ficam “assustados”, “olham-se mutuamente”, mas não conseguem identificar o traidor.
Os traidores não têm um rosto especial; qualquer rosto vale para dissimular a traição do coração; qualquer rosto vale para esconder um coração traidor.
Judas, em nada dava sinais de ser diferente do restante dos discípulos. Por isso ninguém se atreveu a acusá-lo de traidor. Parecia tão normal como qualquer outro do grupo.
É que as traições são alimentadas e escondidas no coração; as traições não têm rosto, não são visíveis. Por isso mesmo, os traidores, são tão difíceis de serem reconhecidos. Caminham como todos. Comem como todos. Sorriem como todos. Têm cara de amigo mas, por dentro, carregam um coração vende-dor de vidas, de dignidades.
- Poucas experiências destroem tanto alguém por dentro como a traição.
Quem traiu e quem foi traído assume reações semelhantes, como esvaziamento da afetividade, sensação de inutilidade vital, desorientação, perda do sentido da própria existência, angústia, pânico, fobias e medos generalizados diante das pessoas e do mundo. A traição desmonta a esperança no outro ser humano e leva à descrença na existência do amor. A traição tira do ser humano sua capacidade de dar respostas à vida, de envolver-se num projeto e num ideal maior, que ultrapasse o valor de sua própria vida.
- Pensemos em tantos “Judas institucionalizados” que exploram as pessoas, alimentando uma “cultura
de morte”; pensemos nos “pequenos judas” que carregamos dentro de nós, na hora de eleger entre
lealdade e interesse, entre gratuidade e dureza de coração. “Cada um de nós tem a capacidade de trair, de vender, de só optar em favor do próprio interesse. Cada um de nós tem a possibilidade de deixar-se seduzir pelo amor ao dinheiro, pela busca de poder. Judas, onde estás? É a pergunta que faço a cada um de nós” (Papa Francisco).
+ Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje. Jo 13,21-33.36-38
+ Comece a contemplação ativando todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da cena.
+ Faça-se e sinta-se presente na sala da Última Ceia, como um “humilde servidor”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
+ Centre sua atenção na chegada de Jesus e seus discípulos; observe as feições de cada um deles, tomando lugar à mesa... Procure escutar o que estão dizendo...
+ À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor. Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentiu?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ No final da oração dê graças por poder participar deste momento.
- Faça exame da sua oração e registre no “caderno de vida” os movimentos (moções) do coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.03.2021
imagem: The_Treachery_Of_Judas
SEGUNDA-FEIRA DA SEMANA SANTA
Betânia: casa de encontro, comunidade de amor
+ Busque o seu “lugar sagrado” para iniciar a sua oração; pacifique o seu coração, respirando em profundidade ou ouvindo os sons ao seu redor; faça sua oração preparatória, a composição vendo o lugar e a graça a ser suplicada.
+ Antes de entrar em contemplação, leia serenamente os “pontos” abaixo:
- Estamos entrando na Semana Santa, a semana da páscoa de Jesus, da sua passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1). A liturgia de hoje coloca diante de nós o início do capítulo 12 do evangelho de João, que faz a ligação entre o Livro dos Sinais (cc 1-11) e o Livro da Glorificação (cc.13-21
Neste início de Semana Santa, o Espírito nos leva a viver Betânia, a ser Betânia, a assumir Betânia. Ali acontece uma ceia de ação de graças a Jesus pelo dom da vida.
Esta ceia é o símbolo do triunfo da vida sobre a morte. E essa força da vida se expressa no Evangelho de hoje mediante símbolos de vida: a mesa compartilhada, a amizade servidora de Marta, o perfume especial de Maria, a unção dos pés de Jesus, a fragrância que enche a casa.
Jesus quis celebrar o dom da vida em plenitude.
Também é vida a amizade, a gratidão, a refeição, o perfume que invade tudo...
- Betânia é “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez abençoada e nossa fragilidade enaltecida; mas também onde as pobrezas de nosso mundo, da humanidade têm lugar, e tocam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus.
Somos convidados a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, comunidade de amor e coração de humanidade: com Jesus Mestre, com Marta, Lázaro e Maria, aquela que quebra o frasco e derrama o perfume nos pés de Jesus.
A casa é o lugar da comunidade do ressuscitado; é a casa do Pai (14,2).
-Aqui, no centro do Evangelho de João, a comunidade, reconstruída no amor, exala o bom perfume que enche toda a casa. Em lugar do cheiro da morte, a casa enche-se do aroma de perfume; o perfume derramado por Maria é o símbolo da vida e do amor da comunidade que exalam bom odor. É um amor que não tem preço e estará sempre voltado para os pobres. As comunidades de Jesus estabelecem-se no espaço humanizador das casas, e não no espaço “oficial do sagrado” (templo).
- Betânia é o “templo” onde Jesus percebe a presença e o agir de Deus nos fatos mais simples da vida cotidiana; Betânia é para Jesus um prolongamento de Nazaré, o lugar do cotidiano, do pequeno, do simples: o lugar da revelação.
Marta e Maria expressam sua amizade e fazem com Jesus o que Ele logo fará com seus discípulos no momento de sua despedida: os serve à mesa e lava seus pés. Jesus se deixou fazer, para poder fazer isso com outros e quis tomar os gestos destas mulheres para fazer memória de sua vida. Impressiona-nos que neste relato elas não falam, e expressam todo seu amor “mais em obras que em palavras”.
- Na unção em Betânia, Maria pode ser considerada como um ícone da nova sensibilidade que o evangelho nos oferece. Ela está dotada de uma sensibilidade muito superior à dos discípulos e à dos demais comensais, tanto para perceber o que acontece como para expressar seus sentimentos com admirável fineza e liberdade.
Os dirigentes judeus andavam buscando uma ocasião para matar Jesus. Maria, certamente havia escutado os rumores que chegavam da vizinha Jerusalém e circulavam em foz baixa entre as pessoas do povo. Ela sintoniza com este momento dramático. Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que esse momento transbordava seu coração. Maria investe num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado.
O excesso de seu gesto sintoniza perfeitamente com o amor sem medida de Jesus, mas ultrapassa a limitada capacidade de compreensão dos presentes à mesa, sobretudo Judas Iscariotes.
Somos convidados a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, comunidade de amor e coração de humanidade:
- Com Jesus Mestre, para nos fazer mais humanos e próximos;
- Com Marta, para professar a fé e a servir na diaconia;
- Com Lázaro, para passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;
- Com Maria, para quebrar os frascos e a derramar o perfume da escuta e do amor.
+ Betânia é também lugar de interioridade, onde se internalizam os processos de humanização, onde surge a humanidade nova, atitudes mais humanas e humanizantes; lugar onde pulsa a Humanidade com toda sua força e onde volta a circular o sangue-vida.
Criar Betânia em nosso interior e em nossas casas: lugar da mesa compartilhada, da unção e do cuidado; ambiente que exala perfume do amor, gratidão, amizade...
Podemos visualizar nossa vida como um frasco cheio de perfume que nos foi entregue gratuitamente por Deus para que lhe respondamos com nosso agradecimento e alegria e para que muitos outros possam participar disso.
+ Como preparação para a contemplação, leia uma ou duas vezes o texto do Evangelho indicado para este dia – Jo 12,1-11
+ Com a imaginação, faça-se presente à casa em Betânia; procure olhar atentamente cada uma das pessoas (Jesus, Lázaro, Marta e Maria); sinta o clima de alegria e amizade; procure escutar o que elas dizem; observe as reações, gestos, acolhida... das pessoas ali presentes.
Sinta o perfume do frasco quebrado tomando conta da casa.
Participe ativamente da cena, conversando, perguntando, ajudando a servir...
+ Faça um colóquio com Jesus, falando do clima “pesado” que existe em Jerusalém, pois estão à procura dele para matá-lo. Permaneça aí, deixando-se impactar pelo clima humano reinante nesta casa.
+ Finalize sua oração, dando graças por esta convivência amistosa. Leia o Salmo indicado.
+ Registre no caderno de vida os sentimentos predominantes durante a oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.03.2021
TODAS AS CONTAS CONTAM
Para o Padre Adroaldo
Um precioso feriado junto ao fim de semana possibilita uma viagem com minha família a Poços de Caldas. Tempo de lazer, descanso e proximidade com os meus. Tempo de ser marido, pai, companheiro e amigo, sem pressas...
Na praça em frente ao hotel, instala-se uma feira de artesanato. Distração garantida e, talvez, uns reais a menos na carteira e uns quilos a mais na bagagem de volta. Passeio entre as barracas, observando e sendo observado. Quadros previsíveis, peças de roupas, objetos em madeira, vidro, cristal. Coisas bonitas, originais, e outras nem tanto. Uma feira como tantas outras.
Depois de olhar tudo e perguntar alguns preços, sentei-me num banco da praça para respirar aquele momento de tranquilidade e prazer. Diante de mim, um rapaz abre no chão um pedaço de feltro e monta ali a sua 'banca'. Anéis, colares, pulseiras vão sendo expostos. Minha curiosidade se aguça quando o 'hippie' começa a fazer o que se parece com um colar de miçangas.
Ele pega um fio de nylon, desses de pesca, bem grosso, e um saquinho de contas coloridas. Apanha a primeira conta, amarela. Não sei por quê, mas sinto uma certa contrariedade. Achei que deveria começar pela azul. Mas ele, alheio a tudo, passa o fio pela conta e, num gesto rápido e automático, pega outra, verde. Há uma lógica, penso, o hippie é patriota! A continha verde escorrega pelo fio e vai se juntar à amarela. O artista estende a mão e pega outras contas no saquinho, sem sequer olhar. Vem uma preta, uma vermelha e outra amarela. Enfia as três que correm ligeiras pelo fio até se encontrarem com as outras. Na sequência, contas azuis, verdes, pretas e amarelas entram pelo fio, ou o fio entra por elas, e vão formando o que me parece ser agora um caos policromático sem nenhuma ordem ou critério.
Quase me levanto do banco e interfiro quando o rapaz pega uma conta roxa. Mas, para meu alívio, o fio não entra. É grosso demais. É grosso e o buraco da conta é muito estreito. Pacientemente, o hippie apanha um minúsculo prego e cuidadosamente alarga o orifício da pequena conta roxa. E logo ela corre alegremente e repousa ao lado das outras.
O rapaz continua, calmo e distraído, a enfiar conta por conta, repetindo e alterando cores, colocando a mais brilhante ao lado de uma esmaecida e sem graça, numa sequência que parece seguir a absurda lógica do 'por acaso'.
Enfim, ele termina o colar. Junta as extremidades do fio, dá um nó e corta as pontas que sobravam, de tal modo que não se sabe agora onde começa ou termina. Tudo é colar! Ele coloca sua obra sobre o feltro e observa. Sorri satisfeito. Eu reconheço que ficou bonito, mas não dou o braço a torcer: teria feito diferente. Provavelmente, escolheria cuidadosamente uma sequência de cores e a repetiria harmoniosamente até o fim do colar. Ou, quem sabe, faria um colar só de contas azuis, minha cor preferida. Preto e roxo jamais! Nem amarelo, que na época achava sem graça e sem vida.
Levanto-me e vou embora, combinando cores e contas em minha imaginação.
Meses depois, participo de um retiro espiritual em Itaici, São Paulo, orientado pelo padre jesuíta Adroaldo Palaoro. Ele começa fazendo no quadro um desenho e escrevendo nele:
"Tudo começa e termina em Deus. Ele dá sentido a todas as coisas".
Na curva do desenho, mergulho numa viagem mágica... A cena da praça atravessa a minha memória como as contas de um colar. Nesse colar colorido, vejo a minha vida sendo desfiada conta a conta, dia a dia. Cada dia, uma conta. Sem nenhuma lógica aparente. Um pequeno caos cotidiano, que frequentemente foge ao meu controle, escapa aos meus planos.
Há trechos do colar que são uma sucessão de cores que se repetem. Dias de um azul clarinho, um verde brilhante, um vermelho escandaloso, um azul forte e vigoroso iluminando todo o colar. E logo a seguir, volta a rotina das cores que se repetem. Olhando o colar da minha vida, compreendo que a rotina é uma ilha cercada pelo imprevisível por todos os lados.
Mas em tudo há uma certeza: o fio. O fio atravessa e sustenta, indiscriminadamente, todas as contas do colar. Para o fio, todas as contas contam... A mais bela e brilhante e também a mais sem graça, aquela que eu rejeitaria e jogaria no lixo.
