“Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se… e começou a ensiná-los” (Mt 5,1-2)
No próximo domingo (32º do Tempo Comum) celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus. Ela nos recorda ainda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.
Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.
Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.
Somos santos(as). Não somos santos(as) porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados(as). Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro.
O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra-chave: “Felizes”.
A felicidade, proclamada por Ele no evangelho deste domingo, é já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da pessoa de Jesus e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério.
Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do seu ministério. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.
A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade.
As Bem-aventuranças não, portanto, são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da santidade de Deus na história da humanidade.
Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama “fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.
Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.
As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamental” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas...
Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresen-tar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.
Santos e santas são todos aqueles e aquelas que vivem com sentido e inspiração a vida de cada dia, deixando transparecer a “faísca de santidade” que o Deus Santo colocou no coração de cada um.
A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.
“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para tornar carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.
O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).
É na vida cotidiana, com seus desafios, onde se tece a santidade e não em outro lugar. Pois a santidade não é uma questão de “separados” e de “segregados”, mas de viver a inserção na realidade até o mais profundo, inspirados na maneira original de Jesus “estar no mundo”. A grande maioria vive a santidade no anonimato ou, quando muito, na memória dos seus mais próximos ou daqueles a quem lhes causaram admiração pro-funda ou de quem aprenderam que viver de verdade podia ser feito de outra maneira; são tantos e tantas por quem sentimos admiração, respeito e desejo de imitá-los para dar um sentido diferente às nossas existências.
Homens e mulheres que se deixaram e se deixam moldar pelo amor, porque descobriram e descobrem que essa era e é a maior das riquezas, a única que lhes podia e lhes pode fazer felizes de verdade; deram-se conta, ao mesmo tempo, que, comunicando esse amor podiam fazer felizes também a outras pessoas. Um “amor” oblativo, sem credos nem ideologias; um amor que vai além da raça, cultura, condição social. Um amor que procede da intimidade mais profunda de seus corações, lugar exclusivamente reservado para o mais absoluto e infinito dos amores: o Deus de Jesus.
Nenhum desses santos e santas terão seus devotos, nem estão sobre os altares dos templos e ninguém escreverá livros sobre eles e elas; no entanto, são aqueles(as) que viveram e vivem o cotidiano criativo nos altares da vida, do compromisso e do serviço. Para eles e elas o melhor dos altares foi e é sua consciência. E o único e grande devoto é o próprio Deus que acreditou neles(as) desde o princípio e continuará fazendo por toda a eternidade: “Sede santos porque eu Sou Santo”.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princí-pio vital que é o Divino em cada ser. A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.
- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.11.2022
“Que vossos rins estejam cingidos e as vossas lâmpadas acesas” (Lc 12,35)
A morte, sempre estranha e, com frequência, incômoda; e no mundo ocidental ela fica escondida em locais funerários, afastada do ambiente familiar. Sem cair em extremismos, este fenômeno diz respeito a um dos problemas que temos como cultura: falar da morte nos dá medo, mesmo sabendo que é uma das poucas certezas que temos. Preferimos ridicularizá-la, negá-la ou silenciar, antes que reconhecer que é uma dimensão de nossa vida que não podemos ignorar. E é questão de tempo, sempre termina por chegar, em ocasiões de uma maneira inesperada: tantas vidas ceifadas, tantas mortes prematuras, tantas histórias truncadas em muitos lugares de nosso mundo.
São mães, pais, maridos, mulheres, irmãos, filhos, amigos, avós, vizinhos, companheiros de trabalho, de comunidade...; tantos que faleceram por diferentes causas e que estão presentes em nossa memória, na lista de ausências. A morte traz dor pela ausência, saudades pelos momentos que se foram, desejo por um presente no qual não estão. Na fé, que ajuda a trazer um horizonte de sentido, a memória dos que partiram desperta também uma profunda gratidão pelas vidas daqueles(as) que amamos, pelas “marcas” que deixaram em nossas vidas, pelas presenças inspiradoras que despertam uma serena consolação, pela esperança de que, um dia, de outro modo, voltaremos a nos encontrar e não haverá mais tristeza, nem pranto, nem dor... Eles e elas, na vida foram, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de “nascer” em Deus.
A vida se transforma no coração da Vida, em Deus. Então, vale a pena, no dia de hoje, ativar a “memória agradecida”.
Neste Dia de Finados, passarão por nosso coração e pela nossa memória, de um modo muito especial e íntimo, aquelas pessoas que foram e são parte de nossa vida e que, ao fazerem a “travessia” para outra margem continuam presentes, amando-nos e sendo amadas por nós. Precisamos parar um momento e acender uma vela por dentro, e escutar. Escutar os ecos que suas presenças nos deixaram, suas palavras, seus gestos... Quê palavras, olhares, gestos não quero esquecer das pessoas de minha vida que já não estão mais aqui? Segundo Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, ficam encantadas no nosso coração e na nossa memória.
Finados é um “dia memorial”: memória agradecida que não nos fixa na saudade do passado, mas, nos ins-tiga a prolongar na nossa vida o modo original de viver de tantas pessoas que agora estão “no coração de Deus”. Este é o objetivo dos ritos de finados: ajudar-nos a processar a vida, a morte, a dor, a alegria..., carregados de oração e emoção que move nosso interior à contemplação.
Eles e elas continuam estando presentes, não só na esperança de futuro. Continuam estando em nós que os recordamos (visitamos de novo com o coração). Continuam presentes no amor que partilhamos, na memória dos abraços que ninguém pode nos arrancar, nas imagens que cada um registra em nossa memória, nas conversações que nos constroem, nas canções que nos fazem evocá-los, no sorriso com o qual acolhemos uma lembrança, naquilo que deles(as) aprendemos, nos sentimentos mais elevados que os fazem sentir orgulhosos de nós. Continuam estando em nós, porque quando amamos, decidimos que alguém permaneça conosco para sempre. Até mais além da vida; até mais além da morte.
Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no inte-rior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aque-les(as) que já vivem a Páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.
Sabemos que dentro de cada pessoa encontra-se o desejo de eternidade gravado no coração. É um desejo instintivo de transcender-se para além dos limites que nos apresentam o cotidiano, a rotina, a evidência de que pouco a pouco nosso corpo se deteriora.
Por isso, costumamos nos referir à vida em termos de caminho, itinerário ou processo no qual o traçado do mesmo são nossos próprios passos, um processo em constante ascendência, inevitavelmente atravessado por dificuldades, sofrimentos e crises. E enquanto caminhamos e ascendemos vamos nos dando conta de que o verdadeiro progresso se dá “para dentro”. E o horizonte de eternidade vai se vislumbrando.
A vida é simplesmente eterna. E ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte, pois ela representa a porta de ingresso ao mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo, mas só a eternidade.
Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.
Neste Dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento.
Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.
A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...
Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memó-ria amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recor-damos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.
A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.
Portanto, como seguidores de Jesus, no Dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitu-de dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.
A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o ins-tante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.
Texto bíblico: Lc 12,35-40
Na oração: Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial. Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criar, recriar, a transformar, a renovar e “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo outro e pleno de vida.
- No “silêncio memorial” cala a palavra, mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio pleno de Deus. Deixe vir à tona a presença de pessoas que fizeram “diferença” na sua vida. Alimente gratidão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.11.22
Imagem: pexels.com
“Então, ele correu à frente e subiu numa figueira para ver Jesus, que devia passar por ali” (Lc 19,4)
O Evangelho revela um mundo povoado por encontros e desencontros, numa rica variedade. Jesus se encontra com amigos e opositores, ricos e pobres, homens e mulheres, indivíduos, grupos e multidões, Deus, seu Pai. Algumas vezes é Ele quem toma a iniciativa para o encontro, e outras vezes são os outros que o encontram, pois já o estavam buscando ou se cruzam com ele casualmente.
Seus encontros e desencontros tem lugar no interior das casas, nas sinagogas e inclusive no templo, mas também no caminho e ao ar livre, no campo e à beira-mar, andando, sentado, de pé, numa barca ou num monte. O lugar de encontros e desencontros acaba sendo a vida, e nenhum de seus espaços fica à margem. Jesus se encontra e se deixa encontrar a partir de carências humanas, necessidades e desejos, insatisfações, marginalizações e irregularidades.
Jesus, com sua presença inspiradora e provocativa, transforma os espaços de encontro, mudando seu sentido, de forma que qualquer lugar é lugar adequado para estar com Ele, ao seu lado ou à sua frente.
Os encontros, além disso, são progressivamente inclusivos e reveladores do ser humano: quem se encontra com Jesus ou é encontrado por Ele fica a descoberto, desvela seu interior e mostra quem é no fundo de si mesmo. Por outro lado, os encontros contribuem também para clarificar a identidade de Jesus. Revelam quem e como é Jesus. E desvelam quem é e como é cada um.
Essa é a nossa vocação enquanto seguidores(as) de Jesus: converter a “indiferença” em “encontro”, o diferente em convidado, o estranho em amigo, e criar o espaço livre e sem medo, no qual a fraternidade pode ser experimentada em plenitude.
Na realidade, aqui se trata de um movimento expansivo onde se dá a travessia da indiferença ao encontro. Tal passagem é repleta de dificuldades: nossa sociedade é marcada pela presença de pessoas temerosas, defensivas e agressivas, agarrando-se ansiosamente ao seu modo fechado de viver, inclinadas a olhar ao redor com suspeitas, sempre à espera de que um inimigo apareça de repente e cause algum dano.
A indiferença e a hostilidade campeiam nas redes sociais e a xenofobia circula como um veneno: daí a agressividade preconceituosa no campo político-social-religioso-racial-sexual... De fato, ultimamente, os “estranhos” e “diferentes” tornaram-se mais sujeitos à hostilidade do que à hospitalidade: protegemos nossas casas com cães e trancas duplas, nossos edifícios com vigilantes, nossos colégios com guardas, nossas estradas com policiais, nossos aeroportos com seguranças, nossas cidades com polícia armada...
Nosso coração pode querer ajudar os outros e mostrar simpatia para com os pobres, solitários, rejeitados, minoritários...: no entanto, rodeamo-nos com um muro de medo e de sentimentos hostis, evitando instintivamente pessoas e lugares que possam nos lembrar de nossas boas intenções.
Em um mundo tão competitivo, mesmo pessoas próximas, como colegas de classe, de equipe, de trabalho, todos podem ficar infectados pelo ódio e pela hostilidade quando sentem o outro como uma ameaça à sua segurança pessoal. Muitas vezes, instituições criadas para oferecer espaço e tempo propícios para o desenvolvimento dos encontros hospitaleiros (família, escola, religião...), tornam-se tão dominadas pelo “defensismo” hostil que acabam atrofiando e bloqueando o melhor que cada pessoa traz em seu coração.
Encontro hospitaleiro não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas divisórias. A hospitalidade não é um convite sutil para adotar o estilo de vida do anfitrião, mas a dádiva de uma chance para que o hóspede descubra o seu próprio estilo.
Vamos contemplar uma cena típica de encontro, no evangelho de Lucas deste domingo. Os protagonistas da cena, Jesus e Zaqueu, são duas pessoas completamente diferentes entre si, diametralmente opostas; porém, procuram-se mutuamente.
O encontro de ambos acontece na estrada, onde caminham, onde ocorrem os acontecimentos do dia a dia, onde a vida transcorre, onde passam os dias e os anos.
A agitação, a pressa e o entusiasmo, com os quais se pôs à procura do Mestre, eram a clara demonstração de que surgira em Zaqueu uma estranha inquietude.
O nome e a pessoa de Jesus tiraram o véu que encobria o vazio de seu coração, a solidão na qual se encontrava, a insignificância de seus próprios dias.
Para saber “quem é Ele” é preciso sair da multidão; Zaqueu não fica constrangido em subir nos galhos de uma árvore e aguardar; este seu gesto abre possibilidade para que Jesus o veja, o chame pelo nome e o convide a descer depressa, pois deseja ficar em sua casa. Situar-se sobre os galhos pode ser um bom ponto de partida para iniciar um encontro. Mas, Zaqueu não pode permanecer aí; é como se Jesus dissesse: “Não fique aí, acima dos outros, no alto de sua vaidade! desça até às raízes de sua vida! o decisivo acontece nas profundezas de sua casa interior; descerei com você para cearmos juntos”.
Um convite que desfaz os medos e as culpas de quem se sabe pecador e que abre um espaço de esperança, permitindo-lhe uma mudança de vida. Não há no relato nenhuma palavra de condenação e sim uma certa urgência em “descer depressa”. Jesus não quer desperdiçar a oportunidade de viver um encontro com aquele que não podia encontrar-se com ninguém, pois era um explorador. Também Zaqueu não desperdiçou a oportunidade e recebeu Jesus com alegria em sua casa.
Em Zaqueu aconteceu uma mudança de perspectiva decisiva, radical. Anteriormente contemplava os outros a partir dos galhos do próprio ego.
Agora ele não está mais sozinho e não se sente mais uma pessoa insignificante. O olhar do Mestre de Nazaré encheu-lhe o coração; a sua casa não está mais vazia; a tristeza não o sufoca mais. Finalmente, ele descobriu a luz de um olhar e experimentou a ternura de ser procurado e amado.
Não foi preciso que Jesus dissesse muitas coisas a Zaqueu para que este encontrasse um tesouro em seu interior, muito maior que todas as riquezas acumuladas; seus desejos desordenados ficam polarizados por aquele hóspede inesperado que vai transformar daí em diante sua vida: compartilhar o que tem com os pobres e devolver com medida generosa aquilo que roubou. O encontro com Jesus faz Zaqueu alargar seu espaço interior para se encontrar com os outros; ou melhor, amplia seu coração para deixar os outros entrarem em sua vida. Um encontro que desencadeia outros encontros.
Zaqueu, um personagem instigante em quem nos vemos; seu modo de proceder des-vela atitudes de todos nós. Quem de nós não precisou afastar-se da multidão e subir a um lugar mais alto para poder ver por cima dos obstáculos? Há sempre em nossa vida momentos nos quais, por algum motivo, queremos “ver mais além”, ampliar nossos horizontes, sair de nossos espaços estreitos e rotineiros. Há muitas coisas que nos impedem sonhar mais alto, respirar novos ares, ativar o espírito de busca... Precisamos fazer alto diferente, sermos mais ousados e criativos...
Os galhos de uma árvore podem oferecer uma visão mais ampliada da realidade, do contexto social, mas não podemos permanecer aí; é preciso descer ao chão da vida; no meio dos galhos não há possibilidade de viver a acolhida e o compro-misso com o outro. Situar-nos sobre os galhos não pode ser uma atitude permanente. Alguém, lá de baixo, nos apela: “Desça depressa, pois hoje devo ficar em sua casa!”.
Texto bíblico: Lc 19,1-10
Na oração: Todo encontro transformador implica “troca de olhar”. Olhar para Jesus provoca, convoca, exige descer dos galhos da acomodação, da “zona de conforto” e tomar posição. Olhar para Ele e ser por Ele olhado implica disposição, exposição, compromisso para com a mudança. Nada estático, intimista, mas dinâmico, impulsionador de nova vida, novos envios, nova missão...
- “Desça, acompanhado(a), à raízes de sua vida”: quais as verdadeiras “riquezas” alí escondidas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.10.22
Imagem: James Tissot
“O publicano voltou para sua casa justificado” (Lc 18,14)
Se algo fica patente no Evangelho deste domingo é a denúncia, por parte de Jesus, do perfeccionismo farisaico. Fariseus de ontem e de hoje. O tão proclamado “ideal de perfeição” chega a enraizar-se tão profundamente na vivência religiosa que acaba produzindo consequências desastrosas para as pessoas. A busca de perfeição torna-as rígidas, legalistas e intolerantes; seu “deus” é pura projeção de sua rigidez e moralismo: um “deus desumano” que cobra até o último centavo e ameaça sempre com o “inferno”.
A Bíblia nunca nos apresenta, como modelos de fé, pessoas perfeitas e sem falhas, mas sim, justamente pessoas marcadas pela fragilidade e fracasso e que colocaram sua esperança unicamente em Deus, ao invocarem-no do fundo do abismo.
Jesus, através de uma simples parábola, desmascara uma religião centrada no moralismo e no julgamento dos outros. Nesta parábola, Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.
