“...quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,24)
Depois do percurso quaresmal e pascal, a liturgia nos situa novamente no chamado “Tempo Comum”; trata-se de um percurso contemplativo que nos convoca a fazer caminho com Jesus, realizando sua missão e preparando a comunidade dos seus seguidores. Tendo os olhos fixos n’Ele, viveremos uma longa aprendizagem, deixando que o Mestre da Galiléia faça emergir o que é mais nobre e humano de nosso interior. Tempo de seguimento e identificação com Aquele que foi “humano” na sua radicalidade.
No evangelho deste domingo, Jesus deixa claro, para todos nós, o preço do seguimento. Responder à pergunta – “quem dizeis que eu sou? – implica identificação com seu modo de ser e viver. Sua proposta de vida, sua liberdade diante das leis e tradições, seu compromisso com os últimos, sua relação com o Pai... vão provocar conflitos com aqueles que estão “petrificados” em seu modo de viver. E aqueles(as) que se identificam com Ele também vão encontrar oposições, incompreensão e perseguições. Por isso, ao convidar seus discípulos e discípulas a segui-lo, foi taxativo: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me”
Que significa “renunciar a si mesmo” - “tomar a cruz de cada dia”? Será que ele veio “complicar” nossa vida com mais peso, mortificação, sofrimento...? Esta afirmação de Jesus parece estar em contradição com outra afirmação encontrada em Mateus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. “Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Na vida e missão de Jesus encontramos duas grandes paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Em sintonia com o Pai, esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da “cruz”, imposta pelos poderes religiosos e civis. É a cruz patíbulo, instrumento de tortura, imposta pelos romanos àqueles que ousavam contrariar seu domínio. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem do plano do Pai. É a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da penitência... como se isso fosse agradável a Deus.
Privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tudo isso desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus, quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus. Mas Jesus assumiu também a “cruz-patíbulo” e revelou sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta “cruz” assumida é também visibilização da salvação.
Nesse sentido, a cruz de Jesus e dos seus seguidores não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino e da vida. Assim, a cruz não significou passividade e resignação; ela concentrou, radicalizou e condensou o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Tanta radicalidade nos surpreende. De fato, hoje, em nossa sociedade, escutamos expressões totalmente contrárias: “cuide-se”, “seja você mesmo”, “aproveite a vida”, “seja o primeiro” ...
São expressões de uma vida centrada no próprio “ego”, ou, “ego-latria”. Tal idolatria reside no próprio interior. O coração humano é uma fábrica de ídolos; há ídolos internos que emergem e que desumanizam, pois rompem todo vínculo e quebram toda relação.
Jesus, em seu convite ao seguimento, nos pediu a “renúncia” de um ídolo especialmente perigoso e sutil: nosso “ego”. Exigiu-nos esquecer dele, negá-lo, não lhe prestar culto, não nos colocar a seu serviço...
Nosso ídolo interior, nosso “ego”, exige culto, sacrifícios, seguidores que lhe sirvam. Por isso, nos agrada que nos louvem, que nos coloquem num pedestal, que nos incensem.
Mas, quando alguém entra no fluxo desta falsa “liturgia”, brotam, imediatamente o veneno do desprezo, da do ódio, da violência, do autoritarismo...
Quando Jesus propõe “renunciar a si mesmo”, na realidade está dizendo: “renuncie a si mesmo como ídolo!”. Ele desmascara essa tendência diabólica que nos habita. Quantas vezes nos surpreendemos sendo nós mesmos nossa principal preocupação! Frequentemente nos tornamos o centro, fazendo que tudo gire em torno ao nosso próprio “ego”. Habituamos a nos aproximar das pessoas que nos agradam, que nos bajulam, que compartilham nossos apegos desordenados, que nos dão a razão em tudo, que engordam nosso “ego”.
A partir de nossa ego-latria, vamos criando e alimentando muitos outros ídolos externos, que minam as nossas forças, matam nossa criatividade e esvaziam todo espírito solidário: a busca do poder, da riqueza, da fama, da conquista... Tudo isso nos faz entrar no círculo de morte e destruição de nós mesmos.
A destruição dos ídolos começa por nós mesmos, esvaziando o ídolo de nosso ego. “Renunciar a si mesmo” não é renunciar o que é mais belo que temos recebido: uma personalidade com características únicas, uma liberdade admirável com capacidade criativa, um espírito compassivo e solidário, uma capacidade de relação gratuita... O que Jesus pretende é tirar nosso “ego” de seu recinto individualista e nos situar no amplo espaço do Reino de Deus. Podemos expressar isso numa linguagem tomada da ciência ecológica: Jesus nos chama a abandonar nosso “ego-sistema” para transladar-nos ao “eco-sistema” de seu Reino.
A identificação com Jesus no seu seguimento requer assumir um processo de “morte” e levar a “cruz-staurós” até o fim. É preciso que morra em nós aquilo que não tem futuro, que não é vida, que não é felicidade... O “ego” é pura ilusão, é só uma ficção ou, como dizia Einstein, “uma ilusão ótica da consciência”. Quando ele determina nossa vida, caímos no vazio, pois ele não tem em que se sustentar.
A renúncia à “egolatria” não é uma desgraça ou destruição de si mesmo; pelo contrário, é a oportunidade privilegiada para deixar emergir do nosso “eu original” os recursos mais nobres, as potencialidades de vida que não tiveram chance de se expressar, as beatitudes mais profundas que dão sentido e sabor ao nosso viver. Não se trata de massacrar uma dimensão de nosso ser para salvar outra; trata-se de descobrir uma falha na percepção de nós mesmos; ou seja, com frequência cremos ser aquilo que não somos e vivemos enganados. Trata-se de nos libertar de tudo aquilo que nos ata ao caduco e nos impede elevar-nos à plenitude que nosso verdadeiro ser exige.
Este é o caminho da vida que se faz doação, presença, compromisso... vida na fidelidade até o fim.
Texto bíblico: Lc 9,18-24
Na oração: Entendemos por medíocre aquele(a) que renunciou a viver em profundidade; perdeu o elán vital e por isso a capacidade de entusiasmar-se pela vida, de lançar-se, de expandir-se. O realista medíocre fica satisfeito com sua vida, mas “cheira a morte”.
A “mediocridade” não tem lugar no caminho do Reino; o seguimento de Jesus não é para “medíocres”, mas para os(as) ousados(as), aqueles(as) que arriscam, que alimentam a capacidade de criar e inovar.
- Sua vida: determinada pela mediocridade do “ego” ou pela maneira inspirada de Jesus viver?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.06.22
“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13)
Celebramos o “Corpus Christi”, uma das festas mais ricas por seu conteúdo e simbolismo, mas que nos faz pensar também no “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos.
Aceitamos, pela fé, a presença real de Cristo na Eucaristia; isso implica comunhão bem maior com sua vida, seu testemunho de amor, de partilha, solidariedade, dedicação pela transformação de tudo aquilo que não dignifica a vida ou não dignifica os “corpos”. Comungamos o “Corpo de Cristo” para podermos viver o seguimento com mais radicalidade.
Infelizmente, o que temos observado é que grande parte dos cristãos não seguem uma Pessoa (Jesus Cristo), mas se limitam a cumprir alguns ritos, leis, práticas devocionais e piedosas... que revelam uma espiritualidade intimista, alienante e distante do compromisso com os outros.
Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o compromisso com os “corpos” explorados, manipulados, usados, escravizados...
Pode ser que, às vezes, tenhamos um profundo amor e respeito ao “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aí, aqui, ali, lá, por todos os lados...
Certamente, nunca passou pela cabeça de Jesus pedir que os seus(suas) seguidores(as) se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se ajoelhou diante de seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa tarefa de servos, lhes disse: “Se eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”. Essa lição, ousada e provocativa, parece que nunca nos interessou. É mais cômodo transformá-Lo em objeto de adoração do que seguí-Lo no serviço, na disponibilidade e na entrega aos demais.
Todas as demonstrações de respeito e veneração diante do Corpo de Cristo tem seu sentido e significado. Mas, ajoelhar-nos diante do Santíssimo Sacramento e continuar menosprezando ou ignorando o próximo, é uma ofensa. Se, em nossa vida, não deixamos transparecer a atitude de Jesus, todos os gestos de adoração continuarão sendo “magia barata” para tranquilizar nossas consciências. É preciso descobrir a presença de Jesus em todos os corpos desfigurados, famintos, violentados, desprezados..., e que suplicam por uma presença servidora e solidária. Diante destes corpos desumanizados, morada do Ressuscitado, é que devemos nos ajoelhar para facilitar a ajuda e o serviço. Ninguém pode servir a partir de uma posição elevada; é preciso “descer”, esvaziar-nos de nosso ego prepotente, para prolongar as mãos e o coração do Compassivo.
“Corpus Christi” nos fala, portanto, da “Encarnação continuada”, ou seja, Deus não só se “encarna”, Ele é Encarnação. A Encarnação não é um ato pontual, ou um evento isolado da história, mas uma atitude eterna de Deus. Toda a Criação e toda a Humanidade foram assumidas por este “mistério” fundante de nossa fé. Assim, toda a história humana se faz História da Salvação. E o “assim novamente encarnado” (S. Inácio) se visibiliza em todos os “corpos” humanos. “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,40)
Ao comungar o “Corpo de Jesus”, nosso corpo e todo nosso ser tocam algo do mistério da Encarnação. A comunhão é – ou deveria ser – uma sacudida pessoal e comunitária que nos impulsiona a retomar o projeto vital de Jesus, do qual nos afastamos continuamente.
Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor que é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Ao dizer, “isto é o meu corpo”, Jesus está afirmando: Isto sou eu: Dom total, Amor total, sem limites.
Ao comer o pão e beber o vinho consagrados, queremos afirmar: fazemos nossa a Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que foi e fez Jesus. O pão que nos dá a Vida não é apenas o pão que comemos, mas o pão no qual nos transformamos, quando fazemos de nossa vida uma doação contínua. Somos cristãos, não só quando comemos o pão, mas quando nos deixamos consumir, como Ele fez.
Discípulos(as) de Jesus somos quando aprendemos a partir o pão. Reconhecemos os cristãos hoje quando partem o pão e não o retém para si. O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Compartilhar significa não “monopolizar”, não permitir que haja necessitados entre nós.
O pão partido é a vida compartilhada: bens, dons, tempo, qualidades...
O cristão, além disso, compartilha seus ideais, seu entusiasmo, seu ânimo, sua fé, sua esperança.
Também hoje Jesus precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, energia de vida.
Por fim, é preciso enfatizar que, celebrar e venerar o “Corpo de Cristo” nos remete ao nosso corpo e ao corpo dos outros. Nossos corpos estão integrados e dignificados no Grande Corpo Cósmico d’Aquele que se esvaziou dos atributos divinos para se fazer “Corpo” e “divinizar” nossos corpos.
Integrados ao “Corpo do Ressuscitado” somos chamados a superar toda suspeita, medo, julgamentos moralistas e visões dualistas dos nossos corpos. Afinal, não “temos” corpo, “somos corpo”; pensamos, amamos, sentimos e entramos em relação com o Transcendente através de nosso corpo.
Enchemo-nos de assombro diante do mistério que é cada corpo. Nossos esquemas e dualismos de matéria-espírito, espaço-tempo, passado-futuro, longe-perto, parecem diluir-se. Todo corpo está “animado” e toda “alma” está sempre “corporificada”.
No encontro com o “Corpo de Cristo” passamos a ter uma outra visão de nosso corpo; isso implica superar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Somos nosso corpo animado, com vida e com sentido. Construímos nossa vida com nosso corpo e graças a ele. Com, em e pelo corpo, vivemos nossa história, caminhamos pela vida na contínua aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontro com os outros e conosco mesmo, com nossos desejos e medos, nossas alegrias e dores, nossas esperanças e desesperos, nossas vitórias e desilusões ... Tudo isso está inscrito em nossa “carne”.
Nosso ser profundo, nosso ser essencial se manifesta, se abre para fora através de nosso corpo.
O corpo deixa transparecer o que há de mais humano e mais divino em seu interior.
Deixemos “transparecer” o “Corpo de Cristo” em nossos corpos!
Texto bíblico: Lc 9,11-17
Na oração: Amiga, amigo, teu corpo que, que és tu mesmo, é habitado pelo Infinito, o Eterno. Tu também, como Jesus, em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, és corpo de Deus. O Infinito se manifesta e emerge de ti. Acolhe teu mistério, deixa-te acolher pelo Infinito em ti, deixa que suba, desde o mais profundo de ti, a voz que ora: “meu corpo canta a Ti, Senhor!”
- Deixa Deus ser Deus em ti. Sê corpo, morada de Deus. Celebra, cuida, reza: sê corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.06.22
“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (Jo16,12)
Neste domingo (12.06.22), a Igreja celebra a Festa da Santíssima Trindade. Parece que celebramos algo estranho e distante de nossa compreensão. No entanto, a festa da Trindade nos mobiliza para uma nova maneira de viver e de nos relacionar com o Deus de Jesus, cuja presença preenche o cosmos, irrompe na nossa vida, habita criativamente no interior de cada um de nós e é vivido em comunidade.
É preciso deixar claro que o Mistério da Trindade não é um enigma a ser decifrado, ou seja, como conjugar três “individualidades” em uma Unidade, mas é a proclamação de que “tudo é Relação”. A Trindade não é uma especulação teórica sobre três pessoas “abstratas” em Deus, mas a maneira de ser de Deus, como Amor que se expande, em si e fora de si, de uma maneira “redentora”, inserindo-se na história da humanidade.
Assim, a Trindade não é uma simples verdade para crer, mas a base de nossa experiência cristã. O dogma trinitário quer expressar o mistério da Vida mesma de Deus que nos é comunicada.
Foi a experiência cristã da ação salvadora de Deus por meio de Jesus Cristo e no Espírito Santo que deu existência à doutrina trinitária. Deus não é solidão, mas comunhão perfeita, pois “Deus é Amor”. Eis aí a grande revelação que Jesus nos trouxe: a essência de Deus é Amor em estado puro. Então, Deus não poderia fazer outra coisa senão amar. De fato, o amor não existe se não for movimento, reciprocidade, dom, acolhida, relação e comunhão.
Não podemos definir Deus. Só podemos nos aproximar da essência de Deus afirmando que Ele é relação, comunidade, partilha, comunicação, intercâmbio, comunhão.... Agostinho afirmou que no Amor se encontram três realidades: o Amante, o Amado e o mesmo Amor.
“Deus é Amor”, circulação eterna e infinita de amor, na qual o Amante, o Amado e o Amor se relacionam tão intensamente até “transbordar-se” na criação do universo. A Criação é transbordamento do Amor trinitário e o ser humano é “morada” das Três Pessoas Santíssimas.
A Trindade evoca um Deus cuja essência é caracterizada por um movimento eterno em direção a nós, em um amor redentor. Somente na medida em que formos capazes de amor, poderemos conhecer o Deus comunidade, ou seja, comunhão de Pessoas.
Esta é a essência do Evangelho. A melhor notícia que um ser humano podia receber é que Deus não o afasta de seu Amor. A Trindade nos ensina que só vivemos quando com-vivemos.
A Bíblia nos fala de um Deus amor; amor pessoal, porque ama a cada um de nós; amor total, universal, que não exclui ninguém; amor preferencial, porque se inclina para o frágil; amor comunitário, porque em si mesmo não está só, senão que é comunidade e gera comunidade entre os seres humanos.
Deus é Amor e só amor. Percebemos, então que, incompreensível não é Deus, mas nossa resistente e limitada capacidade de contemplar com profundidade essa Presença que se manifesta, permanentemente, em nossa vida e na Criação inteira.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão...
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12)
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade... “Só corações solidários adoram um Deus Trinitário”.