O Amor de Deus é o fio que sustenta as contas da minha vida. O vazio de cada conta é preenchido pelo fio. Quanto mais grosso o fio, mais forte o colar. O curioso é que o fio mais fino é mais prático de usar, passa mais fácil pelas contas. O fio grosso às vezes emperra, esbarra nos obstáculos que a conta tem. Às vezes, é preciso alargar os espaços da vida para caber o Amor de Deus. Amor...
Percebo também que as contas ocultam o fio. Ele as sustenta, mas quase não aparece. Mas alguma coisa me diz que ele está lá. Essa coisa de não ver e, ainda assim, crer, tem um nome: Fé. Amor e Fé...
O resultado final é um colar colorido que, tenho certeza, vou oferecer ao Pai, de repente, quando, enfim, encontrá-Lo face a face. Quando, ao unir as pontas, não haja mais começo nem fim, apenas colar, apenas vida e vida em plenitude. Esse sentimento chama-se Esperança.
Amor, Fé e Esperança, nos dramas e nas tramas do cotidiano. O desafio é tomar, todos os dias, o fio do Amor de Deus e deixar que ele atravesse as contas da minha vida, todas elas, sem escolher cores e formas, nem tamanho, nem comprimento. Na liberdade da Fé, na serenidade da Esperança.
Vi naquela praça, e compreendi depois na oração, que, no Amor de Deus, até o 'por acaso' vira 'por querer'...
Eduardo Machado
Educador e escritor
“Quando se aproximaram de Jerusalém na altura de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras... (Mc 11,1)
Galiléia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública.
Ele viu claramente que o melhor lugar onde Ele poderia e deveria comunicar sua mensagem era, precisamente fazer-se presente nos povoados, nas pequenas vilas, nos campos e à beira-mar, lugares habitados por humildes camponeses e pescadores, pessoas pobres e marginalizadas, doentes e excluídas.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Para comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes abastadas, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que detinham o poder e o dinheiro nos grandes centros urbanos.
No entanto, Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quis também levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quis pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
A situação pandêmica do Covid 19 que estamos vivendo fez emergir a situação camuflada de um distanciamento humano. O isolamento sanitário e a decretação de “lockdown” em muitas cidades pôs às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...
Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força. As nossas cidades estão se revelando, cada vez com mais intensidade, como espaço de grandes rupturas e violências, lugar de exclusão e isolamento, visibilização de uma desumanização trágica.
Também os muros estão voltando à moda. Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Os muros, no interior das cidades, são muito concretos: muros sociais, religiosos, políticos, culturais... Com tantos muros é impossível construir pontes de diálogo e reconciliação.
A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência.
Somos chamados a uma pertença pessoal cada vez mais ampla, até sentir-nos parte da “Jerusalém” que sonhamos. Precisamos de fronteiras, sim, mas que sejam fronteiras abertas ao diálogo, flexíveis, fluidas, acolhedoras do diferente...
Esta capacidade humana de dialogar com o outro diferente, quebrar distâncias e deixar que a própria vida seja questionada pelo outro é a qualidade maior daqueles que alargam suas fronteiras e não se deixam dominar pelo medo e pelo preconceito.
O diálogo com todos é verdadeiramente o único modo para superar os desafios que temos diante da diversidade de ideias, visões, modos de ser e viver.... Quando nos encontramos, nos revelamos como pessoas vivas que tem imaginação, criatividade, sonhos..., e isso nos faz crescer e viver um humanismo mais aberto.
As pessoas e os povos de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de construção de uma nova Jerusalém, a cidade humanizada, ou seja, espaço da acolhida, da convivência, do diálogo aberto, da fraternidade e dos encontros... Era certamente nessa direção que Jesus apontava, ao se dirigir a Jerusalém como a cidade das esperanças e possibilidades.
Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser “praça comum” de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos: sentir-nos próximos uns dos outros.
Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas..., esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço... para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, relações sociais, estruturas sociais, políticas e econômicas que tornem possível o diálogo, a solidariedade e o encontro entre todos os seres humanos e aponte para uma nova cidade, fraterna e justa.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo: se estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar as distâncias sociais e religiosas, no interior dos grandes centros urbanos.
Isso pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro dialogal como valor ético e como hábito permanente de vida.
Somos chamados a viver o diálogo como um estilo de vida, fundado no modo de viver de Jesus.
O diálogo, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
O(a) discípulo(a) missionário(a) não é aquele(a) que, por medo, se distancia de sua cidade, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença do Inefável; a cidade já não é percebida como ameaça ou como objeto de domínio, mas como dom pelo qual Deus mesmo se faz encontrar. A cidade não é lugar da exploração e da depredação, mas é o lugar da receptividade, da oferenda e do diálogo inspirador.
Texto bíblico: Mc 11,1-10
Na oração: O gesto profético de Jesus de “entrar em Jerusalém” nos convida a contemplar nossas cidades e nos desafia ser presença evangélica, transformadora, portadora de vida nos nossos grandes centros urbanos.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde... onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
* Como ser portador de Boa Notícia nas grandes cidades?
* Como ser sinal de comunhão e do Amor misericordioso do Deus da Vida?
* Como transformar a vida das grandes cidades?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.03.2021
imagem: pexels.com
“Quem se apega à sua vida, perde-a” (Jo 12,25)
Estamos chegando ao final do tempo quaresmal; abre-se a porta para a intensa vivência Pascal. Percorremos este caminho vivo de jejum, esmola e oração, centrados na pessoa de Jesus, para aprender d’Ele como viver de maneira mais oblativa, aberta, solidária... Tem sido um caminho de intensidade humana? Temos colocado o tom de nossa fé na direção da Páscoa?
O final da quaresma é tempo de olhar para trás com muita gratidão; tal atitude nos capacita para continuar olhando para frente, subindo com Jesus e seus discípulos a Jerusalém. Sempre há oportunidade para consoli-dar nossa vida e enraizar nossa fé. Não permitamos que continuemos passando o tempo como se nada surpreendente pudesse acontecer!
À luz da Páscoa somos movidos a re-inventar continuamente a nossa vida. Há uma outra forma de vida que subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais consciente, mais autêntica; uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios que dançam com as palavras...
“Inventar”, vem da expressão latina “inventio-onis” que significa “encontrar algo” que até agora não se havia descoberto; inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.
Por detrás da pandemia, está sendo oferecida a todos nós uma “mudança de rumo na humanidade”. Estamos sendo forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta respira, nossas cidades estão se purificando de tanta contaminação acumulada; estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra forma de inter-relação e de mais intensidade no amor...
O apelo de Jesus, no evangelho deste domingo, é para “perder” nossa vida, no sentido de não nos apegar de maneira egóica a ela e abrir-nos para recebe uma Vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, abandonar nossas medidas de segurança, libertar-nos do domínio cego do ego, para que possa transparecer o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. Não é o autocentrar-nos que confere dignidade à existência, mas o descentrar-nos e deslocar-nos em favor dos outros.
Aquele que “se apega à sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente..., esse “perderá sua vida”. Quê vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente...!
Mas aquele que, por amor ao Reino, se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro... esse “ganhará” a vida. Sua vida transformar-se-á em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de suas vidas uma doação, um oferecimento. Assim, se deixam atravessar por Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presenças de misericórdia e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com seu compromisso ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem aparecer nas “redes sociais”, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
“Se o grão de trigo não morre”, ou seja, se o ser humano não faz de sua vida um dom para os outros, se ele não investe a sua vida em favor da vida, acaba perdendo-se a si mesmo. Esta é a mensagem radical deste quinto domingo da quaresma: “morrer de vida”, não de morte, morrer fazendo que outros vivam, numa efusão de amor. Trata-se de “morrer de tanto viver”, nas diferentes dimensões da vida: individual, familiar, comunitário, social... Esse é o sentido da Cruz cristã: não é cruz vazia, nem um “peso morto”. É perda que se converte em ganho.
Sabemos que, à medida que nosso ego aumenta, ele se distancia da vida dos outros e só se ocupa em conservar a sua, buscando saciar sua fome devoradora para conquistar, acumular, ser o centro...
Isso lhe faz perder a capacidade de assombrar-se e de deixar-se afetar pela alegria e pela dor dos outros; tudo se converte em meio e instrumento para sua própria gratificação. O auge da afirmação de si mesmo se contrasta com a afirmação de Jesus, vista como aberração humana: “aquele que se apega à sua vida, perde-a”. Qual é a pérola de grande valor que se oculta nesta afirmação? Onde nos quer conduzir Jesus?
É um fato central de nossa existência que a própria vida, por mais valiosa que seja, não se encontra sob nosso controle. Então precisamos nos soltar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa autoafirmação, para que Deus possa entrar e atuar livremente em nosso interior.
Jesus recorre a uma brevíssima parábola, para fundamentar isso. Só o grão de trigo que morre dá muito fruto. Esta parábola apresenta mais uma vez, e de outro modo, a lição fundamental do Evangelho inteiro, o ponto máximo da mensagem de Jesus: o amor oblativo, o amor que se entrega a si mesmo, e que nesse perder-se a si mesmo, nesse morrer a si mesmo, gera a vida.
O ser humano se caracteriza por ser capaz de amar, por ser capaz de sair de si mesmo e entregar sua vida ou entregar-se a si mesmo por amor. A humanização ou hominização seria esse “descentramento” de si mesmo, que é centramento nos demais e no amor. A parábola do grão de trigo que morre expressa o ponto máximo dessa maturação da Humanidade; tanto é verdade que pode ser considerada como uma expressão do cume do amor. No fundo, esta parábola equivale ao mandamento novo: “Este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei; não há maior prova de amor que dar a vida” .
As palavras de Jesus têm também aqui a pretensão de síntese: aí se encerra toda a mensagem do Evangelho. E, na realidade, aí se encerra também toda mensagem religiosa, pois também as outras religiões chegaram a descobrir o amor, a compaixão, a solidariedade, o “des-centramento” de si como a essência da religião.
Jesus é a expressão máxima da humanidade que busca e deixa emergir o melhor que há em seu interior.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica estéril. O grão de trigo precisa entregar-se, enterrar-se, perder-se... para ser fecundo. Desate a Vida de Deus que já está em você!
- Você sente resistência em fazer de sua vida uma contínua oferta em favor da vida, nos pequenos gestos de cada dia ou nos grandes momentos decisivos?
- Você captou que o centro da mensagem do evangelho é fazer da vida uma contínua doação por amor? Está dispos-to(a) a aceitar essa “morte” para viver mais plenamente?
- Sua prática cristã se reduz a cumprir ritos, devoções, práticas piedosas... ou se expressa na vivência do encontro e do diálogo amoroso, como pede a Campanha da Fraternidade deste ano?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.03.2021
Caiu o pano sobra a cena impetuosa, estrondosa, de Jesus que expulsa os mercadores do templo. Em Jerusalém, chefes e pessoas comuns falam todos da novidade daquele jovem rabi. Ora, daquela cena clamorosa e subversiva passa-se a um Evangelho íntimo e recolhido (João 3, 14-21).
Nicodemos tem grande estima por Jesus e quer saber mais, mas não ousa comprometer-se, e vai ao seu encontro de noite. Primeira surpresa: o mesmo Jesus que dirá «o vosso falar seja sim sim, não não» respeita o medo de Nicodemos, não se perde nos limites da sua pouca coerência, mas, mostrando compreensão pela sua fraqueza, transforma-o no corajoso que se oporá ao seu grupo e irá ao pôr do sol da grande sexta-feira para cuidar do corpo do Crucificado.
Quando todos os corajosos fogem, o receoso vai ao encontro da cruz, levando trinta quilos de aloé e mirra, uma quantidade em excesso, um excesso de afeto e gratidão-
Jesus transforma. É um caminho totalmente novo, para nós que os mestres do espírito sempre apertaram na alternativa: coragem ou cobardia, coerência ou incoerência, resistência ou debilidade, perfeição ou erro. Jesus mostra uma terceira via: o respeito que abraça a imperfeição, a confiança que acolhe a fragilidade e a transforma. A terceira via de Jesus é acreditar no caminho do ser humano mais do que na linha de chegada, apontar para a verdade humilde do primeiro passo mais do que para o alcançar da meta longínqua. Mestre dos princípios.