Ambos vão ao templo e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.
De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.
Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes, seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.
A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.
Na sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia. O publicano, no entanto, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.
Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração auto-suficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transformar a pessoa.
A palavra latina “humilitas” está relacionada com “húmus”, com terra.
Ser “humano” é reconhecer-se terroso, argiloso; é por essa razão que somos todos irmãos já que somos todos feitos de argila. Somos “argila” e devemos cuidá-la, cultivá-la e fornecer-lhe as condições para mantê-la aberta ao Transcendente. A “humildade” é a própria essência do ser humano; ela é a própria condição para ser aquilo que se é: para ser “humano”. Essa é a verdade de nossa humanidade.
Somente o humilde, que está preparado para abraçar seu húmus, sua humanidade, sua fragilidade, sua sombra, experimentará o Deus verdadeiro.
Só a aceitação de sua verdade completa conduzi-lo-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não o perceber supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.
Numa espiritualidade perfeccionista, o ideal é o ser humano puro, sem defeitos nem fraquezas. Mas isso leva a um rigorismo moral, contra quem se dirige a parábola do “publicano e do fariseu”.
Aqui está a aparente contradição da espiritualidade cristã: nós “subimos” para Deus precisamente quando “descemos” à nossa realidade humana.
Nesse sentido, o caminho para Deus não é visto como uma estrada de mão única que nos leva sempre para o alto, em direção às virtudes e à perfeição. Pelo contrário, o caminho para Deus passa pela limitação e fragilidade, pelos erros e desvios enganosos, pelo fracasso e pela decepção consigo mesmo.
Quem se identifica com “ideais” muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.
Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.
Na parábola acima mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da super-exigência, que se identifica com a imagem idealizada de nós mesmos e se alimenta do orgulho. Mas junto a ele, e com frequência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se porque não se sentiu reconhecido em sua verdade nem aceito em seus limites.
A parábola revela-nos que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil realidade, em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em gratuidade e em gratidão.
A parábola nos fala da necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre publicano interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.
Será justamente a partir da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir à experiência da gratuidade; é quando nos encontramos sem nada que sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça divina.
Segundo a espiritualidade que parte do “chão da vida”, ali pode estar a maior de todas as chances, ali pode estar também nosso tesouro. É ali que entramos em contato com nossa verdadeira essência. E é ali que alguma coisa poderá ganhar vida e desabrochar.
Dorotéo de Gaza disse certa vez: “Teu entulho seja teu pedagogo”.
Onde nós caímos, onde nos afastamos de Deus, é que aprendemos uma lição, a lição que a busca da perfeição não é capaz de nos ensinar. Justamente onde nos deparamos com nossas fraquezas pessoais é que nos tornamos abertos para Deus. Na nossa fraqueza somos capazes de reconhecer a Vontade que Deus tem para conosco e o que Ele poderá fazer de nós quando Ele realizar totalmente sua graça em nós.
Deus nos educa justamente também através de nossos fracassos, através de nossos escombros.
“Descer” à nossa realidade, significa considerar a experiência da impotência e do fracasso como o lugar da verdadeira oração e como chance de chegarmos a uma nova relação pessoal com Deus.
É decisiva a reconciliação com todas as paixões, com todas as feridas, com todas as fragilidades..., pois todas elas podem levar-nos a Deus. Não é preciso outra coisa senão “descer” até onde elas se encontram e interrogar o que elas têm a nos dizer. Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus: descobrir novas possibilidades de vida e de encontro com Deus.
O Amor de Deus se mistura com nosso pobre amor, de modo que os dois se tornam um: eis o despertar do coração! Eis a verdadeira espiritualidade!
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: Quando nos vemos demasiadamente organizados, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos, ansio-sos, agressivos..., agiríamos bem perguntando-nos o que o nosso “ego” perfeccionista está escondendo.
- Quais são as “marcas” da perfeição impregnadas no seu interior pela formação familiar, pela religião...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.10.2022
Imagem: James Tissot
“E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por Ele?” (Lc 18,7)
Na oração, mergulhamos em Deus e liberamos em nós profundidades que desconhecemos. Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Descobriremos recursos, potencialidades de conhecimento e de amor ainda inexploradas, que nascerão para a vida sob a ação do olhar de Deus. Ele é a verdadeira fonte do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Quando mergulhamos nas profundidades do oceano interior ficamos fascinados pelo esplendor daquilo que contemplamos. Esse mundo de silêncio e riquezas torna-se inesquecível para nós.
O evangelho deste domingo (29º Domingo do Tempo Comum) nos ajuda a buscar inspiração para a chamada “oração de petição”. Não pedimos humilhados, temerosos, como o servo diante de seu senhor. Não se trata de “informar” a Deus, mas “educar nossos olhos” para descobrir sua presença amorosa e providente; não convencer a Ele, mas convencer-nos, animar-nos e converter-nos para entrarmos no fluxo do Amor divino.
Então, todos os sentimentos e desejos, situados em sua justa relação, podem brotar no nosso coração orante: agradecer, adorar, deixar-nos inundar pela confiança e perdão...
O ser humano é um indigente que pede, descobrindo Deus em seu interior, pedindo com Ele e n’Ele. “Clamar” nos desperta para entrar em sintonia com a presença divina que nunca nos abandona.
Toda a vida é isto: pedir, buscar, clamar... Evidentemente, aquele que pede, busca e clama está se colocando em movimento, está caminhando, está saindo de si... A oração é mobilizadora, nos arranca da passividade e nos faz entrar em sintonia com o querer e o desejo de Deus: que vivamos intensamente. Tudo é de Deus em nossa vida, mas tudo é nosso. Nós vamos nos tornando mais gente (mais humanos) na medida em que somos oração.
Nessa direção se situa a parábola da viúva deste domingo, a quem a lei e o direito não lhe davam segurança; só lhe restava seu rosto indignado e seu grito suplicante para exigir justiça, sendo assim capaz de impactar e mudar o coração de um juiz iníquo.
Nas parábolas de Jesus aparecem muitas mulheres: a que perdeu a moeda (Lc l15,8-10), a viúva que depositou dois trocados no cofre do templo e era tudo o que tinha (Mc 12,41-44), a pobre viúva, corajosa, que enfrentou um juiz (Lc 18,1-8).
Elas nunca são apresentadas como discriminadas, mas com toda sua dignidade, à altura dos homens.
Na tradição bíblica, a viúva é, junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha, sem a prote-ção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que abusam dela.
Na parábola deste domingo, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persis-tência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.
A pobre viúva, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não ser sua voz para gritar e reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me justiça!”. Seu pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.
Podemos também interpretar a parábola do juiz e da viúva como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, os recursos que ainda não foram mobilizados, as possibilidades que não foram ativadas... Nele se faz visível algum traço do rosto do Deus vivo, afinal, nosso eu profundo é sua morada sagrada.
Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arro-gante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes, nos rejeita e nos condena constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.
Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância).
Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.
No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes.
Embora se trate de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.
Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz.
Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.
Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele nos julga capazes de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós; toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.
Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente.
Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.
O ser humano carrega dentro de si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – dimensão masculina e dimensão feminina da alma.
Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...
Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz é desarmado de sua arrogância.
Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa... Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.
Texto bíblico: Lc 18,1-8
Na oração: A oração concebida como clamor nos salva do intimismo narcisista e do individualismo. Ela nos re-situa como cria-turas finitas, mas também à imagem e seme-lhança de Deus e desejosas de comunhão e de justiça; ela nos faz sentir-nos corpo com toda a humanidade e a criação que geme dores de parto; ela já é o vislumbramento de outro mundo possível.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.10.2022
“Mestre, tem compaixão de nós!” (Lc 17,13)
“...atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu” (Lc 17,16)
Jesus está a caminho, quase chegando à etapa final da viagem: Jerusalém. A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus aos homens. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Entre Jesus e aquela estrada, que conduz a Jerusalém, há uma relação vital: Ele é o “autor” daquela estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à Cidade santa, à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Logo que Jesus entrou na aldeia, “dez leprosos” foram ao seu encontro. Pela narração do evangelista, temos a impressão de que não há mais ninguém na cena: Jesus parece estar sozinho com os leprosos. A aldeia se apresenta surpreendentemente vazia. É óbvio, os leprosos deviam estar separados e longe de todos.
Na verdade, a lepra era entendida como manifestação de uma condição de pecado.
Os leprosos, embora mantivessem a devida distância, vão ao encontro de Jesus, gritando.
Aqueles pobres miseráveis O buscam como o “misericordioso”: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
É uma oração surpreendente, na qual o homem de Nazaré é chamado pelo próprio nome.
Jesus, por sua vez, pousa sobre eles o seu “olhar” e os envolve com tanta atenção e sedução, que os dez não hesitam, nem um momento sequer, em pôr em prática, com confiança, a ordem que lhes foi dada: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”. Assim, Jesus se põe com eles na estrada da esperança, na estrada da experiência da solidariedade que cura e os acompanha, mesmo de longe, até aos sacerdotes.
A recuperação da saúde deles se torna também re-inserção na sociedade, no espaço familiar e na comunidade religiosa. Eles não serão mais rejeitados.
Dois sentimentos nobres são des-velados no relato deste domingo: a compaixão e a gratidão.
Dois sentimentos que se expressam como duas atitudes básicas na vida; por um lado, revelam a maturidade da pessoa e, por outro, tornam possível uma convivência harmoniosa e construtiva.
Mas, como toda arte, tais atitudes requerem um cuidado expresso e cotidiano. A partir do contexto e da situação em que cada um se encontra na vivência destes sentimentos nobres, sempre é possível dar passos nessa dupla direção, favorecendo conscientemente ser compassivos e agradecidos.
Considerados pecadores e condenados ao ostracismo, afastados de qualquer convivência social e de todo contato humano, com proibição expressa de se aproximarem de qualquer pessoa, os leprosos padeciam, esperando a morte, em colônias mais ou menos numerosas.
Compreende-se que, nessa situação, clamassem por compaixão. O ser humano sempre precisa que os demais “se coloquem em sua pele”, compreendam sua situação e seu comportamento. Mas essa necessidade se faz mais aguda quanto mais frágil e vulnerável se sente.
Esse é o significado profundo do termo “compaixão”: sentir com o outro e agir como consequência, buscando uma solução para a situação de extrema necessidade.
Jesus vive uma contínua travessia e sai ao encontro dos oprimidos e excluídos de todo tipo. Preocupa-se com todos os que encontra em seu caminho, sobretudo aqueles que estão atrofiados em sua vida. Sem a compaixão de Jesus, o relato seria impossível.
É da margem da exclusão que brotam os clamores por compaixão; e Jesus, com sua sensibilidade ativada, deixa-se afetar pelos gritos dos excluídos.
Os leprosos pedem compaixão a Jesus. Desejam ser compadecidos, perceber que sua desgraça não passa desapercebida e sentir o calor da compreensão de alguém significativo e com autoridade. Novamente, Jesus revela que só a compaixão não é suficiente e que permanecer na esfera dos sentimentos não soluciona o problema. Requer-se uma ação que ajude à pessoa a recuperar sua dignidade. Esta é a chave da misericórdia, ou seja, colocar o coração-ação na miséria humana e restaurá-la a partir de dentro.
A gratidão, por sua vez, tem a ver com nosso ser essencial, pois ativa o que há de melhor em nós.
Ela nasce do nosso eu profundo e flui por todos os membros, passa por todos os poros do nosso corpo. Não deixa sem tocar nenhuma parte do nosso ser. Abarca tudo o que somos e desperta o melhor que possamos imaginar ou que possamos aspirar.
No evangelho de hoje é, precisamente, alguém vindo de fora, desprezado pelos de dentro, o único que sabe reconhecer o dom recebido de Deus, dando uma magistral lição àqueles que não souberam agradecer.
Só um retornou para dar graças; só um se deixou levar pelo impulso vital da gratidão. Os outros nove (supõe-se que eram judeus), se sentiram na obrigação de cumprir o que a lei mandava: apresentar-se ao sacerdote para que lhe declarasse puro e pudesse ser reintegrado à sociedade. Para eles, voltar a fazer parte da instituição religiosa e social era a verdadeira salvação. Os nove voltam a submeter-se ao abrigo da instituição: vão ao encontro com Deus no templo e nos ritos. O Samaritano, no entanto, sentiu ser mais urgente voltar para agradecer. Foi aquele que se deixou conduzir pelo coração, porque, livre das ataduras da lei, se atreveu a expressar sua vivência profunda. Este, encontra a presença de Deus em Jesus. É mais importante responder vitalmente ao dom de Deus que o cumprimento de alguns ritos externos.
Pois, foi Deus mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensinou a “sermos gratuitos e gratos”.
A gratidão é um sentimento que enriquece as relações e eleva o “tom vital” da pessoa agradecida. Quem vive a gratidão manifesta um dinamismo aberto, cordial e animoso, praticamente imune ao desalento.
A gratidão nasce da vivência da gratuidade e caminha de mãos dadas com a aceitação de que tudo é dom. Quando se percebe que tudo é graça, não se pode viver sem agradecimento. E quando se vive em sintonia com a realidade, é possível dar graças por tudo o que dela provém, pois tudo traz uma mensagem e uma oportunidade.
O oposto ao reconhecimento da gratuidade é o narcisismo exigente e auto-referencial que se considera com “direitos” frente a tudo, numa postura egocentrada, incapaz de sair e si e dar valor ao que recebeu. A gratidão possibilita fluir com a vida, permitindo que se expresse livre e adequadamente através de nós.
A gratidão é uma arte que pode ser alcançada na medida em que é ativada. E o melhor caminho para isso é “dar graças” por tudo. Tudo é graça, de graça; somos seres agraciados, cheios de graça...
Cabe a nós, enquanto seguidores de Jesus, pensar-sentir agradecidamente e ter gestos de gratuidade.
Cabe a nós falar agradecidamente. A expressão “muito obrigado” é das primeiras que se aprende quando alguém se inicia em outro idioma. Ser agradecido se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o “gratuito” marca a pessoa por inteiro.
A vida nova vem da vida recebida e partilhada; ela nos coloca acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
Texto bíblico: Lc 17,11-19
Na oração: Criar um clima de ação de graças. Tudo é Graça.
Ponderar com muito amor tudo o que o Senhor fez por mim, por meio dos outros, da Criação e de minha história passada e presente. Como Ele me cumula de seus próprios bens. Tudo é dom de Deus; tudo foi criado por amor para mim (Deus providente).
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.10.22
“Quando tiverdes feito tudo o que vos ordenarem, dizei: ‘somos simples servos, só fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10)
Continuamos o percurso contemplativo, seguindo e aprendendo com Jesus. No evangelho deste domingo (27º Domingo do TC) temos a impressão de que Lucas recolhe afirmações do Mestre da Galiléia que, aparentemente, estão desconexas; no entanto, há um fio condutor muito sutil. Nos relatos anteriores, Ele nos pedia, de diferentes maneiras, para que não colocássemos a confiança nas riquezas, no poder, no luxo; e hoje nos diz claramente: “não coloques tua confiança em tuas ‘boas obras’”. Confia somente em Deus.
Os dois temas que o evangelho deste domingo nos propõe estão intimamente conectados; ou seja, devemos confiar somente em Deus e não nas nossas obras. Aqueles que passam a vida acumulando méritos não confiam em Deus, mas em si mesmos. A salvação por “pontos conquistados” é totalmente contrária ao evangelho. Esta era a atitude dos fariseus que Jesus criticou.
Também hoje é comum a atitude daqueles que não se identificam com Jesus e se limitam a cumprir alguns ritos, observar algumas normas e penitências, realizar algumas “obras interesseiras”.
Suas vidas não deixam transparecer a “fé em Jesus”; quando falta esta adesão pessoal viva, interiorizada, cuidada e confirmada continuamente no próprio coração e nas relações com os outros, a fé corre o risco de atrofiar-se, reduzindo-se à aceitação doutrinal, à prática de obrigações religiosas e obediência a uma disciplina. A vivência da fé cristã consiste primordialmente na identificação com Aquele que nos atrai e nos chama: “Vem se segue-me!”