Aqui está a grandeza e a dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus Trindade. E é fácil intuir isso: sempre que sentimos o dinamismo de amar e ser amados, sempre que sabemos acolher e buscamos ser acolhidos, quando compartilhamos uma amizade que nos faz crescer, quando sabemos doar e receber vida..., estamos saboreando e visibilizando o “amor trinitário” de Deus. Esse amor que brota em nós tem n’Ele sua fonte.
O amor intra-trinitário não é um amor excludente, um “amor egoísta” entre três. É amor em excesso que se difunde e se expande em todas as criaturas. Por isso, quem vive o amor inspirado pela Trindade, aprende a amar a quem não lhe pode corresponder, sabe doar sem esperar recompensa, sente uma grande paixão pelos mais pobres e pequenos, é capaz de entregar sua vida para construir um mundo mais amável e digno.
Por outro lado, quem é incapaz de dar e receber amor, quem não sabe compartilhar nem dialogar, quem só escuta a si mesmo, quem resiste relacionar-se com os outros, quem só busca seu próprio interesse, quem só deseja o poder, a competição e o triunfo, não pode experimentar nada da Trindade amorosa.
O ser humano não é feito para viver só; ele é chamado a viver em comunhão com todas as pessoas;
Como homem e como mulher trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, construir fraternidade, fortalecer a comunhão. Fomos feitos para o encontro e a comunicação.
Não fomos criados para viver sós; necessitamos con-viver, viver-com-os-outros, encontrar-nos; é essencial descobrir o sentido e a vivência do encontro relacional com os outros, na vida familiar, na fraternidade, na sensibilidade social para com o diferente e o excluído.
O sentido da vida em comum com os outros é um dom de Deus; afinal, fomos criados à imagem do Deus “encontro intra-trinitário”.
A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, por vivências de comunhão, por experiências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua gratuita...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteressados, tão profundos... que só desejo que o outro seja o que é... Alegro-me de vê-lo assim, tal como é...
O dogma da Trindade, portanto, não só nos revela como Deus é para nós; é também revelação de quem somos nós, ou seja, portadores do impulso relacional que se manifesta na nossa capacidade de amar.
Se Deus é relacionamento amoroso perfeito e nós somos criados à sua imagem e semelhança, então a doutrina da Trindade está preocupada com a nossa vida também. Somos convidados pela graça divina a entrar neste fluxo de relação que define o próprio ser de Deus.
O Deus de Jesus não é uma verdade para pensar, mas uma Presença a ser vivida. Não é um ideia para quebrar nossa cabeça, mas a base e fundamento de nossa vida.
Uma profunda vivência da mensagem cristã será sempre uma aproximação ao mistério Trinitário.
Será, em definitiva, a busca de um encontro vivo com Deus. Não se trata de demonstrar a existência da luz, mas de abrir os olhos para vê-la. O verdadeiramente importante foi sempre a necessidade de viver essa presença do Deus, comunhão de Pessoas, no interior de cada ser humano.
Jesus, o Mistério de Deus feito carne no Profeta da Galiléia, é o melhor e único ponto de partida para reavivar uma fé simples no Deus Comunidade de Pessoas.
Texto bíblico: Jo 16,12-15
Na oração: A Trindade não é hóspede; é a essência do ser humano; o modo de viver de uma pessoa é revelador de quem habita seu interior; uma pessoa compassiva, aberta, acolhedora... é sinal de que é habitada pela Trindade amorosa.
- Quem perde o caminho de sua interioridade, distancia-se da Trindade que é Vida e passa a viver a cultura da morte, deixando transparecer o ódio, a violência, o preconceito, a injustiça... como modo petrificado de ser.
- Qual é a Presença que determina sua vida: a Trindade Santa ou os dinamismos diabólicos (forças que dividem)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.06.22
“…soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,22)
A liturgia da festa de Pentecostes deste ano nos situa no momento do encontro do Ressuscitado com seus discípulos, literalmente “trancados” numa sala, incapazes de romper seus medos, marcados por uma profun-da tristeza e decepção.
O Ressuscitado, ao exercer o “ofício do consolar” (S. Inácio), desperta novo ânimo naqueles homens desolados, graças ao sopro vital do seu Espírito, que se torna ação criadora e rompedora de tudo que limita. O Ressuscitado não só se apresenta e fala, mas comunica a si mesmo: entrega o seu Espírito, Aquele mesmo que o conduzia criativamente pelas estradas da Galiléia, instaurando o novo Reinado do Pai.
Pentecostes é, para os cristãos, a festa do Espírito. Ao dizer que Deus é Espírito, estamos dizendo que Ele não é um “ser fechado em si”, senão abertura, ser-para-os-outros. Chamamos Deus “Espírito” porque é força criadora e criativa, alento no qual todas as coisas e os humanos se sustentam. Toda a realidade, perpassada pelo dinamismo divino, só tem sentido em Deus; todas as “coisas” são em Deus. Também o ser humano: ele existe unicamente a partir do “sopro” do Espírito divino, que lhe dá autonomia e liberdade.
Em outras palavras, o Espírito é o espaço aberto do amor oblativo e presença que estabelece continuamente o “cosmos” em meio ao “caos”; é Deus mesmo como força expansiva e como fundamento de vida de tudo e de todos, como seio maternal e fecundante no qual podemos chegar à existência verdadeira. Por isso, o ser humano nunca vive a partir de si nem para si mesmo; existe imerso no Espírito divino e caminhando para o futuro (o novo nascimento) ao qual o Espírito lhe abre.
“Recebei a Ruah”, assim deve ter dito Jesus. Em sua língua materna, Jesus chamava o Espírito de “Ruah”. É uma pobreza falar só do “Espírito Santo” e deixar de lado a riqueza semântica da “ruah”, que, em hebraico, tem conotações muito mais ricas que o termo latino “spíritus”.
Assim, a expressão hebraica “Ruah”, feminino de Deus, significa a brisa, o “pairar” de Deus sobre as águas, o sopro impetuoso que gera vida. Alento, vento, sopro, respiração, força, fogo... com nome feminino, que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia.
Assim como Jesus, pela força da “Ruah”, se encarnou e se humanizou, também nós nos fazemos cada vez mais humanos, por obra da mesma “Santa Ruah” de Deus. Ela nos faz pressentir o quanto amados somos, que, na comunhão, nunca estamos sozinhos, e que esta é a hora para cada um(a) de nós e o melhor momento que nos cabe viver. Sob o impulso da “Ruah”, vivemos todos no "horário nobre da vida”.
É a “Ruah” quem nos move a superar os esquemas atrofiados da vida e a assumir uma causa mobilizadora, centrada no Reino anunciado por Jesus. É Ela que nos arranca das malhas do egoísmo, liberta-nos dos interesses mesquinhos, faz-nos caminhar no terreno firme do amor, abre novos horizontes e nos impulsiona a assumir ideais mais elevados de felicidade e realização pessoal.
Ela continua presente na vida de todo(a) seguidor(a) de Jesus e no seio de sua comunidade. Continua atuando através de muitas pessoas e organizações que se comprometem radicalmente na luta contra tudo aquilo que rompe os vínculos, alienam e desumanizam. A “Ruah” de Deus continua atuando na história, embora aparentemente não a percebamos. Não é necessário fazer tanto barulho para dizer que a “Ruah” está agindo através de um discreto silêncio. Muitas vezes, não a sentimos porque atua de maneira muito simples, através de gestos que podem passar desapercebidos.
Portanto, viver alentados pela e na Ruah é também um convite a harmonizar sabiamente os opostos da vida: experiência de fortaleza/experiência de debilidade, silêncio/palavra, trabalho/descanso, partilhar/receber, presença/ausência, conectar/desconectar, saber caminhar acompanhados/saber estar a sós saboreando a dimensão positiva e fecunda de uma “solitude” (solidão habitada) que enriquece nosso mundo interior e fortalece nossas opções e compromissos.
Por outro lado, as consequências de viver sem o Espírito-Ruah, Espírito-Sophia, são realmente desastrosas. A vida cristã sem “Ruah” se revela como um conjunto de normas em uma instituição a mais, carregada de moralismo, doutrina estéril e ritualismos vazios. Fica obsoleta, porque não interpreta os sinais dos tempos, odres velhos para vinho novo.
Sempre é a “Ruah” que nos unifica, Aquela que nos convida a superar a divergência que é fruto de nosso falso eu. Nela, a diversidade nos enriquece.
É a “Ruah” de Deus, do amor, do comunitário e do comum, do povo de Deus. N’Ela já não é possível permanecermos fechados, pois Ela transpassa as paredes e quebra os ferrolhos das portas, nos faz abertos de coração e de mente, frente às reservas e às dúvidas do temor.
Com seus dons, compreendemos que o universo é nossa casa e nós não somos estranhos nela, que a humani-dade não caminha no vazio de uma existência do nada, senão rumo à Casa Comum do Pai, e que a senda é a dos irmãos na comunidade, em direção a um horizonte sempre inspirador.
O ser humano, desde sempre existe enquanto está fundamentado (protegido e potenciado) na Ruah.
Constituído de argila, como vaso nas mãos de um ceramista, cada um recebe o sopro ou hálito divino. É a própria Vida de Deus, o seu sopro vital, que faz surgir o humano do húmus da terra. É a “Ruah” de Deus, inspirado no ser humano, que o torna realmente humano.
Cada pessoa é portadora deste sopro de Deus e desta força misteriosa que o impulsiona à plenitude.
O sopro de Deus impresso no mais profundo de nosso ser, está enfaixado pela fragilidade da argila.
Somos a grande combinação resultante do sopro de Deus e da argila que nos configura.
Cada um de nós é a força criativa de Deus impressa em cada coração. O respiro ou hálito é o símbolo da presença do Criador em nós. Sob o signo de Adão, nós somos, em primeiro lugar, criaturas de Deus em comunhão com as demais criaturas, participando da mesma existência criatural. Mas, pelo sopro do próprio Deus, somos “elevados” à condição de imagem e semelhança d’Ele.
Então, tornamo-nos “criaturas abertas ao Espírito” e, mais ainda, “criaturas habitadas pelo Espíri-to”; somos argila, mas argila portadora da “Ruah”, argila aberta ao céu. Tornamo-nos, assim, imagem do mundo diante de Deus e imagem de Deus diante do mundo.
Nos relatos bíblicos, a “Ruah de Deus” se revela sempre “rompedora”, pois é Ela que “alarga o espaço de nossa tenda interior”. É como se derrubasse as paredes, abrisse portas e janelas e nos oferecesse espaços amplos de encontro. Desse modo, cabe mais gente em nossas vidas e a “Ruah” nos ajuda a descobrir a fraternidade e sororidade como um dom.
A “Ruah Santa” é aquela que faz estremecer as estruturas, que toca nos lugares mais profundos e nossos. Ela vem como gesto de Deus que arranca nossas vidas do porto seguro da acomodação e nos lança para os mares abertos do novo e das surpresas. Nela, quanto mais navegamos, mais descobrimos novos mares.
E nunca faltará o Vento ao nosso veleiro.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “Vem, Santa Ruah!”: é o clamor, o gemido, a oração universal. Melhor: é a Ruah quem clama, geme e ora no mais profundo de seu ser e no mais profundo de tudo quanto existe. O universo é oração.
- Deixe a Ruah fluir livremente; assim, a vida espiritual será para você aquela vida na qual a Ruah poderá se mover sem obstáculos. Uma espiritualidade holística que experimenta a presença d’Ela na totalidade de sua vida, em todas as dimensões da realidade: a história, a natureza, a interioridade, as relações humanas, a luta pela justiça, o descanso, o trabalho etc. Todos estes são lugares onde a Ruah se manifesta.
- Como exercício prático, localize em sua vida os momentos de profundas mudanças nos quais você se atreve a chamar “Pentecostes”, porque lhe fizeram descobrir em seu interior, a presença da Ruah de um modo novo, mais vivo e vigoroso; porque lhe fizeram ver as pessoas e a realidade com reverência; porque lhe fizeram sair de visões e atitudes estreitas; porque lhe tornaram diáfano (transparente) da presença de Deus no cotidiano de sua vida...
- Em sintonia com toda a Criação, abra espaço à presença e voz da “Ruah” em seu coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.06.22
Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os” (Lc 24,50)
Segundo o relato de Lucas, na Ascenção, Jesus “desaparece” em Deus; Ele não se afasta da humanidade, mas continua presente de uma outra maneira: junto com o Pai e o Espírito faz sua “morada” no interior de cada pessoa.
Por isso, Jesus não deixa uma estrutura religiosa organizada (com sua hierarquia, seus ritos, leis, doutrinas...); Ele deixa na terra “testemunhas”, ou seja, aqueles(as) que comunicam a sua experiência de um Deus de bondade e contagiam com seu estilo de vida centrado no modo de agir e viver do próprio Jesus. Serão testemunhas cristificadas, trabalhando por um mundo mais justo e humano.
Mas Jesus conhece bem os seus discípulos; sabe que eles são frágeis e medrosos. Onde encontrarão a audácia para serem testemunhas de alguém que foi crucificado pelo representante do Império e pelos dirigentes do Templo? Jesus tranquiliza-os: “Eu enviarei a vós aquele que Pai prometeu”. Não lhes vai faltar a “força do alto”. O Espírito de Deus os defenderá.
A “ausência física” de Jesus revelar-se-á, então, como oportunidade para fazer crescer a maturidade de seus seguidores. Ele lhes deixa o dom de seu Espírito que promoverá o crescimento responsável e adulto dos seus. É inspirador recordar isso nesse momento em que parece crescer entre nós o medo à criatividade, a tentação do imobilismo, a petrificação no ritualismo e na doutrina, ou a saudade de um cristianismo pensado para outros tempos e outra cultura.
A festa da Ascenção do Senhor nos recorda que, terminada a presença história de Jesus, vivemos “o tempo do Espírito”, tempo de criatividade e de crescimento responsável no seguimento de Jesus. O Espírito não nos oferece “receitas eternas”. Ele nos dá luz e alento para ir buscando caminhos sempre novos e alternativos para atualizar hoje o modo de ser e agir de Jesus. Assim Ele nos conduz para a verdade completa d’Aquele que sempre se revelou verdadeiro.
Para expressar graficamente o último desejo de Jesus, o evangelista Lucas descreve a sua partida deste mundo de forma surpreendente: Jesus volta ao Pai levantando as suas mãos e abençoando os seus discípulos. É o seu último gesto. Jesus entra no mistério insondável de Deus e sobre o mundo faz descer a sua bênção. Seus seguidores começam sua peregrinação pelo mundo protegidos por aquela benção com a qual Jesus curava os enfermos, perdoava os pecadores, abençoava e acariciava as crianças...
A Bênção atravessa toda a Bíblia, e quer atravessar também nossas vidas. Ela brota do olhar primeiro e amoroso de Deus que, admirado, viu que toda Criação era boa e preciosa. Também nossa missão, confiada pelo Ressuscitado, consiste em recuperar este olhar, esta benção original, sobre nós e sobre a terra; uma bênção que desperta admiração e assombro ao perceber a bondade e beleza no interior daqueles que não são considerados bons e dignos de beleza.
A palavra “bênção” tem um sentido amplo e direto; procede do termo latino “benedictio” e significa “dizer bem”. Mas, determinados pelo nosso contexto social e político que preza pelo ódio, preconceito, maledicência, “fake news”..., a sensação que temos é que há uma curiosidade viral, uma excitação, um prazer mórbido em “dizer mal”, destruir reputações, emitir juízos moralistas, ferir e excluir o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente. Há uma “maledictio” (“mal-dizer”) que paira em todos os meios de comunicação e redes sociais, envenenando relações, rompendo vínculos, criando divisões. E tudo isso emerge da interioridade petrificada das pessoas, alimentando um fúnebre processo de desumanização. O trágico é que essas manifestações de maldição são expressas por quem se confessa seguidor(a) d’Aquele que sempre foi presença visível da Verdade e fonte de perene Benção. Quanta incoerência no seguimento de Jesus Cristo!