Naquele diálogo noturno, Jesus comunica, em poucas palavras, o essencial da fé: Deus amou tanto o mundo… é uma coisa segura, uma coisa já acontecida, uma certeza central: Deus é o amante que te salva. Palavras decisivas, a saborear a cada dia e às quais nos agarramos sempre.
Deves nascer do Alto: Eu vivo das minhas fontes, e tenho fontes de Céu a encontrar. Então poderei finalmente nascer para uma vida mais alta e maior, e ver a existência de uma perspectiva nova, de uma fenda aberta no Céu, para discernir o que é efémero e o que, pelo contrário, é eterno.
Aquele que nasce do Espírito é Espírito. E a noite ilumina-se. Quem nasceu do Espírito não só tem o Espírito, mas é Espírito. Não só é templo do Espírito, mas é da mesma substância do Espírito. Cada ser gera filhos segundo a sua espécie, as plantas, os animais, o homem e a mulher. Pois bem, também Deus gera filhos segundo a espécie de Deus.
E não há maiúsculo ou minúsculo nos testes originários: maiúsculo para o Espírito de Deus, a sua força geradora, minúsculo para o espírito do ser humano gerado. Não se consegue distinguir se “espírito” se refere ao ser humano ou a Deus. Esta confusão é extraordinária. Uma belíssima revelação: tu, renascido do Espírito, és Espírito.
“Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz” (Jo 3,21)
A estas alturas da Quaresma já é tempo para termos um encontro mais profundo com Jesus, mesmo que seja de noite; para deixar-nos transformar pelo seu Espírito e começar a “nascer de novo”; para ir mudando nossa imagem “pesada e deformada” de Deus e descobrir que o Deus de nossa fé é puro Amor, comprometido com a salvação do mundo, que não quer que se perca nenhum de seus filhos(as).
O contexto do Evangelho deste domingo é a conversa noturna de Jesus com Nicodemos, uma autoridade religiosa, membro do Sinédrio. Nicodemos representante da religião judaica, Jesus portador de vida.
Nicodemos representa todos aqueles que, nos seus corações, há uma insatisfação e uma busca; são muitos os que buscam de noite, embora de dia aparentam outra coisa; são muitos os que, no silêncio da noite, buscam a verdade de Deus e de si mesmos. São muitos aqueles aos quais Deus os escuta na noite, mas para anunciar-lhes a novidade de novos amanheceres no Espírito.
Nicodemos é um desses crentes anônimos e noturnos, em cujo coração já está atuando a graça. Ele recebe, pela primeira vez, o anúncio de um rosto diferente de Deus; não de um Deus que castiga, mas de um Deus que ama; não um rosto de um Deus que condena, mas de um Deus que salva.
Jesus o convida a sair da escravidão da Lei e lhe anuncia a necessidade de “nascer de novo”; anuncia-lhe um novo princípio vital que não é precisamente o que procede da Lei, mas que procede do Espírito; revela-lhe não o Deus da Lei, mas o Deus do amor exagerado. Um amor que é capaz de enviar ao mundo seu próprio Filho; um amor que terá sua máxima expressão no alto da Cruz; um amor que não julga e nem condena; um amor tão amplo que abarca o mundo inteiro; e um chamado a viver na luz da fé e não na obscuridade da Lei.
A partir do relato, narrado em Números, no qual Moisés eleva uma serpente de bronze sobre um madeiro para que os israelitas se curassem ao olhá-la, Jesus recorda ao mestre fariseu a verdade mais absoluta: que Deus nos ama até extremos inconcebíveis, que deseja que todos tenhamos vida eterna, ou seja, vida definitiva, plena, feliz... Deus nos ama de tal maneira que chega até o limite, até a encarnação, até entregar-se a nós em seu Filho Unigênito.
Em Jesus Cristo, fica claro, de uma vez para sempre, que Deus é do mundo e o mundo é de Deus; fica claro também a universalidade do amor salvífico de Deus, pois Ele abre todas as fronteiras para se revelar como o Deus de todos os seres humanos. Isso faz cair por terra toda intolerância religiosa, todo preconceito e todo ódio. Nosso tempo pede que, frente aos conflitos e violências entre culturas e religiões, só há um remédio: o diálogo intercultural e inter-religioso, fundado no diálogo de Deus com toda a humanidade.
Apaixonados por Deus, nos apaixonamos pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, simplicidade, profundidade, fragilidade, sabedoria... nos fala do novo rosto do Deus que buscamos com desvelo. E amando e investigando tudo o que é do mundo, adoramos o Deus que habita tudo e tudo salva.
Na conduta de Jesus se faz presente a Verdade de Deus que é amor e realiza sua verdade amando, curando, impulsionando os seres humanos para que cheguem à sua plena realização. Nessa conduta de Jesus a humanidade encontra sua vocação.
Na longa conversação noturna com Nicodemos, Jesus vai revelando a “verdade” do Pai, de si mesmo e de todo ser humano. Verdade que não se identifica com teorias, especulações, mas como um modo de viver. Verdade que é tecida no dia-a-dia no encontro com a Verdade revelada.
Precisamos de algumas certezas; buscamos algo sólido sobre o qual fundamentar nossa vida. Hoje, quando tudo parece discutível, nós nos perguntamos por aquilo que pode ser definitivo. Fala-se muito da verdade; é uma busca humana, mas muito delicada. Existem aqueles que, em nome da verdade, excluem, odeiam, insultam, julgam... Há outros que se fazem “donos” da verdade: dogmáticos, fanáticos... Mas, na realidade, devemos ser muito humildes na maneira de nos aproximar dela. E, no entanto, buscamos sem cessar, até descobrir algumas verdades essenciais que dão sentido à nossa existência.
O ser humano busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”. Jesus afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante da verdade do outro, caindo no fundamentalismo). O importante não é ter a verdade, mas ser verdadeiro, transparente. A pessoa verdadeira pode entrar em consonância com a verdade do outro. Jesus é verdadeiro, revela o que é mais nobre em seu coração, não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
“Andar na verdade” é identificá-la com o caminho mesmo da vida humana. A verdade não está na ciência abstrata, nem nas teorias puramente racionais, nem nos sistemas fechados... A verdade é a vida humana,
como extensão da mesma vida de Deus. “Agir conforme a verdade” significa dizer que “nós somos a verdade”, não contra alguém, mas a favor de todos. Nós somos a verdade, os que caminhamos e vivemos no amor, sabendo que em nossa vida se expressa a Vida e da Verdade do Deus Pai.
“Agir conforme a verdade nos aproxima da luz”: significa ir tecendo dia-a-dia a existência conforme o que é coerente com o nosso ser essencial, no mais profundo de nós mesmos: uma vida na verdade, uma vida iluminada. Assusta-nos conhecer tal como somos. Sentimo-nos incomodados quando a luz penetra em nossa vida e nos desvela. Preferimos, muitas vezes, continuar cegos, alimentando novos enganos e ilusões.
Pode parecer estranho, mas o certo é que somos capazes de viver longos anos sem ter a mínima ideia daquilo que está acontecendo em nosso interior. Podemos continuar vivendo, dia após dia, sem desejar ver o que é que, na verdade, move nossa vida e quem é que, dentro de nós, fundamenta nossas decisões.
Cada dia é tempo que nos convida a despertar e abrir os corações, escutar o Espírito e pôr-se a caminho, enquanto “a luz da vida” nos ilumina.
Despertar é simplesmente abrir nossos olhos à Luz que provém de Deus e confiar que tal luz transforme nossa maneira de ser e de viver; é preciso deixar que esta luz ilumine nossas sombras interiores, desvelando e trazendo à tona nossas aspirações e esperanças mais duradouras. Abrir os olhos à luz de Deus e escutar atônitos, fascinados, a voz divina que cada dia ressoa em nosso interior.
Trata-se de estar despertos para assumir a vida com uma consciência lúcida. O amor, a inspiração, a vida, nos movem por dentro. Tudo o que esperamos, já temos dentro de nós. Um dinamismo misterioso nos abre e nos atrai, nos impulsiona a ser, a viver. Basta “destravar” este impulso e nos deixarmos conduzir.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou Deus é quando ela se deixa invadir pelo humano e é sensível a toda expressão de vida; ela “aproxima-se da luz” quando de verdade se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, sente o que Jesus sentiu, vive o que Jesus viveu...
Texto bíblico: Jo. 3,14-21
Na oração: Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar, dialogar...
Podemos falar de uma plenitude de vida, que com toda verdade, pode-se chamar “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.
- Dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso, e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.03.2021
Imagem:
“Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo”. (Jo 2,21
O evangelista João, no relato da expulsão dos “vendilhões do Templo”, revela que os conflitos maiores vividos por Jesus se deram no campo religioso; e isso esteve presente já no início de sua vida pública. Com seu gesto Jesus atinge o centro do poder religioso; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este deixou de ser espaço de encontro com o Pai e passou a ser um local de comércio explorador.
O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal; por isso, Jesus expulsa seus representantes. O Templo, o sacerdócio, a lei, já não são mais mediadores de libertação para o ser humano. Estão aí, secos e estéreis, e não estão a serviço da vida, mas da exclusão.
Jesus rejeitou o Templo e suas instituições por serem improdutivos e manipuladores; Ele pôs em evidência que a relação com Deus não necessita intermediários, como o Templo e o sacerdócio, e a relação entre as pessoas é relação de encontro e comunhão. Por isso, Jesus não propõe sua restauração, mas seu término. Em lugar do Templo, Ele colocou o ser humano no centro, e diz “não” a uma religião fundada na Lei e no culto externo; rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e oferece uma alternativa encarnada na vida. Deus é adorado em “espírito e em verdade” e não depende de “espaços sagrados” para manifestar sua presença providente.
Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
A partir de agora, o encontro com o Pai e com os outros não se realiza no Templo, mas fora, nas casas abertas, nas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida. A mesa de Jesus, fora do Templo, estava aberta a todos. Ele não inicia uma nova religião, não cria um novo sacerdócio, não restaura o templo. O templo agora são as próprias pessoas que estão acima da lei e do culto. Todos estão implicados nessa nova maneira de viver e de se relacionar com o Pai, superando o medo do castigo e confiando uns nos outros.
Segundo o evangelista João, Jesus começa sua vida pública denunciando o “deus” apresentado pelos dirigentes religiosos do Templo e em quem eles buscavam a justificação de seus poderes. Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a primeira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Deus era tão desconcertante como desconcertante era aquele Nazareno que eles tinham diante de si. Jesus transcende todas as religiões quando propõe uma maneira nova dos seres humanos se relacionarem com o Transcendente e entre si, onde não se faz necessário nem sacerdotes, nem templo, nem culto. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega e no serviço aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação que tem mais força, mas a acolhida e a compaixão.
A fé é a que faz vencer o medo diante de qualquer tentativa de domínio ou manipulação, e a solidariedade é a que possibilita que a vida se multiplique. O Deus que Jesus revela não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se revela no amor mútuo e na entrega da própria vida.
“Mas Ele falava do templo de seu corpo”. Este é o verdadeiro Templo de Deus: o próprio “corpo” de Jesus, o Seu e o de todos os homens e mulheres que vem a Ele se unir e constituir um só “corpo de amor e solidariedade”. Este é o Templo, o “corpo messiânico”, o corpo da vida solidária de homens e mulheres que se escutam e se ajudam, se amam e se animam mutuamente. Jesus veio estabelecer um Templo Novo, pois Ele é o verdadeiro construtor, é o autêntico edificador de humanidade. Agora não é preciso sacrificar animais e dar seu sangue a Deus; não precisa de dinheiro ou banco para criar novos negócios e viver da exploração dos outros... Jesus quer humanidade e com sua própria humanidade vai construir o Templo Novo.
Surgiu um novo Templo, nosso próprio corpo, “morada sagrada” da Trindade. Costumamos distinguir entre sagrado e profano. Dentro do templo está o “sagrado”: Deus e as realidades que se relacionam com Ele. Fora do templo está o “profano”, identificado muitas vezes não só como o que não é sagrado, mas como o que se opõe ao sagrado. Curiosamente, a última página da Bíblia afirma que na Jerusalém celeste “não se vê nenhum templo” (Apoc 21,22). Alguém poderia chegar à absurda conclusão que no céu não há lugar para Deus, porque não há templo.
Será esta imagem do futuro uma crítica do presente, ou seja, uma separação entre lugares onde pensamos que está Deus e lugares onde pensamos que Ele não está? Quê acontece na terra, este espaço nosso no qual há tantos templos? Acaso Deus precisa deles, porque foi expulso dos lugares “profanos”? Não será, talvez, porque não O reconhecemos nesses lugares? Deus está em todos os lugares, sua presença providente envolve tudo e todos.