No relato deste domingo, os apóstolos, depois de um tempo de convivência com Jesus, se dão conta de que lhes falta algo para poder compreender as exigências d’Ele. Por isso, suplicam: “aumenta nossa fé”.
Como de outras vezes e como bom “pedagogo”, Jesus não responde diretamente à petição dos apóstolos. Quer dar a entender que a fé não é questão de quantidade, mas de autenticidade. Além disso, a fé não pode ser aumentada a partir de fora; ela precisa crescer a partir de dentro, como o grão de mostarda.
A fé é um caminho, é uma “travessia” em direção a largos horizontes; e um desejo eternamente insatisfeito; é uma confiança continuamente renovada, um compromisso sem final.
A fé não se resume a um ato nem uma série de atos, nem uma adesão a uma série de verdades teóricas que não podemos compreender, mas uma atitude pessoal fundamental e total que imprime uma direção definitiva à existência. Confiar naquilo que realmente somos nos dá uma liberdade de movimento para desatar todas as nossas possibilidades humanas.
Na Bíblia, a fé é equivalente à confiança em uma pessoa, acompanhada da fidelidade. Nesse sentido, a fé é uma vivência em Deus; por isso não tem nada a ver com a quantidade.
Jesus denuncia a fé dos seus discípulos, que parece frágil, de pouco fôlego, incapaz de manifestar aquela força que muda a vida, o modo de pensar, de sentir e de agir.
A fé supõe o des-centramento de si mesmo e o reconhecimento de Deus como centro da própria vida, numa atitude de confiança incondicional; ela abre para o ser humano o horizonte infinito de Deus. Crer significa deixar Deus ser totalmente Deus, ou seja, reconhecê-lo como a única razão e sentido da vida.
É esta experiência de fé que desata as ricas possibilidades latentes em nosso interior. Com a imagem da amoreira que é transplantada, Jesus nos está dizendo que o dinamismo de Deus está já atuante em cada um de nós e nos possibilita viver profundas mudanças (sair de um lugar estreito, limitado... e lançar-nos a outro lugar amplo, desafiante...). A fé é experiência expansiva da própria vida, movida pela graça de Deus. Aquele que tem confiança em Deus, poderá desatar toda essa energia de vida.
Essa vida é o que de verdade importa. Por isso, crer em Deus é também confiar em cada ser humano e em suas possibilidades para alcançar sua plenitude humana.
Que alimentemos, portanto, dentro de nosso coração, esta fé viva, forte e eficaz. Fé que se visibiliza no serviço por pura gratuidade; ou, segundo S. Paulo, a fé que se realiza “pela prática do amor” (Gal. 5,6).
E Jesus ilustra isso com a pequena parábola do “simples servo”. Parábola dirigida àqueles que confiam em suas obras e exigem uma recompensa de Deus. Daí o perigo da soberba religiosa: comparar-se com os outros, colocando-se acima deles e fazendo-se o centro.
No Reino de Deus, somos todos servidores; nele não se trabalha por recompensa. Já é um privilégio podermos colaborar na obra o Senhor. A parábola revela que o trabalho a serviço do Senhor já é uma graça e a recompensa não pode ser exigida; ela é dom.
Não podemos fazer desse serviço uma “carreira”, com promoções, honrarias e prêmios. No mundo em que vivemos, a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Tudo tem um preço. Nossa mentalidade exclui todo espírito de serviço gratuito.
As “obras boas” não são um crédito que podemos apresentar a Deus; são, antes, a manifestação de que temos acolhido o amor de Deus e o manifestamos aos outros. Confiar em Deus é também incompatível com a confiança nos próprios méritos.
Há aqui o princípio ético que deve reger a conduta do cristão, diante de Deus e diante dos outros. É a atitude da inteira disponibilidade, a intensidade do compromisso, sem queixas, sem comparações e nem exigências. Uma ética e uma espiritualidade assim revelam um profundo e inexplicável humanismo.
Sabemos que Jesus desencadeou um movimento profético em favor da vida, mobilizando seguidores(as) a quem confiou a missão de anunciar e promover o projeto do Reino de Deus. Por isso, o mais importante para reavivar a fé cristã é ativar a decisão de viver como seguidores(as) seus(suas).
Nesta perspectiva, o critério primeiro e a chave decisiva para entender e viver a fé cristã é seguir Jesus Cristo. Quem o segue vai descobrindo o mistério que se revela n’Ele, situa-se na perspectiva correta para entender Sua mensagem e vai aprendendo a trabalhar a serviço do Reino de Deus. O seguimento constitui o núcleo, o eixo e a força que permite a uma comunidade cristã expandir sua fé em Jesus Cristo.
Por isso, mais que ter fé em Jesus, o decisivo é “viver a fé de Jesus”; e a fé de Jesus está intimamente vinculada à justiça do Reino, ou seja, comprometida com a vida.
Para Jesus, a fé não está vinculada a um catálogo de crenças, a uma doutrina, a uma religião, e sim, a um modo de viver e agir, profundamente sintonizado com o modo de ser e agir do Pai.
Deixando-nos afetar e seduzir pela identificação com Jesus, vamos nos revestindo das grandes atitudes e compromissos que Ele viveu na sua missão, sobretudo na relação com os mais pobres e excluídos, alimentando neles a esperança de um mundo novo, o Reinado do Pai. É isso que, como seguidores(as), temos de interiorizar e viver sempre.
Texto bíblico: Lc 17,5-10
Na oração: Fazer memória de tantas pessoas que, mesmo no anonimato de suas vidas, foram refe-rências na vivência de fé, integrando uma profunda ade-são ao Deus da Vida e o compromisso em favor da vida.
- Sua vivência de fé faz diferença na realidade em que você se encontra? Ela inspira, move, provoca... a sair das suas “normoses religiosas” (normalidade doentia centrada no legalismo, no moralismo, no ritualismo...)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.10.22
"Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico” (Lc 16,20)
O Evangelho deste 26º domingo do Tempo Comum nos traz, mais uma vez, uma parábola escandalosa e provocativa. O que Jesus quer nos comunicar através desta parábola que desperta tanto incômodo? A parábola do rico “epulón” e do pobre Lázaro nos inquieta e é inquietante, pois nos situa de novo diante da exigência do amor concreto e comprometido, como serviço ao próximo.
Na primeira parte do relato a ideia prevalente é que tudo o que fazemos repercute nos outros: a situação de Lázaro é consequência do mal proceder daqueles que apodrecem em suas riquezas. Os pobres não existem “porque sim”, mas por uma deficiente partilha dos bens e de uma insensibilidade diante de quem é vítima de uma estrutura social e econômica perversa.
A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata de uma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase familiar, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a de um descarte humano.
A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico. Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De fato, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses. Assim, a riqueza deste homem é ofensiva, inclusive porque exibida habitualmente: “Fazia todos os dias esplêndidos banquetes”
A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e passageira da existência. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio ego e, por isso, as pessoas que o rodeiam tornam-se invisíveis; seu olhar não as alcança. Assim, o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.
Ao ler ou escutar a parábola temos uma primeira impressão de que ela vai contra o evangelho, pois o rico é condenado por ser rico, por puro pecado de omissão. Pensamos que esta é uma parábola sem misericórdia: nem Deus escuta o lamento do condenado que pede somente umas gotas de água. Por que não se compadece do condenado?
Mas, lendo o texto com atenção e cuidado, como parábola-advertência, sentimos por dentro que é verdade o que diz: esta é uma parábola provocativa de Jesus, uma advertência profunda para aqueles que, petrificados pela riqueza, acabam correndo o risco de converter a terra em um inferno. Esta parábola nos fala mais do presente que do “mais além”; fala de tudo o que podemos mudar desde agora para ter um futuro melhor: um verdadeiro banquete, onde a única riqueza seja o amor compartilhado.
A parábola denuncia o abismo vergonhoso entre os próprios seres humanos; o que essa imagem nos revela é a ruptura que nossa indiferença constantemente produz, à qual, no entanto, não costumamos prestar atenção. Contra ela, já advertia Martin Luther King: “Quando refletimos sobre nosso século XX, o mais grave não parece ser as ações dos maus, mas o escandaloso silêncio dos bons”.
Por que caímos tão facilmente na indiferença? Sem dúvida, frente aos outros e frente ao mundo, ela esconde uma maior ou menor insensibilidade que, bloqueada ou endurecida, isola a pessoa em um caracol egocêntrico e a instala numa atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças e violências que diariamente vemos em nosso mundo.
Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.
O abismo que causa a dor de Lázaro é também o abismo que provoca a dor do rico. Nos dois “quadros” da parábola – simbolizados no antes e no depois da morte -, destaca-se com intensidade a ruptura como o motivo do mal. Pois bem, esta ruptura não é casual, nem é provocada por Deus, que castigaria o rico por toda a eternidade. É causada pela indiferença do próprio rico que, em sua cegueira, não “vê” o pobre jogado ao chão, à sua porta.
Em seu processo de desumanização o rico “epulón” fez das riquezas seu “deus”. Este “deus” matou seu coração, sua sensibilidade e sua humanidade; ficou sem entranhas de compaixão, pois ao seu redor já não existiam outras pessoas a não ser o seu ego fechado, isolado...
Como poderia ver aquele pobre homem desprezado ou chegar a saber seu nome, caído à porta de seu palácio esperando algumas sobras para comer? Lázaro tornou-se “invisível” para aquele que ficara cego por causa de suas riquezas.
O pobre está fora da porta, rodeado de cães da rua. O homem rico se encontra dentro de casa. Não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Na primeira parte, ambos se encontravam próximos um do outro; o texto realça a distância espacial que os separa (“um grande abismo”), mas, apesar da distância eles podem se ver e escutar um ao outro. É só abrir a porta.
O destino do rico “epulón” é o melhor espelho para ver a realidade tal qual ela é, essa que o mundo nos impede reconhecer: que o autêntico mendigo e indigente era ele, e que a solidão lhe oprimia em meio ao esbanjamento mais agressivo.
Muitas vezes, as portas protegem do encontro com o diferente, blindam a individualidade e parecem ser itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, o indivíduo se tornará um prisioneiro de sua visão de mundo e fará de sua casa uma couraça que protege. A riqueza pode ser um grande portão que impede ver o que há do outro lado; a púrpura e o linho podem ser um impedimento para ver os desnudos da rua; os banquetes podem obscurecer a capacidade de ver aqueles de estômago vazio, atirados à entrada do portão de casa.
No fundo, o que a parábola deste domingo denuncia é a falta de compaixão do rico para com o pobre; sua riqueza o torna frio, distante e petrificado.
Sabemos que a compaixão é o sinal mais claro de maturidade humana. A indiferença, pelo contrário, manifesta nossa imaturidade e atrofia nossa humanidade. A compaixão desperta o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade.
Quando acolhemos toda nossa realidade humana a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para conosco mesmo; assim, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.
A indiferença é, antes de mais nada, cegueira que alimenta uma insensibilidade diante da situação de penúria dos outros, petrificando-nos por dentro. Certamente, constitui um mecanismo de defesa, com o qual nos blindamos diante da necessidade e da dor dos outros – “olhos que não veem, coração que não sente” -; mas, em último termo, nasce de não “saber” que o outro é o nosso espelho: nele nos vemos e nele nos sentimos interpelados. Para isso é preciso abrir as portas do coração para viver a “cultura do encontro”.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: A parábola deste domingo nos fala também da necessidade de abrir a porta e acolher o que é rejeitado, ferido, desprezível... que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre Lázaro interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e cresceremos na sensibilidade frentes aos “lázaros” da vida.
- Diante do mundo da exclusão e da miséria, que sentimentos prevalecem em você: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.09.22
“Os filhos deste mundo são mais astutos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8)
O Evangelho deste domingo nos situa diante de mais uma parábola "escandalosa" de Jesus, ou seja, um relato impactante e provocativo, que ajuda a “despertar” o ouvinte ou o leitor.
Mas o que se trata na parábola não é da injustiça cometida nem da desonestidade do administrador, senão de sua astúcia. O objeto de louvor por parte de Jesus é a esperteza, a audácia e o empenho com que o administrador tira partido de uma situação presente tendo em vista garantir o futuro; Jesus elogia o admi-nistrador não porque roubou, mas porque teve presença de espírito, soube calcular bem as coisas e encon-trar uma saída honrosa, enquanto havia tempo. E a “saída” do administrador, ameaçado de desemprego, foi fazer “amigos” para depois.
A parábola, apesar das aparências, não está centrada no dinheiro, mas na “astúcia” do administrador.
E é então quando a parábola dá o salto “dos filhos das trevas” aos “filhos da luz”, tomando forma de denúncia ou alerta: todos somos “astutos” quando manejamos os assuntos do nosso ego, naquilo que tem a ver com seus interesses. Não aplicamos a mesma inteligência para aquilo que tem a ver com nossa verdade profunda. Precisamos estar atentos para viver coerentemente com o que realmente somos. Em uma palavra: vivemos nas “trevas” ou na “luz”?
Quanto investimos no mal e como somos preguiçosos e sem criatividade na vivência do bem! Não podemos continuar lamentando o mau que os outros fazem; devemos lamentar o bem que deixamos de fazer; não queixemos do mal que está no mundo; lamentemos daquilo que nós, seguidores(as) de Jesus, não fazemos para que nosso mundo esteja melhor.
Não lamentemos dos maus, mas dos inúteis que os bons costumam ser. A comunidade cristã não anda mal pelos pecados que há nela. Anda mal pelo fato de sermos poucos criativos e o pouco que os bons fazem por ela.
Jesus reconhece a esperteza dos filhos deste mundo utilizada para cometer delitos, enganar, roubar ou levar uma vida corrupta, e realça o modo de proceder daqueles que o seguem, ou seja, a necessidade de serem também astutos para fazer o bem e lutar pela justiça. Ele quer que os “filhos da luz” sejam criativos em favor do Reino: estejam atentos, sejam hábeis e permaneçam despertos e ativos para livrar-se do complicado e sutil combate contra os mecanismos do mal; neste caso, o que gera a ambição do dinheiro.
Não devemos imitar a injustiça que o administrador infiel está cometendo, mas utilizar a astúcia e a prontidão com que atua; ele é um filho deste mundo; é sagaz porque, em meio à situação desesperada de ser despedido do emprego, soube aproveitar da situação para preservar seus interesses. Com esperteza, com decisão e sem escrúpulos, aproveita o que lhe pode proporcionar vantagem para garantir sua vida futura.
E é aqui onde encontramos a chave de compreensão do relato: como “filhos da luz” precisamos agir de um modo inteligente, utilizando todos os recursos em favor da vida. Quem são nossos “amigos para depois”? São os cegos, os excluídos, os pobres em geral. Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar estes amigos. Essa Vida não é outra coisa que as “moradas eternas” de que fala o texto.
A mensagem do Evangelho deste domingo não só nos instiga a sermos mais astutos com os valores do Reino, mas também nos alerta para o perigo de afeição desordenada com relação ao ídolo dinheiro.
O dinheiro pode ser mediação para ajudar às pessoas, mas também pode se tornar o “absoluto” da existência. No fundo, o evangelho de hoje nos situa diante do maior dilema de nossa vida, diante da única pergunta na qual investimos tudo: quem é o “senhor” que determina nossa vida? Na prática, segundo a resposta que lhe demos, viveremos “para o dinheiro” (nas “trevas”) ou “para Deus” (na “luz).
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelo dinheiro (e outros afetos desordenados) e a paixão pelo Reino. “Ninguém pode servir a dois senhores”. Há uma incompatibilidade de ordem religiosa, porque a fé no Deus único impede a idolatria; uma incompatibilidade de ordem moral: não se pode servir, ao mesmo tempo, ao amor e ao egoísmo; e também uma incompatibilidade de ordem psíquica, porque não é possível experimentar a paixão pelo Reino e pelo dinheiro, ao mesmo tempo, sem divisão para o indivíduo.
Para os seguidores de Jesus, o amor não é apenas um preceito, é uma atitude de vida, que pede um total investimento afetivo. Por isso, o “afeto desordenado” ao dinheiro, como fonte de desamor, se apresenta não somente como problema ético, mas também como problema de crença, de fé.