“Não há pior patologia que essa dissipação da alma, esse olhar cheio de pré-juizos que nos torna pequenos e amargos, esse juízo que se deixa escravizar pelo defeito e pelo peso da imperfeição e depois não nos deixa sair até que ignoramos a liberdade. Não há exercício mais esterilizante que essa espécie de ressentimento expresso como anátema em relação com a vida, esse totalitarismo da queixa que, sem nos dar conta, nos asfixia, essa incapacidade de romper com a engrenagem da maldição sobre todos e sobre tudo, da qual nem nós mesmos escapamos” (Cardeal Tolentino).
Somos herdeiros(as) de uma benção, herdeiros(as) da doação e da esperança de tantos homens e mulheres que, ao longo da história, aliviaram sofrimento, recobraram dignidades e ajudaram a viver.
Agora, somos nós a geração portadora dessa benção. Presente, passado e futuro.
Como seguidores(as), esquecemo-nos que somos portadores(as) da bênção de Jesus. A nossa primeira tarefa é ser testemunha da Bondade de Deus, manter viva a esperança, não nos rendermos diante do “maledictio”.
Na Igreja de Jesus, temos esquecido que a primeira coisa a se fazer é promover uma “pastoral da bênção”. Temos de nos sentir testemunhas e profetas desse Jesus que passou a sua vida semeando gestos e palavras de bênção, de bondade e de misericórdia. Assim, despertou nas pessoas da Galiléia a esperança no Deus Salvador, abriu um horizonte de sentido. Jesus era uma bênção visível e as pessoas reconheciam isso.
Somos chamados a ser presença de “bênção”. Que todos aqueles que vivem situações de desamparo, de miséria, de desamor, de indefesa, de maldição... possam sentir em nós o prolongamento da Benção do Ressuscitado; possam sentir-se bem acolhidos, bem nomeados, bem olhados, bem-amados.
“Dizer bem”, “bendizer”, “abençoar”, é nossa vocação primordial, porque só isso desperta a consciência de que cada um de nós é portador(a) autorizado(a) de uma indestrutível benção, e esse é o modo de fazer justiça ao maravilhoso milagre que é estar vivos. “Dizer bem” é conectar-nos com aquela verdade mais profunda, que é o puro vínculo na ordem do ser. Sem essa ancoragem compassiva na raiz do nosso ser e no nosso modo cristificado de viver, não chegaremos a compreender verdadeiramente o enorme e misterioso pulsar da própria existência.
Cada um de nós depende – porque a vida é dom e confirmação reiterada do dom – daquilo que a benção desencadeia. Somos um elo na longa corrente de bênçãos; são inúmeras as pessoas que deixaram impregnadas em nosso coração a marca da bênção oblativa, aberta e desafiadora. Crescemos e amadurecemos sob o impulso da “benedictio” daqueles(as) que conviveram ou convivem conosco.
E, por isso, é tão importante buscar a benção, colocar-nos de seu lado luminoso, ativá-la e exercitá-la ao nosso redor. O tempo se ilumina quando nos deslocamos da sombra da “maledictio” e nos re-situamos na órbita da “benedictio”.
Assim se expressa a maravilhosa e antiga bênção irlandesa: “Que o caminho seja brando a teus pés,/ que o vento sopre leve em teus ombros./ Que o sol brilhe em teu rosto sem ferir-te,/ e as chuvas caiam serenas em teus campos./ E até que eu de novo te veja,/ Deus te guarde cada dia na palma de Sua mão”.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: Todo(a) seguidor(a) de Jesus é “canal” de transmissão de Sua bênção que salva, eleva, exalta a dignidade de cada pessoa.
- Sua presença cotidiana é reveladora de “benedictio” ou “maledictio”, de elogio ou de maledicência, de vibração diante da nobreza do outro ou de queixa amarga?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.05.22
“Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23)
Neste último domingo de Páscoa a liturgia, mais uma vez, nos faz ter acesso a um trecho do discurso de despedida de Jesus, no evangelho de S. João. Na realidade, trata-se de um “discurso pascal”, onde o evangelista recolhe os dons principais revelados pelo Ressuscitado: vida, amor, paz, fé, Espírito Santo.
A narração deste domingo dá destaque a uma nova presença do Cristo Ressuscitado entre os seus seguidores e seguidoras: junto com o Pai e o Espírito, Ele faz do interior de cada um(a) sua “morada”.
Sabemos que o ser humano é interioridade; é sua essência, é a dimensão mais nobre e sagrada de todos. E essa interioridade é habitada por uma Presença, sempre inspiradora e iluminadora como o Sol.“O Sol res-plendente está sempre dentro da alma e nada pode arrebatar sua magnificência” (S. Teresa D’Ávila).
Presença que fala dentro de nós; presença que é Fonte de paz; presença que, através do seu Espírito, nos inspira, nos sustenta e desperta as melhores energias e forças mobilizadoras de nossa vida.
Os mestres espirituais chamam a esta interioridade também de “Imago Dei” (imagem de Deus), ou a própria presença divina em nós.
Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade. Ele é nosso verdadeiro ser, nosso ser profundo, nossa essência. Somos templos de Deus, presença constante do Espírito de Deus conosco. Somos seres habitados; não estamos sozinhos.
É próprio do ser humano mergulhar e experimentar sua profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Normalmente quando falamos de Deus nós o imaginamos bem distante e quase inacessível. Vemos longe Aquele que está tão perto, Aquele que trazemos dentro de nós mesmos. Vemos longe Aquele que vive e nos dá vida cada dia. Basta um simples olhar por dentro para nos encontrar com Ele.
Às vezes, sentimos como se tivéssemos medo de nosso próprio mistério; temos medo de sentir que nós somos o céu de Deus; temos medo de pensar que somos a “casa” onde vive e habita Deus.
Muitas vezes não nos damos conta dessa Presença, mas ela não nos invade, não nos anula, não se impõe... Simplesmente se faz habitante, presença, inspiração...
No entanto, esta é a nobreza de nosso ser: todos somos “morada” divina, porque nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria das pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que somos. Deus sempre habita no mais profundo de cada um de nós; podemos ou não entrar em sintonia com essa presença para nos deixar conduzir por ela.
Deus anda abraçado conosco e sua graça banha suavemente todas as dobras do nosso ser e agir. Agostinho cunhará a expressão de que Deus é “intimior intimo meo”, mais íntimo que nossa própria intimidade. Esta presença é fonte de vida espiritual, uma vida que pulsa dentro de nós e flui com diferentes “moções” que nos fazem sentir perto d’Aquele que já está perto.
Em nosso coração há sempre um movimento profundo que é manifestação da ação de Deus no mais íntimo de cada um.
Quem toma consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a comunhão com tudo e com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus é o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. A expressão do pensador Pascal - “o ser humano supera infinitamente o ser humano” -, resume bem esta vivência da Trindade que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade.
É o céu que vem tocar a terra, é Deus que se aloja no coração humano, é o Reino que se entrelaça na configuração de nossa convivência, é a fé que se revela como atitude de confiança inabalável.
Em Deus sempre vivemos. Em Deus nos movemos. Em Deus somos. A Ele nunca vamos. D’Ele nunca saímos. N’Ele sempre nos encontramos. Ele está nos gerando a cada momento (“o ser humano é criado para...). Precisamos vivenciar a Fonte donde tudo jorra e onde tudo deságua; precisamos caminhar à luz do Sol primordial, regressar ao seu seio luminoso.
Eis a meta derradeira do ser humano: a auto-transcendência.
Ao fazer morada em nós, Deus acende nosso desejo no desejo d’Ele, ativa a nossa vontade na Vontade d’Ele, faz pulsar o nosso coração no ritmo do Coração d’Ele. Ele entra com sua Liberdade nas raizes da nossa liberdade e alarga os espaços internos para que a Vida divina atravesse todas as dimensões de nosso ser, tornando nossa vida mais oblativa, aberta e comprometida. Segundo José Saramago “a vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver”.
Podemos ter acesso ao mais profundo de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, para além da superficialidade e da aparência.
Enraizados nessa Presença divina que nos habita, podemos transitar pela história com mais sentido e inspiração. Nós nos movemos, pois, entre transcendência e história, entre contingência e eternidade. É no “substrato humano” que o mistério da Trindade marca presença e age. É na “natureza humana” que Deus constrói a Sua Tenda e, na Sua ternura, abraça a pessoa no seu todo; abrange todas as áreas da vida.
Deus se serve das mediações humanas para revelar-se e falar ao coração. Ele quer assumir o humano na sua totalidade. Ele deseja ser o responsável pela “terra sagrada” da vida humana. Da parte de cada pessoa, Ele pede, apenas, para deixá-Lo trabalhar, limpar, semear, fazer crescer e colher os frutos. A pessoa é solicitada para que deixe espaço aberto e livre ao plano da ação de Deus.
É nas entranhas mais profundas do ser que Deus “toca” com a Sua bondade, ternura e misericórdia. Esta experiência gera compromisso de viver a bondade, a ternura e a misericórdia na missão.
Assim é a Trindade amorosa revelada por Jesus, que se deixa “transparecer” no interior e na vida de cada um de nós. Se nos sentimos “morada de Deus”, se verdadeiramente Deus está em nós, devemos necessaria-mente manifestá-lo em nossa vida. Deus é amor e o melhor de nós é nosso ser amoroso; por isso, também nós devemos ser “diáfanos”, ou seja, deixar transparecer, em nossa vida e em nossa ação, o Deus íntimo, fundamento de nosso ser e identificado com cada ser humano. Quem é “diáfano” também “vê” o Deus que se deixa transparecer no outro.
Somos presença do amor de Deus no mundo. Os outros descobrirão essa Presença em nossa vida quando manifestemos, através de nossas atitiudes, o que de Deus há em nós: bondade, compaixão, disponibilidade, atitude de serviço aos outros; quando, de verdade, sejamos um ser para o outro, a partir de nosso ser amoroso. Isso significa viver já como seres ressuscitados, uma nova humanidade; isso significa nascer de novo, nascer para a Vida divina, eterna, definitiva. E isto, aqui e agora, sem deixar para mais tarde.
Texto bíblico: Jo. 14,23-29
Na oração: Na oração, mergulhamos em Deus e libertamos em nós profundidades que desconhecemos.
Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela de-verá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos e dons ainda inexplorados, que nascerão para a vida sob a ação da Graça de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.05.22
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35)
No evangelho deste domingo Jesus nos coloca diante da realidade mais profunda de sua mensagem e, ao mesmo tempo, a realidade que nos faz mais humanos: a vivência do amor. A forma como Ele se expressa é clara e simples: frente aos inumeráveis mandamentos rabínicos, frente ao Decálogo de Moisés, suas palavras soam taxativas: “Eu vos dou um novo mandamento”.
Só há um mandamento, não há outro: amar os outros, não de qualquer maneira, mas como Jesus nos amou. Ou seja, manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros.
Jesus nos deixa a marca de identidade que nos distingue como cristãos. É o mandamento novo, em oposição ao mandamento antigo, a Lei. Jesus não manda amar a Deus nem amar a Ele, mas amar como Deus e como Ele ama.
O amor é expansivo, inclusivo, universal. Ao conectar com ele, graças à compreensão do que somos, tocamos aquele Centro que nos descentra ou, talvez melhor, nos des-egocentra. Porque a compreensão de quem somos não nos fecha nem nos faz girar em torno a nós mesmos em um narcisismo infantil e asfixiante, mas nos abre, como um abraço sem limites, a toda a realidade.
O amor é o “dinamismo divino”, poderosa força centrípeta e centrífuga ao mesmo tempo. No mesmo movimento, unifica nossa pessoa para “dentro” (integra e harmoniza todas as dimensões de nosso ser) e nos abre para “fora”, ao encontro inspirador com todos.
Jesus não propõe como primeiro mandamento o amar a Deus, nem o amor a ele mesmo. Não diz: “amai-me como eu vos amei”. Deus é dom total e não pede nada em troca. Não precisa de nós, nem nós podemos dar nada a Ele. Deus é puro dom, amor total. É preciso descobrir em nós e reativar esse dom incondicional de Deus que, através de nós deve chegar a todos.
O texto fala de “novo mandamento”, como querendo destacar a importância daquilo que aí se anuncia. Não se trata de um “conselho” nem de uma “recomendação”, mas de um "modo divino de proceder".
Ao dizer que é “mandamento novo”, provavelmente é um eco daquilo que os próprios discípulos percebiam como “novidade” no modo de viver do Mestre, na gratuidade e na incondicionalidade de seu amor.
“Que vos ameis uns aos outros” foi, muitas vezes, entendido como um amor aos “nossos”. A partir de cada comunidade cristã, o amor deve chegar a todos. Não se trata de amor aos que são amáveis (dignos de serem amados), mas de estar a serviço de todos como se fossem nós mesmos. Se deixamos de amar uma só pessoa, nosso amor evangélico se esvazia. Não se trata de um amor humano a mais, senão do “ágape” divino (amor gratuito).
Sem essa experiência de que Deus é Amor em nós, a mensagem evangélica não terá acesso ao nosso próprio ser. O amor que Jesus nos pede, não é algo que possa ter sua origem em nós. Só podemos ser espelho que reflete a essência de Deus, que é puro Amor.
Naturalmente não se pode impor o amor por decreto. O principal erro que continuamos cometendo é apresentar o amor como um preceito que vem de fora. Todos os esforços que façamos por cumprir um “mandamento” de amor estão fadados ao fracasso. O empenho está em descobrir que Deus é amor dentro de nós. Na realidade não se trata de uma lei, mas de uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu amor”.
O amor que Jesus nos pede deve surgir a partir de dentro, não se impor a partir de fora como uma obrigação. Trata-se de manifestar o que é Deus no fundo de nosso ser, através do nosso modo de ser e viver.
Por isso, não é um mandato dado por outro, vindo de fora, como uma imposição arbitrária. Pelo contrário, ressoa em nós como um convite a viver o que somos, ou seja, conectados com o Mistério amoroso “d’Aquele que é”. Isso será possível, não tanto através de um voluntarismo moral, mas graças à compreensão daquilo que somos. Na medida em que vamos conhecendo e vivendo o que somos, o amor brota espontâneo e vai abrindo caminho de vida, despertando o amor latente nos outros.
O mandamento de Jesus não diz respeito à relação com Deus, mas à relação com todo ser humano. O que Jesus pede aos seus é um amor incondicional e a todos sem exceção. Todas as normas, todas as leis devem orientar-se a esse fim.
Não se trata de um amor humano, mais ou menos perfeito. É preciso entrar na dinâmica do Amor do mesmo Deus. Isto é impossível sem primeiro experimentar esse amor. Tudo parte do amor do Pai, que se manifesta em Jesus e que agora circula através dos seus(suas) seguidores(as).
Falamos do mesmo e único Amor, que constitui o segredo último do Criador. O que se pede aos discípulos é que permitam que esse Amor, primeiro e originante, se expresse e seja vivido através deles.
Antes de dizer, antes de pedir, Jesus viveu até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama: “como eu vos amei”. Mas essa expressão não é comparativa, mas originante e “causal”: porque eu vos amei”. Em outras palavras: “vocês devem se amar porque eu vos amei, e tanto quanto eu vos amei”. A tradução mais justa do texto joanino poderia ser esta: “Com o mesmo amor com que eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Leon-Dufour).
Esta é a marca da identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus, a característica mais importante da vida cristã.
João emprega no seu evangelho a palavra ágape, que expressa o amor sem mistura de interesse pessoal; seria o puro dom de si mesmo, só possível em Deus. A expressão “agapate” (“que vos ameis”) faz referência ao amor que é Deus, ou seja, ao grau mais elevado do dom de si mesmo. Não está falando de amor de amizade ou amor entre familiares. O amor de Deus é a realidade primeira e fundante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Seria como que uma renúncia à centralidade do ego, ao poder, à força...
Assim como Jesus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade...
É a doçura, a delicadeza de se afirmar menos, a autolimitação de seu poder, o esquecimento de si, o sacrifício de seu prazer, de seu bem-estar ou de seus interesses...
Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação... o puro amor.
“O ágape é um amor criador. O amor divino não se dirige ao que já é em si digno de amor; ao contrário, ele toma como objeto o que não tem nenhum valor em si e lhe dá um valor. O ágape não constata valores, cria-os. Ele ama e, com isso, confere valor. O homem amado por Deus não tem nenhum valor em si; o que lhe dá valor é o fato de Deus amá-lo. O ágape é um princípio criador de valor” (Nygren).
Descobrir essa realidade e vivê-la é o distintivo do(a) seguidor(a) de Jesus. E é essa qualidade do amor o sinal decisivo pelo qual os discípulos de Jesus deverão ser reconhecidos. Os seguidores dos fariseus eram reconhecidos pelas “filaterias” que usavam; os de João Batista, por batizar, os de Jesus, unicamente pelo amor.
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés.
Podemos dizer que o amor tem coração, mãos e pés: coração cheio de compaixão e ternura, mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares estreitos e nos deslocam para as margens, os pobres... Desse modo, o mandato do amor remete à Fonte que o possibilita, ao Amor originante que tece a unidade de tudo que É e somos.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: - deixe que aflore (recorde) os dons e benefícios recebidos, manifestação do carinho e da ternura amorosa de Deus.
- Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana.
- Viva em clima de ação de graças como atitude permanente; isso reforça os laços, faz a vida mais leve, desperta o sentido do humor e anima a assumir os novos desafios, próprios deste tempo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.05.22
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
A imagem do Bom Pastor está carregada de simbolismos interessantes, embora não tenha tanto impacto no contexto urbano em que vivemos, onde os valores da igualdade e democracia parecem estar em contradição com a imagem de rebanho conduzida por um Pastor. No entanto, para muitos, as imagens do “cercadinho” e a do “gado manipulado” parece não causar tanta estranheza.
Jesus não foi, nem quis que os seus seguidores fossem “ovelhas e cordeirinhos” submetidos aos controles de seus pastores, nem obrigados a cumprir normas e costumes impostos por aqueles que se dizem responsáveis pelo rebanho.
Rebanho não é anulação das identidades, nem uniformidade no modo de pensar, agir e ser. Cada pessoa é diferente, única, com experiências, expectativas, medos, ansiedades, desejos, fortalezas e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver.
“Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem ao Evangelho o melhor possível no meio de seus limites e podem desenvolver seu próprio discernimento diante de situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, mas não pretender substitui-las” (Papa Francisco - Amoris Laetitia).
Jesus, no ministério do seu pastoreio, ensina e atua com “autoridade”, e não como os escribas e fariseus. Ele revela o dom de ativar a autonomia em cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a se conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no seu próprio interior. Pastoreio que possibilita cada um viver em plenitude consigo mesmo.
Jesus é Pastor porque não impõe nenhuma doutrina nem complica a vida das pessoas com a carga da lei; Ele é Pastor porque, ao contemplar os rostos das pessoas, vê, no interior delas, ricas possibilidades humanas, ainda latentes; Sua presença inspiradora faz emergir o melhor e mais humano que há no coração de suas “ovelhas”, reconstruindo a humanidade ferida e abrindo sentido para sua existência.
O “divino pastoreio” significa trazer para fora ou extrair a verdade da pessoa (sua identidade), para que ela consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades, dons e recursos.
Nesse sentido, o pastoreio de Jesus não tinha nada a ver com poder que se impõe, nem liderança que arrasta, nem controle das consciências. Suas palavras e suas atitudes ativavam a vida; elas despertavam tudo o que estava atrofiado e adormecido no ser humano. Aqueles que escutavam sua voz sentiam que havia algo de vida eterna, que alimentava e dava sentido à própria existência.
As palavras do Bom Pastor transmitiam uma sensação de pureza às pessoas, pois elas passavam a se sentir em harmonia consigo mesmas e conectadas com a nova vida que brotava do interior.
Jesus não só transmitia um novo ensinamento, senão que criava uma relação nova com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Nesse ministério do pastoreio, a palavra de Jesus manifestava-se cordial, terna, calorosa, pois tocava o coração das pessoas; ela se revelava criadora de futuro ao transformar por dentro a pessoa que a acolhia.
Jesus mesmo mostrava-se como a “Voz” do Pai que se expressava em palavras de vida e que o movia a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade infinita que cada um carregava dentro de si.
Essa era a mais nobre missão de Jesus como Pastor: ensinar os homens e as mulheres para que fossem eles(elas) mesmos(as) em liberdade, para que descobrissem e ativassem a verdade por dentro, sua verdade fontal, para que todos se guiassem e se ajudassem e, assim, fossem e vivessem em plenitude.
Com sua Voz instigante e mobilizadora, Jesus foi semeando humanidade, despertando o amor criativo, que se fazia vida naqueles(as) que o escutavam e acolhiam sua palavra.
Assim, o “divino pastoreio” evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz.
Deixar-se conduzir pela “Voz do Bom Pastor” significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz mobilização, pede mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, realimenta a liberdade criativa, leva adiante o equilíbrio de cada um em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...
Aos olhos do Pastor da Galiléia nada é mais perigoso para o espírito humano do que vidas satisfeitas, acomodadas, sem desejos, sem o dinamismo das esperas e o desassossego das buscas; corações quietos, indolentes, medrosos, sem iniciativa, sensatamente contentes com aquilo que são e têm, conduzem à morte. Pelo contrário, como as vidas são repletas de razões, criatividade, entusiasmo e vitalidade quando se inspiram no modo de ser e viver do Bom Pastor!
Por isso, Sua Voz merece ser “escutada” para que ela tenha ressonância no nosso próprio interior e inspire o nosso modo de ser e viver. Inspirado(a) e identificado(a) com o Bom Pastor, todo(a) seguidor(a) se reveste desse “ministério do pastoreio”. Nesse sentido podemos afirmar: “como seguidores(as) do Bom Pastor, todo somos pastores(as) e exercemos esse ministério o tempo todo”.
Tudo começa com a escuta; por sua vez, só escuta quem se encontra numa atitude de busca. Quem crê estar em posse da verdade, deixa de buscar; blindado a qualquer questionamento, permanece instalado na “zona de conforto” de sua comodidade.
A pessoa que entra em sintonia com a Voz do Divino Mestre, começa escutando. A escuta requer uma disposição de abertura inicial, que implica flexibilidade para permitir inclusive que as convicções prévias possam ser removidas. A escuta revela seus próprios segredos para quem sabe desnudar-se nela.
Quando, aquilo que “escutamos”, encontra eco em nosso interior, reconhecemos estar em contato com nosso eu verdadeiro e em profunda “sintonia” com a pessoa que nos fala. Isto é o que acontecia com os seguidores de Jesus e o que continua acontecendo conosco quando lemos o evangelho: ao perceber que a palavra de Jesus “lê” nosso interior, nós a reconhecemos como própria e “comungamos” com sua pessoa, na unidade de vida que transcende o tempo e o espaço.
É preciso, então, educar os ouvidos para aprender a escutar, escutar-se, e assim poder dialogar.
“Escutar”, do termo latino “auscultare”, implica atenção e concentração para entender e poder ajudar.
Consequentemente, escutar as palavras e os gestos, os silêncios, as dores e raivas, os gritos de insegurança e de medo; escutar os tímidos e os sem voz, escutar os gemidos de Deus na dor dos pobres e sofredores; escutar o que se diz e o que se cala e como se diz e por que se cala; escutar também as ações, a vida, que com frequência negam o que se proclama nos discursos. Muitos desfazem com seus pés o que buscam construir com suas palavras.
Texto bíblico: Jo. 10,27-30
Na oração: Dar o maior e mais amplo espaço possível ao Pastor interior e deixar-se conduzir por Ele em todas as circunstâncias, em todo tempo e situações da vida. Ele o(a) conhece como ninguém e como ninguém faz emergir tudo aquilo que o Pai colocou em seu coração como criatividade, imaginação, intuição...
- “Ex-ponha-se” diante d’Ele, deixe ressoar Sua Voz em seu interior; deixe-se transbordar, surpreender pela presença d’Aquele que mobiliza seus melhores recursos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.05.22
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“Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3)
A vida é constituída de momentos de luta e de coragem, de sonhos e de esperança, de vitórias e de derrotas. Este é o material com o qual são construídas nossas histórias, pessoais e coletivas.
Todos nós já vivemos experiências de fracassos, quando tudo desmorona, quando tudo nos é tirado, quando perdemos o chão, quando parece que evapora tudo aquilo sobre o qual tínhamos investido todo o nosso amor e toda a nossa energia e criatividade.
Mas, no horizonte da Ressurreição, o fracasso tem seu lugar. Ele pode ser percebido como chance para crescimento ou amadurecimento, ou pode ser integrado à luz de outras experiências positivas. Aprendemos mais pelos nossos fracassos do que pelos nossos êxitos.
O fracasso pode ser, à luz da Ressurreição, des-velador da natureza do ser humano, que vai amadurecendo, superando o sentimento infantil de onipotência, descendo do pedestal de sua soberba para tornar-se mais humano, mais amoroso, mais confiante... Os fracassos podem se revelar como ocasião privilegiada para ativar outros recursos humanos que não tiveram chance de se expressarem.
Integrar os fracassos significa assumir as perdas ou carências que aparecem como uma negação de vida, mas que contém potencial de nova vida, de crescimento, de maturação pessoal. Em definitiva, de criativida-de humana, base da evolução pessoal e social.
Em nosso contexto social, o fracasso é vivido como uma perda de prestígio e poder. Mas se o situamos no horizonte da Ressurreição, ele pode ser elaborado saudavelmente e, então, poderemos descobrir que o fracasso pode ser fonte de fecundidade. A Ressurreição nos ajuda a re-siginificar, a re-ler, a re-interpretar todos os nossos dramas, crises, feridas, fracassos... Tudo é acolhido, tudo é integrado, tudo é mobilizado para dar um novo passo em direção a um novo futuro de vida.
Há um relato que sempre nos impacta muito e que aparece no capítulo 21 do evangelho de João. Trata-se da aparição do Ressuscitado aos discípulos no lago da Galiléia.
Normalmente nosso imaginário concebe a Ressurreição como uma grande “apoteose”; mas, se algo está ausente nas aparições do Ressuscitado, tal como os evangelhos nos relatam, é precisamente a apoteose.
O dicionário Houaiss da língua portuguesa a define como o ápice, o momento mais importante de um acontecimento, o apogeu, a glorificação, o júbilo, o entusiasmo, o cume... Mas, por mais que busquemos algo disso nos relatos pascais, não é possível encontrar nenhum rastro de semelhantes exaltações, resplen-dores, arrebatamentos...
Ao relatar como o Ressuscitado se conectava com os seus amigos e amigas, o que nos assombra é sua discreta maneira de fazer-se próximo, de surpreender-lhes em seus trajetos habituais, de lhes saudar com o “Shalon” de cada dia, de apresentar-se sob as aparências mais comuns: um trabalhador de parques e jardins, um forasteiro desinformado a quem é preciso atualizá-lo sobre os últimos acontecimentos, um desconhecido ocioso que, a partir da margem do mar, pergunta como foi a pescaria.
Mas há um dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galiléia.
No relato pascal deste domingo, o evangelista João revela que, à primeira vista, parece que a situação dos discípulos não tinha mudado; eles tinham perdido sua condição de seguidores, tocaram fundo na decepção que a morte lhes produziu e atrofiaram o sonho no qual acreditavam que estavam fundadas suas vidas.
Novamente eles se encontram junto à praia e entre redes, como no começo; o vazio, o abandono, a solidão, a escuridão da noite, a rotina de um trabalho cansativo e ineficaz, dominam a paisagem do texto; novamente a dureza de cada dia, em um cotidiano sem a presença de Jesus.
Mas, um “estranho”, muito cedo, da margem do lago, atreve-se a provocá-los, fazendo uma pergunta onde mais doía: “moços, tendes alguma coisa para comer?”
Diante de um “não” ríspido, o Ressuscitado faz um convite ousado: “Lançai a rede à direita da barca e achareis”. É como se dissesse: mudem de atitude, pesquem de maneira diferente, busquem outros lugares, saiam da rotina, sejam criativos... Também para lançar a rede existem dois lados: um lado conhecido e rotineiro; e outro lado alternativo e novo. Revendo o passado, os discípulos reconheceram que estavam trabalhando no lado errado, determinados pelo peso de uma tradição que não os deixava crescer.
Saber escutar os outros sempre pode ser útil. O pior é a auto-suficiência que leva a acreditar que sabe tudo. Até o conselho de um desconhecido pode ser princípio do êxito.
A nova consciência transforma tudo. A vida ganha a plenitude da rede, torna-se vida em abundância.
Uma frugal refeição e a presença que se faz companhia foram a estratégia encontrada por Jesus para retomar o movimento de vida que fora bloqueado pela sua paixão; ao mesmo tempo, tornam-se o ambiente favorável para confirmar a missão dos seus mais íntimos, sobretudo de Pedro, que passara por uma profunda experiência de fracasso: negara a amizade com Jesus.
Há algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno da qual, alguns dias antes, o velho pescador jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora, junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro, transformando para sempre seu barro frágil em pedra fiel.
O relato deste domingo (3º da Pásco) nos revela que é do meio do fracasso que pode brotar o impulso para uma adesão mais radical Àquele que no fracasso “desceu” ao mais “inferior” (“infernos”) da condição humana, Àquele que “se fez fracasso” para se fazer mais solidário com todos os fracassados da história.
Assim aconteceu com Pedro e os seus companheiros. Foi no contexto do fracasso (morte de Jesus, retorno à profissão de pescadores, pescaria infrutífera...) que Pedro foi perguntado três vezes sobre o “amor”.
Foi também nesse contexto que Pedro teve chance de se deixar reconstruir em sua identidade pela presença do Ressuscitado; também por três vezes expressa a radicalidade de seu amor à pessoa de Jesus Cristo, que se faz visível na identificação com Ele e na confirmação de sua missão: “apascenta minhas ovelhas”.
As perguntas de Jesus a Pedro nos revelam que a cura das feridas emocionais é, antes de tudo, um caminho novo que envolve afeto, amizade, amor.
Antes, um Pedro valente o suficiente para cortar a orelha do servo do Sumo Sacerdote com a espada, mas que perde a valentia em seguida, a ponto de negar conhecer o próprio Jesus.
O Pedro que emerge deste contato terapêutico com o Ressuscitado é um Pedro corajoso, decidido, mas também muito mais amoroso, humano, pronto para exercer o “ministério do cuidado” do rebanho, confiado pelo Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: O encontro com o Ressuscitado possibilita re-ler a vida, ressignificar fatos, “reci-clar” perdas e feridas, “processar” fracassos..., para sair do “fatal ponto morto” e entrar no movimento expansi-vo da Vida.
- Diante das crises, feridas, fracassos..., qual é a sua tendência? Tentar deletá-los através do retorno ao cotidiano normótico (voltar a pescar)? Ou oportunidade para um despertar a outras dimensões da vida, mais ricas e ousadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.04.22
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“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)
O relato pascal deste 2º domingo da Páscoa é chave para entender o sentido de todas as aparições do Ressuscitado aos seus amigos e amigas. Ele não tem a intenção de nos querer dizer o que “aconteceu”, mas transmitir-nos uma vivência, uma experiência.
Ao refletir sobre os relatos das Aparições padecemos de um míope e estéril realismo: quê viram? quê aconteceu? como Ele apareceu?... Interessa-nos muito mais a curiosidade do investigador. Lemos os Evangelhos mais como jornalistas do que como pessoas de fé. Nosso desejo era ter estado ali e ver tudo com nossos próprios olhos.
Mas, se tivéssemos estado ali, teríamos acreditado no Crucificado? Esta é a pergunta decisiva. Esta é a finalidade do relato de João, especialmente do conjunto Paixão/Ressurreição: “que creiais no Crucificado”. Aquele que não sente sua fé interpelada pelo crucificado e pelos crucificados do mundo, não tem uma fé bem enraizada.