Para nós cristãos, o Templo está em Jesus e em todo ser humano que é morada do seu Espírito. Esse é o lugar do verdadeiro culto, que não se expressa em ritos vazios, mas em “fazer memória” viva de Jesus que nos impulsiona a viver como Ele. Essa é a verdadeira espiritualidade: deixar-nos conduzir pelo Espírito, no grande “templo da vida”: lugar do verdadeiro culto que se faz visível no serviço oblativo e na compaixão solidária.
Estamos nos despertando para esta realidade: hoje, os “templos” estão cada vez mais vazios; o máximo que fazemos é admirar as grandes obras de arte de um passado glorioso. Mas, ao mesmo tempo, vamos amadurecendo a consciência de que os templos são nossos corpos, os de nossos irmãos e irmãs que sofrem fugindo da violência e buscando um lar, os corpos dos “sem teto”, os corpos das vítimas do tráfego de pessoas, os corpos das pessoas exploradas por uma “economia que mata”... O templo é hoje a terra, explorada e espoliada, colocando em risco a teia de relações vitais.
Não se trata de restaurar o “templo-espaço” com todas as suas implicações, mas de voltar às origens desse “movimento itinerante” que Jesus começou pelas aldeias da Galiléia, onde um pequeno grupo, entusiasmado pelo Reino, reuniam-se nas casas e partilhavam pão e vida. O movimento de Jesus é um movimento de “casas”: lugar da acolhida, do encontro, da festa, da celebração...
Seremos nós, seguidores(as) de Jesus que deveremos recordar que o “templo” não é um edifício de pedra mas a vida inspirada pelo Espírito, em meio a um contexto social e religioso que faz da “casa do Pai uma casa de comércio”; que o verdadeiro culto que agrada a Deus é nossa relação filial com Ele, e que isso tem consequências concretas no modo como nos relacionamos com os outros. Em sintonia com o Pai, estamos mergulhados no “sagrado”, porque a vida é sagrada.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração:
- Você sente o “pulsar” do coração de Deus nas realidades mais cotidianas: ambiente familiar, trabalho, relações, oração, descanso...?
- Diante da “cultura de morte”, como viver a “cultura do encontro”, a verdadeira “religião” de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.03.2021
Imagem: pexels.com/pexels-jackson-david-2868441.jpg
“E transfigurou-se diante deles” (Mc 9,2)
No 2º. domingo da Quaresma de cada ano, a liturgia nos convida a subir o Monte da Transfiguração para “contemplar Jesus por dentro”, para conhecer seu coração, seus desejos mais íntimos, seus dinamismos de vida... enfim, o desvelamento da sua interioridade. Ao mesmo tempo, diante de Jesus transfigurado, temos também a ocasião privilegiada para nos “olhar” por dentro e descobrir nossa verdadeira identidade.
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram sua experiência de Montanha (lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam uma “missão” e foram abençoados). Do alto da Montanha esta bênção foi se espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.
Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso, serviço...) sabia reservar momentos de Montanha (comunhão e escuta do Pai); ali Ele buscava sentido e força para a sua missão.
No Monte Tabor Ele deixa “transparecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos discípulos Ele “desvela” aquilo que a visão superficial não capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...
Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.
A Transfiguração de Jesus que Marcos relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se rotineira, monótona, cansada, deixando-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que irrompem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz desperta nosso interior, e os olhos do coração nos permitem ver muito mais longe e muito mais profundo do que estávamos vendo até esse momento. A realidade é a mesma, mas aparece transfigurada para nós, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa que intuíamos, mas, devido à nossa superficialidade, tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente místicas, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, despertar nosso entusiasmo para continuar caminhando, na certeza de que “vimos o Invisível”.
Uma pessoa transfigurada é alguém que vê o que todo mundo vê, mas de maneira diferente; seu olhar contemplativo capta outra dimensão que se esconde aos olhares superficiais e frios.
Todos carecemos dessas experiências, para que nossa vida tenha outra inspiração, assim como os discípulos de Jesus precisaram desse momento da Transfiguração para que, num relance, tivessem a nítida certeza de que Ele era a “transparência do Pai” e eles próprios sentissem confirmados no seguimento.
Hoje, nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galiléia. Mas precisamos buscar nosso Tabor interior, onde brilha a luz que nos faz “diáfanos” (transparentes), onde se encontram as forças criativas que sustentarão nosso compromisso, onde ouviremos a Voz que confirmará nossa filiação: “este(a) é meu (minha) filho(a) amado(a)”.
Despojando-nos daquilo que nos desfigura, busquemos o que nos transfigura, o que mais nos humaniza e nos diviniza. É possível que, ao contemplar nosso coração, nos deparemos com muitas surpresas que jamais imaginávamos.
Nesse sentido, a Montanha não é lugar só do encontro íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos nós. Por isso a transfiguração é também descoberta do “eu profundo”, da própria realidade pessoal, do Mistério que habita em nós. É nessa manifestação divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.
Nossa vocação é “transfigurar-nos”, superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.
Essa é a nossa verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos e, ao recordar isso, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é reconhecer que somos plenitude que transborda, fonte inesgotável de sonhos, criatividade, inspirações...
Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigurados(as). E é isso mesmo que se pode afirmar de todo ser humano: cada um(a) de nós é “filho(a) amado(a)”, nascido(a) daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.
Nosso “eu profundo” é luminoso, transparente, simples, verdadeiro... Mas, para percebê-lo, é preciso nos “despertar” e viver ancorados em nossa verdadeira identidade.
É preciso ir para além do “ego superficial”, uma ilusão que acreditávamos ser nossa identidade e que nos fazia viver em função dele, alimentando impulsos de poder, vaidade, imposição...
No entanto, a Transfiguração de Jesus nos possibilita ter acesso a um “lugar” sempre estável, sólido e permanente, onde nos fazemos presentes diante da Presença inefável.
Da transfiguração interior à uma presença que transfigura a realidade em que nos situamos. Não podemos recordar quem somos para permanecer em um “monte”, isolados e acomodados, mas para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus conflitos, e viver ali o que “temos visto e ouvido”, a partir de uma atitude de bondade, compaixão e serviço.
A “Transfiguração” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor às relações cotidianas, uma presença solidária para nos colocar no lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que se “deixa transparecer” em todos os “Tabores” da vida.
O monte da Transfiguração transforma as obscuridades humanas em caminhos de luz e esperança, o ódio em fraternidade, a divisão em vínculo ... É preciso transfigurar nossas relações humanas, rompendo o círculo da intolerância, do juízo rápido e da indiferença. Por que não pensar que é uma nobre maneira de viver? Uma vida, uma cultura, uma sociedade que não se transfigura, que não transcende a existência e seus conteúdos, se desumaniza.
Trans-figurar é deixar trans-parecer toda nossa riqueza interior. E isso não é fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um “papel” que interpretamos. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado, sem horizontes, sem direção...)
O cotidiano faz-se rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o anonimato que ele envolve; e isso nos desfigura, desumanizando-nos.
A luz da Transfiguração de Jesus nos desvela (tira o véu) e ativa a coragem a olhar para além da “casca de nossa humanidade”, e deixar emergir nossa originalidade e nobreza que não se deixam revelar diante do espelho, mas só numa experiência da interioridade.
A transfiguração de Jesus é um convite a que possamos nos transfigurar e transfigurar os outros e assim poder contemplar a beleza presente em cada um, muitas vezes escondida e que se revela de maneira um tanto quanto obscura.
Crer na Transfiguração é envolver-se no processo da transformação contínua da vida, esperando a transfiguração definitiva.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Por vezes somos levados a conceber a aventura espiritual como uma fuga de nós mesmos, uma subida para outra região da atmosfera mais pura que o nosso dia-a-dia.
- “Não! Desça até o fundo de você mesmo! É dentro do seu próprio coração que Deus o espera”.
- A busca de Deus se assemelha mais a espeleologia do que ao alpinismo: tem mais de grutas que de cumes; mais de interioridade que de aparência, mais de “descida” que de “subida”.
- Diante da “transparência” de seu “eu profundo” você sente temores? resistências...? Quais? Por que?
- “Transfigurar” compromete com a vida; você está disposto(a) a descer do seu “Tabor” para ser presença inspiradora no seu meio?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.02.2021
Imagem: the-transfiguration-of-christ-greg-olsen.jpg
“E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto...” (Mc 1,12)
É um privilégio iniciar este tempo litúrgico, intenso e forte, chamado “tempo quaresmal”, deixando-nos “arrastar” pelo mesmo Espírito de Jesus; tempo único que nos oferece a possibilidade de fazer uma estratégica parada, de buscar o deserto em meio ao cotidiano, de plantar os pés na terra firme do evangelho e assim viver um compromisso transformador em nossa realidade. Nesse espaço e nesse tempo de maior despojamento, podemos sair de nossas inércias, podemos deixar de lado nossas seguranças e comodidades para transitar por novas paisagens. Há muitos modos de fazer isso: assumir com seriedade esse momento, investir no cuidado interior, abster-nos do rotineiro para abrir-nos ao inesperado e surpreendente...
Enfim, Quaresma sempre indica um tempo especial, de crise-crescimento; hoje diríamos, de discernimento. E o que devemos discernir? Qual é o crescimento-maturação que o tempo quaresmal nos propõe? O discernimento implica, em primeiro lugar, uma escuta atenta e uma profunda sintonia com o mesmo Espírito que atuava em Jesus, para fazermos opções mais evangélicas, a serviço da vida. É o Espírito, força de vida e amor, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio, com seus inimigos mortais da competição, do consumismo, do preconceito e que, lentamente, envenenam nossa vida, instigando-nos a romper as relações de comunhão e compromisso. É preciso, de tempos em tempos, sair de nossos espaços rotineiros e “normóticos”, deslocar-nos para os amplos espaços do deserto, lugar despojado de tudo, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração. Ali, guiados pelo Espírito, teremos a oportunidade de aprofundar nossa relação com a Fonte do Amor que, depois, se expandirá numa nova relação com os outros e com a natureza.
Neste ano, a CF está centrada no tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação que estão obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”: auto-centramento, busca dos próprios interesses, vaidades,... Sabemos que o diálogo implica um des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Aqui não há mais lugar para o julgamento, a suspeita, o fanatismo, a intolerância..., nas diferentes situações da vida: religiosa, social, política, cultural, racial... Dialogar é abrir-nos ao outro diferente, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas, conhecer seu modo de ser e pensar..., multiplicando assim os pontos de vista, para enriquecer-nos humanamente, dilatar os horizontes, crescer pessoalmente.
Todo primeiro domingo da quaresma a liturgia nos conduz até o deserto, onde Jesus foi “tentado”. Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas. Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
As tentações não são tanto uma “prova” a superar quanto um projeto que deve ser discernido. O que parece certo, teológica e historicamente, é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre qual seria seu estilo de messianismo que deveria assumir para sua missão, em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê lugar? buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente Palavra do Pai? Como deverá atuar? dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? buscando poder e sua própria glória ou a vontade de Deus?...
As tentações são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas que se opõem.
* Por um lado, está a lógica da auto-suficiência, da segurança, a partir do centro, a partir de cima, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir.
* E, por outro lado, aparece a lógica da solidariedade, a partir da margem e da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido; uma lógica de inclusão e de vulnerabilidade frente o sofrimento do povo, na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.
Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Assim como foi “impelido” pelo Espírito ao deserto, Jesus se deixa conduzir pelo mesmo Espírito em direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.
A partir deste discernimento e opção, o messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam em Israel. O fato surpreendente é que Jesus começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica da Palestina: a Galiléia. Jesus rompeu com a família, afastou-se da vida normal que levava, iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino. Vivendo no meio de uma realidade conflituosa, de exploração, de desintegração das instituições, de injustiças... Jesus, unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora de Deus e anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15). Ele vem realizar as esperanças do povo, despertadas e alimentadas ao longo dos séculos, pelos profetas. Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. Ele não tinha uma instituição em que pudesse se apoiar; tudo brotava de dentro.