A fidelidade ao Deus único fica interditada. E o caráter idolátrico que o dinheiro possui é ressaltado nos Evangelhos mediante o uso do termo “mamon” – a etimologia desta palavra parece referir-se à idéia de “depósito”, “provisão; mas na boca de Jesus parece adquirir um caráter de idolatria, na medida em que remete a um lugar que fornece “segurança” à existência.
Como todo ídolo, o dinheiro provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. De fato, a tentação do dinheiro tem suas raízes fundadas no pânico produzido pela insegurança. O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob nossos pés. Mais ainda: o dinheiro é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, retentiva, própria da posse do dinheiro, possui toda a força do narcisismo e da auto-afirmação infantil.
Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como “verdade” - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.
Temos medo de “perder pé”; por isso, com o dinheiro, pensamos agradar e robustecer nosso ego. Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.
Cada um de nós precisa encontrar a maneira de agir com sagacidade para conseguir o maior benefício no uso do “dinheiro”, não para alimentar nosso falso eu, mas para construir relações mais sadias, através da partilha. Se somos sinceros, descobriremos que, em nossa vida, confiamos muito mais nas coisas externas e muito pouco naquilo que realmente somos. Com frequência, servimos ao dinheiro e nos servimos de Deus. Proclamamos Deus como o Senhor, mas quem manda de verdade é o dinheiro. Deus é Amor gratuito, mas dinheiro quer tudo..., até a “alma”.
Aos poucos, o “dinheiro” vai se transformando em “senhor” que exige pesados sacrifícios e um alto investimento afetivo, esvaziando outras dimensões de nossa vida.
A criação da nova comunidade, como alternativa às relações perversas do mundo, passa necessariamente pela ruptura com o que se encontra na própria base da desi-gualdade e da injustiça, que é a afeição ao dinheiro.
Texto bíblico: Lc 16,1-13
Na oração: Seu compromisso com o Reino afeta seu “bolso”? Você sabe e sente a força de sedução que o dinheiro exerce e da capacidade que ele tem de atrofiar sua sensibilidade diante da realidade e dos outros?
- Quem é o “senhor” que move seu coração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.09.22
“Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! ... encontrei a moeda que tinha perdido!...
este teu irmão estava perdido, e foi encontrado” (Lc 15,6.9.32)
O cap. 15 do evangelho de Lucas é conhecido como o “Evangelho dos perdidos”. A experiência de perda marca a nossa existência de várias formas. Perdemo-nos do Pai e da casa paterna; perdemo-nos na fraterni-dade; perdemo-nos no tempo e nas decisões da vida...
As parábolas dos perdidos colocam nossa vida em questão. Na verdade, dentro de nós não existem só coisas belas, harmoniosas e resolvidas. Dentro de nós há sentimentos sufocados, muita matéria por esclarecer, patologias, repressões...; há feridas para serem curadas, dimensões por reconciliar, memórias dolorosas que precisam ser relidas sob outra luz; fracassos que pesam e alimentam culpas... Uma multidão de “perdidos” nos habita, esperando uma ocasião para serem acolhidos e integrados.
As parábolas do evangelho deste dia nos colocam diante desta pergunta: “o que está perdido em mim?”
É preciso tomar consciência da ovelha, da moeda e do filho perdidos em nosso interior. São símbolos de nossa fragilidade, vulnerabilidade, pobreza..., enfim, expressão de nossa condição humana. Cada um dos perdidos pode revelar recursos, dons... que não foram valorizados. A moeda significa riqueza, mas que está perdida em nossa própria casa; o filho, revela a continuidade da descendência, mas que está afastado.
É preciso redescobrir (des-velar), no próprio interior, a presença do pastor, da mulher e do pai. Eles são como que os pontos nutrientes, iluminantes e terapêuticos encontrados em nosso “eu profundo”. Cada um deles revela uma presença diferenciada em relação ao que está perdido. O pastor deixa transparecer o seu cuidado e a iniciativa de sair do próprio redil para ir em busca da ovelha perdida. A mulher revela desvelo no cuidado da própria casa para encontrar a moeda. O pai misericordioso revela paciência e espera o retorno do filho que se perdera, acolhendo-o e integrando-o à família.
Por outro lado, habitam também no nosso interior os fariseus e mestres da lei que, tendo a lei na mão, emitem juízos, não acolhem as ovelhas, as moedas e o filho perdido de nossas vidas. Não abrem espaço para a misericórdia. São inquisidores porque perfeccionistas, e não conseguem integrar os limites e fragili-dades de nossa vida.
Isso requer “humildade” para sair da segurança do redil e ir atrás de tudo aquilo que foi excluído de nossa vida, devido a uma cobrança interior de perfeição. Quando alguém desce em direção à sua “condição humana”, tudo acolhe e tudo integra, vive um processo de humanização plenificante.
Nesta perspectiva, o desgarrado e o perdido des-velam a realidade onde Deus atua e revela seu rosto misericordioso. Exatamente onde existe fraqueza, perda, vulnerabilidade, talvez seja o “lugar mais sagrado”, aquele que exige mais acolhida e cuidado, para ser transformado pela misericórdia.
A tradição moralista e legalista nos ensinou a alimentar um conflito entre o pastor e a ovelha que se perdera; do mesmo modo, conflito entre a mulher e a moeda; ou, conflito entre o pai e o filho que se afastara. Tal tradição moralista deu peso maior às limitações e fragilidades, alimentando culpa, remorso..., esquecendo-se de despertar nossa atenção para as dimensões mais ricas do nosso interior: o pastor cuidadoso, a mulher zelosa, o pai festeiro.
Nesse contexto, queremos dar um destaque às duas pequenas parábolas do evangelho de hoje, pois elas têm um sabor todo especial. Diferentemente das outras, elas falam de uma perda interior, quase íntima: há uma parte do tesouro que se perde dentro da própria casa. Prestemos atenção: a mulher não perdeu tudo, nem a maior parte sequer; de dez moedas, ela perdeu uma; o pastor não perdeu tudo, apenas uma ovelha. Mas quem vive essa perda percebe o que isso representa: um esfriamento, um abrandamento, uma quebra na inteireza de vida, na unidade ampla do sim de amor que nos constitui. Tendo perdido uma ovelha, uma moeda, a vida continua, mas não da mesma maneira.
A mulher que perdera uma moeda, no entanto, não se acomodou, pensando que ainda ficaria com nove moedas: decidiu procurar a parte perdida do seu tesouro. Ela não culpou ninguém pela perda, não ficou de mau humor, nem deprimida..., mas também não se deixou ficar de braços cruzados. Não se lamentou pelo acontecido, mas tomou a iniciativa de acender a luz, varrer, limpar, aclarar...
“Buscar cuidadosamente”, ensina a mulher da parábola. Nós também temos de ir ao fundo e procurar a raiz daquilo que tira nossa vitalidade espiritual; talvez um medo terrível, uma insegurança fundamental, uma falta de confiança, uma perda de sentido...
A mulher e o pastor das parábolas não ficam lamentando a “perda” da moeda ou da ovelha. A perda pode ser ocasião para um novo movimento, para conhecer outras dimensões da casa ou dos prados.
O Evangelho deixa claro: é “proibido queixar-se”.
A vida não é lamento, é expressão de nossas melhores qualidades, de nossos recursos internos. A queixa bloqueia nossa potencialidade e não deixa emergir o melhor que há em nós. A atitude é rebaixada durante a queixa, o tórax se comprime e o coração se encolhe. Isso é morte, não é vida.
A vida, no entanto, é abertura, aventura, encontro, é possibilidade, é vontade de estar bem. A queixa torna a vida pesada e difícil; ela é inútil pois trava os melhores recursos vitais. É preciso passar da queixa à solução, do lamento à busca de uma nova possibilidade. Cada dia, a vida traz sua surpresa; cada dia amanhece um novo sol.
A espiritualidade cristã alimenta uma integração entre as duas dimensões: pastor e ovelha, mulher e moeda, pai e filho. São dimensões encontradas em nosso próprio interior. A espiritualidade não significa alimentar um combate que desgasta, mas possibilitar um encontro entre as duas realidades. Nada se perde, tudo se pacifica e tudo desemboca na alegria festiva.
Há sempre uma nova aprendizagem que brota do encontro com o que está mais frágil. O pastor também aprende ao acolher a ovelha perdida, pois é no encontro com ela que desperta o seu ser cuidadoso. A mulher aprende ao encontrar a moeda perdida, pois passa a tomar consciência mais profunda da sua própria casa; ao varrê-la, vai conhecendo outros pontos surpreendentes, atrofiados pelo ritmo cotidiano. O pai, no retorno do filho, expressa toda a potencialidade e reserva de compaixão, que não tivera oportunidade de expressar na relação com o filho mais velho. Todos os personagens, no encontro com os “perdidos”, saem enrique-cidos e mais humanos.
Enfim, o evangelho deste domingo nos convida a transitar pelos espaços interiores à procura do nosso eu perdido, do nosso centro perdido, dos ideais perdidos, da alegria perdida, da fé perdida, do amor perdido...
Precisamos ser pastor de nossa interioridade; corremos o risco de só “cuidar” daquilo que é ovelha sadia e que está no redil, descuidando das outras ovelhas que estão afastadas e que requerem uma atenção e um cuidado especial. Nada do que é humano deve ser rejeitado.
“O risco que corremos é nos acomodar e nos enganar, fingindo que não damos pela falta de uma outra vida, de um novo ardor, de um coração inteiro. No caminho espiritual o importante é a decisão interior que nos leva a retomar a arte da busca e da inteireza. “Para ser grande, sê inteiro”, nos diz Fernando Pessoa. E o grande desafio da vida espiritual não é o da grandeza, mas o da inteireza. Sermos nós mesmos”. (cf. José Tolentino Mendonça – O tesouro escondido – Paulinas – pp 15-19)
Texto bíblico: Lc 15,1-32
Na oração: re-visite sua casa e seu redil interior; transite pelos espaços onde se encontram os seus “perdidos”; deixe a luz misericordiosa do Deus Pai/Mãe chegar até ali onde tudo foi rejeitado, reprimido, escondido...
- Dê nomes aos seus “perdidos”: acolha-os, pois eles podem ser des-veladores de novos recursos e de novas potencialidades de vida.
Ser capaz de agradecer os “perdidos” que foram encontrados é sinal de maturidade espiritual e humana.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.09.22
“Quem não se desapega de sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26)
Para poder entender o sentido do evangelho de hoje (23 Dom do Tempo Comum) é preciso recordar que Jesus está a caminho de Jerusalém. Ele adverte à multidão que o acompanhava sobre as exigências próprias de um autêntico seguimento; para Ele não basta o entusiasmo passageiro e o fervor momentâneo. No fundo, Jesus quer verificar as reais motivações e a sinceridade de atitude daqueles que estão fazendo caminho com Ele. É preciso ter somente um “foco” no caminho do seguimento; há sempre o risco de caminhar em diferentes direções, desviando-se da atenção primeira no caminho de Jesus.
Daí a radicalidade das exigências de Jesus: “desapegar-se da família”, “carregar a cruz”, “renunciar a tudo que tem”. As três se resumem numa só: disponibilidade total. Sem ela não pode haver seguimento.
O seguimento de Jesus é questão de sedução, de atração, de paixão...; exige um “investimento afetivo” total. O(a) discípulo(a) pela metade não pode fazer caminho com Jesus; não servem as entregas pela metade.
Tudo se decide nos afetos. Os afetos podem nos situar no horizonte maior (seguimento) ou podem nos fixar nas mediações (família, apego a si mesmo, às coisas...) atrofiando e esvaziando o impulso do seguimento, travando a liberdade. A afetividade ordenada nos faz livres para viver o seguimento de Jesus com mais leveza. Por isso, é preciso detectar as aderências e fixações afetivas (apegos) que limitam a liberdade e que podem minar o seguimento.
Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-nos, não ser mais o centro de nosso próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto.
Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonân-cia interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, descen-trando-nos de nós mesmos. Esta nova experiência modifica a maneira de perceber toda a realidade: a família, os outros, os bens, o nosso próprio eu... A vida mesma é percebida de um modo novo.
Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores(as) com liberdade, com decisão e responsabilidade.
Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.
O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocen-trada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia em si que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
Os ensinamentos de Jesus, no evangelho deste domingo, são um chamado ao realismo. Para além das imagens que Ele usa, poderíamos sintetizá-las assim: Até onde estou disposto a ir no seguimento? Estou motivado e decidido a manter o “sim” até o final? Estou pronto para viver a fidelidade à causa do Reino, mesmo correndo o risco de encontrar cruzes?
Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional de Deus e o compromisso com os excluídos.
Cruz, (“staurós” no grego) não significa simplesmente patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos àqueles que consideravam transgressores da ordem ou subversivos; significa prontidão, estar preparado, estar de pé, mobilizado, firme, fiel até o fim... Nesse sentido, a “cruz-staurós” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros; ela é vivida a partir de uma causa: o Reino. A cruz não é um “peso morto” a ser suportado; ela é consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significa passividade e resignação, pois ela brota de uma vida plena e transbordante; a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que brotam dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... e que não foram integradas Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de sentido; elas se fixam no passado, na mortificação, no ritualismo vazio... com a intenção de agradar a Deus. Fazer o caminho com Jesus, que carrega a cruz da fidelidade, ajuda a romper com as cruzes que afundam no desespero e no fracasso.
Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Carregar a cruz significa esvazia-mento do próprio “ego” para viver em sintonia com a causa de Jesus e a fidelidade no compromisso com os outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
A cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; nela mesma, não salva; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir.
A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobre-carregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30).
“Carregar a cruz” não é ser amigo da dor, mas sinal de lucidez. Significa assumir que toda a existência é um caminho progressivo de “morte do ego” (de identificação com ele), para possibilitar que “nasça” e viva o que realmente somos. Como disse-ra o próprio Jesus, se trata de “perder para ganhar”, morrer para viver.
Texto bíblico: Lc 14,25-33
Na oração: a sua maneira de viver o seguimento de Jesus faz diferença no seu ambiente cotidiano (família, trabalho, relações...)?
- Você já fez a experiência de encontrar oposição e perseguição por sua fidelidade aos valores do Evangelho?
- Em que circunstâncias da vida o “ego inflado” tem aparecido? Você se deixa determinar por ele ou pela vida verdadeira que se revela como esvaziamento?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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“Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (Lc 14,13)
Jesus é um profundo conhecedor da interioridade humana. Sabe que ali dois dinamismos estão em contínuo conflito: de um lado, o ego farisaico, que aproveita todas as ocasiões para brilhar diante dos outros (cultura da aparência), ser o centro, chamar a atenção sobre si...; do outro, o eu profundo, sábio que, na sua liberdade e espontaneidade, deixa transparecer sua luz no encontro com o diferente.
As imagens e as palavras de Jesus no evangelho deste domingo são tremendas. A motivação daqueles que buscam ocupar os “primeiros lugares” é expressão de uma interioridade vazia e estéril; ela é reveladora de uma das necessidades características do ego, que busca “aparecer” diante dos outros, como um modo de auto-afirmar-se, de se sentir superior aos outros, humilhando-os e desprezando-os.
Quando uma pessoa é escrava de seu próprio ego, não lhe importa que o outro desapareça ou se sinta marginalizado e privado de seus direitos. Vive tão a fundo sua “auto-idolatria” que até lhe parece normal continuar agindo assim.
A pessoa sábia, no entanto, compreende que tudo o que os outros pensam ou digam a respeito dela não lhe acrescenta nem lhe tira nada de seu valor. Ela não se move a partir da necessidade de agradar ou de “ficar bem” diante dos outros. Vive, simplesmente, na coerência com o que é mais verdadeiro em seu interior, onde o ego não tem predomínio. Da mesma maneira que não busca reconhecimentos nem bajulações, tam-pouco lhe interessa perseguir os primeiros lugares. Vive com liberdade interior, a partir de sua própria cons-ciência de plenitude. Flui em cada momento com o que é em sua essência; fluidez que brota da compreensão de si mesma, aquela que lhe faz consciente de sua “irmandade” com todos os humanos e todos os seres.