A experiência pascal dos(as) seguidores(as) de Jesus revela que é na comunidade onde se pode descobrir a presença do Ressuscitado. A comunidade é a garantia da fidelidade a Jesus e ao seu Espírito; sobretudo, é a comunidade que recebe a nobre missão de expandir a grande surpresa realizada pelo Pai em Jesus.
Jesus aparece no centro da comunidade dos seus amigos e amigas, como presença de unidade, porque, agora, Ele é para eles e elas a única referência e fator de comunhão. A comunidade cristã está centrada em Jesus: sua saudação elimina o medo; as chagas, sinal de sua entrega, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz; o sopro do seu Espírito lhes reacende a alegria e a coragem; desaparece o medo da morte...
A verdadeira Vida não pode ser tirada de Jesus nem tirada dos seus seguidores. A permanência dos sinais de sua morte (chagas) indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a identificação do Ressuscitado com o Jesus crucificado. A comunidade tem agora a experiência de que Jesus vive e lhe comunica essa mesma Vida.
O evangelista João é o único que divide em dois o relato da aparição aos apóstolos reunidos. Com isso personaliza em Tomé o tema da dúvida, que é capital em todos os relatos de aparições. Bastavam os sinais anteriores: o dom da paz, a memória de sua entrega (mãos e lado), o perdão, o sopro do Espírito. Mas o texto joanino continua dizendo que faltava Tomé, precisamente um dos Doze. Não é um cristão comum aquele que estava ausente da comunidade, mas um dos antigos companheiros de Jesus, um de seus doze seguidores. Precisamente Tomé, um dos líderes da igreja primitiva, corria o risco de entender a ressurreição de um modo “espiritualista”, “desencarnada”, fora da comunidade.
Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade do Cristo, que continua sendo o mesmo Jesus da história que morreu por sua fidelidade à causa do Reino: trazer vida em abundância a todos.
Neste segundo encontro do Ressuscitado com os discípulos, João destaca a exigência de “tocar” as feridas de Jesus, para conservar assim a memória de sua paixão, descobrir sua presença pascal e encontrá-lo nos feridos da história. “Tocar” em Jesus significa tocar e curar as feridas da humanidade que sofre.
A fé pascal expressa-se, dessa forma, como experiência mística (mas realíssima) do sofrimento e morte do Messias, que continua morrendo nos crucificados e enfermos deste mundo. O Ressuscitado não se apresenta com força e poder, mas com amor e a partir do amor, exercendo o “ofício do consolar” (S. Inácio). Por isso, às vezes não é fácil reconhecê-lo. E, no entanto, é Ele mesmo. Aquele que foi crucificado é o que Deus ressuscitou. Esta igualdade fica expressa por meio das chagas que o Ressuscitado traz em seu corpo. Mas estas chagas são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. As chagas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado; elas são as “marcas” da entrega e que nunca desaparecerão.
Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona a fragilidade da existência humana. A fragilidade da carne mortal foi assumida na glória do corpo ressuscitado. A ressurreição não O separa da condição humana anterior. Não é a passagem a uma condição superior, mas a mesma condição humana levada à sua culminação. A Jesus e a nós o Pai nos acolhe com toda nossa realidade, purificada e transformada.
Ao contemplar as chagas do Ressuscitado, somos movidos a olhar e acolher também nossas chagas: medos, traumas, fracassos, feridas...
Jesus, que conhece bem nossas obscuridades e resistências, medos e bloqueios que nos habitam, se faz presente em meio às nossas vidas abrindo as portas fechadas e pacificando nosso interior: “a paz esteja com vocês!”. Assim, no-lo repete, continuamente, insistentemente, pacientemente.
Ele vem ao nosso encontro e se empenha em re-criar-nos, comunicando seu Sopro sobre nós, como o Criador fez no princípio de tudo. Ali onde continua habitando o caos, a incerteza e a desconfiança, Ele nos oferece alegria, paz e fortaleza. Alenta nossa fé e renova nossas relações pessoais e comunitárias. Gratuitamente; com infinito amor. Com o mesmo amor com que nos anunciou a Boa Nova e nos libertou de nossas enfermidades; com o mesmo amor com que se pôs a nossos pés para lavá-los; com o mesmo amor com que fez de sua vida uma doação radical.
A experiência do encontro com o Ressuscitado nos faz também encontrar o verdadeiro lugar do nosso corpo em nossa vida. Normalmente tratamos mal nosso corpo: há muito de stress, de suspeita, medo e submissão. Sabemos muito sobre nossa mente e muito pouco sobre nosso corpo; temos uma alma livre num corpo rígido.
A nossa vida é uma bela história de ressurreição, um milagre de fortaleza na fragilidade que nos impulsiona continuamente a nos despertar da letargia, a sair de nossos lugares fechados, a colocar-nos de pé, a pisar firme sobre a terra, abandonando nossos túmulos e fechamentos, e continuar caminhando, com a cabeça erguida e os olhos fixos no horizonte da vida, onde se revela a Vida plena do Ressuscitado.
A este Vivente seguimos, pois Ele sempre nos oferece a oportunidade para nos encontrar com Ele e reconhecê-lo, apesar de nossas cegueiras, medos e pesadelos. Ele sempre nos toma pela mão para aproximá-la de suas feridas abertas e mostrar-nos, nas marcas deixadas pelos cravos, que a morte não tem a última palavra. Aproximar de suas feridas reacende em nós a solidariedade e o impulso para sair de nossos espaços fechados e entrar em sintonia com os chagados da história. As chagas do Crucificado, por graça, nos transformam em testemunhas de sua presença em todos os feridos e sofredores.
Que sua paz alente nosso anúncio alegre para que outros possam crer e, crendo, todas tenham vida em seu Nome!
Texto bíblico: Jo 20, 19-31
Na oração: Abrir espaço interno para que o Ressuscitado tenha liberdade de transitar por suas feridas existenciais (traumas, fracassos, rejei-ções, crises...) integrando-as, ressignificando-as, iluminando-as...
- Como ser presença ressuscitada neste mundo onde impera a cultura da morte, do ódio e da violência...? Como se fazer próximo e “tocar” as vítimas chagadas?
- Sua fé no Ressuscitado tem implicações sociais, políticas, relacionais..., ou se revela mais como uma “espiritualidade desencarnada”, intimista, alienada...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.04.22
+ Na alegria da ressurreição, prepare a oração, criando um clima de profunda intimidade com o Ressuscitado.
+ Suplique a Deus o dom da alegria com Cristo Ressuscitado; que a experiência da Ressurreição o(a) impulsione a viver com mais intensidade em comunhão com toda a humanidade e toda a Criação.
+ Antes de “entrar em contemplação”, repasse os “pontos” seguintes:
Mestre Crucificado, Mestre Ressuscitado. O ensinamento de Jesus revelou-se inseparável de sua vida; em outras palavras, Ele ensinou com sua vida. Certamente, Jesus ensinou com parábolas, com gestos ousados... Mas, no final, o que educa de verdade é sua própria vida de Mestre amigo, terapeuta, compassivo, crucificado, ressuscitado... Por isso, não basta dizer que o ensinamento de Jesus “segue adiante”, mas que devemos acrescentar: Jesus mesmo, ressuscitado por Deus, é o autêntico educador.
Os relatos de suas Aparições nos revelam como Ele foi reconstruindo as pessoas, amigas e amigos, quebrados(as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Jesus os(as) ressuscitou por dentro, despertando a vida bloqueada e abrindo o horizonte da missão.
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224). S. Inácio utiliza esta expressão quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das aparições do Ressuscitado.
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” , que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos e discípulas termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão.
Jesus ressuscitado exerce sobre eles(elas) um original “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles e elas hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força recriadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
O verbo “consolar” tem, no hebraico, um sentido mais amplo e forte que nas línguas latinas, porque, muito mais que animar a alguém abatido, expressa a ação eficaz de conseguir com que desapareçam os motivos de seu abatimento. Neste sentido, consolar não é tão somente acompanhar senão, também, inclui a ação de dar esperança, uma esperança fundada, capaz de produzir uma mudança radical no estado de ânimo do outro.
Nos relatos das aparições de Jesus Ressuscitado, esta experiência de ficar consolado aparece muito evidente, porque passa-se da angústia do túmulo vazio à consolação na presença d’Aquele que vive; é a passagem da ausência desconcertante à presença significativa.
O Ressuscitado se aproxima como Presença viva que comunica Vida: deixa-se ver, caminha, fala, interpela, corrige, anima, transmite paz e alegria. Em uma palavra, presenteia seu Espírito.
Sua maneira de se fazer presente é pessoal, personalizante, identificadora: dizer o nome, suscitar recordações e experiências comuns, fazer vislumbrar projetos de futuro.
Outra vez Jesus recria a comunidade que, depois da Paixão, estava se desintegrando; e seus discípulos experimentam novamente o chamado e o envio, a serem testemunhas e cúmplices do Espírito, porque vivem a certeza existencial de que o Crucificado é o Ressuscitado, que a morte foi vencida, que Deus está constituído como Senhor.
Em meio à dor, os(as) discípulos(as) aprendem a confiar em Deus e a não se deixar levar pela tristeza.
A alegria não começa quando acabam as dores; a alegria é uma opção de vida, expressão da confiança em Deus, que torna possível enfrentar o sofrimento com esperança. A alegria não suprime o sofrimento, mas lhe dá sentido. A alegria não desconhece o sofrimento, senão que o enfrenta com confiança.
Em nosso uso habitual, a palavra “consolação” e o verbo “consolar” apontam para um profundo e rico significado: revelam um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de lhe transmitir compreensão, alento, acolhida, impulso... ou seja, uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias capacidades de reação diante de uma situação de tristeza, de fracasso, de desespero ou sofrimento...
Nos Exercícios Espirituais de S. Inácio, consolação e consolar são a linguagem e ação de Deus no ser humano, comunicação do Criador com a criatura, iniciativa de Deus que, quando é recebida com agradecimento e pureza, isto é, como dom gratuito e como escuta disponível, nunca deixam a pessoa consolada no mesmo lugar ou situação onde estava antes.
A consolação de Deus é sempre dinamizadora daquilo que é mais divino no ser humano.
Por ser manifestação da comunicação do Espírito de Deus ao espírito humano, gera sempre na pessoa, amor, alegria, fé, entusiasmo..., e desemboca sempre na missão.
Deus nos consola para que possamos consolar.
Na consolação, Deus nos chama a ser seus colaboradores. A consolação que recebemos do Senhor não nos é dada tendo em vista um desfrute narcisista e fechado deste dom espiritual, mas tem a finalidade de capacitar-nos para o “ministério da consolação”.
É um dom para a missão; se alguém se apropria dela como coisa pessoal, morre.
Dessa consolação de Deus, da qual nós mesmos e nosso mundo tanto necessitamos, somos chamados a fazer-nos receptores e mediadores.
Trata-se de uma consolação que é pura graça, que não está ao alcance de nossa mão dá-la a nós mesmos, nem dá-la aos outros, mas da qual podemos ser agradecidamente receptores e gratuitamente mediadores. Com isso, a consolação pode estender-se a outros muitos rincões da existência humana.
É tempo de autocompreender-nos e atuar frente aos outros como enviados a exercer ativamente o “ofício de consolar”, tendo sempre presente que a consolação verdadeira pertence somente ao Espírito, já que não é outra coisa que a gratuita autocomunicação do Deus trinitário à humanidade.
É Ele mesmo quem deseja compartilhar conosco este ofício, o ofício de consolar.
Consolação e “ofício de consolar” nascem e vem precedidas pela experiência de uma alegria pura e totalmente desinteressada pelo Senhor. Alegria interna e verdadeira que procede e provoca a missão.
Nada mobiliza tanto como o agradecimento e nada revela tanto o agradecimento como a alegria pura pelo bem do outro. A gratuidade é o habitat natural da consolação e do consolado.
Todos somos chamados a prolongar este “ofício de consolar” de Jesus; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador, ou seja, ministério entre iguais, “vida que desperta outra vida”.
É vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção à vida bloqueada, necrosada... ativando-a, despertando-a...
É movimento expansivo da vida.
Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual Deus se comunica e atua em nós, o ofício do consolo” é o canal por onde flui a vida.
Textos bíblicos: Jo 20,11-18 Lc 24,13-35
Na oração: faça “memória” das experiências de consolação, suscitadas pela Graça de Deus ao longo desta Quaresma
- Recorde pessoas que foram “presenças consoladoras” em sua vida.
- Traga à memória situações em que você foi o(a) mediador(a) da consolação de Deus.
Iluminar a madrugada e tecer liberdade, nutrir a vida de compaixão e amizade, celebrá-la e oferecê-la de verdade, orar... Esse é o movimento de Ressurreição? É isto que o evangelista João quer destacar quando escreve que Madalena “saiu correndo”, que Pedro e João “corriam juntos”?
Que a Páscoa seja um tempo de movimento e cada um(a) discirna para onde correr!
Um Santo Tempo Pascal e todos e todas!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.04.22
“No lugar onde Jesus foi crucificado havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo...” (Jo 19,41
É Sábado e Jerusalém voltou à sua normalidade: nada mudou, ao menos aparentemente, na história. Silêncio gélido, desconcerto, frustração e indiferença cobrem a cidade santa como um manto de densa neblina.
Como seguidores(as) de Jesus vivemos nossos adventos, natais, quaresmas, páscoas e pentecostes; vivemos nossas sextas-feiras; é preciso aprender a viver o incômodo silêncio dos sábados santos.
No caminho do seguimento de Jesus há “Sábados Santos”, tanto no nível pessoal como comunitário: passamos por contínuas mortes, noites escuras, crises, silêncios carregados de tristeza, falta de esperança, dúvidas de fé, fracassos, traumas...
A humanidade inteira vive um grande “Sábado Santo”; há uma espera angustiada dos povos. Envolve-nos a “noite sabática”, que deve realimentar a paixão pela vida.
Sábado Santo da dor, da tristeza, do fracasso..., mas também Sábado Santo da espera e da esperança. É o Sábado Santo que nos abre às surpresas de Deus.
Onde encontrar, então, a razão, o segredo e o sentido deste dia que dá a sensação de um “dia morto”?
Certamente está neste fato: se o Crucificado não tivesse descido até os “infernos” da vida, em quem os homens e as mulheres que ali vivem poderiam se apoiar? A quem poderiam ter por companheiro, amigo e irmão? De quem poderiam sentir uma presença consoladora?
Somente porque Jesus desceu nos “infernos” da vida é que pode salvar-nos deles, transformá-los em caminho. “Porque foi provado no sofrimento, pode ajudar os que são provados” (Heb. 2,18).
Os “crucificados da história”, os sofredores e as vítimas são lugar de encontro, sempre e para todos; eles são sacramento do mundo que Jesus veio transformar, porque não corresponde ao que o Pai sonhou a respeito deste mesmo mundo; são um compromisso obrigatório para encontrar Aquele que viveu a verdadeira Paixão em favor da vida.
Talvez nem todos possamos estar ao lado das vítimas e dos últimos, próximos deles, participando de sua vida. No entanto, todos devemos estar a favor deles, junto Àquele que, na sua morte, faz-se solidário com todos e caminha ao lado de todos eles.
As “mediações” que Deus utiliza em sua ação salvífica são o amor humilde, a pobreza solidária e a participação no sofrimento humano. Loucuras do amor de Deus. Só o amor que se entrega, salva.
É em sua morte na Cruz que Jesus desce até o extremo de sua condição humana. Com estas duas palavras, “descer” e “subir”, o evangelista João descreve o mistério da Redenção realizada por Cristo.
“Ninguém subiu ao céu senão Aquele que desceu do céu, o Filho do Homem” (Jô. 3,13)
A Igreja primitiva viu a “descida entre os mortos” como paradigma da Redenção. No Sábado de Aleluia, ela lembra este “descer” às profundezas da terra e da humanidade.