Enquanto todos tinham os olhos voltados para o centro (sobretudo para o templo de Jerusalém onde era elaborado o saber que ia se expandindo até chegar à menor das sinagogas), Jesus revela sua presença nas “periferias” do mundo. A partir daí, todos nós também devemos dirigir constantemente o olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias” (Papa Francisco)
Quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer... A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; encontros, diálogos, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Texto bíblico: Mc 1,12-15
Na oração: Quaresma é tempo para desintoxicação existencial: feridas mal curadas, fracassos, modos fechados de viver, intolerâncias, legalismos e moralismos, ...
- De quê você precisa se desintoxicar? De quê você precisa se alimentar ao longo deste tempo quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.02.2021
Imagem: pexels.com
“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
O Tempo Quaresmal, como toda liturgia, só tem sentido em função da Páscoa. Por isso, estamos iniciando o grande tempo pascal da Igreja. Quarenta dias de preparação para a festa da Páscoa e, depois, cinquenta dias de celebração da Ressurreição do Senhor e da presença inspiradora de seu Espírito. Estamos no tempo forte da comunidade cristã.
Quaresma: tempo litúrgico de reconstrução de cada um de nós e da comunidade; tempo que nos motiva a colocar em questão a razão de ser da vida – para que vivemos? sobre quê está fundamentada a nossa vida? para onde caminhamos?...
Nesse sentido dizemos que quaresma é um tempo intenso de conversão; para isso ela tem sua linguagem, sua celebração, seus exercícios e seus ritos de conversão...
Mas a conversão não é simples mudança exterior no modo de ser e agir, e sim, “mudança de senhor”; quaresma é tempo forte para consultar o interior e verificar qual é o “senhor” que move o nosso coração. É neste contexto de conversão que se situam as práticas quaresmais: oração, jejum e esmola. Através de uma vivência mais radical dessas práticas começa a acontecer um deslocamento dos “falsos senhores” que habitam o nosso coração e, ao mesmo tempo, amplia-se o espaço interior para a presença e ação do “verdadeiro Senhor”.
Por ser um tempo especial para alimentar nossos laços comunitários, a Igreja no Brasil nos apresenta, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade, destacando algum aspecto da caminhada cristã que merece ser aprofundada, refletida, rezada, desembocando num compromisso que deve estar sempre em sintonia com o Evangelho.
Este é o tema da Campanha da Fraternidade para 2021: "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, cuja lema é: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” – Ef 2,14).
O isolamento sanitário, pelo qual estamos passando, põe às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento social e político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo... Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...
Nenhum tipo de diferença (cultura, gênero, religião, raça, classe social...) deveria romper o fluxo do respeito e diálogo entre os seres humanos, dando lugar a atitudes de violência ou ódio no convívio humano.
Quando analisamos elementos que nos unem, vemos que todos temos origem e destino iguais: habitamos a mesma casa comum, somos formados da mesma matéria (argila) e em todos nós sopra o mesmo Espírito. Já seriam elementos mais que suficientes para reconhecer que há vínculos que nos unem, que podemos ser irmãos e que devemos nos deixar conduzir pelas relações fraterno-igualitárias, pela aceitação mútua da alteridade diferente, sem jamais esquecer do totalmente Outro, de cuja fonte tudo tem sua origem.
As “Cinzas”, que são colocadas sobre nossas cabeças, deveriam despertar em nós a consciência que todos procedemos do pó; são as cinzas que nos unificam e quebram toda pretensão de poder, de vaidade, de querer se colocar acima dos outros... O que a cultura do ódio e da indiferença separa, as cinzas fazem a liga e reatam os vínculos... É com o barro das cinzas que somos reconstruídos como seres humanos, quebrados pela violência, preconceitos e ódios...
Nesse sentido, as conhecidas “práticas quaresmais” – jejum, oração e esmola – visam reconstruir nossa comunhão rompida, para que o diálogo amoroso volte a circular em nossos espaços humanos. Diálogos que se expandem em múltiplas direções: consigo mesmo, com Deus, com os outros e com a natureza.
A vivência quaresmal revela-se, portanto, como um processo dialogal, e isso acontece, em primeiro lugar, no mais profundo de cada um de nós, lugar do “colóquio” íntimo com Aquele que faz do coração humano sua morada.
De sua íntima relação com o Criador, de um “sentir-se amado de coração e um saber amar com o coração”, o ser humano é movido a estabelecer uma relação fecunda com tudo e com todos:
- Na relação consigo, o ser humano é constituído pela abertura em si mesmo e para si, capacitado para a interiorização ou imanência, para ter consciência de si mesmo, para dialogar consigo mesmo, para ser autônomo e responsável em suas decisões, para ser sujeito da própria história. Não é comum prestar atenção ao que acontece no território interior. Corre-se grandes riscos de se viver em horizontes muito estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade, atrofia a capacidade de diálogo e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio território interior se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador.
- O ser humano é chamado a se relacionar com os outros, sem se confundir. Ele é ser de reciprocidade e complementariedade, que reconhece a própria singularidade, bem como a singularidade das demais pessoas. Reconhece-se a si mesmo e reconhece o outro na sua ‘distinção’, coloca-se numa atitude de relação dialogal. É o ser humano solidário que caminha lado a lado com a caravana humana.
Aqui, ganha sentido, a expressão bíblica “esmola” (“elemosyne”) que sempre está ligada à compaixão e piedade. A esmola mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva; significa ser sensível às necessidades dos outros que, em uns casos, será econômica, em outras, psicológica, em muitos, afetiva... A esmola é misericórdia em ação.
- Na relação com o mundo criado, numa perspectiva global e unitária, o ser humano, frente a todas as criaturas e ao universo, coloca-se não como dominador-depredador utilitário, mas como responsável e colaborador no aprimoramento e/ou na transformação, sem violência interesseira, e numa atitude de respeito e reverência para com o universo, dom de Deus. Descobrimos aqui o verdadeiro sentido do jejum.
O jejum nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum só tem sentido quando brota da sensibilidade que nos faz sair de nós mesmos para viver a partilha, a comunhão.
Jejuar pode também ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua... Purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo. Implica também não se deixar levar pela tentação de falar mal dos outros, destruir reputações e ser veiculador de ódios e “fake news”..
- Por fim, segundo uma visão bíblico-cristã, para o ser humano, Deus é o grande Outro que o fundamenta e o constitui e com ele estabelece uma relação dialógica. Reconhece procedente d’Ele e a Ele se sente chamado e capacitado a uma experiência de intimidade e comunhão amorosa.
Aqui se revela o verdadeiro sentido da oração. A oração é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.
A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: O diálogo é uma experiência profundamente humana de proximidade, acolhida, respeito para com quem pensa, sente e ama de maneira diferente; o diálogo amoroso desperta os sentimentos mais nobres de compaixão, mansidão, humildade.
- Viver a Quaresma é ser presença de reconciliação em situações onde o diálogo foi quebrado pelo ódio, intolerância, violência, fanatismo...
- Despertar o impulso para ser presença inspiradora e reconstrutora de diálogo, frente a um mundo fragmentado.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.02.2021
Imagem: pexels.com
Entra em cena um leproso (Marcos 1, 40-45), um desesperado que perdeu tudo: casa, trabalho, amigos, abraços, dignidade e até Deus. É um homem que se está a decompor estando vivo, para a sociedade é um pecador, recusado por Deus e castigado com a lepra.
Vem e aproxima-se de Jesus, e não deve, não pode, a lei impõe-lhe a segregação absoluta. Mas Jesus não escapa, não evita, não o manda embora, está de pé diante dele e escuta. O leproso devia gritar de longe, a quem encontrava, «imundo, contagioso»; em vez disso, tu a tu, sussurra: se quiseres, podes tornar-me puro.
«Se quiseres.» O leproso náufrago agarra-se a um «se», é o seu gancho no meio do Céu, terra firme depois do pântano. E parece-me que vejo Jesus vacilar diante do pedido submetido por esta criatura à deriva. Vacilar, como quem recebeu um murro no estômago, uma unhada no coração: «Foi tomado nas entranhas de compaixão».
«Se quiseres»… grande pedido: diz-me o coração de Deus! Que queres verdadeiramente para mim? Queres a lepra? Que eu seja a imundície da região? É Ele que envia o cancro? Jesus vê, detém-se, comove-se e toca. Desde há muito que ninguém ousava tocá-lo, a sua carne morria de solidão. Jesus estende a mão e toca o intocável, contra toda a lei e toda a prudência, toca-o enquanto ainda está contagioso; e é assim que começa a curá-lo, com uma carícia que chega antes da voz, com o dedo mais eloquente do que as palavras.
Tocar, experiência de comunhão, de corpo a corpo, ação sempre recíproca (toca-se e é-se tocado, incindivelmente), um comunicar a sua proximidade, um desflorar-se, um arrepio, um vibrar de Deus comigo, de mim com Ele.
Depois, a resposta belíssima, a pedra angular sobre a qual se apoia a nova imagem de Deus: «Quero!». Um verbo total, absoluto. Deus quer, está envolvido, importa-se, está no seu coração, padece comigo, urge nele uma paixão por mim, um tormento e um apaixonar-se.
A segunda palavra ilumina a vontade de Deus: «Sê purificado». Deus é intenção de bem. Ninguém é recusado. Segundo a lei, o leproso estava excluído do templo, não podia aproximar-se de Deus até que estivesse puro. Ao contrário, naquele dia acontece a reviravolta: aproxima-te de Deus e serás purificado. Acolhe-o e serás curado.
E mandou-o embora, com tom severo, ordenando-lhe que não dissesse nada. Mas o curado não obedece: e pôs-se a proclamar a mensagem. O excluído torna-se fonte de espanto. Exibe a sua felicidade, a sua experiência feliz de Deus.
Antes, tinha de fugir das povoações, e agora é precisamente nas povoações que entra, procura as pessoas de quem antes tinha de fugir, para dizer que mudou tudo, porque mudou, com Jesus, a imagem de Deus.
“Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão e tocou nele...” (Mc 1,41)
O caminhar de Jesus pela Galiléia gera situações de alívio; sua missão é aliviar o sofrimento da humanidade. Pelos caminhos, Jesus se encontra com as pessoas “deslocadas”, sem lugar e fora do convívio social. A partir do “Deus vivo” Jesus se move em direção àqueles que estavam sobrando; sua presença entre os excluídos é portadora de vida. Olhando-as nos olhos e acolhendo-as com suas mãos, Ele se deixa afetar por eles.
Jesus não se esquiva da dor, da solidão e da morte; encara-as, toca-as, revela as entranhas compassivas de Deus onde a lei vê impureza, ativa a compaixão do Pai nas entranhas das pessoas indefesas e estas encontram e recuperam sua fortaleza, sua dignidade de ser humano.
Assim procede Jesus; suas mãos deixam transparecer um coração compassivo, solidário e comprometido.
Muitas vezes, Ele cura os doentes através do toque, da imposição das mãos, da bênção...
O evangelho está cheio de momentos nos quais as pessoas querem tocar em Jesus, mesmo que fosse a franja de suas vestes; em outras circunstâncias, é o próprio Jesus que rompe os “protocolos sanitários” e toca os doentes, leprosos... correndo o risco de se contaminar.
Um leproso tinha, no contexto daquela época, a obrigação de viver separado, fora das povoações e distanciado da família, para evitar o risco da contaminação. E tinha o dever de gritar aos outros, prevenindo-os para que não se aproximassem. No relato deste domingo, porém, o leproso quebra o protocolo e vem ao encontro de Jesus. E faz isso, certamente, porque pressentia no profeta de Nazaré a abertura para tal.
Ora, Jesus não fica apenas na palavra: “quero”. Estende também sua mão, tocando o leproso. Podia simplesmente mandá-lo lavar-se setes vezes nas águas do rio Jordão, como o profeta do AT (2Rs 5,10); mas Ele prefere incorrer no perigo da contaminação, desejando tocar a ferida do outro, querendo compartilhar, como só o toque pode revelar, aquele sofrimento, ajudando o leproso a vencer o ostracismo interiorizado por aquela separação forçada.
Jesus não pensa nas severas restrições da Lei, mas deixa aflorar a compaixão, aquele sentimento divino que Ele encarna e torna visível. É a compaixão que o leva a quebrar o distanciamento social e compromete-se. Quando as mãos estão carregadas de compaixão, elas se tornam oblativas, abertas, servidoras... A compaixão é o sentimento que faz a conexão das mãos com o coração. Ter compaixão é ter coração nas mãos.
