“Eu Sou a Ressurreição e a Vida” (Jo 11,25)
O tempo quaresmal caminha para o ponto culminante: a vivência do Mistério Pascal, a celebração da Vida plena, sem as amarras e os condicionamentos que travam o fluir de nossa vida. Tal como um sentinela, situado numa posição estratégica, já estamos vislumbrando no horizonte os sinais da Páscoa.
Por isso, a liturgia deste domingo nos traz um relato inspirador, onde Jesus se revela como a Porta da Vida. Cruzar essa porta é apelo Seu, mas é decisão nossa empurrá-la suavemente para dentro e avançar em direção à vida que, a partir do mais íntimo, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
No contexto anterior à ressurreição de Lázaro aparece de novo o tema das obras, desta vez em relação com o verbo crer: “Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim. Mas, se eu as faço, mesmo que não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, para que saibais e reconheceis que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10,37-38). Na cena deste domingo, Jesus vai realizar a obra por excelência do Pai que é comunicar Vida, destravando-a das faixas e tirando-a do túmulo da morte.
A beleza e a sabedoria do relato deste 5º. domingo da Quaresma consistem em integrar, na pessoa mesma de Jesus, uma dupla afirmação: “Jesus chorou” e “Eu sou a ressurreição e a vida”.
Essa é, justamente, nossa condição humana: somos seres frágeis, sensíveis, a quem nos afeta o que acontece e, ao mesmo tempo, somos Vida que se encontra sempre a salvo. Nós nos percebemos como pura necessida-de e carência – portanto, vulneráveis -, mas, ao mesmo tempo, somos plenitude à qual nada lhe falta.
Como Jesus, somos, ao mesmo tempo, sensibilidade – por isso choramos -, e somos Vida. E isto é o que na tradição cristã se expressou com o termo “ressurreição”.
Assim fez Jesus em Betânia: mostrou sua vulnerabilidade humana frente o amigo “que dorme”.
A morte será sempre uma história de dor e lágrimas. Quem não experimentou dor diante do sofrimento e morte de um ser querido? Quem não se sentiu, como Marta e Maria, em muitos momentos?
Também Ele sente os golpes da vida, sente a dor de quem perde um irmão e se faz solidário.
O sofrimento pode nos despertar para a dimensão de profundidade da realidade e de nós mesmos. Mas necessitamos passar por um processo de transformação para que o sofrimento e a dor nos abram ao Mistério e não nos afundem no desespero. Jesus vai ajudar Marta e Maria a passar por este processo.
Voltar à casa de seus amigos, num momento em que eles estão tão feridos, supõe também a Jesus deixar-se ferir. Algo terá Ele que perder para dar-lhe ao amigo. A amizade nos faz vulneráveis: “Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais outra vez para lá?”
Jesus vai abraçar a perda de seu amigo até o fundo; e quando a dor e a perda se abraçam, deixam de ser nossos inimigos. “Ficou interiormente comovido e se aproximou do túmulo”, que um dia acolherá também seu corpo. Percorreu assim o caminho que depois percorreriam as mulheres depois de sua morte.
As perdas, a dor, a morte, aproximam uns dos outros. Marta e Maria já não estão numa relação de compe-tição nem de rivalidade e enviam, juntas, uma mensagem a Jesus. Mensagem que revela uma confiança profunda nas possibilidades do amor: “Senhor, aquele que amas está doente”. Não lhe dizem “nosso irmão”, porque querem vinculá-lo a Jesus.
A amizade leva-as a crer nas possibilidades latentes no amigo, em seu potencial ilimitado, em sua capacidade de amar e ser amado, em toda a novidade que quer irromper nele.E é nesta situação de vulnerabilidade onde Marta se deixa ordenar e faz sua aprendizagem de verdadeira discípula. Que foi aprendendo Marta desde aquela vez que pedia ajuda à sua irmã? Agora é uma mulher que cresceu e que se atreve a expressar uma petição maior, não mais para si mesma, mas para seu irmão, e diz a Jesus: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido... Mesmo assim, eu sei que tudo o que se pede a Deus, Ele te concederá”.