Na “descida aos infernos”, lá onde o ser humano chegou ao extremo, onde ele se encontra excluído de toda comunicação e comunhão, onde não pode fazer mais coisa alguma, aí Jesus o toma pelas mãos e ressurge com ele para a vida. Jesus Cristo acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu. Ele “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra.
A descida aos “infernos” é imagem da descida de Jesus às regiões sombrias de nossa existência.
Descobrimo-Lo presente nos nossos “infernos interiores. As profundezas de nosso ser se iluminam, e tudo quanto foi reprimido, recalcado, ferido... é tocado e assumido por Jesus e nos desperta para a vida.
É preciso descer, com Jesus, ao túmulo de nossa interioridade, transitar pelos espaços e dimensões não integradas. Só quem desce às profundezas de si mesmo é capaz de vislumbrar potencialidades de vida que não foram ativadas. É preciso morrer ao “ego”, “descer” aos “infernos” interiores e sociais para expandir a vida em novas direções.
“Descer” e “subir”, portanto, são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus morto, e também sepultado, no interior de cada um de nós.
Se com Ele quisermos subir ao Pai, temos primeiro de descer com Ele à terra, afundar os pés na nossa própria condição humana. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Jesus aos nossos “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia.
O coração, a quem nada do que é “humano” lhe é estranho, alarga-se, enche-se do amor de Deus, que transforma e ressuscita tudo o que é humano.
Ao fazer, junto com Jesus Cristo, o caminho da “descida”, vamos ao encontro de nossa realidade e nos colocamos diante de Deus para que Ele transforme em amor tudo quanto em nós existe, para que sejamos totalmente perpassados pelo Espírito de Deus.
O evangelista João nos diz que Jesus, após sua crucifixão, foi colocado em um “sepulcro novo”.
O sepulcro representa a “passagem” entre o antigo e o novo. Ao ser fechado com uma pedra, no entardecer da Sexta-Feira Santa, encerrava-se um ciclo. Ao se abrir, na madrugada do domingo, inaugura-se um novo tempo, uma nova Criação. Os sinais estão ali, no ventre aberto da Terra. Sinais que podem ser mudos para nós e fazendo-nos deter no passado, ou podem ser umbral de novas significações.
Neste Sábado Santo, situemo-nos junto ao sepulcro, lugar onde tivemos os últimos sinais ou notícias d’Aquele que foi fiel até o fim. Ali podemos permanecer com as velhas interpretações ou podemos nos dispor a acolher a surpresa que irrompe, o novo que quebra o que é caduco e sem sentido.
“O Sábado Santo é o tempo de uma gravidez: podemos dizer de uma “segunda gestação” de Jesus Cristo. Se a “primeira gestação” de Jesus foi a entrada de Deus na carne humana, no Shábbat se gesta a divinização do ser humano e da história na carne de Deus. O sepulcro é o ventre da terra onde foi sepultado o cadáver de Jesus. Nesse corpo inerte, torturado e deformado, acontecerá uma metamorfose. Ali a matéria se divinizará. Toda a criação, contida na corporeidade de Jesus, é chamada a ressuscitar. O Verbo se fez carne para que a Carne se divinize.
Tudo isso acontecerá secreta e simbolicamente entre o Shábbat e a alvorada de uma nova criação. A terra está ameaçada e grávida de ressurreição.
O Sepulcro era novo, dizem os relatos, como virgem era o ventre de Maria. Disponível, inocente, livre. O vazio como possibilidade, como fecundidade: “Feliz tu, cheia de graça, porque está vazia de ti mesma. Teu espaço interior te faz matriz do Verbo, da Palavra pela qual Deus se historiza”.
Assim como as entranhas de Maria albergaram o primeiro nascimento de Jesus, as entranhas da Terra e da história albergam as sementes de seu segundo nascimento.
O sepulcro é uma manjedoura de vida nova, de humanidade inaugurada por uma Presença nascente. Tudo está grávido de ressurreição”.
(Javier Melloni – El Cristo interior – Herder).
Textos bíblicos: Jo 19,38-42 Mc 15,42-47
Sábado Santo ajuda a dar sentido à solidão: há solidão vazia, que deprime, mas há solidão (solitude) que nos faz ter acesso às dimensões desconhecidas de nossa vida... As experiências de fracasso, de crise, de desolação... ativam outros recursos e nos motivam a purificar nossa adesão a Deus.
Santo Inácio de Loyola nos convida a passar este dia na casa de Maria, em comunhão com seus sentimentos e sua esperança.
É a única que tem certeza de que a Vida do seu Filho não permanece na morte.
Sua atitude revela-se antecipadora da Ressurreição, assim como ela antecipou o primeiro “sinal” de Jesus nas Bodas de Caná.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.04.22
“Tudo está consumado!”
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
São cruzes impostas sobre nossos ombros ou sobre os ombros dos outros. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo.
Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vida e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Mas o sofrimento não pode ser buscado nele mesmo; não tem sentido e não abre futuro esperançador.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
No silêncio do seu coração, coloque-se, em atitude contemplativa, diante da escultura do Crucificado; notemos que um de seus braços está crucificado e o outro está estendido, com a mão aberta para acolher quem d’Ele se aproxima. Quanta vida e comunicação silenciosa nesse gesto! Trata-se de um grito de amor, silencioso e cheio de comunicação.
Aquela mão estendida nos chama a depositar a nossa mão na sua e estar aí, em silêncio, um longo tempo.
Que nos transmite esta imagem? Não precisamos palavras, nem ritos, pois é um gesto que nos conecta, como um cordão umbilical, ao Crucificado que nos revela o caminho da doação radical: como viver nosso dia-a-dia? Como usar nossos recursos? Como conectar-nos com o coração de Deus, com o coração do planeta Terra e de toda a humanidade?
Podemos também sentir que essa mão estendida nos chama e nos envia; primeiro, nos chama a segurá-la e sustentá-la. E como se Ele dissesse: “aproxime-se e permaneça comigo, pois preciso abrir-lhe meu coração; sinta minha pulsação e deixe seu coração pulsar no ritmo do meu; una-se ao meu coração, carregado de amor, e prolongue-o através do seu coração”.
E tudo acontece no silêncio; um silêncio que nos enche de vida, de paixão partilhada, de compaixão, de solidariedade... No fundo desse silêncio nos encontramos com a mão aberta de um moribundo que nos ama e que é revelação do rosto do Deus vivo e feito carne entre nós.
A mão quente do Crucificado é a mão de todos os irmãos e irmãs violentados, vítimas da cultura do ódio e da morte; a mão do Crucificado que pulsa é a mão latejante de nossa Terra, violada e abusada pela ânsia do lucro de uma minoria aterradora.
O silêncio pode ser também a escuta do coração aberto da realidade, enquanto apertamos a mão que nos comunica o pulsar e o amor do crucificado.
Esse silêncio nos dignifica porque nos vacina contra os outros silêncios covardes e auto-centrados.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.22
“Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou.
Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”
+ Prepare sua oração, ativando uma disposição interna para viver o Mistério do Lava-pés.
+ Dê especial atenção às “adições”: lugar, posição corporal, pacificação interior, consciência de estar diante de Deus...
+ Faça sua oração preparatória, bem como a composição vendo o lugar, a petição da graça...
+ Mobilize seus sentidos para que eles o ajudem a fazer uma contemplação; os “pontos para a oração”, podem preparar o terreno interior para acolher o gesto ousado de Jesus no Lava-pés:
No gesto do Lava-pés, Jesus, antes de sua Paixão e com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus como Mestre era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (provocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente daquela que era habitual.
Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; Ele foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo.
Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.
Desconcertante também foi o gesto de Jesus realizado na Última Ceia. O gesto do “lava-pés” tornou-se inspirador e provocativo para todo(a) seguidor(a); constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade daqueles(as) que exercem algum serviço em sua comunidade.
Lava-pés é revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz... É gesto que nos ensina a olhar a vida sob outra perspectiva, pois nos mobiliza a fazer uma contínua travessia dos lugares que controlamos aos lugares onde não somos o centro.
Custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante. Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, um novo ensinamento, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.
Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realiza uma mudança e uma amplitude de visão que lhe faz perceber tanto as riquezas e dons de cada um, como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações das pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.
Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que eram considerados distantes e excluídos. Porque, para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem à “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.
Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.
Ali também Ele nos revela um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando, deste modo, a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.
A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas.
Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos escandalizando, porque se há algo que incomoda é deslocar-nos até os últimos e nos colocar no lugar deles.
Não é comum deslocar-nos para o lugar do outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente. “Nós pensamos e sentimos a partir de onde estão nossos pés” (Frei Betto).
É tão natural perceber, delimitar, defender e fechar-nos no nosso próprio lugar. E isso o fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos o que está para além do nosso próprio lugar.
São grandes os riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O nosso próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que fazemos.
Compreendemos claramente que o que ali estava em jogo, no Lava-pés, não era a humildade, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. A intenção de Jesus foi muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos fiz?”
Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é recolocá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.
A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à palavra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.
Eis a missão do(a) seguidor(a) de Jesus: ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.
Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.
“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente.
Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser e viver, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.
“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia, a fim de atingir a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.04.22
+ Leia saboreando o relato evangélico de Jo 13,1-15
+ Na contemplação do Lava-pés, observe silenciosamente os gestos de Jesus. Todos os gestos possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado.
+ Depois de contemplar com “todo acatamento” os gestos de Jesus, converse com Ele sobre a sua admiração e sobre o seu desejo de prolongar estes mesmos gestos no seu cotidiano.
+ Traga à memória as pessoas que você precisa lavar os pés...
+ Revele sua gratidão para esta experiência tão íntima e tão intensa.
+ Registre no seu caderno as “moções” mais fortes experimentadas na oração.
“Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos”
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Um cuidado especial com os preâmbulos: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como “marca” dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os(as) seguidores(as) de Jesus se constituem como verdadeira comunidade.
Ao “recordar” a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Entre a traição de Judas e a negação de Pedro, Mateus colocou a instituição da Eucaristia
Deste modo, ele destaca para todos nós a inacreditável gratuidade do amor de Jesus, que supera a traição, a negação e a fuga dos amigos. O seu amor não depende do que os outros fazem por ele.
Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino. E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Nos evangelhos, nós encontramos pessoas que não faziam parte do grupo dos Doze e que revelaram uma presença que fez toda a diferença junto a Jesus. Viviam o verdadeiro sentido do seguimento, sem buscar prestígio, vaidade, poder, competição... Pessoas que se revelaram muito mais em sintonia com Jesus e sua proposta de vida do que os Doze. Uma delas foi a do homem do Evangelho de hoje: anônimo, mas deu sua contribuição decisiva e que ficou registrada na história; sua casa foi o lugar onde aconteceu a última Ceia.
Jesus era da Galileia, não tinha casa em Jerusalém. Nos dias da festa de Páscoa, a população de Jerusalém triplicava. Não era fácil para Jesus encontrar uma sala ampla para poder celebrar a Páscoa junto com os seus mais íntimos. Ele pede para os discípulos encontrarem uma pessoa em cuja casa decidiu celebrar a Páscoa. O Evangelho não oferece mais detalhes e deixa que a imaginação complete o que falta nas informações. Era um conhecido de Jesus? Um parente? Um discípulo?...
Aquele homem desconhecido, que abriu sua casa para Jesus, representa todos nós; cabe a nós mostrar o caminho do local da Ceia, cabe a nós preparar a mesa da partilha, abrir o espaço interior para acolhida, indicar o rumo que leva à casa do Pai. Orientadores(as) do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize, ali, o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Ele mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem prota-gonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como este desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade e seguido pelos que vinham detrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Jesus como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não é isso que acontece com ele; oferece a casa sem perguntar quem viria celebrar a Páscoa, sem pedir garantias, sem cobrar aluguel pelo espaço; enquanto os sacerdotes e Judas pechinchavam o valor da vida de Jesus, este desconhecido, por pura gratuidade, oferece sua casa ao mesmo Jesus. Certamente, ele e sua família foram testemunhas desta ceia única e especial, e que será a marca de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
Ontem o Evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Apesar da convivência de quase três anos, nenhum dos discípulos ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus, no Evangelho de hoje, quer ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos. Ele deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que põe a mão no prato comigo". Para os judeus, a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxima da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus nos indica que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Que aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Poucas experiências destroem alguém por dentro como a traição.
A traição que, à primeira vista, pode parecer ser prejudicial apenas àquele que foi traído, de maneira geral, vem acompanhada de um forte sentimento de culpa para o traidor. E ao sentir a culpa pela traição, a pessoa entra em conflito emocional; algumas caem até no desespero.
Aquele que traiu sofre, pois este não confia em si mesmo, não consegue acreditar que mereça confiança. O traidor condena-se à solidão e à culpa existencial, destrói-se e destrói todos ao seu redor, culpando o mundo por seu sofrimento; trai-se a si mesmo, torna-se, aos seus próprios olhos, um monstro, não merecedor de amor, o que o leva a trair mais ainda.
Se a pessoa trai a si mesma, ela fracassa em sua busca, frustrando-se na tentativa de realizar-se enquanto ser humano. E, na ausência de respostas, angustia-se mais, trai mais, atropela os outros que a amam, machuca a todos ao seu redor, procurando justificativas para seus atos e destruindo-se a si mesma em cada nova tentativa de ser amada.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
+ Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
+ Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição.
+ Faça um colóquio ao Senhor: converse com Ele sobre os sentimentos contraditórios que nascem da fidelidade d’Ele e da traição de Judas.
+ Termine a oração, dando graças a Deus por este momento tão intenso; se possível, registre os apelos, luzes, inspirações, que brotaram da oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.04.22
+ Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Faça a oração preparatória (de entrega), a composição vendo o lugar (a última Ceia), e peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
+ Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
Estamos na terça-feira da Semana Santa, às vésperas da execução de Jesus. Como ontem, somos convidados a participar de outra ceia de despedida. A ceia em Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa..., um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus se vê traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tinha tomado a trágica decisão, e depois de receber o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
Enquanto Jesus está fazendo aquele gesto de serviço e de total entrega de si mesmo, ao lado dele um discípulo está tramando a maneira de como traí-lo naquela mesma noite. Jesus expressa a sua comoção e diz: “Em verdade lhes digo: um de vós vai me trair!” Não diz: “Judas vai me trair”, mas “um de vós”. É alguém do círculo da amizade dele que vai ser o traidor.
O anúncio da traição foi desconcertante para o grupo dos discípulos. Independentemente de qualquer cultura, a traição é sempre um ato abominável. De modo especial, entre pessoas cujas vidas estão vinculadas por laços profundos, e nas quais se deposita toda confiança. Isto explica a surpresa dos discípulos quando Jesus anunciou que um deles haveria de traí-lo. E essa surpresa foi maior, quando o traidor foi identificado com Judas, filho de Simão Iscariotes.
O evangelista João dirá várias vezes que se tratava de um ladrão. Logo, alguém de caráter duvidoso, de quem se pode esperar tudo. A traição seria apenas mais uma manifestação da personalidade doentia deste discípulo. Os evangelhos, em geral, referem-se a Judas como alguém que vendeu sua própria consciência ao aceitar entregar o Mestre por um punhado de moedas.
Uma coisa é certa: Judas estava longe de sintonizar-se com Jesus. Algo parecido acontecia com Pedro, que haveria de negá-lo. Só que este recuou e abriu-se à misericórdia do Senhor.
Mas, o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
A palavra “trair” vem do latim “tradere”, que significa entregar, enganar, denunciar ou delatar.
Mas ela pode ser pensada também no sentido de “quebrar” uma ideia, um ideal, um objetivo, trazendo mudanças de planos, estratégias ou ideais.