Tocar é algo mais que uma simples experiência psicológica; tocar é sentir que uma corrente de vida passa de um para outro. O leproso é tocado no sentido de encontrado, assumido, aceito, reconhecido, resgatado, abraçado. Quando toda a distância é vencida, o toque de Jesus reconstrói a humanidade ferida. Ou seja, a pessoa se sente reconstruída em sua integridade; a acolhida incondicional e o reconhecimento que Jesus lhe confere, fazem o leproso recuperar a confiança em si mesmo, abrindo-lhe um horizonte de esperança.
Sabemos que um doente, quando tocado de forma respeitosa e não invasiva, recebe estímulos de humanidade, de autoestima e confiança que facilitam o curso da sua recuperação. Um profissional de saúde deve saber que, por vezes, um simples toque ajuda a amenizar a perturbação, tranquiliza sentimentos agitados e transmite um conforto que nenhuma máquina ou medicamento transmite.
A imposição das mãos também está sendo redescoberta em seu significado sanador. Ao impor as mãos em outra pessoa, o Espirito curador de Deus inunda-a, invade suas áreas de tensão, suas paralisias, seu caos interior.
“Tocar” é uma experiência especial; o tato é o mais visceral, originário e delicado dos sentidos; e a sensação de tocar e ser tocado é primária; basta ver como os bebês querem tocar em tudo e se acalmam quando se sentem tocados.
O toque é primordial na comunicação mútua. A chamada “fome da pele” é experiência reconhecida na vida humana. O mais leve toque pode despertar emoções, expressar calor humano que não se consegue com palavras. Reduzir os sentimentos a meras palavras cessa qualquer mensagem do coração.
O toque alivia a dor, a depressão, a ansiedade; o toque afetuoso dá segurança, faz a pessoa sentir melhor consigo mesma e com o seu ambiente; seu efeito é positivo sobre o desenvolvimento humano, provoca mudanças naquele que toca e é tocado.
É fácil dizer que na vida é preciso andar “com tato”. É verdade que com o corpo e com as mãos, expressamos ternura, abertura, proteção, acolhida, vinculação... O amor também é físico. E hoje, quando há muito contato físico sem amor, ou muitos contatos sem entrega, é necessário sentir essa unidade.
O amor toca, e assim se expressa, de muitos modos, a relação mais profunda, mais intensa e estável. O amor, atento ao outro, se expressa fisicamente de mil maneiras.
O coração é o lugar onde o ser humano se revela. As mãos são expressão daquilo que está presente no coração; um coração cheio de ternura, bondade, compaixão... se expressa através das mãos ternas, bondosas, compassivas, que praticam a partilha... Um coração cheio de violência, arrogância, ambições, malícias... se expressa através de mãos violentas, maliciosas, fechadas... As mãos... o espelho da alma.
É o coração transformado que dirige a mão santificada, delicada. É o coração agradecido que transforma as mãos em instrumentos de graça.
As mãos, portanto, adquirem uma infinidade de expressões (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas, governar com mão de ferro”, “bordar com mão de fada”, “escrever com mão de mestre”, “abrir mão de algum direito”, “dar uma mão a alguém”, “estar de mãos atadas diante de um problema”, “lançar mão de um estratagema”, “estender a mão para alguém”, “pedir a mão da moça em casamento”, “pôr mãos à obra”, “estar nas mãos de alguém”, “impor as mãos”...
Observando estas expressões, encontramos a “mão” como metáfora para a “força, energia, domínio”.
A aplicação figurada provém do fato de as mãos serem o instrumento mais universal de que o ser humano dispõe. Além de instrumento, as mãos são ainda meio de comunicação entre pessoas de línguas diferentes. Através das mãos comunicamos energia, rompemos distâncias...
Mas também, através das nossas mãos, podemos comunicar algo maior e que não nos pertence. Na nossa mão há a Mão da Vida; encontramos esta expressão em diferentes tradições religiosas: “a Mão de Deus”. Algumas vezes podemos nos sentir guiados, como se tivéssemos uma Mão pousada em nosso ombro, em nossa cabeça, nas nossas costas, para nos fazer avançar, para nos manter de pé. Em hebraico, a mão simbolizada pela letra y (yod), é encontrada no tetragrama YHVH, que significa Javé.
As mãos estão sempre associadas à ação, como a cabeça à razão e o coração aos sentimentos.
“Mãos à obra” é uma expressão acertada e precisa. Não é possível continuar fazendo elucubrações vazias sobre as coisas, divagando sobre o legalismo e o moralismo, especulando ideias piedosas e estéreis... Às vezes, em nosso meio cristão, sobram grandes ideias e palavras em excesso, mas sempre faltam mãos abertas, mãos estendidas, mãos ativas, dispostas a se sujar, a gastar-se e empenhar-se no esforço por construir, por abrir as portas à vida daqueles que estão à margem. Sempre serão mais urgentes mãos capazes de reconciliar e de elevar quem está mais afundado, mais quebrado, mais ferido; mãos capazes de suportar a própria carga e a carga alheia, daqueles que não tem quem os ajude ou de quem os defenda, a de quem não tem forças, nem esperança...
Textos bíblicos: Mc 1,40-45
Na oração: Para rezar com o tato você deve, ainda, aprender outras linguagens: das mãos (cumprimentos, abraços, carícias, aplausos); dos lábios (beijos, consolos, palavras agradáveis); dos olhos (sorrisos, lágrimas); do coração (sensibilidade e afetos...)
Ninguém toca ninguém “de longe”. Você também estará tocando em Deus ao se aproximar d’Ele com uma visita, um telefonema, uma mensagem, uma saudação na rua, um favor, um serviço prestado com amor, um serviço voluntário...
Há templos famosos pela liturgia da oração tátil: orfanatos, hospitais, cárceres, periferias, sanatórios, asilos, favelas... Não deixe de frequentá-los.
- Na sua oração, sinta-se próximo de todos. Toque tudo. Acaricie todas as suas recordações. É uma forma fabulosa de rezar a vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.02.2021
No início da vida pública, Jesus atravessa os lugares onde mais fortemente pulsa a vida: o trabalho (barcos, redes, lago), a oração e as assembleias (a sinagoga), os lugares dos sentimentos e da afetividade (a casa de Simão).
Jesus, libertado um homem do seu espírito doente, sai da sinagoga, e logo, como que acossado por algo, entra em casa de Simão e André, onde «logo» (bela a urgência, a pressão dos afetos) lhe falam da sogra com febre (cf. Marcos 1,29-39).
Hóspede inesperado, numa casa onde a responsável pelo servir está doente, e o ambiente não está pronto, não foi preparado no seu melhor, provavelmente está em desordem. Grande mestre, Jesus, que não se preocupa com o desarranjo, com o que de impreparado existe dentro de nós, da sujidade, do ar um tanto ou quanto fechado das nossas vidas.
E também ela, a mulher idosa, não se envergonha de fazer ver-se por um estranho, doente e febril: Ele veio precisamente para os doentes.
Jesus toma-a pela mão, reergue-a, “ressuscita-a”, e aquela casa da vida bloqueada reanima-se, e a mulher, sem reservar tempo para si, sem dizer «preciso de um instante, tenho de me arranjar, recuperar», põe-se a servir, com o verbo dos anjos no deserto.
Estamos habituados a pensar a nossa vida espiritual como em algo que se desenrola nos quartos bem arranjados, e nós bem vestidos e compostos diante de Deus. Acreditamos que a realidade da vida nos outros quartos, essa existência banal, quotidiana, acidentada, não é apropriada para Deus. E enganamo-nos: Deus enamora-se da normalidade. Procura a nossa vida imperfeita para tornar-se fermento e sal, e mão que volta a erguer.
Esta narrativa de um milagre humilde, não vistoso, sem comentários da parte de Jesus, inspira-nos a acreditar que o limite humano é o espaço de Deus, o lugar onde aterra o seu poder.
O que se segue é energia: a casa abre-se, melhor, expande-se, torna-se grande ao ponto de poder acolher, à noite, no limiar da porta, todos os doentes de Cafarnaum. Toda a cidade está reunida no umbral entre a casa e a estrada, entre a casa e a praça.
Jesus, pólen de gestos e de palavras, que ama portas abertas e tetos escancarados por onde entram olhos e estrelas, que ama o risco da dor, do amor, do viver, cura-os. Quando ainda estava escuro, sai em segredo e reza. Simão persegue-o, procura-o, encontra-o: «Que fazes aqui? Desfrutemos do sucesso, Cafarnaum está aos teus pés!».
E Jesus começa a destruir as expetativas de Pedro, as nossas ilusões: vamos para outro lugar. Um outro lugar que não sabemos; apenas sei que não cheguei, que não posso acomodar-me; um “outro” que a cada dia me seduz e amedronta, mas ao qual volto a confiar, diariamente, a esperança.
“Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André” (Mc 1,29)
Neste tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, nos convém ter referências que nos ajudem a caminhar sem cair na rotina ou na monotonia. O Evangelho deste domingo nos oferece um texto inspirador que sintetiza o modo com que Jesus organizava sua jornada ou dividia o tempo de sua vida pública.
É significativo o fato de que Ele se instale em Cafarnaum, cidade fronteiriça com os povos pagãos, tanto com Tiro e Sidon, como com as cidades da Decápolis. Com isso, Jesus revela que sua missão é universal, e isso será demonstrado em sua incursão pelas terras do Norte ou fazendo travessia para a outra margem do lago, para o leste; por ambas direções adentrava-se em territórios pagãos.
Embora sua presença pública se dê numa cidade comercial e de tanto movimento de pessoas, o início do evangelho de Marcos indica quatro espaços diferentes no quais Jesus se move; cada um deles se converte em ensinamento e inspiração para todos nós.
Pela manhã, vai à sinagoga; ao meio dia, à casa de Simão; ao entardecer atende os enfermos na rua, e na madrugada, de forma sigilosa, se retira a um lugar solitário para orar.
A oração comunitária, a relação doméstica e familiar, a missão evangelizadora e a oração íntima e pessoal com o Pai se conjugam de modo pleno, para nos indicar como deveria ser nossa jornada, quanto à harmonia e ao exercício das relações essenciais: o trato com nosso Deus Pai, a vida social e laboral solidária, a vida de oração e familiar, e a relação interior. Viver a cotidianidade inspiradora: isso faz a diferença.
Quem sabe, poderíamos nos inspirar no modo de viver diário do Senhor, que deverá ser sempre um referente para o nosso próprio estilo de vida. Do equilíbrio que mantenhamos nas diferentes dimensões dependem o crescimento pessoal, a maturação espiritual e a estabilidade na opção de vida cristã.
Um traço característico de nossa sociedade é o individualismo, o isolamento narcisista que nos centra e nos concentra em nosso eu como lugar referencial de atenção, dedicação, cuidado e investimento de quase todas as nossas energias disponíveis. Temos a sensação de que tudo, a partir de fora, convida a viver fechados e surdos às vozes que vem do nosso eu mais profundo. Muitas demandas externas nos impulsionam a reduzir nossa vida ao tamanho de um “bonsai”, a atrofiar nossos desejos mais nobres até reduzi-los aos pequenos bens acessíveis e a conformar-nos com pequenas doses de prazer egoísta.
Ao nos convidar para percorrer, junto ao Mestre, numa de suas estadias em Cafarnaum, o evangelista Marcos nos apresenta uma cena na qual vemos, como num relance, tudo o que vai ser a existência de Jesus: Ele se dirige à casa de Simão e André; ali encontrava-se acamada a sogra de Pedro.
Uma mulher anônima, que só a conhecemos quando referida a seu genro e possuída pela febre, foi introduzida na festa comunitária do serviço fraterno pela mão libertadora de Jesus.
É o primeiro relato de cura em que o Mestre vai ao encontro de uma enferma. Jesus ouve a conversa dos discípulos sobre a doença da sogra de Pedro, toma a iniciativa, vai até a mulher doente e a toma pela mão. Ao tomá-la pela mão, compartilha a sua força. E assim, revigorada pela sua força, a febre a deixa, ela consegue se levantar e se põe a servir.
Assim soam e ressoam em nosso interior as palavras do evangelista Marcos: “Jesus se aproximou, tomou-a pela mão e a ajudou a levantar-se”. Gestos cheios de carinho, de compaixão, de autoridade interior. Tudo o que faltava à religião oficial, é revelado agora por este galileu diferente, desafiador, que não age movido por leis frias, mas por um coração e uma mente integrados, em sintonia com o Pai.