Este contato com seu amigo Jesus, num momento em que ambos compartilham a dor pela perda da pessoa querida, vai fazer Marta amadurecer. Daí em diante será uma mulher desperta, capaz de despertar a outros, e por isso pode dizer à sua irmã: “O Mestre está aí e te chama”.
Jesus foi “traído” pelo seu afeto. Aquele que é o Senhor da Vida, o vencedor da morte, tem um coração que ama como o coração do irmão mais fiel, do pai mais sensível... Jesus é atingido pela dor, é agitado por uma perturbação que brota de dentro dele mesmo e que não consegue controlar; a causa da sua emoção é a presença trágica da morte nos que o rodeiam, mas também com a sua morte iminente, que será devastadora.
Diante da morte, todos sentimos nossa impotência. Queremos que o enfermo fique curado e viva. A ciência médica hoje pode ampliar alguns anos de nossa vida, mas no final a morte termina vencendo o enfermo.
No texto evangélico deste domingo, Jesus, na força do Espírito, comanda a ação: pede às pessoas que afastem a pedra e que soltem as amarras de Lázaro, para que ele possa andar. A ação de Jesus é expansiva pois mobiliza as pessoas para que, por meio de sua cooperação, a vida seja destravada.
A vida com as amarras da fome, da exclusão, da violência... não pode ser chamada de vida. Diante de uma sociedade que se especializa em impor pesadas pedras e faixas imobilizadoras, defender a vida é caminhar na contramão de tudo que nos diminui como seres humanos. Há ainda aqueles que vivem a resignação do “quarto dia”, o dia da morte da esperança (para o judeu, o 4o. dia representava o começo da decomposição do corpo). Essas pessoas também precisam ser desamarradas da falta de perspectivas, da falta de esperança, da descrença na vida, da falta de fé n’Aquele que venceu para sempre a morte com todas as suas amarras.
Na 1ª. leitura deste domingo, Deus nos fala através do profeta: “Ó meu povo, abrirei os vossos sepulcros” (Ez 37,12). É uma maneira metafórica de falar. Mas anuncia o cumprimento da maior esperança humana, a vitória sobre a morte. O Deus que nos tirou do nada pode também nos tirar da tumba. É a força de seu amor, a força de seu Espírito.
E não devemos pensar só na morte biológica. Há muitas maneiras de morrer antes dessa morte. Cada um pode conhecer como se chama seu sepulcro (sepulcro da rotina, do medo, do desespero, da perda de fé, da tristeza, do ódio e da intolerância, do preconceito...). E poderíamos nos referir a sepulcros dos vícios, das escravidões íntimas, do consumismo desenfreado, da ignorância, do negacionismo, da falta de liberdade... E, sobretudo, poderíamos nos referir ao sepulcro gigantesco e vergonhoso da miséria e da fome, provocadas pela injustiça e falta de solidariedade.
Todos são sepulcros construídos por nós mesmos. Quem nos livrará de nossos sepulcros! No encontro com Aquele que é Vida, somos movidos a arrancar nossas faixas que impedem nossos movimentos e sair de nossos próprios túmulos.
Crer na Ressurreição é já viver como ressuscitados.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: Em companhia d’Aquele que é Vida, desça em seu túmulo interior e visualize as “faixas” que estão travando sua vida.
- Deixe ressoar o grito de Jesus: “............ vem para fora!”
- “Viver como ressuscitados(as)”: esta é a paixão que inspira todo(a) seguidor(a) de Jesus. Deixe-se iluminar, leve a luz da vida nas suas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de seu cotidiano.
Páscoa é ter diante de si os desafios da vida.
Rompido o túmulo, resta caminhar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.03.2023
Imagem:
The Raising of Lazarus
Andrea Vaccaro (Italian, 1604-1670)
“Enquanto estou no mundo, Sou a Luz do mundo” (Jo 9,5)
A cura do cego de nascença (Jo 9) revela-se como uma instigante narrativa que requer ser lida em seu contexto imediatamente anterior; ali encontramos uma discussão de Jesus com os judeus e que começa com esta afirmação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Frente à cegueira cultural-religiosa, Jesus se mostra como Luz na vida.