Portanto, o sábio não atende aos necessitados – “pobres, aleijados, coxos e cegos” – para receber uma “retribuição” futura, senão porque sabe que são de sua mesma “família”. O comportamento dele – como foi do próprio Jesus – se caracteriza pela gratuidade. Não busca alimentar o interesse egóico, porque não se deixa determinar pela carência. Sua ação é fim em si mesma, porque nasce de uma consciência de plenitude que se transborda.
O evangelho deste domingo nos convida a estar com Jesus numa refeição em casa de um dos chefes dos fariseus; Ele era consciente de que muitos desse grupo religioso estavam contrariados com sua forma de proceder e vigiavam seu modo de falar e agir. Por isso, ali, nessa refeição, Jesus não se sentia à vontade, pois faltava a presença de seus amigos prediletos: os pobres, aleijados, coxos, cegos...
A conduta dos convidados e do chefe fariseu são, para Jesus, uma ocasião privilegiada para propor os valores do Reino. Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
O relato deste dia não só recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, na qual se respeite as diferenças, se construa espaços de igualdade, onde se proclame um Deus gratuito e cheio de amor e perdão. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida... Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão...Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Podemos ler o evangelho deste domingo também em chave de interioridade: no nosso eu mais profundo há uma mesa pronta para a refeição; geralmente é o “fariseu” que nos habita o controlador desta mesa; é o nosso ego inflado, perfeccionista, legalista, dominador que não admite a presença de nossos pobres, aleija-dos, coxos, cegos, enfim, todas as dimensões de nossa vida que foram excluídas, reprimidas e marginalizadas. O evangelho nos revela que em nossa interioridade há muitas vivências, experiências, feridas, fragilidades, fracassos, crises..., que não foram acolhidas, nem integradas, e que clamam por um lugar à mesa do coração; “multidões” nos habitam e querem compartilhar a mesa da vida.
O nosso fariseu interior também convida Jesus para participar da sua ceia; e Jesus é aquele que acolhe o convite, mas não se sente bem à mesa do fariseu pois nota a falta dos seus amigos pobres. Ele tem liberdade de transitar pelo nosso interior e de acolher tudo o que foi reprimido e excluído. São justamente nossas feridas as portas e janelas abertas por onde entra a mensagem inovadora de Jesus. O “fariseu” já está formatado, petrificado, refratário à proposta de vida apresentada por Jesus.
Também a gratuidade só pode ser vivida quando a identificação com o nosso ego cai. Então, emerge uma nova consciência que se revela no acolhimento de nós mesmos, no deslocar-nos entre os “últimos”, no sentir-nos em comunhão com aquelas dimensões da vida que são excluídas e que não tem nada a retribuir a não ser sua própria fragilidade. Mas, sabemos pela revelação bíblica, que Deus tem mais facilidade de “entrar” em nossas vidas pelas fendas das feridas, dos fracassos, das derrotas...
“Os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” sou eu mesmo, sou o outro eu que se des-vela no encontro com tantos “eus” diferentes. Aqui descubro a bem-aventurança como minha verdadeira identidade, ou seja, aquela na qual tudo está interligado, como numa imensa rede, onde nada é descartado.
Justamente os aspectos pobres e aleijados, os aspectos cegos e coxos podem me levar ao caminho da completude. Tudo, e principalmente aquilo que eu considero feio em mim mesmo, deve ser incluído e acolhido na completude com Deus. Posso tornar-me completo em Deus apenas se eu lhe oferecer minhas fraquezas, feridas e fracassos... A “descida” à minha mesa interior vai, aos poucos, despertando uma sensibilidade para também “descer” ao mundo do outro; o encontro com minha própria humanidade ativa um deslocamento em direção à humanidade do outro.
Aquele(a) que “desce” às margens de sua interioridade, também se aproxima da terra privilegiada do encontro com Deus, que se manifestou em Jesus de Nazaré, o amigo dos pobres e pecadores.
Textos bíblicos: Lc 14,1.7-14
Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor.
- Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, onde uma multidão de “pobres, coxos, paralíticos, cegos” deseja ser iluminada pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
- Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça. Viva a gratuidade na mesa da vida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.08.22
Imagem: Joy Velasco
“...conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência para sempre”
Neste domingo celebramos a festa da Assunção de Maria. Normalmente, quando pensamos na Assunção, vêm à nossa mente muitas imagens de Maria olhando para o alto, com as mãos juntas, rodeada de anjos, sobre nuvens que indicam que é elevada ao céu. É uma festa que nos fala da santidade e da plenitude d’aquela que mais amou, conheceu e seguiu seu Filho. Mas, se ficarmos só com as imagens tradicionais da elevação de Maria, não dizem muito para nós, porque nossa própria experiência tem pouco a ver com elas.
O próprio Evangelho deste domingo nos ajuda a tomar distância das imagens tradicionais da Assunção e nos apresenta Maria com os pés na terra. Ela foi “assumida” por Deus porque “desceu” ao mais profundo da história humana, fazendo-se solidária e servidora em favor de seus filhos e filhas. É na vivência de “saídas” e “encontros” que Maria se revela próxima de todos nós; continuamente, somos chamados a viver a “cultura do encontro” e do deslocamento solidário, sobretudo com os mais pobres e excluídos.
O evangelho da Visitação, nos revela o encontro de duas mulheres grávidas. Maria e Isabel são o ícone do verdadeiro “encontro”, carregado de hospitalidade, alegria e serviço; ambas, em idades diferentes, se acolhem, se entendem e se ajudam mutuamente, pois compartilham o mistério da vida que cada uma carrega em seu ventre. É como se uma dissesse à outra: “isto que está acontecendo em seu ventre é coisa de Deus, os homens não compreendem!”
Segundo Lucas, Maria, depois de receber a notícia de que será a mãe do Messias, “pôs-se a caminho” com “prontidão”, que também pode ser traduzido “com diligência, com empenho, com cuidado...”
Trata-se de uma decisão que brotou de sua nova condição de futura mãe, de sentir que em suas entranhas crescia a nova Vida que vem de Deus. Deus saiu ao encontro de Maria e esta vai ao encontro de Isabel.
São duas gestações que nos convidam a contemplá-las à luz da fé, porque acontecem em circunstâncias que humanamente são impossíveis. No caso de Maria, porque “não conhece homem algum” e, no de Isabel, porque é anciã, “concebeu na velhice”. A vida que nasce de Deus rompe todas as normas, supera nossos cálculos, nos surpreende, irrompendo com força ali onde nós não vemos possibilidades.
Esta experiência de que para Deus “nada é impossível”, de que Ele sai ao encontro e faz surgir vida em duas mulheres simples, como entre tantos pobres e humildes, é uma realidade vivida pelas primeiras comunidades cristãs, pobres, pequenas e perseguidas. É também a experiência nossa, tanto no nível pessoal como comunitário. São muitos(as) que, às vezes, se sentem como Isabel: idosas e cansadas para algo novo, ou muito sós e cheios(as) de dificuldades para acolher as surpresas de Deus.
Duas mulheres grávidas, que se encontram; de que falam? Sem dúvida, da “novidade” de seus ventres, de sua alegria, do futuro... Neste caso, nos diz o evangelho, que a alegria é transbordante e contagiosa, tão profunda e intensa que “o menino salta no ventre de Isabel” e esta se enche do Espírito de Deus.
E a partir deste Espírito, falam de um futuro que as transcende, que não é só o futuro de seus filhos, é o futuro de todo o povo, de toda a humanidade.
A profundidade da alegria e da fé faz com que este encontro adquira outra dimensão: do encontro de duas mulheres passa a ser o encontro definitivo e permanente de Deus e nosso mundo, seu mundo.
Assim, Maria se põe a cantar ao Deus da vida e ao mundo novo que Ele torna possível; ela, consciente do que está vivendo, deixa jorrar de seu interior um ousado cântico que expressa uma das imagens de Deus mais inspiradoras e carregadas de esperança do Novo Testamento.
Maria expande sua consciência maravilhada da ação de Deus nela e para além dela; em Deus, ela se sente em sintonia com a história de seu povo e da humanidade inteira. Descobre que Deus é grande porque entra na história a partir dos últimos, dos pobres e deslocados. E afirma com contundência que é a ela, humilde mulher nazarena, a quem todas as gerações chamarão bem-aventurada.
E esta experiência de que Deus “faz maravilhas nela”, é a razão pela qual afirma que Ele é misericordioso e que esta misericórdia, realizada nela, se estende, de geração em geração, sobre aqueles que o temem, sobre aqueles que creem n’Ele e O amam.
Sua experiência pessoal é a que lhe faz descobrir como Deus atua no mundo e como está disposto a fazer novo nosso futuro, com ações desestabilizadoras em favor dos pequenos, dos necessitados.
Aclamar e celebrar hoje Maria, que é levada ao encontro definitivo com Deus, nos compromete a viver, como ela, os outros encontros transformadores nos quais partilhamos e cantamos a vida que Deus, por sua misericórdia, derrama em nós, em nossa pobre realidade.
No Magnificat, Maria canta a sua própria história e “faz memória” da história de seu povo. E isso nos desafia a fazer o mesmo. Ninguém vive uma vida espiritual fecunda enquanto não for capaz de assumir aqui-lo que “é” na sua originalidade, se não for capaz de construir a relação com Deus como um diálogo vivo entre um “eu” e um “Tu”. A oração de Maria não é feita de fórmulas. Ela expõe a sua vida naquilo que diz.
À luz do Magnificat, a história não se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com o cântico de Maria, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A ação providente de Deus na história plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”.
O Magnificat nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...
O encontro com a História Sagrada nos ajuda a ler nossa história sob nova perspectiva: a da salvação.Deus desce à nossa própria história, iluminando-a e carregando-a de sentido. A história pessoal e a história do mundo tornam-se o lugar habitual da experiência de Deus, a montanha da sarça ardente que não se consome.
A partir dessa perspectiva, nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade; ela nos abre um futuro de esperança.
Só a memória agradecida está em condição de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles; eles passam a serem vistos sob nova luz para serem ressignificados.
A memória nunca é experiência vazia, mas algo pleno, uma faculdade que afunda suas raízes no coração da existência. Quando evangelizada, ela nos ajuda a reler o passado sob nova luz. E só podemos “ordenar” a história quando ela é revivida diante dos olhos misericordiosos de Deus. Então, tomamos consciência que o mesmo Deus encontra mais facilidade de “entrar” em nossas vidas através dos fracassos, feridas, fragilidades... Deus “entra” no mundo pelo “avesso” da história.
Marcados pela “mística mariana”, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história. Encontrar-nos com a história significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, re-iniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro em horizonte carregado da presença divina.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: saborear o Magnificat através do “segundo modo e orar”, proposto por S. Inácio, ou seja, “contemplar o significado de cada expressão” do cântico de Maria; deixar que a simplicidade, o frescor e a profundidade das tremendas afirma-ções do cântico toquem seu coração.
Esta é a promessa de Deus para com seu povo, a promessa que faz Maria exultar de alegria. Esta é a promessa que Deus continua realizando em você e no mundo.
- Inspirado(a) no cântico de Maria “trazer à memória” sua história para saboreá-la de novo, ressignificar fatos, “reciclar” acontecimentos”, “processar” vivências e experiências, e assim torná-las “companheiras de estrada” e não inimigas que travam o fluir da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.08.22
“Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49)
À primeira vista, o evangelho deste 20º Domingo do Tempo Comum pode provocar um certo mal-estar e nos deixar com um sabor amargo; dá a sensação de que Jesus veio para trazer fogo (um incêndio provocado) e divisão. Isto seria incoerente com seu modo de viver e sua mensagem.
Em primeiro lugar, é preciso nos conectar com o evangelho do domingo anterior onde Jesus afirmava que “foi do agrado do Pai nos confiar o Reino”. Se compreendemos bem tal afirmação, que implicações e exigências têm para nós, seus(suas) seguidores(as)?
Fazer caminho com Jesus não é para as pessoas “frias” ou “mornas” em seu modo de viver. Seguimento implica calor humano, paixão, emoção...; seguir é ser fogo, reavivar o fogo interior, iluminar, dar calor...
Jesus não veio provocar um incêndio destruidor. Ele nos fala da imagem do fogo como elemento que limpa e purifica, usado tanto pelos camponeses (“limpará completamente sua eira; recolherá seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível” – Mt 3,12), como por aquele que busca purificar o ouro, “que é provado no fogo” (1 Pd 1,7). Em qualquer caso, a imagem do fogo era muito eloquente para os primeiros cristãos, também provados no fogo da perseguição, que deixava a descoberto a pureza e solidez de sua fé.
João Batista também fala de Jesus como aquele que “batizará com Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11). E esta promessa se cumpre em Pentecostes: “Apareceram línguas como de fogo... Todos ficaram cheios do Espírito Santo” (At 2,3). Também os discípulos de Emaús sentiram arder seus corações quando escutavam as palavras do Ressuscitado, que caminhava junto deles. Teresa de Jesus entendeu isso bem quando fala da “alma” como uma mariposa que se aproxima do Fogo, até ficar transformada, ela mesma, em fogo.
A imagem do “fogo” nos desafia a nos aproximar da pessoa de Jesus e viver o seguimento de maneira mais ardente e apaixonada. Pois seguir Jesus não é questão de razão, mas de afeto, de atração, de sedução...
O fogo que ardia no interior de Jesus era a paixão pelo Reinado do Pai e a compaixão pelos que sofriam. Jamais poderá ser des-velado esse amor insondável que o animava e o fazia arder em seu compromisso com a vida. O mistério de sua vida nunca poderá ficar contido em fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios teólogos. Jesus atraia e queimava, perturbava e purificava. Ninguém podia segui-lo com o coração apagado ou com uma piedade estéril.
Sua palavra, sua liberdade, seu estilo de vida... fez arder os corações de todos aqueles que dele se aproxi-maram: revelou sua presença amistosa junto aos mais excluídos, despertou a esperança e a confiança nos pecadores mais desprezados, lutou contra tudo aquilo que violentava o ser humano, combateu os formalismos religiosos, os rigorismos desumanos e as interpretações estreitas da lei. Nada e nem ninguém podia bloquear sua liberdade e impedi-lo de fazer o bem.
Nunca poderemos segui-lo vivendo na rotina das práticas religiosas ou no convencionalismo do “politica-mente correto”. Nenhuma religião nos protegerá de seu olhar provocante. Nenhuma doutrina nos livrará de seu desafio. Jesus está nos chamando a viver na verdade e amar sem reservas. Isso queima!
A maneira livre de Jesus viver, junto com a fidelidade à missão confiada pelo Pai, fez com que sua vida se tornasse questionadora, e inclusive provocativa, para aqueles que se encontravam instalados em posições de poder e que não estavam dispostos a modificar. Por este motivo, a atitude e o comportamento de Jesus sempre foi fonte de tensão, conflito ou divisão. E assim deve ser entendida toda sua vida.
Jesus, com o seu modo original de ser e viver, acendia os conflitos, não os apagava. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas tensões, enfrentamentos e divisões. Na realidade, Ele introduziu o conflito no próprio coração do ser humano. E isso comprometia inclusive a vida e a unidade das famílias. Até ali chegou a radicalidade da mensagem de Jesus, pois Ele mesmo foi incompreendido pelos seus próprios familiares, foi desprezado, traído e crucificado pelo seu povo.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Jesus não buscou o conflito (já que trazia uma mensagem de amor e fraternidade) mas conheceu uma das experiências conflitivas mais dramáticas da história humana. Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da sua fidelidade. O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade do Reino.
A conflituosidade na vida de Jesus proveio do choque entre as exigências do Amor e a realidade injusta e pecadora. Jesus não cria conflitos; Ele os constata ao dar testemunho das exigências do Amor.
Evidentemente, as palavras e a vida de Jesus nos mostram que Ele foi portador de paz, mas não uma paz sem conflito. Muitas vezes, Ele nos recorda que trabalhar pelo Reino é um processo transformador que exige passar pela porta estreita, deixar-nos refazer até nascer de novo; neste caso, a paz não é comodidade, não é deixar as coisas como estão, mas viver um processo de transformação profunda, que costuma incluir despojamento e sofrimento.
O conflito também perpassa nossa vida pessoal, familiar e comunitária; não é acidente de percurso, é permanente: conflitos no interior da Igreja, no interior das comunidades; conflitos de origem social, cultural e político; conflitos gerados pela missão entre os pobres e pela defesa de seus direitos; conflitos de consciência, de lealdade; conflitos que se originam da missão profética da Igreja...