Vale destacar uma constante no evangelho de Marcos: a casa como lugar preferencial da ação de Jesus e da missão dos seus discípulos. Certamente Jesus ensinava nas sinagogas, mas ali sempre encontrava a resistência e o fechamento daqueles que faziam da Lei o centro da vida; por isso, Jesus, como um inspirado mestre, revela um “novo ensinamento”, não em lugares fechados e controlados, mas em espaços abertos, nos campos, à beira do lago de Genezaré, indo pelos caminhos...; Jesus se dirige aos lugares onde homens e mulheres realizam suas atividades comuns, no simples ambiente do trabalho cotidiano e, de maneira privilegiada, nas casas, começando pela sua própria, em Cafarnaum, onde fora residir.
Jesus, como itinerante, dá início a um “movimento de casas”. É que a casa acaba sendo o espaço alternativo que melhor corresponde à atuação do Mestre, enquanto ponto de partida e de chegada de sua missão itinerante. É a partir das casas que Jesus exerce, à margem do que está estabelecido, sua autoridade em favor da vida, sem depender de instituições e funções previamente normatizadas.
Assim, através de uma rede eficiente, ampliada e centrada no Mestre e com funções complementárias, seus seguidores, a partir das casas, prolongam o ministério de Jesus: “viver em saída”, deslocar-se em direção aos excluídos, revelar a presença do Pai na simplicidade do cotidiano das pessoas, etc. Neste sentido, a casa cumpre uma função vital para a expansão da causa do Reino de Deus. Em outras palavras, a causa de Jesus (Reino) encontra nas casas seu lugar natural.
É fácil concluir que esta rede de seguidores nas casas acabe se organizando de uma forma concêntrica, ao mesmo tempo que horizontal, favorecendo de modo definitivo e natural o avanço do Reino; tal organização se diferencia das estruturas piramidais e hierárquicas, próprias de toda e qualquer instituição, com os riscos de esclerose que lhe são inerentes. Aqui, revela-se sumamente estimulante resituar a continuidade da causa de Jesus de Nazaré nos ambientes fraternos e igualitários, onde a casa se revela como espaço próprio da simplicidade e da cotidianidade.
Trata-se, pois, de uma alternativa urgente, frente à persistência petrificada de conservar formas e estruturas anacrônicas que, em função do poder, continuam a predominar em nossos ambientes cristãos, apesar dos apelos insistentes do próprio evangelho.
O Evangelho de Jesus é experiência de casa, de comunhão e palavra para todos, lugar aberto à novidade do Reino. A primitiva comunidade dos seguidores de Jesus não começou formando uma nova religião instituída, nem se preocupou com construções de templos ou com organizações hierarquizadas; ela se apresentou como uma federação de casas abertas, a partir dos pobres e para os pobres, criando redes de comunicação e de vida fraterna, casas-família, impulsionadas pelo testemunho e presença do Espírito do mesmo Jesus.
Ser seguidor(a) é ser chamado(a) a viver no seu dia-a-dia esta mística do amor da maneira como Jesus viveu (na família, no trabalho, no descanso, na luta em favor da vida, nos compromissos sociais...).
O cotidiano é o meio no qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente; ele é o lugar privilegiado da vivência da espiritualidade do seguimento, deixando-nos conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama da vida humana e a dignificá-la.
Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que, embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação que não se reduz à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição ou automatismo.
Sabemos que o cotidiano revela um perigo que é a rotina, essa sensação de fazer tudo mecanicamente, inclusive a vivência da fé, e de perder com isso o ardor do novo ou o impacto do extraordinário.
O amor é precisamente o lubrificante que dá sentido à nossa vida cotidiana e nos faz superar as dificuldades inerentes à mesma; o descentramento de nós mesmos, a busca da verdade e do bem comum, a ação comprometida com a vida dos outros... se tornam “normais” quando cultivamos o amor.
Texto bíblico: Mc 1,29-39
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de nossa vida cotidiana.
- suas atividades diárias fazem parte do seu caminho para Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a presença de Deus nas “rotinas diárias”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.2021
Imagem: pexels.com/pexels-photo-1535288
“Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (Mc 1,27)
Depois do chamado dos primeiros seguidores de Jesus, junto ao lago, o evangelho deste domingo nos leva com eles à sinagoga, que era a escola e casa de oração dos judeus. Fazendo com que falem mais os fatos que as palavras, Marcos nos quer ajudar a ver, como através da atuação de Jesus, o Reino de Deus se faz presente.
Não por casualidade, o evangelista situa a cura do homem possuído por “espíritos maus” em Cafarnaum (centro da atividade de Jesus), na sinagoga (espaço da religião), no sábado (dia de culto e oração) e entre mestres da lei, que tinham poder sobre a assembleia e sobre a interpretação da Palavra. Mas, aqueles que tinham “poder” não curaram o homem de seu espírito imundo.
“Espírito mau” significa tudo o que bloqueia a relação com Deus e a comunhão com os outros; representa o que há de mais contrário a Deus e a possibilidade de uma convivência sadia com aqueles que o rodeavam; é o símbolo de tudo aquilo que no ser humano está em radical oposição ao Pai.
A presença de Jesus desata, liberta, purifica o ser humano que se encontrava oprimido dentro de uma sinagoga. Frente à exclusão nesse espaço comunitário, Jesus profere sua palavra que cura e liberta o enfermo/oprimido de sua situação desumanizadora. O relato deste domingo não fala da enfermidade que o oprimido padecia. Diz simplesmente que era “impuro”, alguém que era considerado “manchado”, dominado por um espírito anti-humano e que Jesus desmascara, para que pudesse falar e agir com autonomia.
Jesus, na sinagoga, não discute sobre Deus de forma abstrata; não propõe teorias sobre pureza mais intensa, sobre ritos e alimentos; também não oferece uma doutrina sapiencial de tipo moralista; não apresenta uma doutrina melhor sobre leis ou normas de conduta; não é o rabino mais sábio, nem o escriba mais agudo. Tudo isso é secundário para Marcos. O ensinamento novo de Jesus se identifica com sua autoridade humana, com sua capacidade de destravar a vida dos enfermos na sinagoga. Por isso, seu “ensinar com autoridade era novo”; não era o ensino que repetia o que outros diziam ou aquilo que se lê nos livros; não era um ensinamento aprendido na escola de um professor especializado.
Tratava-se de um ensinar novo, diferente dos mestres da lei; a verdadeira autoridade de Jesus residia em sua pessoa, em sua vida. Seus pensamentos eram expressão de sua vida, era expressão do que fazia; e o que fazia era expressão de seu pensamento. Seu ensinar é novo porque Jesus não é o “profissional das ideias”, mas o “profissional da vida”, o profissional do coração, o profissional que ensina vida, o profissional que sara os corações.
Nosso contexto, social e religioso, também precisa de “profissionais” que nos deem razões para viver, nos deem razões para a esperança, para amar, nos deem razões para aprender a sermos pessoas, livres e criativas; precisamos de “profissionais” que nos mobilizem a viver uma vida plena, sem esses “maus espíritos” que nos atormentam cada dia e nos fazem viver uma vida medíocre.
Jesus fala e atua com “autoridade”; mas sua autoridade é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem outra fonte. Está cheia do Espírito vivificador de Deus. Jesus não tem “autoridade do poder”, mas o “poder de sua autoridade moral”; não tem a autoridade da força que domina, se impõe e arrasta. Jesus tem o poder da autoridade que brota de seu interior, de seus valores, de sua liberdade. Autoridade que o descentra e o mobiliza a ser presença provocativa frente a todo poder que exclui. Não é o mesmo “poder” e “autoridade”.
O poder é exterior, vem de fora. Uma pessoa tem poder porque lhe foi dado nas urnas, porque foi instituído a partir de “fora” em uma presidência, em uma instituição, em uma empresa... Pode-se ter, pois, poder: títulos, cargos, prestígio,... mas poder não confere autoridade. A autoridade, pelo contrário, é interna à pessoa, e não consiste em ter títulos, nomeações; é a qualidade daquelas pessoas que tem o carisma de suportar as cargas e aliviar o sofrimento dos outros; pessoas que deixam emergir de seu interior a bondade, o alívio, a competência, a liderança solidária...
A pessoa pode ter poder, e poder legítimo, mas pode ser que não tenha a mínima autoridade. É muito perigosa uma pessoa que atua com poder, mas sem autoridade. Pelo contrário, há pessoa que não tem poder na sociedade ou na igreja, mas tem autoridade. Jesus mesmo não tinha nenhum poder no templo, na lei, diante dos escribas, fariseus, sacerdotes... Mas Jesus tinha autoridade: falava e atuava com autoridade. O poder não torna as pessoas boas, nem quem ostenta o poder e nem sobre quem recai o poder.
Sabemos e sentimos que o poder exerce um grande atrativo; ele é sedutor: “quem é que não foi picado pela mosca azul do poder?” É a paixão mais forte do ser humano; este pode até “perder a cabeça” por umas migalhas de poder político, econômico, religioso ou mesmo na família, nas empresas, etc. Atrás de toda busca de poder, ou das atitudes de poder, se esconde uma ansiedade de domínio, de prepotência, de ego inflado; ao mesmo tempo, uma pessoa fanática por poder revela um intenso medo, uma angústia profunda de perder prestígio, um pânico diante da possibilidade de ficar sem pedestal, sem cátedra, sem a atenção dos outros...
Nestes casos, o poder acaba se descambando para o fundamentalismo fanático. Uma pessoa fanática é alguém cuja mente é rígida, esclerosada, bloqueada pelo medo e pânico visceral frente à verdade, das pessoas e dos fatos. Por isso, o fanatismo se identifica com o pensamento dogmático mais intransigente. Em alguns cargos políticos e em algumas posições religiosas se dá uma atitude de poder despótico, agressivo, violento, porque o poder fanático não é capaz de pensar, de dialogar, somente agride.
A autoridade faz bem; o poder se impõe; a autoridade acompanha. O poder dispõe, a autoridade liberta. O poder crucifica, a autoridade está crucificada ou ao pé da cruz. Só a autoridade traz a paz, ilumina e faz crescer; o poder, pelo contrário, gera ansiedade, medo e faz o outro se sentir inferior. Quem tem autoridade, inspira e motiva as outras pessoas a fazerem as coisas com boa vontade e ânimo; o poder, no entanto, as obriga, por causa de sua posição de força.
Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga, da violência. A autoridade, por sua vez, não tem nenhuma relação direta com a obediência: repousa, isto sim, sobre o reconhecimento da riqueza e da possibilidade do outro. Ela anima, sustenta, desafia e toca aquilo que cada um tem de melhor em seu interior.
A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Quem tem poder não age, dá ordens; jamais suja as próprias mãos; é impune e não deixa impressões digitais.
O poder não constrói comunidade, pois a pessoa se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Sorrateiramente este mal toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expressar.
Texto bíblico: Mc 1,21-28
Na oração: Todos nós somos habitados por dois dinamismos internos: um, que nos impulsiona para o bem, a verdade, a comunhão...nos descentra; outro, que nos fecha, nos faz autoreferentes, prepotentes, violentos...
- Qual dos dois dinamismos se faz visível no seu agir e falar cotidianos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.01.2021
“O tempo já se completou” (Mc. 1,15)
Não há filósofo que se preze que não lhe tenha dedicado parte de sua reflexão; não há poeta que não o cite em suas obras; não há namorado(a) que não pense que ele “voa”; não há político que não o utilize em suas promessas; não há pregador que não o faça aparecer em seus sermões; não há ser humano que não sinta sua passagem. Estamos falando do “tempo”.
Tem-se dito tantas coisas sobre o tempo...: que “ele tudo cura”, que “temos todo o tempo do mundo”, que “é preciso fazer as coisas a tempo”, que “há um tempo para cada coisa”, que “não podemos apressar o tempo”, que “o tempo passado foi melhor”...
Quando falamos de tempo, não estamos nos referindo, necessariamente, ao tempo físico, ao tempo cronometrado (“chronos”). Esse tempo não é o mais importante. O verdadeiramente importante é o tempo psicológico, o tempo interior, o tempo espiritual, o tempo tal e como nós lhe damos valor.
A Bíblia não concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversível e retilínea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro do qual tudo é contido e tudo acontece.
A ideia bíblica de tempo é algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, marcado por eventos significativos...
A mentalidade judaica considerava que a natureza do tempo presente era determinada tanto pelos atos de salvação de Deus no passado (Êxodo), quanto pelos atos de salvação de Deus no futuro.