O relato deste domingo nos põe em contato com Jesus que traz Luz-Vida. Ele não só se revela como Luz, mas, através de seu “toque”, ativa a luz presente naquele que não podia ver a luz do dia. Como no caso da samaritana, é Jesus quem toma a iniciativa, mas o interessado deve responder pessoalmente.
Todo o relato é simbólico; as alusões ao batismo são constantes. A Igreja primitiva chamava o batismo “photismós”, que significa “iluminação”. Trata-se de indicar aos catecúmenos o caminho que precisam percorrer antes do batismo.
Este cego de nascença representa toda a humanidade, porque, em certo sentido, todos somos cegos enquanto não acolhamos Aquele que é Luz. Esta cegueira é a que impede ver a verdade que nos fará livres. Somos cegos quando nos fechamos em nossa mentalidade, critérios, ideologias... Somos cegos quando nos petrificamos no fanatismo, na intolerância e na resistência em perceber a luz que habita naquele que pensa e sente de maneira diferente.
“Jesus ia passando, quando viu um cego de nascença”. O “passar” é uma evocação do caminho do Êxodo, caminho de liberdade. No deserto, Deus é o “clarão” que orienta e move o povo de Israel a fazer a travessia da terra da escuridão para a terra da liberdade. Jesus é Luz que “passa” em meio ao mundo da marginalidade e da exclusão, reacendo a luz da esperança e da vida em cada pessoa.
Jesus é a “Luz que toca”; aqui aparece, com muita força, o símbolo do contato físico. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato; é a idade da comunhão, a idade da ternura materna. O caminho do tato é o da mais profunda comunhão. Jesus tocava pessoas feridas, quebradas... e sua gestualidade prolongava o sexto dia da Criação.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravi-lhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato.
Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
Existem forças reconstrutoras presentes em todos nós. Através de suas palavras e do seu toque, o Mestre da Galiléia restabelece o contato do cego com a fonte, com os seus recursos interiores. Esses recursos existem em cada pessoa, e cada um pode aproveitá-los. Através do encontro com Jesus e do seu toque, as pessoas descobrem os recursos interiores que devem ser mobilizados. Ele confia nas forças de autocura do ser humano; não precisa fazer tudo sozinho.
No encontro com Jesus, o doente entra em contato consigo mesmo, com as fontes interiores que o Pai lhe deu: estas são as fontes das forças de autocura, de dons e habilidades, de força e de esperança.
Jesus não explica, não faz uma teoria sobre a origem da cegueira (quem pecou?). Realiza algo muito maior: ajuda o cego, afasta-o da cidade alta (dominada por sacerdotes e escribas) e o convida a descer à fonte da vida, abaixo, no manancial de Siloé, que é sinal profético de abundância e de iluminação futura.
Este cego é o homem que não consegue ver desde o nascimento; não se trata de pecado, mas da própria situação vital, da cegueira humana que se expressa, de um modo claro, neste ser humano. Há muitos que lhe querem ensinar a ver (os mestres da lei), mas lhe deixam na cegueira. É uma cegueira que começa sendo externa (não ver as coisas, não compreender o sentido da vida) e que termina sendo interior (não saber quem é, em quem pode confiar, viver sendo manipulado por outros).
Podemos, então, afirmar que o relato de João é um “texto de rebelião”, um texto que denuncia toda religião que aprisiona as pessoas nas trevas do sentimento de culpa, de medo e de impotência. É o testemunho de Jesus que se rebela contra aqueles que querem manter as pessoas cegas, travando a verdadeira identidade delas que se revela como participação na luz divina, presente no interior de cada uma.
Contra tal situação Jesus diz ao cego de Siloé que se rebele, que não permaneça cego à beira do caminho, que veja por si mesmo, que decida, que confesse sua nova liberdade mesmo que isto lhe custe a rejeição das autoridades religiosas, inclusive de seus próprios familiares.