Mas, o que move a pessoa sábia não é o conflito por si mesmo, e sim o “fogo” interior que a habita. Um fogo que a torna firme e flexível ao mesmo tempo, respeitosa e apaixonada, amorosa e sagaz.
Esse “fogo” não é outra coisa que a expressão da Vida em nós. Se não lhe prestamos atenção e vivemos à margem dele, fica como apagado e morto. Nossa existência permanecerá marcada pela resignação e pelo conformismo. Quando, pelo contrário, mantemos a conexão consciente com a Vida que somos, o fogo se desperta até consumir-nos por completo. A partir daí, já não vive o eu, mas a Vida mesma em nós.
Texto bíblico: Lc. 12,49-53
Na oração: No contexto atual, a vivência cristã parece esvaziar-se, mas o fogo trazido por Jesus ao mundo continua ardendo debaixo das cinzas. Não podemos deixar que se apague. Sem fogo no coração não é possível segui-lo.
Assumir a causa de Jesus gera conflitos; mas o conflito é um “ensaio da esperança”, uma certeza de que o Espírito renova todas as coisas sobre a face da terra. O conflito é certeza da “novidade” que vem; por isso exige um discernimento permanente.
- Como crescer e amadurecer no conflito? Como viver o Evangelho no conflito? Como ser fiel à missão em meio aos conflitos?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.08.22
“Onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12,34)
O evangelho deste 19º domingo do Tempo Comum nos apresenta um texto cheio de mensagens importantes sobre o seguimento de Jesus. O contexto deste relato é a compreensão do Reinado de Deus e as atitudes que são favoráveis para percebê-lo e acolhê-lo. Encontramo-nos no caminho, junto com Jesus, subindo em direção a Jerusalém; o texto evangélico nos mostra o Mestre da Galiléia liderando um novo movimento de vida e onde devemos investir para que a nossa vida tenha sentido e inspiração. Por isso, a alegoria do “tesouro” revela a busca do essencial e não se perder no que é supérfluo e caduco.
Um antigo relato oriental nos ajuda a compreender a alegoria do tesouro, usada por Jesus: quando os deuses criaram o homem, puseram nele algo de sua divindade; mas o homem fez um mal uso dessa divindade e os deuses decidiram tirá-la. Reuniram-se em grande assembleia para ver onde podiam esconder esse tesouro que lhe haviam dado. Um disse: “vamos colocá-lo no pico da montanha mais alta”. Um outro, porém, retrucou: “não, o homem acabará escalando a montanha e encontrará o tesouro”. Um outro disse: “vamos escondê-lo no fundo do oceano”. Mas, alguém respondeu: “Não, o homem poderá descer às profundezas e descobrir o tesouro”. Por fim, um terceiro disse: “Já sei onde vamos esconder esse tesouro: no mais profundo do coração do homem! Ali, ele nunca o buscará”.
A metáfora do tesouro, presente em diferentes tradições sapienciais, constitui um convite a encontrar ou descobrir aquilo que, mesmo sem saber, mais aspiramos: o que realmente somos, nossa identidade original.
E esta imagem contém várias indicações valiosas: o tesouro está aí, no nosso interior, todo o tempo; trata-se simplesmente de descobri-lo; não é algo separado de nós, nem algo daquilo que carecemos, mas justamen-te aquilo que somos. Quando o descobrimos, tudo o mais começa a ser visto como algo secundário; e essa descoberta se traduz em perene alegria.
Só podemos encontrar o tesouro dentro de nós se descermos ao chão de nossa vida. É normal que nós nos surpreendamos frente a frente com um “eu” desconhecido e pleno de recursos.
O caminho para o nosso tesouro passa pelo diálogo com as dimensões não integradas, com nossas paixões, com nossos problemas e fragilidades, nossas angústias e nossas feridas, com tudo quanto clama dentro de nós e consome nossa energia. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente nos “cascalhos” de nossa existência descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração. Podemos, então, afirmar que o verdadeiro “tesouro” é o que há de Deus em nós.
Isto é o que somos: plenitude à qual nada nos falta, como cantava S. Teresa de Jesus: “Quem a Deus tem, nada lhe falta; só Deus basta”. Deus não é uma Presença separada que nos completaria a partir de fora, mas o “estado de presença” que constitui nossa identidade. E quando descobrimos o tesouro que é Deus, não há lugar para o medo (“não tenhais medo”).
“Foi do agrado do Pai nos confiar o Reino”. Este é o ponto de partida. “Não tenhais medo, estai prepa-rados, etc...” depende desta verdade. O Reino não é lugar ao qual iremos depois da morte; Jesus já havia dito em outro momento: “O Reino está dentro de vós”; portanto, é um espaço que já trazemos em nossa identidade profunda. Sem acolher esta realidade, não é fácil dispor-nos para conectar com o nosso eu verdadeiro.
Se o Reino é o tesouro encontrado, nada e nem ninguém poderá nos afastar dele. O sentido da nossa exis-tência está em descobrir o tesouro, tudo o mais virá espontaneamente. O Reino é o mesmo Deus escondido no mais profundo de nosso ser. Ele é a maior riqueza para todo ser humano. Todos os demais valores que podemos encontrar em nossa vida, devem estar subordinados ao valor supremo que é o Reino.
Este tesouro pode se expressar como “uma nova vitalidade e autenticidade, um sonho ousado, uma intuição, um dom especial, o encontro com o verdadeiro eu, a imagem que Deus faz de cada um de nós...”
O caminho para um novo sentido na vida passa pelo acesso ao nosso próprio coração. Aqui está o desafio que nos assusta, pois vivemos mergulhados numa cultura da superficialidade e da exterioridade.
“Descer” para as profundezas de nosso interior é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos recursos, para ativar novas potencialidades, para encontrar aquele tesouro que facilitará uma contínua transformação na vida.
Isso requer coragem para passar por todas as regiões sombrias e chegar ao fundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que tínhamos perdido.
É preciso, portanto, “descer” até o chão de nossa humanidade para descobrirmos uma nova riqueza que iluminará a nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida.
O apelo de Jesus é para despertarmos, escavarmos, avançarmos na direção ao “veio de ouro” e de sabermos que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido com dom.
Mas não basta falar de “tesouro precioso”; é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, alargar nosso coração, garimpar em direção às riquezas que estão no eu mais profundo, assim como o “fio de ouro” no meio dos cascalhos. Nosso interior é o campo que é preciso cavar (às vezes, profundamente) para fazer vir à tona aquilo que é mais nobre em cada um de nós.
O “tesouro no céu” não é algo que nós alcançamos graças ao esforço, nem é computado como mérito; é uma nova maneira de ser e de viver que emerge quando nos esvaziamos do “ego”, inflado e prepotente.
Quando acessamos à nossa nobreza interior, descobrimos o tesouro que seduz nosso coração; só assim a vida terá mais inspiração, criatividade e sentido.
Sabemos que o coração se enraíza ali onde está o bem mais valioso de nossa vida; a partir daqui, inicia-se um impulso em direção à plenitude que tanto almejamos; o seguimento de Jesus adquire uma nova feição e o Reino se revela transparente no nosso modo de ser e viver.
Esta é a chave da existência humana e da felicidade: ser conscientes de qual é nosso tesouro, o que consideramos mais valioso, pois o coração vai habitar aí. A proposta evangélica não se refere ao coração afetivo, mas ao coração existencial, esse centro vital a partir de onde fluem as profundas “moções” e dinamismos da vida autêntica. O coração é uma potência interior que é capaz de deixar transparecer a vida divina a partir da fonte para o exterior. E Jesus lhe dedicou uma bem-aventurança, uma afirmação chave para compreender este espaço de Deus: “felizes os que tem um coração puro porque verão a Deus”.
Texto bíblico: Lc 12,32-48
Na oração: Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que o(a) sustenta e dignifica o seu viver.
Dirija seu olhar para o mais profundo, onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos... onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça.
-Em que você investe sua vida, seu tempo mais importante, suas forças? Você busca o máximo que pode alcançar ou se conforma e se instala na mediocridade, com a falsa sensação de segurança e comodidade?
- Qual é o seu “tesouro” que pede um investimento afetivo, que alimenta um espírito de busca?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.08.22
“...a vida não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15)
Na sua itinerância, Jesus se depara com situações inesperadas e que não tem nada a ver com o sentido de sua missão. Mas, como bom pedagogo, Ele aproveita de todas elas para mover as pessoas na direção do verdadeiro sentido da existência.
Como sabemos, as heranças sempre suscitam problemas e conflitos. E alguém, que devia se sentir prejudi-cado, pede a mediação de Jesus para conseguir uma melhor partilha dos bens.
Na sua resposta, destaca-se a liberdade de Jesus frente a esse tipo de questões, não só porque corta a petição pela raiz, mas pela parábola que narra a seguir. Nem Ele se considera “árbitro” em questões de herança, nem está preso pela cobiça. O que escutamos d’Ele é o ensinamento de um mestre livre que quer mostrar o caminho da verdadeira “riqueza”.
Todos temos experiência da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade - de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Para Jesus Cristo, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”. Uma vez presos à cobiça, caminhamos, irremediavelmente, para a solidão, para o auto-centra-mento e desprezo dos outros.
Na parábola de hoje, o rico fazendeiro, em seu monólogo, revela o seu ideal de vida: acumular, ter vida longa, vida assegurada... Em seu horizonte de vida há uma terrível solidão: parece não ter esposa, filhos ou amigos. Não pensa nos camponeses que trabalham em suas terras. Seus verbos preferidos: acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em “amassar riquezas para si”; todo o relato insiste no uso dos pronomes possessivos: minha colheita, meus celeiros, meus bens, minha vida... Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade.
Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar. Que há de humano neste tipo de vida? A vida deste rico é um fracasso e uma insensatez, pois sua falsa segurança na posse dos bens vem abaixo. Quem vive centrado em si mesmo, perde a vida; quem vive para o eu, não é rico diante de Deus.
No percurso da vida humana surgem oportunidades em que a pessoa abre os olhos e se diz a si mesma, com enorme espanto: “na realidade, não fiz outra coisa que viver para mim mesmo”. Com as riquezas, com os saberes, com os próprios recursos ou o que for, ela se dá conta de que viveu “entesourando para si” e, de repente, essa forma de viver se revela como infecunda e sem sentido. É um momento privilegiado que pode ser muito duro e, ao mesmo tempo, muito fecundo, quando consegue sair dessa “situação viscosa” e centrar sua segurança em deixar-se conduzir pela mão providente de Deus (“ser rico para Deus). Sentirá a experiência de que foi tirada de sua “pasta egóica” pela mão de Deus e brotará em sua vida uma nova melodia de saída de si em direção à fraternidade, à partilha, ao encontro com o outro...
A eterna tentação da cobiça esconde uma necessidade, mais ou menos doentia, de segurança. Dado que o ser humano não pode renunciar à segurança, a questão é saber onde ele coloca sua segurança. Ao longo de nossa existência, é provável que o “lugar” onde a situamos vai se modificando: os pais, os amigos, os grupos, a profissão, a saúde, o dinheiro, as posses, as crenças, o prestígio...
O problema não se enraíza no fato de sentir necessidade de segurança, mas na ignorância à hora de querer afirmá-la. Colocar a segurança em qualquer realidade passageira é garantir a decepção, a frustração e o sofrimento. Essa é a primeira ignorância, porque nos faz tomar como “seguro” o que é transitório.
No evangelho deste domingo, Jesus usa a palavra “néscio” para referir-se a quem atua assim. Tal termo vem do verbo latino “nescio”, que significa literalmente “não sei”. “Néscio” é quem confunde o ter com o ser. “Néscio” é aquele que não sabe o que faz, aquele que vive perdido e ofuscado na ignorância e, em último termo, na inconsciência. Isso é viver identificado com o “ego”, na falsa ilusão de que essa é sua verdadeira identidade.
Agimos mal, a partir da cobiça, dos apegos a coisas e bens, da segurança em acumular... porque desconhe-cemos nossa riqueza interior, nossos recursos mais nobres, nossos dons mais originais... Perdemos o ca-minho do coração e “ajuntamos tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem...”
No fundo, o evangelho deste domingo nos situa diante do grande dilema do “sentido de nossa existên-cia”: para quê vivemos? Sobre que valores queremos construir nossa vida?... O ser humano não é só um “animal racional”, ou um “animal afetivo”, mas é também um “animal de sentido”, o que é uma definição muito mais profunda. Ele precisa de um “sentido” para viver. E precisa disso tanto ou mais que os bens materiais necessários para sua vida. Sem sentido, sua vida se torna simplesmente sofrível, insuportável.
Uma pessoa espiritualmente anêmica enche sua existência com coisas e posses, mas isso não faz mais que aumentar sua sensação de vazio existencial. De fato, para viver uma existência verdadeiramente humana, é preciso cumulá-la de sentido, evitando que ela caia no vazio ou no absurdo.
O ser humano tem necessidade de uma causa pela qual viver, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um horizonte de sentido no qual acredita intensamente (“ser rico para Deus”) E nele investir tudo o que é e possui, com intensa paixão.
Aqueles que são movidos por uma forte paixão, apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.
Todo o percurso dos Evangelhos visa despertar em nós o “espírito de busca”, latente em todo ser humano. E a busca mais humanizadora é aquela do sentido, que brota com força do mais profundo de cada um, como um impulso vital que o move a construir uma existência inspirada e carregada de significado. O sentido aponta rumos e abre caminhos, alimenta a liberdade e ativa a criatividade.
“Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, acumulando bens e permanecendo refém de uma triste mediocridade. Há fomes existenciais, desejos mobilizadores e sonhos originais querendo encontrar canais amplos para jorrar. É preciso reaprender o caminho da própria interioridade para ativar a capacidade de amar, de vibrar, de buscar...
Deixemo-nos inspirar pelo Mestre da Galiléia!
Texto bíblico: Lc. 12,13-21
Na oração: O que ainda existe para ser descoberto em sua vida?
Há espaço para o novo? Ou está tudo amarrado, costurado nas bordas, selado contra qualquer surpresa?
- Onde você investe os melhores recursos de sua vida? Você encontra motivações para viver com mais inspiração?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.07.22
“Quando rezardes, dizei: ‘Abba’” (Lc 11,2)
Os evangelhos nos revelam que Jesus, em muitas ocasiões, se afastava de seus discípulos, do povo, dos espaços habituais, das atividades missionárias... para orar, sem deixar-se prender pelas necessidades urgentes, pelas expectativas de seus amigos e pelas ameaças de seus inimigos. Essa distância, que o fazia entrar em intimidade o Pai, ia gerando nele uma nova sensibilidade para perceber os acontecimentos e a ação do Pai no centro da realidade e assim poder anunciar a surpreendente notícia do Reino.
Sabemos que Jesus vivia uma profunda sintonia com o Pai; e esta sintonia se manifestava no seu modo de orar: Ele orava nos momentos difíceis; dava graças ao Pai e o louvava por ter revelado os mistérios do Reino aos pequenos; orava solicitando o perdão na Cruz para aqueles que o crucificavam; rezava nos momentos decisivos da missão: batismo, pregação, eleição dos discípulos, transfiguração...
Sua oração contagiava, despertava interesse nos outros até o ponto de seus amigos lhe pedirem que lhes ensinassem a orar, porque viam que Ele tinha outra profundidade e superava os formalismos e as orações recitadas de memória.
O que é mais original e revolucionário em Jesus é a atitude de dirigir-se abertamente ao Pai com palavras simples e emotivas, na linguagem de todos os dias. Na sua oração, Jesus revela um Deus Pai-Mãe, cheio de ternura e compaixão, que toma iniciativa e rompe as distâncias, entrando em comunhão com seus filhos e filhas. Por isso, a primeira palavra da oração de Jesus expressa um grito que ecoa além dos limites do espaço e do tempo. Jesus não disse “Deus nosso que estais no céu”, ou “Criador nosso”, ou “Todo-poderoso nosso”. É significativo que tenha dito “Abba”.