O ato de trair implica romper um pacto que o sujeito fez com o outro e consigo mesmo. Trair é uma ação que implica conseqüências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Judas está na ceia pascal de Jesus com os discípulos. Ceia que o Mestre preparou com cuidado, sem que escapasse nenhum detalhe. É uma ceia para amigos onde Ele vai revelar sua entrega, totalmente; esse é o sentido da Eucaristia: “memória” de uma entrega.
Mas Judas só participa do ritual, está ausente; permanece aí só por uns instantes, pois tem coisas a fazer, e desaparece sem ter presenciado o que ali aconteceu. Outros assuntos exigem sua atenção.
A ceia pascal não lhe serviu para nada: nem se surpreendeu, com seus maravilhosos detalhes, nem provocou mudança nele, porque, na realidade, não estava atento, nem sentia necessidade de mudar.
Há pessoas que sempre estão “ausentes” do grupo, da comunidade, quando se celebra algo importante; costumam ser pessoas muito “ocupadas”, mas que não comungam com a comunidade. De fato, só pensam em si mesmos e não sabem desfrutar com os outros de um momento festivo.
Sentimos pena de Judas, porque é um homem decepcionado com o chamado de Jesus e sua própria vocação. Não se sente como os outros, e nem sequer é tão espontâneo como Pedro ou os Zebedeus, que queriam ser importantes; ele não quer só ser importante, quer estar em tudo por cima dos outros. Está “amargo” porque Jesus não correspondia às suas expectativas como Messias e está perdendo o tempo com os discípulos em vez de prepará-los para a revolução e formar um grupo político, não religioso. Judas perdeu a admiração por Jesus.
Judas não compreende o gratuito, ou seja, o que recebeu de Jesus, as possibilidades de ser apóstolo e sair de si mesmo, entregando-se, doando-se... e tudo quer justificar a partir de seu próprio ponto de vista.
Judas não sabe participar e desfrutar de uma agradável refeição em companhia dos outros, nem se preocupa em agradecer a Jesus pela admirável ceia. Judas caminha para a decepção, a solidão e a morte. Abandona o grupo, sai à noite para alimentar seu “ego inflado”, sofre a decepção frente seus “falsos” amigos, vê que sua vida já não tem saída nem sentido.
No fundo é fraco, tira a própria vida, não faz dela uma entrega, como Jesus. Mas, a Eucaristia é o ato de comensalidade que vai além das traições e dos abandonos, das negações, das covardias e dos comportamentos hipócritas. Não se trata de excluir da Eucaristia os covardes e os traidores. Jesus não excluiu ninguém. Judas comeu do mesmo prato em que comia o próprio Jesus.
Jesus não impôs excomunhões. Respeitou a todos até o extremo; o respeito e o trato que Jesus manteve com todos foi, dessa forma, delicado, tolerante e respeitoso até o fim.
E isso, por uma razão muito simples: a eucaristia não é possível onde há exclusões, desqualificações, ameaças, reprovações, julgamentos...
+ Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje: Jo 13,21-33.36-38
+ Comece a contemplação ativando todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da Última Ceia.
+ Faça-se e sinta-se presente na sala da refeição pascal, como um “humilde servidor”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
+ À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor.
Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentiu?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ No final da oração dê graças por poder participar deste momento.
- Faça exame da sua oração e registre no “caderno de vida” os movimentos (moções) do coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.04.22
Imagem: The Treachery of Judas - Andrey Mironov
“Jesus foi a Betânia...; lá, ofereceram-lhe um jantar” (Jo 12,1-2)
+ Prepare-se para a oração, criando um clima de silêncio e escuta amorosa.
+ Permaneça, por uns instantes, saboreando o silêncio do seu coração, pois onde há silêncio, aí está Deus presente.
+ Peça a Deus a graça de poder transformar a sua casa/comunidade em nova Betânia: casa da acolhida, da amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...
+ Antes de “entrar em contemplação”, leia os “pontos” abaixo:
Para inspirar sua missão como seguidor(a) de Jesus, sinta-se conduzida pelo Espírito a viver Betânia, a ser Betânia, a assumir Betânia. Sinta-se convidado(a) a entrar na casa em Betânia: casa de encontro, comunidade de amor e coração de humanidade. Deixe-se inspirar por este ambiente humanizador, para prolongá-lo em seu cotidiano familiar, social, comunitário...
O relato evangélico em Betânia confere um intenso clima pascal à oração: a ceia é prelúdio da morte de Jesus, visibilizado pela unção que Maria fez em honra ao Mestre. Mas também é anúncio da Ressurreição, mediante a presença do Lázaro ressuscitado, testemunho eloquente da vitória da vida sobre a morte.
E foi neste ambiente de relações de amizade que Jesus encontrou a estabilidade e o ânimo para viver sua entrega radical.
Betânia é um lugar simbólico e instigante para a vida cristã; ela é o ícone de uma comunidade de seguidores(as); nela busca-se inspiração e motivação para viver a seguimento de Jesus na missão.
Buscamos Betânias, somos gratos quando as encontramos, sentimos saudades quando elas nos faltam... É um espaço de nutrientes e de alimento em sentido amplo: afeto, calor, cuidados, atenção, presença, ternura e contato.
Betânia significa “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam as pobrezas pessoais e comunitárias, a pequenez e a fragilidade; mas, também, onde as pobrezas de nosso mundo, da humanidade, têm lugar e tocam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos mobilizar em nosso seguimento de Jesus.
Betânia é lugar da acolhida, da hospitalidade, da escuta, da amizade e do serviço, onde todos são irmãos(ãs) sentados(as) à mesma mesa, junto ao Mestre, em quem se centra a hospitalidade e a atenção.
Betânia é espaço educativo, onde todos expressam o melhor e mais original que há no interior de cada um; espaço de aprendizagem mútua, onde todos se enriquecem com os dons compartilhados. Em Betânia não aprendemos doutrinas, mas gestos humanizadores, gestos descentrados e carregados de vida.
Betânia é o templo onde Jesus percebe a presença e o agir de Deus nos fatos mais simples da vida cotidiana; Betânia é, para Jesus, um prolongamento de Nazaré, o lugar do cotidiano, do pequeno, do simples: o lugar da revelação.
Neste ambiente, já não há mais rivalidade entre as duas irmãs, Marta e Maria, mas colaboração, complementariedade e reciprocidade. Servem à mesa e ungem os pés. Juntas se fazem transparentes para algo maior que elas mesmas. Certamente Jesus se deixou impactar por aquilo que viu fazer estas duas mulheres. E Ele, como eterno aprendiz, vai prolongar os gestos delas na sua última Ceia.
Jesus se deixou fazer, para poder fazer isso com outros e quis tomar para si os gestos destas mulheres para fazer memória de sua vida. Agora é Jesus quem se mostra necessitado, e elas são as verdadeiras educadoras, pois expandem sua capacidade de cuidado e de ternura.
Preparar a mesa e ungir os pés: dois gestos que se complementam mutuamente; amor que se faz serviço, serviço que é feito com amor; amor e serviço vividos como unção.
Marta nos ensina que servir não é algo que acrescentamos à nossa vida, nem algo que seja mérito nosso; o serviço é a expansão natural daquilo que somos, a visibilização de nossa interioridade.
Maria pode ser considerada como um ícone da sensibilidade nova que o evangelho nos oferece; ela expande todo o seu afeto num gesto de enorme ternura para com Jesus: suas mãos acariciam os pés do Mestre e enxuga-os cuidadosamente com seus próprios cabelos.
Sua criatividade feminina encontrou no perfume um símbolo para expressar com grande delicadeza o que nesse momento seu coração transbordava. Maria investiu num gesto gratuito e desmedido, expressão de um amor exagerado. O perfume de Maria é o símbolo da vida e do amor da comunidade. É um amor que não tem preço. Aqui, no centro do Evangelho de João, a comunidade, reconstruída no amor, exala o bom perfume que enche toda a casa.
Na cena do jantar em Betânia, outro personagem aparece compartilhando a mesa com Jesus. Lázaro é um personagem pascal, um ressuscitado; presença silenciosa, não tem nenhuma ação a realizar. Lázaro é símbolo do humano pobre, enquanto necessitado e frágil, dependente... Ele pode representar os membros de nossas famílias e comunidades, marcados pela vulnerabilidade, enfermidade e idade avançada, carentes de ajuda e cuidado; mas ele pertence à casa, é companheiro de mesa com Jesus. Percebemos que não são suas ações, trabalhos, compromissos ou qualidades que fundamentam sua amizade com Jesus; podemos pensar que Jesus o amava “porque sim”, para além do que Lázaro pudesse fazer algo por Ele.
Frente aos enganos que acompanham com frequência nosso “fazer”, com suas tendências insanas, o caminho do seguimento de Jesus nos convida a fomentar o “ser” e o “estar” mais que o “fazer”.
Lázaro, “o passivo”, nos ajuda a reconhecer com alegria que, em nossa vida, tudo é dom gratuito e o melhor dela não depende de nosso esforço: é um presente do qual somos fundamentalmente “receptores”.
Mas, neste jantar festivo que os três amigos oferecem a Jesus, há um personagem que destoa: Judas. Ele não consegue entrar em sintonia com aquilo que está acontecendo durante a ceia; não compreende que em torno a Jesus tudo é gratidão e gratuidade; não compreende o gesto amoroso de uma mulher secando com seus cabelos os pés de seu amigo e derramando perfume sobre ele.
Judas aparece nos três relatos evangélicos destes dias (segunda, terça e quarta-feira). Não como protagonista, mas como contraponto, deslocado.
Há atitudes e gestos que estão mais além do valor monetário: a delicadeza com as pessoas, com os irmãos mais necessitados, a acolhida carinhosa, a companhia amigável... A vida de comunidade é feita de detalhes carinhosos, não de racionalizações e conveniências ao nosso gosto.
A entrega amorosa de cada dia revela seu verdadeiro sentido. Só o que brota do amor tem sentido na Igreja. A infinidade de cristãos que lavam os pés de Jesus nos pobres do mundo, enche “toda a casa” (a Igreja) de um extraordinário perfume.
- Como preparação para a contemplação, leia uma ou duas vezes o texto do Evangelho indicado para este dia (Jo 12,1-11).
- Com a imaginação, faça-se presente à casa em Betânia; procure olhar atentamente cada uma das pessoas (Jesus, Lázaro, Marta e Maria); sinta o clima de alegria e amizade; procure escutar o que elas dizem; observe as reações, gestos, acolhida... de cada uma das pessoas.
- Naquele espaço inspirador, deixe que eles lhe ensinem a descobrir a força sanadora da amizade, a amadurecer-se nas perdas, a tecer afetos em momentos de adversidade, a servir a partir do coração, a ungir com as mãos terapêuticas, expressão do amor oblativo.
- Sinta o perfume do frasco quebrado tomando conta da casa.
- Participe ativamente da cena, conversando, perguntando, ajudando a servir...
- Faça um colóquio com Jesus, falando do clima “pesado” que existe em Jerusalém, pois estão à procura dele para matá-lo. Permaneça aí, deixando-se impactar pelo clima humano reinante nesta casa.
- Finalize sua oração, dando graças por esta convivência amistosa.
- Registre no caderno de vida os sentimentos predominantes durante a oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.04.22
“... alguns dos fariseus disseram a Jesus: ‘Mestre, repreende teus discípulos!’
Jesus respondeu: ‘Eu vos declaro: se eles se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,39-40)
- Entre em seu “santuário interior”, espaço sagrado, tenda de encontro consigo mesmo(a) e com Deus; prepare a “terra do coração” para receber a Palavra e que ela possa fecundá-lo(a).
- Comece sua oração, mobilizando todo o seu ser (corpo-mente-afetividade) para o encontro com Jesus que vive a fidelidade ao Reino até sua entrega radical.
- Faça uso dos preâmbulos: oração preparatória, a composição vendo o lugar, petição da graça...
- Antes de fazer uma contemplação, aqueça o seu coração com as “considerações” abaixo:
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar onde se cumpririam as esperanças dos povos.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus entra em Jerusalém rodeado pelo povo simples. Este povo, escravo e oprimido, o aclama porque vê n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação; escutou seus ensinamentos e viu seus feitos durante alguns anos; sentiu-se tocado pelas palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz... Também viu seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de oferta de alimento aos famintos, de reabilitação dos desprezados, de acolhimento dos marginalizados, de denúncia dos opressores...
Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos. E nós, se queremos continuar percorrendo o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas em nossos espaços urbanos. Vivemos em uma sociedade na qual parece que já não é mais possível outra economia, outra educação, outra política, outra justiça...; a impressão que temos é a de que é preciso nos resignar com o que nos é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico-político que nos rodeia.
O Deus, presente nas cidades, é um Deus que nos chama e nos interpela a partir do reverso da história, a partir dos últimos e dos excluídos, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” mais inspiradores.
Esta é a cidade que Deus deseja: uma praça de encontro, uma mesa celebrativa para todos, um espaço educativo que inspira. A praça é de todos e todos podem ter acesso a ela, todos podem circular livremente, criar relações e convivência, fazendo a experiência de serem aceitos e reconhecidos como humanos.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de festa e de memória, lugar de chegada e de inclusão da pluralidade e da diversidade.
O espaço educativo, aberto e inclusivo, ativa a criatividade, a construção do saber alternativo e a mobilização dos recursos e dos dons de cada um.
“Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o(a) seguidor(a) de Jesus tem em quem se inspirar.
A cidade é o lugar por excelência do discernimento, porque é o espaço de decisão onde se constrói o futuro comum. Lugar da política, da cultura, da educação, da saúde... onde se forjam as mudanças, a capacidade de criar novos modos de existir, de romper com as estruturas caducas que desumanizam e buscar o diferente, o novo, o desconhecido...
Nossas cidades devem ser o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos e da criatividade.
Nelas se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.
“Cristificar” o espaço urbano é ter como meta a formação integral das pessoas; o ser humano deve ser considerado como ser em movimento, protagonista da mudança,
Vivemos, em nosso contexto urbano, o deserto assolado pelos ventos da pobreza, da exclusão, da violência cotidiana, da corrupção, da falta de educação... Ou seja, o deserto da perda do horizonte de sentido, da fragmentação cultural, com sua carga de rupturas de vínculos de pertença, onde custa reconhecer-nos uns aos outros, onde as identidades se confundem e as responsabilidades se esvaziam...
O mundo urbano é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação deve ser a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo. Para concretizar essa missão, os cristãos devem assumir uma atitude testemunhal, tendo como proposta uma ética comunitária, fundada no valor sagrado da pessoa humana e de suas relações, sobretudo com o mais fraco e pobre como interpelação do Deus vivo.
Inspirados no “Divino Mestre”, “todos somos educadores e exercemos esse ministério o tempo todo”; todos somos chamados a ser guias e responsáveis uns dos outros nos desertos das grandes cidades. E guias para orientar, animar, motivar; testemunhas e garantidores de sentido.
Guiar no deserto da educação é desafiante e requer fortes doses de ousadia. Mas, acima de tudo, assumir o deserto é ativar, pessoal e comunitariamente, a esperança.
É preciso recuperar o sentido de educar como um ato vital de entrega para ajudar a construir ou resgatar vidas. Com a educação se trata de abrir possibilidades para que todos, desenvolvendo suas próprias riquezas, sejam capazes de viver em plenitude e com dignidade, de assumir com responsabilidade sua condição cidadã, de desejar humanizar e transformar sua realidade.
O(a) educador(a) na cidade, para tornar eficaz sua ação, deve estar sempre na porta de entrada, com o olhar voltado para as necessidades do interior das cidades. Sua função é ser “fermento na massa”.
É aquele(a) que ultrapassa todas as fronteiras, com uma alternativa sempre nova: a Boa Notícia. O Evangelho ilumina a vida das cidades e exige dos evangelizadores atitudes novas, propostas ousadas...
- Leia atentamente o Evangelho indicado para este dia (Lc 19,28-40);
- Prepare-se para fazer uma contemplação.
- Com a imaginação recrie a cena evangélica: a cidade de Jerusalém, o grande Templo, a diversidade de pessoas... Com a chegada de Jesus, montado em um burrinho e uma grande multidão, faça-se presente, procurando olhar as pessoas, escutar o que elas dizem, observar o que elas fazem...