Junto ao cego de nascença se faz visível o pecado de todas as pessoas que não lhe ajudam, que não querem entendê-lo, que o submetem às suas leis e conveniências. Pois bem, Jesus não consola o cego (em sentido superficial), mas lhe diz para ser ele mesmo, que assuma sua própria vida, que desça à água, que se purifique... Jesus mesmo põe barro nos olhos do cego (terra com saliva, alento vital) e lhe diz que vá, que veja, que não tenha medo, que assuma seu destino... Jesus não cria dependência; ativa no cego sua autonomia para que ele seja autor de sua própria vida, inclusive correndo riscos de ser rejeitado.
No fundo, Jesus pede ao cego que se rebele contra uma lei de cegueira, que o obriga a mendigar, sob a “caridade” dos mestres cegos que vivem à custa da cegueira dos outros. Pede-lhe que se rebele, que deixe seu lugar de mendigo, que saia da margem e que recupere sua verdadeira identidade. Trata-se de uma rebelião para a liberdade, para a vida. É uma rebelião que conduz ao encontro com Jesus que é simplesmente “filho do homem”, o homem em plenitude.
O cego passa a crer em Jesus como “filho do homem”, ou seja, como humanidade libertada e libertadora.
Pouco a pouco, o mendigo vai ficando sozinho. Seus pais não o defendem; os dirigentes religiosos o expulsam da sinagoga. Ao ver a realidade com o novo olhar que Jesus lhe ofereceu, já não cabia dentro da sinagoga, lugar de uma atrofiada visão de Deus e da vida.
O que era cego experimentou o amor gratuito e libertador. Para ele é impossível negar o que pessoalmente viveu. Do mesmo modo que Jesus teve que sair do templo, o cego que recebeu a luz, foi expulso da sinagoga.
Jesus não veio colocar uma pequena vela sobre nossas cabeças, mas acender nossa existência humana para que brilhemos a partir de nosso interior, com luz própria. Cada um de nós carrega dentro o combustível inextinguível da luz, colocada por Aquele que é Luz e que ilumina constantemente nossa existência.
Ao despertar, caímos na conta de que não somos o “ego inflado” criado por nossa mente, mas o “eu sou” universal, numa identidade compartilhada com todos.
A luz da treva é sedutora, mentirosa e assassina. Todos levamos dentro resquícios de trevas, espaços onde ainda não deixamos entrar a luz.
Por um lado, temos a luz, a visão e a vida. Por outro, as trevas, a cegueira e a morte. No meio, a longa gestação da luz dentro de nós, que pode progredir na visão de Deus e do mundo como o cego curado, ou que pode crescer também na cegueira das trevas como as autoridades que negam o evidente. Este é o dilema: “Ver ou perecer” (cf. Benjamin Buelta, sj).
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração: Aquele(a) é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo dife-rente a realidade que o cerca.
Espeleologia é a ciência das cavernas.
A oração é a “espeleologia” que se dedica a explorar as cavernas do “eu profundo”: nossa dimensão iluminada.
O “eu profundo” é um emaranhado de cavernas iluminadas por uma luz que se insinua por frestas estreitas, cavernas que vão ficando cada vez mais fundas e escuras. Lugar do silêncio e da escuta atenta.
Ao entrar na caverna o medo se manifesta; são poucos os que tem coragem de fazer este percurso. Lá dentro tudo é diferente. As vozes se transformam em sussurros; a pupila dos olhos aumenta; também cresce o assombro diante das novas descobertas.
Aqui nos descobrimos sozinhos. Há solidão e silêncio, habitados por uma Presença iluminante e iluminadora que tudo harmoniza, integra e pacifica. Aqui está enraizada nossa identidade (“sou eu”), a verdade do “eu profundo” onde as palavras cessam e podemos ouvir uma serena melodia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.03.23
“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
Nestes próximos três domingos da Quaresma a liturgia nos apresenta três grandes relatos do evangelho de João: a samaritana, o cego de nascimento e a revivificação de Lázaro.