Uma característica comum na construção da “imagem” de Deus em todas as religiões é que Ele é intocável, incompreensível, todo-poderoso, transcendente... A oração de Jesus deixa transparecer não o Deus todo-poderoso, onipotente e onipresente, mas o Deus desejoso de interagir com seus filhos e construir uma rede de relações.
A oração de Jesus mostra um Deus que possui uma enorme sede de relacionamentos; Ele é um Pai que deseja entrar em diálogo com todos. É significativo que Jesus comece a falar de um Pai que quer se aproximar de todos, sem barreiras e preconceitos.
Fixando-nos em Jesus, os nossos olhos e o nosso coração aprendem, na graça do Espírito Santo, o caminho para o Pai. No nosso interior devemos sentir que rezamos continuamente.
Na oração de Jesus, nenhum ser humano foi excluído, nenhum errante foi rejeitado, nenhum sacrifício foi pedido, nenhum dogma proclamado, nenhuma lei estabelecida... Sua oração é instigante e provocativa, que nos liberta do cárcere da rotina, resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez: a consciência de que somos conduzidos por uma presença amorosa. Não se pode rezar de qualquer jeito e com qualquer disposição a oração que o Senhor nos ensinou.
Para Jesus de Nazaré, Deus não quer que os seres humanos tremam em Sua presença, mas que tenham intimidade com Ele; não quer demonstrar poder que desperta medo, mas sensibilidade que alimenta proximidade; não quer controlá-los, mas fomentar sua liberdade.
Segundo Jesus, o Deus que se esconde atrás da cortina do tempo e do espaço não é um Deus juiz a ser temido, mas um Pai sensível, providente, cuidadoso, que quebra distâncias e se aproxima de todos.
Aproximando-nos da oração de Jesus, percebemos que tudo se concentra em torno à expressão vocativa que abre a oração: “Abba!”. É sempre em torno da descoberta do Pai que nos situamos. Mais do que rogar por esta ou por aquela necessidade ou interceder pela satisfação de qualquer carência, o que se pede a Deus é que Ele seja “Pai”. Segundo o Cardeal José Tolentino, “Pai!” é um grito íntimo e aberto de fé, de alegria, esperança e amor; um canto de reconhecimento pelo fato de sermos verdadeiros(as) filhos(as) de Deus. Mas é também uma súplica, um gemido, que brota do nosso ser mais profundo, reconhecendo a nossa distância, a nossa pequenez, a nossa fragilidade...
Através de sua oração, Jesus comunica aos seus discípulos e a todos nós o direito de também dizer “Abba”. Ele ativa em todos nós a participação na sua condição de Filho e, porque somos seus discípulos(as), abre a oportunidade de nos dirigir ao Pai celeste com a confiança de uma criança.
Aqui, o nosso desejo se orienta fraternalmente em direção ao próprio desejo de Jesus.
Temos a mesma Origem, a mesma Fonte que Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10,30); esta é uma frase que nós também podemos repetir.
Porque, neste momento, a vida que respira em nossos pulmões, que pulsa em nossos corações, não está separada da Fonte da Vida. É preciso, pois, tomar consciência desta relação com a Fonte do Ser que Jesus chama “Abba”, que é seu Pai e nosso Pai, é sua Origem e nossa origem, e também origem do mundo.
O coração do ser humano é este lugar onde o universo inteiro clama: “Abba, Pai-Mãe”.
Um monge do Monte Athos dizia: “Quando eu digo “Abba”, o mundo inteiro está presente”.
A oração revolucionária de Jesus, portanto, nos descentra e nos move em duas direções: na primeira, nosso olhar e nosso coração se dirigem ao Pai (santificação do seu Nome, vinda do seu Reino).
Na segunda, movidos por uma atitude filial, nos dirigimos às nossas necessidades (o pão, o perdão, a força contra a tentação).
Estas duas dimensões não devem jamais ser separadas, porque o Senhor as uniu em sua oração.
Invocar Deus como “Abba” nos irmana a todos, reforça nossos vínculos e nos expande a viver a comunhão com todos. Por isso, a invocação do “pão de cada dia” é um ato de fé e de abandono ao Pai celeste, o qual “bem sabe que precisais de tudo isto” e nos alimenta (Mt. 6,28-32).
É necessário pedir o pão, reconhecendo a nossa dependência para com a divina Providência. O fato de que Deus cuida de cada um de nós não é motivo para não estendermos a mão a Ele. Devemos fazê-lo, precisamente, para reconhecer a sua solicitude.
O cristão pede o “pão” para si e para os outros; ele não se sente como filho único de Deus, mas sim como membro de uma comunidade de irmãos.
“Dá-nos o pão nosso” significa também: “concede que saboreemos juntos o teu dom”.
Comer nunca significa um mero ato biológico de ingerir alimentos; é sempre um ato comunitário e um rito de comunhão. À mesa eucarística, onde se parte o pão do Senhor, o cristão aprende a partir e a partilhar o “pão de cada dia” com os outros.
Além disso, o pão que comemos esconde toda uma rede de relações anônimas; antes de chegar à mesa, ele passou pelo trabalho de muitos braços; há muitas lágrimas e suor escondidos em cada pão, como também há muito de solidariedade e partilha. Portanto, o pão que é produzido junto deve ser repartido junto e consumido junto.
A mesma necessidade básica nos iguala a todos; a satisfação coletiva nos confraterniza. Só então podemos, verdadeiramente, pedir: “o pão nosso de cada dia”. Rezamos a Deus para permanecermos “pobres”; a nossa única riqueza é o amor do Pai.
De fato, só o pobre pode fazer essa oração, porque crê que hoje e amanhã é Deus que o sustenta. Ele não pede coisas supérfluas, mas simplesmente um pedaço de pão para poder viver “hoje”. Não pede riquezas nem a abundância de bens terrenos, com os quais poderia assegurar o seu futuro; pede o que necessita, o que lhe é indispensável para viver hoje. Além disso, ele sabe que este pão falta a muitos; por isso, pede para si e para todos os necessitados como ele.
Nos lábios do rico esta oração soa como uma mentira.
Texto bíblico: Lc 11,1-13
Na oração: Rezar o Pai-Nosso utilizando o Segundo modo de orar, proposto por S. Inácio, ou seja,
“Contemplar o significado de cada palavra da oração”
- Dizer palavra por palavra. Ex: Pai-Nosso.
- Considerar esta palavra enquanto encontrar significados, sentidos novos, comparações, gosto e consolação, em considerações relacionadas com a mesma, sem se preocupar em passar adiante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.07.2022
“Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (Lc 10,41
No evangelho de Lucas, o caminho de Jesus a Jerusalém marca uma progressiva manifestação do Reino. À medida que avança em seu percurso, Ele vai despertando e preparando seus(suas) seguidores(as) a viver as atitudes indispensáveis de um(a) verdadeiro(a) discípulo(a): a presença compassiva, o espírito de acolhida, o abandono das pretensões de poder, a escuta de sua Palavra... Tais atitudes exigem romper com o ritmo estressante da vida para que todos se coloquem, serena e atentamente, aos pés do Mestre. Esta eleição, que aos olhos da eficiência pode parecer superficial e inútil, é uma condição fundamental para chegar a ser um(a) autêntico(a) discípulo(a).
No seu caminho em direção a Jerusalém, o evangelho deste domingo nos revela que Jesus é recebido por duas irmãs, numa casa de família. Este episódio é algo surpreendente. Os discípulos que acompanham a Jesus desaparecem da cena. Lázaro, o irmão de Marta e Maria, está ausente. Na casa da pequena aldeia de Betânia, Jesus se encontra a sós com duas mulheres; ao hospedarem Jesus, o cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os próprios hábitos, os próprios ritmos, reordenar as próprias atenções e ocupações.
Com o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar uma nova “ordem”. Jesus, o pe-regrino sem casa, está no centro de todas as atenções que uma verdadeira hospitalidade exige. No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente no encontro com o Mestre ilustre.
Aqui nos deparamos com duas atitudes diferentes. Uma, de total atenção e escuta; outra, de ansiedade, devi-do aos afazeres habituais e distração. Maria, sentada aos pés de Jesus, põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés, fica totalmente tomada pelas tarefas e preocupações.
Acolhendo-O e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao contrário, não consegue encontrar a paz; agita-se, preocupa-se, fica insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativis-mo sem sentido, sem intenção, sem motivação...
O ritmo da vida cotidiana tinha aprisionado a Marta, tornando-a surda à escuta da Palavra. Ele recebe Jesus, mas não o escuta. Embora Jesus entre em sua casa, ela o deixa à porta.
Maria, ao contrário, compreende bem o projeto de Jesus e rompe com os preconceitos culturais de sua época. Sua atitude é surpreendente pois está ocupando o lugar próprio de um “discípulo”, que só correspondia aos homens. Em lugar de andar atarefada com as atividades domésticas “próprias das mulheres”, “sentou-se aos pés do Senhor e escutava sua palavra”. Este gesto, reservado culturalmente aos discípulos varões, a confirma como discípula. De fato, Maria fez a melhor opção: decidiu aprender a escutar a Palavra e se deixa interpelar pela presença do Mestre.
Marta, ao fadigar-se com o interminável trabalho da casa, questiona a contraditória atitude de Maria e interpela o Mestre para que sua irmã, como mulher, se “coloque no seu devido lugar”. No fundo, o que ela pede a Jesus é que mande sua irmã voltar às tarefas próprias de toda mulher e deixe de ocupar o lugar reservado aos discípulos varões.
Jesus lhe dá uma resposta inesperada: felicita Maria porque acertou em sua eleição e repreende Marta por deixar-se envolver pelas preocupações cotidianas sem atender ao que é mais importante.
Em nenhum momento Jesus critica Marta por sua atitude de serviço, tarefa fundamental em todo seguimen-to d’Ele, mas a convida a não se deixar absorver por seu trabalho a ponto de perder a paz. E recorda que a escuta de sua Palavra deve ser prioritária para todos, também para as mulheres, e não uma espécie de privilégio dos varões. Jesus não despreza a acolhida de Marta, mas seu modo de trabalhar, nervosa, sob a pressão de muitas ocupações. Ele a alerta, e a todos nós, do perigo de viver absorvidos pelo excesso de atividades, apagando em nós a paz, contagiando nervosismo e cansaço e esvaziando a mística da acolhida.
Tem sido frequente ler este texto em chave dualista, reforçando a superioridade da “vida contemplativa” sobre a “vida ativa”. No entanto, o sentido original do texto está no fato de afirmar a primazia do discipulado acima de qualquer outra atividade. Com efeito, a expressão “estar sentado(a) aos pés de Jesus” constitui a atitude fundamental do “ser discípulo(a)”.
O texto imediatamente anterior, onde o bom samaritano aparece como um modelo por sua ação solidária, impede interpretar a cena de Betânia como uma desqualificação da ação em favor da contemplação; o contexto chama a atenção diante de uma maneira de agir que não nasce da escuta da Palavra, mas do próprio ativismo compulsivo. A escuta da Palavra inspira e dá sentido a toda ação. Ativismo ou ação insensata (sem sentido) revela auto-centramento, comparação, competição, queixa...
Marta se precipita em “fazer” e este “fazer” não nasce de uma escuta atenta da palavra de Jesus, correndo o perigo de se converter em um estéril girar sobre si mesma. Ela se limita, apesar de sua boa intenção, a acolher Jesus em sua casa. Maria, no entanto, o acolhe “dentro de si mesma”, oferece-lhe hospitalidade naquele espaço interior, secreto, e que está reservado só para Ele. Marta oferece “coisas” a Jesus; Maria oferece a si mesma; ela elegeu a “melhor parte”. Marta, ao querer que não faltasse nada ao hóspede importante, acaba deixando passar clamorosamente por alto “a única coisa necessária”.
Podemos pensar que Marta e Maria, mais que duas pessoas, são duas atitudes, duas tendências que todos temos e somos na vida. Muitas vezes vivemos num ativismo desenfreado e acabamos perdendo o fluxo de uma vida mais harmoniosa, integrada e pacificada.
Somos seres de ação, mas também somos seres necessitados de calma, serenidade, contemplação... Como integrar Marta e Maria, como harmonizar ação e contemplação? Eis a questão! Segundo o místico Eckhart, trata-se de deixar subir o que vem do fundo, de executar ações assinaladas pelo selo da interioridade e da profundidade.
“Vai para o teu próprio fundo e lá age! Com efeito, todas as obras que aí executas, vivem!”
Não se trata, portanto, de qualquer ação, mas daquela que vem das profundezas.
A ação que tem sabor e frescor de “nascente”: a ação contemplativa ou o “agir tranquilo”.
Nós, hoje, nos deparamos com um ritmo de vida mais agitado que em épocas anteriores. Os meios proporcionados pela tecnologia para economizar tempo também multiplicam as ocupações e acabam fazendo-nos cair num ativismo desenfreado. E o excesso de preocupações nos leva a esquecer do fundamental...
Nervosismo, inquietação, queixa, confusão, sofrimento... nascem sempre como consequência de nossa identificação com o eu separado. Esse é o “pecado original” porque, nessa crença errônea se origina a ignorância radical que se traduz irremediavelmente em sofrimento.
Desse modo, nossa vivência como discípulos(as) se converte em um tímido cumprimento de algumas normas e obrigações religiosas, sem espaço para o silêncio e a escuta da Palavra. Somos exortados, somos bombardeados continu-amente com mensagens que nos cobram ser mais eficazes, produtivos e competitivos. Mas, com Marta e Maria, Jesus nos interpela e nos chama a investir no essencial: colocar-nos a seus pés para escutar sua palavra.
Texto bíblico: Lc 10,38-42
Na oração: Acolher o convite para entrar na própria casa (interioridade), espaço do encontro com o Divino Mestre.
- des-vele (tire o véu) as preocupações, agitações, ansiedades... ali presentes.
- Seja casa aberta e acolhedora, onde o Senhor vem ao seu encontro para lhe falar ao coração. O encontro com Ele se prolonga no encontro acolhedor com os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.07.22
Imagem: Jan Vermeer
“Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão” (Lc 10,33)
O cristão é um pobre que ama e cuida de outros pobres, um ferido que se faz presente junto a outros feridos. Há um ponto de partida comum: a experiência da pobreza radical de todos que se encontram. Somos seres de relação; é a nossa essência. Nós nos definimos pela maneira como nos fazemos próximos junto aos outros. Esta relação essencial se manifesta como presença que acolhe, cuida, reforça laços, alimenta a comunhão... Há presenças impositivas, indiferentes, manipuladoras e geradoras de conflitos. E há presen-ças “cristificadas”, carregadas de compaixão.
Uma das páginas mais belas e provocativas do Evangelho é a parábola do “bom samaritano. Um desconhecido exemplar que nos oferece algumas chaves interessantes de leitura sobre o que significa atender às pessoas que estão em situação de exclusão e dor. Nesta parábola, Jesus destaca uma imagem que deve inspirar uma presença comprometida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).
O relato começa com uma situação dramática: um homem “ferido de morte” à beira de um caminho. Várias pessoas passam por ele: um sacerdote, “ponte” entre os homens e Deus, e um levita, dedicado ao serviço do Templo. São incapazes de atendê-lo. Dão meia-volta e se vão. Por profissão, ambos conheciam bem a Lei de Deus, a cujo serviço estavam. E, nela, está contida a exigência de humanidade no trato com o semelhante.
Nada disto os moveu a vir em socorro do homem semimorto, caído no caminho. O encontro com Deus no templo não os movia à comunhão com o semelhante em extrema necessidade. Daí terem se desviado do homem semi-morto, passando pelo outro lado do caminho.
Fugir do sofrimento é, certamente, quase um ato reflexo em todos nós. Mas o samaritano, pelo contrário, se deteve, talvez porque sabia o que era ser desprezado (em seu caso, por ser estrangeiro e herege). A experiência da própria dor desperta nele uma grande sensibilidade, ativa um “radar” especial que detecta a dor alheia e o anima a “inclinar-se”, de maneira quase “natural”, para o mais necessitado. Era um dos seus. A redação de Lucas reforça insistentemente os verbos “viu”, “sentiu compaixão” e “cuidou dele”.