- Em quê lugar da multidão você se encontra? Como reage diante do gesto de Jesus? Como você participa? Ou você fica olhando de longe, sem se comprometer...
Deixe-se conduzir pelo movimento dramático da cena...
- Faça um colóquio com Jesus, expressando sua admiração pela atitude ousada e corajosa dele. Fale com Ele sobre sua presença na cidade onde mora: desejo de ser presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras...
- Faça “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?... Relate a Jesus.
- Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?
- Faça uma “leitura orante” deste tempo de oração e registre os principais sentimentos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.04.22
“De madrugada, voltou ao templo, e todo o povo se reuniu ao redor dele.
Sentando-se começou a ensiná-los” (Jo 8,2)
O tempo litúrgico da Quaresma é um tempo privilegiado para nos deixar ensinar pele Mestre da Galileia; somos alunos(as) da escola da vida, centrados no ensinamento e na mensagem de vida de Jesus.
A imagem de Jesus educador atravessa os evangelhos. De fato, o cristianismo é um projeto de educação messiânica, uma escola de vida universal, fundada por Jesus na Galileia.
Seu ensinamento entrou em conflito com os representantes do judaísmo oficial, centrado no templo e na prática da lei, e com o poder romano, que não admitia um ensinamento diferente. Jesus foi perseguido e morto por seu magistério, mas sua mensagem foi recolhida e expandida pelos seus discípulos.
Jesus não fundou uma escola de especialistas, mas quis educar a todos os homens e mulheres, nas vilas e campos, nas sinagogas, no Templo ou em suas próprias casas. Ele não tinha nenhum doutorado na Lei judaica, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre as leis. Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento estava centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus partia da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...
Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava.
Podemos afirmar que Jesus era um “pedagogo da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não tinha estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...
Jesus, o Grande Mestre, contemplava os rostos das pessoas e via, no interior delas, ricas possibilidades humanas, ainda latentes. Sua presença humanizadora reconstruía a humanidade ferida e abria sentido para sua existência.
No seu magistério, Jesus foi semeando humanidade, um conhecimento criativo e inspirador, que se fazia vida naqueles que escutavam e acolhiam sua palavra. Esta era a sua missão: ensinar aos homens e mulheres, para que fossem eles mesmos em liberdade, para que descobrissem e ativassem a verdade por dentro, sua verdade fontal, para que todos se guiassem e se ajudassem e, assim, fossem e vivessem em plenitude.
Frente aos sábios e entendidos, representantes do poder estabelecido, Jesus descobriu e cultivou a sabedoria de Deus nos pequenos que acolhem sua Palavra e se deixam transformar por ela.
O evangelho deste domingo nos diz que Jesus se encontrava na esplanada do Templo ensinando o povo, quando levaram até ele uma mulher surpreendida em adultério. De um lado, rostos dos fariseus e Mestres da lei, endurecidos pela lei, com pedras no coração e nas mãos; de outro, o rosto de Jesus, que transparece amor, compreensão, bondade. Suas mãos acolhedoras e seu coração misericordioso estão mobilizados para dar segurança e abrir nova possibilidade de vida à pecadora.
Uma “nobre” justificação era apresentada pelos escribas e fariseus e, assim, condenar uma mulher ao apedrejamento: “a lei” mata. Salva-se a lei, mata-se a pessoa.
A lei manda apedrejar; mas a lei não tem coração, não tem misericórdia; ela é fria, fixa no passado, condena e não oferece chance de um novo futuro.
É o eterno conflito do ser humano entre fidelidade à lei ou fidelidade ao coração. A fidelidade à lei prefere a morte do(a) pecador(a), prefere as pedras que ferem e matam; a fidelidade ao coração e ao amor prefere a vida do(a) pecador(a), prefere o abraço acolhedor que devolve a confiança e esperança de vida.
Partindo da perspectiva da lei, a mulher não tinha possibilidade nenhuma de viver; não havia saída nenhuma. Só a misericórdia poderia destravar a vida, colocar a mulher em movimento, arrancá-la do círculo legalista de morte e abrir para ela um novo e amplo horizonte de sentido.
A retirada de cena dos mestres da lei e dos fariseus é patética. É o sistema legalista e opressor que termina cedendo o lugar a uma nova relação, instaurada por Jesus, centrada na misericórdia. A mulher permanece aí, no centro, porque o sistema que decretava sua morte terminou. Agora, inicia-se um novo diálogo, entre Jesus e a mulher. Não é um diálogo inquisitório, mas uma oferta de salvação: esta mulher, humilhada e condenada por todos, envergonhada de si mesma, se encontra com Jesus que lhe diz: “Eu também não te condeno”. Desde modo, Jesus nos ensina que não se extirpa o mal eliminando quem o cometeu, mas oferecendo ao pecador condições de vida nova e plena. E a mulher, talvez, se sentiu profundamente amada pela primeira vez.
Jesus é o “pedagogo misericordioso” pois ativa nas pessoas as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e faz emergir nelas sua verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A força criativa da sua presença misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos da vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe sempre uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
O “princípio misericórdia” é o núcleo e a essência do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”. Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, abrindo caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destravando-nos e abrindo-nos em direção a horizontes maiores de coragem, responsabilidade e compromisso.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à nossa indigência. A misericórdia é expansiva, pois abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ela não se limita ao êrro e às fragilidades, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano. A misericórdia, portanto, não só é a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a essência do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela, igualmente, o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso, ela é o atributo que mais humaniza as relações entre as pessoas.
Fundamentalmente, a misericórdia significa assumir como própria a miséria do outro, inicialmente como sentimento que comove, mas que, logo em seguida, leva à ação. A misericórdia parte das “entranhas” e se dirige instintivamente ao próximo na forma de presença, acolhida, compaixão, ternura e consolo. Misericórdia é exatamente: “ter coração” para o outro, dando preferência aos mais frágeis e limitados.
A misericórdia é a caridade que “toma mãos e pés”, ou seja, o amor que se expressa em uma ação decidida e generosa, capaz de transformar e libertar.
Ser presença misericordiosa é um “modo de proceder”, um “estilo de vida” que não está ligado a uma transgressão; é muito mais um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não se fixa no que o outro merece, nem se escandaliza com sua miséria.
"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, não como justos”. A misericórdia é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade e bondade. Por isso, a presença misericordiosa é força que provoca no outro a redescoberta de sua própria identidade (uma pessoa amada e acolhida pelo Deus misericordioso).
Quem é misericordioso está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparenta ser.
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Uma vez mais somos chamados(as) a aprender de Jesus, que sempre olha o que há de mais autêntico em cada pessoa, isto é, a imagem de seu Pai.
- Entrar no movimento da misericórdia nos humaniza e nos cristifica. Como seguidores(as) de Jesus, somos seu coração, seus olhos, suas mãos e seus pés juntos aos que mais sofrem rejeições, julgamentos, condenações...; somos “canais de misericórdia” por onde flui a Misericórdia e a Compaixao de Deus Pai-Mãe.
31.03.22
"...este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32)
Lucas, o poeta da misericórdia, soube pintar com palavras a parábola de Jesus que tanto nos comove.
Por que a parábola do “Pai Misericordioso” nos comove e provoca tanta ressonância em nosso interior?
Evidentemente, a parábola fala dos nossos anseios mais profundos: de retornar de terras estranhas para nosso lar, de sair da insignificância para encontrar nossa essência, de deixar a morte para trás e voltar à vida. É o desejo que nos diz que, independentemente da situação em que nos encontremos e de quão perdidos estejamos, sempre é possível mudar a direção de nossa vida perdida, retornar e encontrar nosso verdadeiro lar.
Na realidade, a parábola deixa claro o que nos distancia e nos aproxima do nosso ser essencial.
Toda a parábola do “Pai Misericordioso” acontece entre dois polos: distanciamento e proximidade.
Quando Lucas escreve que o filho mais novo “partiu para uma região longínqua”, ele se refere a uma quebra drástica da maneira de viver, pensar e agir que ele recebeu como um legado sagrado através das gerações, e uma traição aos valores cultuados pela família e pela comunidade.
O “país distante” é o mundo no qual não se respeita o que em casa é considerado sagrado.
As consequências da ruptura com o pai serão a miséria extrema e a degradação máxima. Quando atravessou o limiar da casa paterna e deu as costas ao pai, o filho estava partindo para a solidão, para a alienação, para a perdição.
No início, parece que só o filho mais novo estava longe do pai e da sua casa: lá, numa situação de extrema miséria e morte, ele sente saudades da casa do pai e da presença do amor e da vida que ali reinava.
Mas, a volta do filho “distante” ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o “perfeito”, que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante.
O “filho mais velho” apresenta uma aparência de perfeição que camufla um medo de viver, uma falsa submissão, uma rejeição do outro, uma incapacidade para receber os dons do pai. Ele ignora que, para entrar na festa, é insuficiente não transgredir as leis, mas ter uma outra disposição do coração. Não é criativo, não assume nenhum risco. Percebe-se que ele não é feliz naquilo que vive: o peso da lei o torna uma pessoa amarga, cheia de ressentimentos, de julgamentos, de indiferença...
Por outro lado, o “retorno” do filho mais jovem deixa também transparecer a grandeza de um coração transbordante, quase inimaginável, de um pai absolutamente “surpreendente” e, “incompreensível”, no seu modo de lidar com os fracassos e limitações dos seus filhos.
Enquanto os filhos demonstram todo o seu “distanciamento”, o pai se aproxima, sempre mais, fazendo-os descobrir não só o fato de serem filhos, mas também de irmãos.
Para ambos os filhos, torna-se necessário percorrer a estrada do “retorno reconstrutor”, não só para a redescoberta do próprio pai, mas também, da própria dignidade e da verdade sobre si mesmos.
O filho mais novo, decidido a uma realização pessoal e autônoma, distancia-se daquela casa, onde tudo parecia ser muito tranquilo e monótono. No entanto, quando se encontra em estado de completo abandono, com a ameaça da morte diante dele, volta, em seu coração, a lembrança de casa e a saudade da segurança, que lá podia encontrar com abundância. Enquanto estava mergulhado nas trevas da morte, a luz da vida, finalmente encontra espaço nele.
Então a lembrança se torna decisão; a decisão... caminho, retorno... aproximação. No momento de maior distanciamento e solidão, esse filho se dá conta, em seu íntimo, da proximidade da ternura e do amor do pai. A centelha que ilumina o caminho, que conduz à liberdade e à vida, se manifesta precisamente nas trevas da derrota, da morte, da falência, da miséria...
A lembrança e a saudade da casa do pai se tornam caminho no coração do filho distante, exatamente no pior momento da sua existência: ele não tinha mais nada, nem dignidade e nem comida para sobreviver.
O fracasso, a impotência, a limitação... podem se tornar momento regenerador e inédito: o encontro do caminho da liberdade e da vida. À luz da misericórdia, o fracasso, a derrota, a ferida... se revelam como bênção e uma ocasião privilegiada para a quebra do “ego inflado e autosuficiente”.
Na solidão e na indigência, o filho, que estava “perdido”, contemplou o rosto amoroso de seu pai e encontrou a força para levantar-se e ir bater à porta de casa.
Aquele filho que antes era “pedra de tropeço” agora se torna “pedra angular”, sobre a qual se derrama a misericórdia gratuita do pai e sobre a qual se constrói uma história nova, que envolve todos os que vivem naquela casa.
Os dois filhos, apresentados a nós nessa parábola, têm trajetos fundamentalmente distintos; contudo, possuem em comum o fato de não conhecerem de verdade o Pai e o fato de não terem nenhuma consciência das consequências de suas rupturas. Um, está seguro de saber o que quer: partir, estar em outro lugar. O outro, tem a certeza de estar no caminho certo: o dever.
Ambos perderam o caminho do coração. Um, esqueceu-o; o outro, endureceu-o.
Nenhum deles tinha vivido uma relação sadia com o pai: nem aquele que partiu, nem aquele que permaneceu a seu lado. Ambos perderam a sua fonte e não recebiam mais a água do amor. Não eram mais iluminados a partir do coração; tornaram-se cegos. Caminhando dia e noite, vão tropeçar: um, na desordem; o outro, no excesso de ordem.
O fracasso do filho mais novo e sua volta imprevista abalarão a ambos; um será sacudido pela tristeza, pelo fracasso, pela humilhação; o outro, pela revolta, pela explosão de uma raiva reprimida há muito tempo. O retorno foi um acontecimento revelador, para os dois, de um possível ponto de partida para uma nova vida, de uma ocasião oferecida para a recuperação da dignidade de filhos.
“E foi ao encontro de seu pai”. O filho mais novo muda de direção. Vira-se, dá meia-volta, abandona o caminho de morte e decide não cuidar mais dos porcos. A memória da misericórdia do pai o torna capaz de colocar-se a caminho. Não se imobiliza mais na infelicidade, no vitimismo, na culpabilidade estéril: é o tempo da determinação, da opção em favor da vida e da comunhão.
O filho pródigo reencontra o movimento da vida. Sabe tirar proveito de um acontecimento catastrófico. Decide retomar o caminho de casa a partir do estado em que se encontra, mesmo não tendo uma clara compreensão de tudo, mesmo quando sua preocupação primordial é a sobrevivência. Está pronto para assumir esse retorno sem glória, pois agora é livre. É iluminado por um desejo encontrado no fundo de si mesmo: “levantar-me-ei e irei ter com meu pai”. Renuncia às antigas vestes, entra numa vida renovada, pois percebe a possibilidade de dar um passo em direção à vida.
É então que vai viver, nos braços do pai, o encontro que irá fazer dele um filho. Quebra-se o seu coração autosuficiente, e ele está pronto a deixar-se moldar. A misericórdia do pai o reconstruirá como filho.
Segundo o texto evangélico, o pai não diz uma única palavra ao filho no momento em que o acolhe.
Ele deixa transparecer seus sentimentos através dos gestos: corre ao seu encontro, abraça-o e cobre-o de beijos. Não há aqui o menor sinal de rejeição ou repreensão. Antes que o filho diga algo, o pai é acolhida total, compaixão visceral, perdão incondicional.
O relato evangélico acentua, em primeiro lugar, a compaixão e a ternura sentidas pelo pai.
Ele viu o filho no caminho de volta para casa “quando estava ainda longe”. Na verdade, não tinha deixado de esperá-lo, com o coração e com os olhos, desde o dia inesquecível em que o filho saíra de casa. Este tinha, sim, partido; mas nunca tinha se afastado do afeto, do amor sofrido do pai, que contemplava todos os dias, com sua vista cansada e com os olhos do coração, o caminho percorrido pelo filho, na esperança de vê-lo voltar.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: Diante do Pai Misericordioso, perguntar a si mesmo:
- o que em mim está “perdido”, “distante”, “isolado”...?
- o que em mim é “dever”, “ressentimento”, “legalista”...?
- o que em mim é acolhida, compaixão, proximidade...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.03.22
Imagem: Rembrandt -
“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc 13,8)
Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?
Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.
“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos mais nobres e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.
Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.
Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos “sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro; petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...
Desenraizar-se é desumanizar-se.
A “nova radicalidade” é a maneira original de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.
Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.
Superfície significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior, desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso, paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada.
Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas.
No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).
A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de “levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.
Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de quem é e como quer viver...
Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.
A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido: abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.
Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do encontro com nossa verdade pessoal.
A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando frutos.
Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.
Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como adubo.
Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a faz florescer.
A questão está em como cavar, que adubo depositar e que frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.
Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se empobrecerá.
É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências asfixiantes e atrofiantes... que limitam a liberdade de Deus em atuar em nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior, reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que está situada nossa “figueira”.
Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus” estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de nossa terra interior.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação.
Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.
- o que está “estéril” em sua vida?
- quais são e onde estão as raízes onde seu coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que deem frutos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.03.22
Imagem: pexels.com
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