A expressão “Eu sou”, característico do quarto evangelho, se encontra nestas três cenas: “eu sou a Água viva”, “eu sou a Luz”, “eu sou a Vida”. São imagens-símbolo que des-velam e nos ajudam a compreender a verdadeira identidade de Jesus; ao mesmo tempo, são imagens que também revelam nossa identidade. É no encontro destas duas identidades que se fundamenta o sentido profundo do seguimento de Jesus.
A Quaresma se apresenta como momento oportuno para enraizar nossa vida n’Aquele que “morreu de tanto viver”; afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de uma religião, de uma doutrina... Seguir Jesus implica tornar visível em nossa vida o modo de ser e viver d’Aquele que foi o “biófilo”: amigo da vida.
O relato deste domingo – encontro de Jesus com a samaritana – é uma verdadeira catequese, que nos convi-da ao seguimento d’Aquele que é a Fonte da Vida. Nem no templo, nem em Jerusalém, nem em nenhum outro lugar se pode viver o verdadeiro culto, que se revela como encontro e identificação com Jesus.
Muitas vezes, o que entendemos por prestar culto é apenas idolatria: a tentativa de domesticar e manipular Deus segundo os nossos interesses.
Uma mulher da Samaria chega a um poço para tirar água, alheia a tudo o que ali a espera e distraída na trivialidade de sua vida cotidiana que não se abre ao imprevisível: vai só buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem mais planos, nem mais desejos.
Mas o imprevisível está lhe esperando na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço e que inicia uma conversação com ela sobre coisas banais, talvez para não a assustar: falam de água e de sede, de poços e de velhas rixas entre os povos vizinhos, coisas de todos os dias. Repentinamente, irrompe a linguagem “das coisas do alto”, o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede pacificada para sempre, um Deus em busca do ser humano, fora dos espaços estreitos de templos e santuários.
E, no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, fica esquecido junto ao poço, agora já inútil pois não pode conter uma água viva.
A sede da samaritana – e a de Jesus – é a mesma sede de todo ser humano: é insatisfação radical que não pode ser saciada por nada humano. A sede representa as necessidades e aspirações fundamentais do ser humano: sede de sentido e de plenitude, sede de comunhão e de encontro, sede de vida...
Somos pessoas-sede!
A sede é uma água que nos habita e nos dá vida. A sede é fundamental, essencial. O nosso coração é um «interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de verdade. Sede de reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio. Sede de novas palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade autêntica. Sede de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).
Como um bom pedagogo, Jesus acompanha a samaritana a descobrir o desejo de água fresca, a saudade humana de amor e felicidade.
Em termos orantes, o ser humano, todos nós, temos “sede do Deus vivo” (Sl 42,3), que brota de nossa terra ressequida, rachada, sem água: suspiramos como a corça suspira pelas torrentes de água, por Deus. Só o Senhor nos conduz para as fontes tranquilas (Sl 22).
Neste precioso e profundo relato do evangelho de João são tantos os temas que o autor vai alinhavando, a partir de diferentes níveis (histórico, simbólico, espiritual), que se torna impossível aprofundá-los em um breve comentário. A imagem da sede remete à nossa aspiração profunda, incapaz de ser saciada por nenhum objeto. A imagem da água, por sua vez, nos remete à nossa identidade original, que está brotando constante-mente em nosso interior.
Jesus aparece como o mestre que nos liberta de enganos e de falsas identificações, para que possamos entrar em contato com a “água viva” que Ele mesmo já saboreia, a única que torna possível “nunca mais ter sede”.
Essa água não é “algo” – algum objeto que possa nos preencher – nem se encontra longe de nós. Constitui nosso núcleo mais profundo. O que normalmente acontece é que – como a samaritana – estamos longe dela. Ao viver “fora” de nós, desconectados da fonte, nos acontece aquilo que S. Agostinho lamentava:
“Tarde te amei, beleza sempre antiga e sempre nova, tarde te amei! No entanto, Tu estavas dentro de mim e era eu quem estava fora”.
O importante é saber que a “beleza sempre antiga e sempre nova” não é “algo” (ou “alguém”) separado de nós, embora possamos nos dirigir a ela em chave relacional, nomeando-a como um “Tú”.