Foi suficiente ver o ferido para que se reacendesse a sua compaixão, ou seja, se enternecesse diante da triste situação daquele homem ferido, à beira da estrada. Essa comoção primeira é decisiva porque desperta o desejo de atuar. O que se revela realmente pernicioso é a indiferença, a frieza, e não o sentimento de tristeza e empatia que faz emergir uma corrente de afeto para com o sofredor. O samaritano ficou “afetado” ao contemplar o drama do outro.
A sequência na maneira de agir do samaritano é preciosa e fica perfeitamente refletida na narração através dos verbos: olhar, aproximar-se, enfaixar as feridas, colocar o ferido sobre sua cavalgadura, levar, cuidar, retornar. Uma progressiva implicação que termina alterando seu caminho e sua vida. Seus planos foram mudados. Alguém ferido cruzou seu caminho e já não pode viver à margem desse encontro. Por isso, depois de cumprir com suas obrigações, retorna. Esse homem ferido “permanece” em seu coração.
As vítimas da injustiça estão clamando a nós a “responsabilidade de ter olhos quando outros os perderam” (J. Saramago). Trata-se de educar o olhar que des-vela a mentira da realidade e ao mesmo tempo re-vela suas oportunidades históricas. Educar a visão é deixar-nos olhar pelo outro, pelo pobre, pela vítima do sistema. A honestidade com a realidade reclama de nós uma alteração de nossa visão, um movimento sutil de nossos olhos que nos conduzem a nos colocar-nos “na mira do outro”. Mais ainda, o olhar do outro manifesta que “fora dos pobres não há salvação”.
“Há um corpo caído no chão”: todo corpo é lugar de comunicação, de comunhão, é apelo à proximida-de e ternura. Dele brota uma voz provocativa que, quando acolhida, nos introduz na trilha da “vida eterna”, do horizonte do Sentido; ao passo que, se rejeitada, como aconteceu ao sacerdote e ao levita, os exclui do espaço da vida.
Mas, não basta o olhar; é preciso a “conversão das mãos”. Foi preciso mais que uma mão. Também o dono da hospedaria, possivelmente um judeu, também foi desafiado a superar o preconceito, acreditar no samaritano e aceitar colaborar com ele.
O samaritano conta com a ajuda do dono da hospedaria. Este se torna parceiro na solidariedade quando aceita fazer o que lhe fora pedido. Ele prolonga os gestos humanizadores do samaritano, manifestando seu compromisso com a vida frente ao ferido que aparece inesperadamente em sua pensão.
Depois de apresentada a situação concreta, através de uma parábola, Jesus relança a questão para o mestre da lei: “qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” A resposta brota límpida: não é possível escolher o próximo. Este, na perspectiva de Jesus, irrompe no caminho das pessoas, sem aviso prévio, na condição de vítima, do outro sofredor, carente de socorro.
Quem é capaz de romper esquemas e se transformar em servidor, com total generosidade, faz a experiên-cia de “próximo”, no sentido do discipulado cristão. Por conseguinte, “próximo” tem um sentido bem preciso. Não é qualquer pessoa! É o outro necessitado de ajuda. Por outro lado, só quem tem uma correta imagem de Deus, terá uma correta imagem de próximo. A indiferença do sacerdote e do levita deveu-se a uma falsa concepção de Deus, separado dos seus prediletos. Já o samaritano foi aquele que possuía uma fé verdadeira, expressa em atitudes de elevado padrão de misericórdia.
O verdadeiro seguimento de Jesus nos faz “virar a cabeça” e dirigir nosso olhar para as “margens”, para as “periferias” da história... comprometendo-nos com os prediletos de Deus. Para Jesus, o centro está nas margens; os marginalizados e excluídos são trazidos por Ele ao centro. Por isso, Jesus derruba as barreiras de religião e raça. Para Ele, o verdadeiro culto a Deus acontece nas “margens” e não nos templos.
Na perspectiva cristã, a opção pelos pobres não está vinculada a um voluntarismo ascético-moral, mas a um caminho no qual o ser humano se des-vela como pessoa guiada pelo princípio compaixão, sensível ao sofrimento dos outros e feliz por compartilhar seu ser e seus bens com os despossuídos. É preciso abrir os olhos para ver, dispor o coração para comover-se e estender as mãos para ajudar.
Texto bíblico: Lc 10,25-37
Na oração: Solidariedade é vestir o coração com as roupas do excluído:
- Examinando a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, que esperança você carrega?
- você tem experiências de voluntariado, de solidariedade e de compromisso com os mais excluídos?
- como ser “presença samaritana” no cotidiano de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07.07.22
Imagem: Vincent Van Goh
“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13)
O evangelho indicado para a festa de S. Pedro e S. Paulo nos situa diante de uma pergunta provocativa de Jesus: “e vós quem dizeis que eu sou”. Tal pergunta, dirigida aos discípulos e a cada um de nós, não só ajuda a des-velar (tirar o véu) a verdadeira identidade de Jesus como também nossa identidade original.
Pedro, ao responder – “Tu és o Messias...” – no fundo, estava também deixando transparecer sua própria nobreza interior, aquilo que é o fundamento e sobre a qual se pode construir toda uma vida.
E Jesus, como verdadeiro “pedagogo”, explicita o que estava escondido nas profundezas do coração de Pedro. “Tu és “petra” (rocha, base sólida)”. Essa é a verdadeira identidade de Pedro. Ressoa no interior de cada um de nós esta mesma voz: “Tu és rocha...”
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência, de crescimento, de maturidade.
Só a partir da vivência e da solidez interior poderemos descobrir o que significa Jesus como “Messias, o Filho do Deus vivo”. Só a partir da identificação com Ele é que poderemos também descobrir nossa original filiação, fundamento de nossa vida: “somos filhos e filhas do Deus vivo”.
A filiação é a solidez que nos unifica a todos; ela é a base que sustenta nossa identificação com Jesus Cristo.
Não é fácil tentar responder com sinceridade à pergunta de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”. Na realidade, “quem é Jesus para nós?” Sua pessoa, seu modo original de ser e viver, chega a nós através de vinte séculos de imagens, fórmulas, devoções, experiências, interpretações culturais... que vão desvelando e velando ao mesmo tempo sua riqueza insondável.
Mas, além disso, cada um de nós vai revestindo a Jesus com aquilo que nós somos. E acabamos projetando n’Ele nossos desejos, aspirações, interesses e limitações. E, quase sem nos dar conta, O apequenamos e O desfiguramos, mesmo quando queremos exaltá-lo. Mas Jesus continua vivo e sua presença, na história da humanidade, sempre se revela provocativa e surpreendente. Na realidade, o que notamos é que grande parte dos cristãos não seguem e não se identificam com a Pessoa de Jesus; seguem doutrinas, ritos, algumas obrigações legais... que não tem impacto no modo de viver de cada um. Mas Jesus não se deixa etiquetar nem se deixa reduzir a alguns ritos, algumas fórmulas ou alguns costumes.
Jesus sempre desconcerta a quem se aproxima d’Ele com atitude aberta e sincera. Ele se revela sempre diferente daquilo que pensamos e esperamos. Sempre abre novas brechas em nossa vida, rompe nossos esquemas e nos atrai a uma vida nova. Quanto mais O conhecemos, mais sabemos que ainda estamos começando a descobri-lo.
Responder à pergunta - “quem dizeis que eu sou?” – é “perigoso” porque nos compromete com o modo de viver de Jesus: sua liberdade perante as tradições religiosas, sua relação com os mais pobres, sua opção clara em favor de uma causa humanizadora (Reino), a vivência dos valores presentes nas Bem-aventuranças, a visibilização do mandamento do Amor...
Literalmente falando, Jesus é um “subversivo”, pois sub-verte nosso modo fechado de viver e de nos rela-cionar com os outros. Percebemos nele uma entrega livre que desmascara nosso egoísmo; Ele revela uma paixão pela justiça que sacode nossas seguranças, privilégios e busca de poder; transparece n’Ele uma ternura que deixa descoberto nossa mesquinhez, uma liberdade que põe às claras nossos apegos e dependências.
E, sobretudo, vemos n’Ele um mistério de abertura, proximidade e intimidade com o Deus da Vida, que nos atrai e nos convida também a abrir nossa existência à intimidade com Ele.
Só iremos conhecendo Jesus na medida em que nos identificamos com Ele e nos revestimos de seus sentimentos, valores, critérios... Só há um caminho para aprofundar em seu mistério: segui-Lo; seguir humildemente seus passos, abrir-nos com Ele ao Pai, prolongar seus gestos de amor e ternura para com todos, olhar a vida com seus olhos, compartilhar sua fidelidade à causa do Reino...
Pedro e S. Paulo viveram, por caminhos diferentes, um original encontro com o Mestre da Galiléia. Encontro que des-velou e extraiu o que havia de mais nobre e humano no coração de cada um deles (“tu és rocha” – “tu és paulo”). Foi esta solidez interior, que se visibilizou na maneira original de cada um seguir Jesus Cristo, que os transformou em colunas da Nova Comunidade dos seguidores do Nazareno.
A eles foi conferida uma “autoridade” como caminho para o serviço e a promoção da vida.
Jesus compartilha com eles sua mesma “autoridade” que não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade” porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.
A expressão “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescen-tar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.
“Autoridade” significa recuperar a autoria, ativar a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.
Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Jesus, deveria ser exercida à maneira como Jesus a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.
Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir.
O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.
Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: Suplicar a graça “do conhecimento interno de Jesus para mais amá-lo e mais segui-lo” (S. Inácio).
“Conhecimento” que faz emergir aquilo que é o melhor em seu in-terior, a verdade da sua pessoa, para que você consiga ter uma visão ampla de si mesmo(a) e realizar-se da melhor maneira possível, ativando suas potencialidades. Cada um(a) é diferente, único(a), com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modos próprios de viver...
- Deixe ressoar em seu coração a voz de Jesus: “Tu és rocha firme, sobre a qual quero construir minha morada, em comunhão com o Pai e o Espírito Santo”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.06.22
“Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9,62)
Jesus é muito claro quando se refere à radicalidade no seu seguimento. “Ninguém pode ser meu discípulo se antes não renunciar a tudo o que possui!” (Lc.14,33). Trata-se de uma atitude, uma postura, uma entrega.
E a palavra é “tudo”. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Jesus, ao associar seguidores à sua missão, pede sinceridade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Ele não se contenta com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
A entrega parcial não é entrega. O “apego” a algo ou alguém esvazia a afeição à pessoa de Jesus, travando a entrega e tornando impossível que a relação com Ele cresça, se desenvolva e encha nossa vida de sentido. A entrega total, pelo contrário, traz à luz todos os nossos recursos, desperta nossas potencia-lidades e incendeia nossa fé.
Esta é a atitude genuína e verdadeira diante da vida. Esta determinação é a que abre caminho, avança e ativa a criatividade. Ficar com “alguma coisa” daquilo que Ele pede, fazer as coisas pela “metade”, adiar, regatear, dissimular... é impedir a livre ação da Graça do Pai em nosso interior.
A decisão autêntica é clara, completa e definitiva. Com “meias-tintas” não se escreve bem.
O evangelista Lucas desvela esse jogo do “meio-termo” no relato deste domingo. Duas pessoas manifestam o desejo de seguir Jesus e uma terceira é chamada pelo próprio Jesus. Mas, há algo em comum entre elas: as três apresentam “condições” para fazer o caminho do seguimento. Dizer “condição” equivale a dizer “não”, mantendo as aparências; é continuar apegado às “mediações” (bens, família, pai) sem investir afetivamente no Reino. É medo de avançar, de arriscar, de ousar...
A resposta do meio-termo pode, de fato, causar mais prejuízo do que a negativa sincera, porque uma negativa clara pode um dia levar ao arrependimento e à reconciliação; ao passo que o adiamento cortês, apesar de ser negativa absoluta, cria a impressão de ser um gesto aceitável e embota a consciência.
O auto-engano do “SIM”, mas “NÃO” desemboca na mediocridade, no fazer as coisas pela metade... é a funesta arte do regateio. E a mediocridade não tem lugar no caminho do seguimento de Jesus.
“Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és
és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Apc.3,l5)
O medo de perder “algo” ou “alguém” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...!
O desejo de possuir confunde nossa vida. E já não se trata mais de uma lição moral sobre o vício ou a virtude, mas do impacto psicológico que produz em nosso comportamento o fato de nos sentirmos apegados a algo ou a alguém, com a consequente perda de liberdade e o perigo da dependência que esse apego causa. O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
Para desmascarar nossas justificativas e racionalizações referentes aos nossos apegos, Jesus não contou apenas parábolas; muitas das suas expressões são também enigmáticas e impactantes. Mas é justamente esse modo de falar de Jesus que possui efeito provocativo e surpreendente.
Ao dizer - “deixem que os mortos enterrem os seus mortos” -, Ele nos faz entrar em contato com tudo aquilo que está morto em nós mesmos: tudo que não significa vida, com a rotina repetitiva do nosso dia a dia, com o vazio interior, com as coisas estagnadas da nossa existência.
Com sua linguagem radical, Jesus nos permite chamar as coisas pelo que são e declará-las mortas. Ele convida a nos afastar das coisas que não mais nos dizem respeito e que exigem um alto investimento afetivo. Muitas “aderências afetivas” – bens, posses, pessoas, lugares, poder, vaidade, segurança material – não estão ligadas à nossa vida verdadeira, impedindo-nos de nos concentrar na causa do Reino de Deus e no seu anúncio.
Sabemos que uma das características mais originais do ser humano é a capacidade de assumir compro-missos. Comprometer é empenhar-se radicalmente, é arriscar-se num projeto ousado, é envolver-se numa causa inovadora. No compromisso, joga-se a própria vida. Em Jesus Cristo, a pessoa encontra a realização da empresa mais nobre e a garantia de poder entregar-se a ela sem se enganar.
O ato de decidir é o mais nobre e profundo de todos os atos do ser humano, a própria definição da pessoa e a expressão última de sua dignidade. E precisamente porque é nobre e profundo, definindo a identidade de cada pessoa, decidir torna-se difícil e penoso. Por isso sua reação instintiva ao enfrentar uma decisão é tratar de evitá-la, dissimulá-la, adiá-la.
Custa decidir porque lhe custa definir. Muitos pertencem à “confraria do último dia”.
Chegamos à pós-modernidade com enorme carga de medo; medo cruel que alcança todo mundo, medo que afeta os corajosos e agride os ousados: medo de comprometer-se, medo de definir-se, medo de equivocar-se, medo de enfrentar, medo de ter de agir, medo de fazer opções, medo da própria missão...
O medo corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade.
O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”.
O medo cega os canais do discernimento, imobiliza o mecanismo das decisões.
Quem teme não pode decidir bem. Sob a influência do medo, o olhar, o pulso, o equilíbrio deixam de ser o que deveriam ser e de agir como deveria agir. O ambiente se turva e a eleição se frustra.
Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexi-dades e responsabilidades. Isto nos faz descer ao chão da vida, despertar nossas energias, encontrar a nós mesmos.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se con-figurar, movimento pelo qual a pessoa vai sendo modelada à imagem de Jesus.
O seguimento de Jesus Cristo pressupõe uma pessoa capaz de sair de si mesma, de des-centrar, com coragem de arriscar. Sem se abrir ao “magis”, que habita o coração humano, não haverá desejos de identificação com o Peregrino da Galiléia.
Diante do Cristo que chama, a pessoa sente-se pro-vocada, chamada a superar-se, desafiada a arriscar e a ser “mais”. É preciso sonhar alto, ter ideais, ser uma pessoa corajosa e marcada pela esperança para poder “escutar” o apelo de Cristo; é preciso ser apaixonado, deixar-se empolgar, aceitar correr riscos na vida para saber o que significa o “comigo” de Cristo; é indispensável uma enorme generosidade para se dedicar incondicionalmente a uma grande causa; é preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico: Lc 9,51-62
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos atrofiados; é tudo manifestação de nossos “afetos desordenados”.
- No seguimento de Jesus, o que prevalece em sua vida? Adesão incondicional à pessoa d’Ele ou seguimento sob condições? Que “apegos” travam sua vida, exigindo um alto investimento afetivo?
- Que paixão move sua vida? Seu coração está livre?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.06.22
Imagem: James Tissot
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