Os profetas tinham a tarefa de contar às pessoas o significado do tempo específico no qual estavam viven-
do, em vista do novo ato divino que estava prestes a acontecer.
Este acontecimento futuro iminente qualifica o tempo presente, dá sentido à totalidade da nossa vida no presente e determina aquilo que deveríamos estar fazendo. Se o tempo presente é inteiramente inspirado e qualificado por este ato novo e sem precedentes de Deus, então o próprio tempo presente é tempo totalmente novo, nova era.
Cada coisa, ao ter seu próprio tempo, está numa relação de parceria com outros tempos e outras coisas.
Há uma constante vinculação do tempo ao “ser e acontecer de cada coisa”. Isso porque o tempo é “carregado” da presença de Deus, que continuamente trabalha, realizando a salvação.
É o “Kairós”, tempo de salvação.
Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior ao nascimento de Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão sua localização e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.
Jesus vive cada momento numa relação completamente livre com o tempo.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...
O tempo de Jesus é kairós, presente, dom, tempo de salvação. É a plenificação de todos os tempos.
É o “tempo esgotado”, capaz de abarcar todas as dimensões da vida e da história.
Jesus acomoda seu tempo ao “tempo de Deus, avança sem pressa nem inquietude e busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.
É no movimento do “Kairós” de Jesus que acontecem o chamado e o seguimento; por isso, Marcos situa o encontro com os primeiros discípulos nesse momento denso, decisivo, inspirador. É no interior do kairós que o Reino vai se expandindo, e movendo a história em direção à sua plenitude.
Todos carregamos uma certa visão pessimista que desvaloriza o tempo: vemo-lo como efêmero, passageiro, finito, caduco e, inclusive, como ilusório.
Também existe entre nós uma certa concepção que pretende reduzir toda realidade a tempo, a mero tempo; na maioria dos casos, tempo desabitado, sem presença, sem sentido e sem abertura ao futuro.
Outros colocam um preço no tempo: “time is money”. Muitas pessoas, pressionadas pela agenda desumana do ativismo, não conseguem dar um sentido existencial àquilo que fazem. Nada detém o tempo. Sua dinâmica não se submete a nenhum controle humano. O tempo corre como as águas de um rio. Arrasta tudo.
O “tempo novo”, tal como o vive Jesus, é original em cada um de seus momentos, e em nenhum caso torna-se banal. O Pai se mostra propício na temporalidade, e por isso a atitude de Jesus é a de descobrir em cada um dos momentos e dos acontecimentos o dom de seu Pai.
Cada tempo particular é sinal de um Deus benevolente e deve ser acolhido com gratidão.
A pressa descontrolada, o ritmo frenético, o estresse, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,.., são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
A liturgia cristã nos diz que estamos no “tempo” para tomar consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “chronos”, mas no “kairós”. Seremos cada ano mais jovem se formos cada dia mais livres. Nosso verdadeiro ser é constituído do divino que há em nós, e isso é eterno. Não precisamos esperar nada, pois já somos a plenitude e estamos na eternidade. Sem a eternidade da “alma” que pulsa em nós, que nos unifica e nos integra por inteiro, a vida se empobrece. Na “alma”, no nosso interior, o eterno tem seu templo.
Quando alguém fala de “coisas” eternas, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro. Talvez ainda somos a onda que ainda não se despertou de que é oceano. Estamos mergulhados no “hoje eterno” de Deus e isso ilumina e dá sentido a cada gesto, cada ação, cada encontro.
Kairós: eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Nesse sentido, a própria eternidade é sentida como o fluir de um presente sem fim, dom para ser vivido a cada instante.
A espiritualidade cristã, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer a “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Jesus irrompe em nossa história e nos coloca diante de uma decisão inadiável e única que marca de maneira definitiva nossa existência: “convertei-vos e crede no Evangelho!”
Encontramo-nos mergulhados no tempo da história, levados e sustentados por Deus, “Senhor do tempo”, que nos fala no tempo, comunica-se a nós no tempo, nos conduz no tempo, nos perdoa no tempo, nos convida a trabalhar com Ele no tempo...; no tempo, Ele nos sacode e nos interpela, no tempo, Ele nos capacita para anunciá-Lo e transformar o mundo segundo seu desígnio original.
Por isso, o transcurso do tempo, longe de se constituir um peso, é um grande aliado de nosso desejo, de nossa vida e de nossa fé.
Texto bíblico: Mc 1,14-20
Na oração: Tempo é vida e a vida é feita de tempo: ordenar seu uso nada mais é do que ordenar a própria vida, dando-lhe sentido e direção. A maneira como cada um assume o tempo determina a forma como direciona sua vida.
- Você vive o tempo como dom ou como “inimigo” a ser derrotado? Seu estilo de vida é agitado, sempre de olho no relógio, em permanente estado de ansiedade, ou é marcado pela gratidão que descansa?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.01.2021
Imagem: pexels.com/pexels-giallo
“Foram, pois, ver onde Ele morava e, nesse dia, permaneceram com Ele” (Jo 1,39)
Queremos marcar a experiência da caminhada contemplativa com Jesus, ao longo deste ano litúrgico, fazendo referência ao início da sua atividade pública, no evangelho do João: um relato de busca e de seguimento. Dois discípulos, que escutaram o Batista, começam a seguir o Mestre de Nazaré, sem dizer palavra alguma. Há algo n’Ele que os atrai, embora ainda não sabem quem Ele é nem para onde os levará. No entanto, para seguir a Jesus não basta escutar o que os outros dizem dele. É necessária uma experiência pessoal.
Por isso, Jesus se volta e lhes faz uma pergunta muito instigante: “quê buscais?”. Estas são as primeiras palavras de Jesus no quarto evangelho. Não se pode caminhar atrás de Seus passos de qualquer maneira; é preciso verificar as reais motivações.
Aqueles dois primeiros discípulos ainda não conseguem imaginar até onde a aventura de seguir Jesus poderá levá-los, mas intuem que Ele poderá ensinar-lhes algo que ainda não conhecem; por isso, a resposta deles é outra pergunta sábia: “Mestre, onde moras?”
Não buscam n’Ele grandes doutrinas nem sábias filosofias. Querem que lhes mostre onde vive, como vive e para quê vive. Desejam que lhes ensine a viver. A resposta de Jesus é a de um verdadeiro mestre: “Vinde e vede”. “Experimentai vós mesmos, percorrei meu caminho, caminhai por ele...” Não lhes dá explicações ou uma exortação, nem lhes impõe condições, nem exige deles algum tipo de submissão.
A pergunta de Jesus – “quê buscais?” – levará os dois discípulos a conectar com seu ser mais profundo, com sua realidade mais íntima, com os desejos de seu coração, ainda não configurados pelo amor. Uma pergunta vital, que desperta a consciência e os conduz a um diálogo consigo mesmos.
Por outro lado, a pergunta dos discípulos – “Mestre, onde moras” – não significa limitar-se a entrar em um determinado espaço físico, mas é expressão do desejo de um retorno à “morada interna”.
Os novos seguidores de Jesus não lhe perguntam sobre o seu ensinamento, nem o que faz, mas onde Ele mora para poder, dessa maneira, estar com Ele, compartilhar sua casa, sendo seus amigos. O verdadeiro discipulado é “estar com”, morar juntos... Esta é a missão chave de Jesus e de sua nova comunidade de seguidores: abrir a casa, não ocultar nada, oferecer com transparência sua vida e caminho aos outros.
“Vinde e vêde!”: Jesus lhes oferece sua morada, com tudo o que há nela, para que aprendam, vivendo com Ele, a fazer o percurso interior, para descobrindo a identidade original, ali presente..
Estes discípulos acolhem o convite, vão com Jesus, veem e convivem com Ele naquele dia; sentem-se impactados e transformados pelo estilo de vida de Jesus, mais que por aquilo que Ele diz. Não há necessidade de mais discursos, de palavras fortes: veem como vive Jesus, vivem com Ele e descobrem que Ele é o Messias de Israel. Esta foi e continua sendo a missão de Jesus e de seus seguidores: criar espaços de vida messiânica, ou seja, vida compartilhada...
As primeiras palavras que Jesus, pronunciadas no evangelho de João, também nos deixam desconcertados, porque vão ao fundo e tocam as raízes mesmas de nossa vida. Jesus continua se dirigindo a cada um de nós com uma pergunta que nos remete ao centro do nosso coração, àquilo que nos move: “quê estais buscando?” Sua pedagogia é a da pergunta que desvela, pois nos move a fazer um percurso interior e a encontrar-nos com a fonte que alimenta e inspira.
O desejo do encontro é força determinante para se manter acesa a chama da dinâmica da busca. É uma chama que se mantém acesa em proporção ao sentido e à importância grande de quem ou do que se busca. A sintonia com Deus que é buscada, justifica, com razões de sobra, o esforço e a recompensa do encontro. Vale a pena buscar o que é importante e encontrar Aquele que responde às razões mais profundas da busca.
É preciso aceitar viver à busca de Deus. A Ele é que se deve buscar. Por iniciativa, Ele busca a todos, vai ao encontro de cada um. Ninguém fica de fora.
Uma lógica de contínua busca deve permear o coração de cada um(a), para aprender a viver da busca d’Ele, o Senhor, e da busca de todos os outros, colocando-se a serviço da vida, unicamente por amor.
No fundo, como todo ser humano, também nós andamos buscando algo mais que uma simples melhora de nossa situação; aspiramos algo que, certamente, não podemos esperar de nenhum projeto político ou social.
Na verdade, quando nos interrogamos sobre o que buscamos, sobre o sentido de nossa existência, deixamos transparecer, nas profundezas do nosso coração, a “nostalgia da dimensão perdida”, ou seja, nossa morada interior.
Podemos, então, afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de nós mesmos, de modo que buscar a Deus é buscar-nos a nós mesmos, a nossa própria interioridade.
Buscamos plenitude, felicidade, quietude, unidade, paz, verdade, amor, harmonia… Pois bem, é justamente isso que somos no nosso “eu” mais profundo. Temos nos distanciado de nossa interioridade e esquecemos as beatitudes originais; com isso nos reduzimos ao ego carente e insatisfeito. Ao aquietar o pensamento e voltar ao momento presente, caem todas as nossas antigas identificações egóicas e fica, simplesmente, o que somos. A busca chega a seu fim no dia em que descobrimos que o buscador é o buscado. Somos já – e sempre foi assim – aqueles que buscamos.
No contexto social pós-moderno, as pessoas relatam que perderam não somente seu lar exterior, mas também o interior. Elas se percebem sem o sentimento de acolhida e proteção; elas já não sabem mais quem são. Perderam seu sentimento de pertença, além de não mais saberem o que as sustenta. Não sabem mais onde poderão encontrar segurança e acolhimento.
O que é “estar em casa” para nós hoje, num mundo estranho e em constante mutação? O que significa “morada” para nós atualmente? Que tipo de sentimento está conectado a ela? Onde nos sentimos em casa?
A imagem dos dois discípulos atrás de Jesus é uma excelente mediação para termos acesso à “morada” em nós mesmos.
Neste mundo disperso, o percurso contemplativo da pessoa de Jesus nos dá referências e amparo. A pergunta que Ele dirige aos seus futuros discípulos nos remete à vivência em nossa casa interior. Entramos em contato com algo que sabemos estar encoberto pelas cinzas existenciais. É anseio pelas raízes, a partir das quais podemos viver com mais intensidade e sentido.
Ansiamos um espaço onde possamos ser nós mesmos. Espaço no qual podemos entrar em contato com algo que nos plenifica e nos expande. Nós temos o sentimento de viver das forças que procedem desse local.
É o espaço no qual Deus mesmo habita em nós. Ali, nós somos plenamente nós mesmos, salvos e íntegros. Verdadeiramente em casa. Precisamos apenas olhar para dentro. O céu está em nós e ali, no céu interior, está a verdadeira pátria que ninguém pode nos roubar ou pode destruir.
Texto bíblico: Jo 1,35-42
Na oração: Deixe ressoar em seu interior as perguntas mobilizadoras: o que, ou quem você busca? Por que busca? Tem sentido e valor o que você busca? Para onde o leva a força da busca?...
Estas perguntas ficam ali, continuamente presentes em um rincão de nossa vida; mas enquanto permanecem vivas são como brasas que voltam a acender-se cada vez que a vida as sopra.
Estas perguntas nos fazem humanos e são tão importantes como o ar que respiramos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.2021
Página 12 de 38