É outro nome da “água” de que falava Jesus, e constitui nossa identidade última, aquela na qual nos reconhecemos quando nossa mente se silencia; aquela que saboreamos quando, simplesmente, nos deixamos ser; aquela que está sempre a salvo e que, para além das aparências mentais, partilhamos com todos os seres.
O encontro com Jesus move a samaritana e, nos convida também, a descobrir o manancial de água viva que flui em nossas entranhas em lugar de continuar sendo buscadores de “poços no deserto”.
Jesus espera a samaritana, como espera cada um de nós, ali onde está a trama de nossa vida. Ele inicia sempre o encontro pedindo-nos daquilo que já recebemos, do que já temos... Junto a Sicar ou ao lado de nossos próprios poços... Não é preciso percorrer um caminho diferente, não pede a ela, nem a nós, ir a nenhum templo, nem lugar sagrado; nossa própria vida, com as circunstâncias nas quais vivemos, é o lugar em que Jesus se faz presente. Às vezes o escutamos e outras nem sequer o vemos.
Ali nos pede, como à samaritana, que entremos no mais íntimo de nós mesmos, que desçamos ao nosso próprio centro, à nossa realidade profunda, que estejamos atentos à nossa própria fonte e à fonte dos outros. O encontro com Jesus não acontece na superfície de nossa vida, no banal ou impessoal, nas aparências ou falsas imagens que tantas vezes alimentamos. A presença d’Ele des-vela (tira o véu) nosso manancial, muitas vezes bloqueado por uma cultura da exterioridade que nos resseca e torna estéril nossa vida.
Em nosso percurso existencial encontramos, muitas vezes, pessoas que são verdadeiras nascentes. São límpidas e transparentes, inspiradoras e mobilizadora, habitualmente delicadas. Estar na presença delas é saciar nossa sede, saímos renovados. São pessoas-fonte que despertam em nós o desejo de acessar nosso manancial interior de desejos, criatividade e busca... É ali, na fonte interior, que a vida se renova.
Outras vezes nos encontramos com pessoas que são verdadeiros lençóis de água. Subterrâneas, circulam debaixo da terra, discretas, silenciosas, mas surpreendentemente criativas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem do mundo com seus gestos escondidos, simples, mas eficazes; suas presenças fazem a diferença. Sem elas não seria possível a vida.
É certo que também há as pessoas pântano, pessoas charco, pessoas “águas paradas” ou águas poluídas, pessoas “enxurrada” que tudo destroem. Claramente, nem todas as águas são boas!
Bebemos de muitas águas e partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora, e em diversas fases da vida, muitas destas águas. A água é dinâmica, viva. Como nós. Não somos estáticos, mas vamos no expandindo ao longo da vida, regando ambientes secos e áridos. Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados poderemos saciar, ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. No entanto, em nós convivem miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e movimento, água boa e água pior. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o encontro destas duas realidades constitui nossa verdadeira identidade.
Tentar só guardar a nossa água ou permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e morrer. Sondar as nossas águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de vida e redenção.
Afinal, Jesus fez-se sede para nos redimir.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: Somos seres insaciáveis, insatisfeitos; vivemos eternamente buscando, sem saber o quê. Em contato com o “poço infinito” (nosso interior), sentimos a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenchemo-lo com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio... e sentimo-nos frustrados, porque nada nos satisfaz. Precisamos ativar outras “sedes”.
- Dê nomes às suas “sedes existenciais” que o(a) mantém criativo(a), buscador(a)...
- Escave seu interior e verifique a “qualidade” da água que brota do seu manancial?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.03.23
“O seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz...” (Mt 17,2)
O evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta um acontecimento muito profundo e transcendente da vida de Jesus, na presença de seus discípulos. O contexto desta passagem é a subida de Jesus a Jerusalém, antes de sua morte. O Mestre leva consigo três discípulos com os quais já tivera dificuldades devido à falta de compreensão deles com relação à sua missão. Pedro tentara desviar Jesus de seu caminho de Cruz e os outros dois, João e Tiago, disputavam os primeiros lugares no Reino. Jesus deseja revelar a eles, e a nós, que há uma dimensão muito mais profunda neste seguimento e que o impulso egóico deve se esvaziar diante da transcendência de uma vida que se faz entrega.
Ali, no Monte Tabor, também aparecem dois personagens que são referenciais na tradição judaica: Elias e Moisés. Elias é aquele que lhes revela que a Divindade é uma presença única como brisa suave e que se comunica como sussurro interior no mais profundo do ser humano, algo inesgotável. Moisés, em outra dimensão, revela que a Divindade atua na história como ação libertadora de toda opressão.
Na transfiguração, Jesus vai além destes dois personagens e revela que não é um profeta eleito para nos ensinar quem é e como é Deus; Ele mesmo deixa transparecer sua divindade e revela que toda a humanidade é chamada a visibilizar a presença divina em cada um. Deus é Luz que envolve a realidade humana na pessoa de Jesus, e é Palavra dirigida agora aos discípulos para lhes comunicar que Ele é o Filho Amado.
Já vimos no Batismo que essa voz foi dirigida somente a Jesus; mas a revelação continua avançando e essa Voz agora é dirigida aos discípulos e a cada um de nós. Na verdade, todos(as) somos “filhos e filhas amados(as)”; todos somos um pequeno “sol”, conectados com o Grande Sol que tudo ilumina. Somos criaturas profundamente amadas, para além de nossos medos e inseguranças, para além das imagens que temos ou que outros têm de nós. A nossa condição humana se “transfigura” na “filiação divina”: aqui está a nobreza e a grandeza de cada um de nós.
A Transfiguração de Jesus nos mobiliza a ultrapassar a superficialidade da realidade e nos impulsiona a ir além das aparências: é a profundidade de um rosto, de um acontecimento ou de um ato que pode chegar a transfigurar nossas vidas. É questão de ativar um novo olhar que vai se aprofundando, um olhar contemplativo que que vai além do imediato e faz captar o sentido de tudo e de todos; um olhar que nos revela nossa verdade mais profunda; um olhar que percebe a luz escondida em meio às sombras da vida.
É o olhar de um amor não condicionado que transfigura nossa vida e irrompe em nosso corpo e em nossos olhos em forma de uma luz suave e intensa que nos impacta.
Esse é o olhar verdadeiro sobre nossas vidas, aquele que desperta as fontes de amor adormecidas em nós.
Esse é o olhar que nos pacifica, elimina toda inquietação e nos faz dizer com Pedro: “Senhor, é bom estarmos aqui”.
A Transfiguração de Jesus põe em evidência nossa condição humana; de um lado, ela deixa transparecer que, como humanos, somos frágeis e vulneráveis, carentes de necessidades, e que buscamos nos apegar àquilo que nos promete segurança; no entanto, de outro lado, ela manifesta que, na nossa essência, somos partícipes da Luz divina, plenitude de presença, em profunda unidade com tudo e com todos.
O “relato das tentações” de domingo passado nos situou frente à nossa condição de vulnerabilidade e carências (busca de poder, prestígio, riqueza...); o “relato da transfiguração” deste domingo des-vela (tira o véu) a luminosidade que somos. Ambos os relatos revelam nossa natureza contraditória: somos Plenitude que se expressa na vulnerabilidade, somos luzes e sombras, seres enraizados, mas abertos ao horizonte, carregados de “bem-aventuranças” e de “mal-aventuranças, vida que se expande e vida que se retrai...
A sabedoria cristã integra estes dois polos de nossa vida: o absoluto e o temporal, o oculto e o manifesto, a identidade e o ego inflado, interioridade e exterioridade... É do encontro dos polos contrários que brota a energia, a criatividade, o espírito de busca...
O tempo quaresmal, inspirado pela pessoa de Jesus Cristo, nos faz “descer” ao chão de nossa vida e nos colocar diante da nossa realidade contraditória: justa e injusta, pacífica e violenta, amorosa e odiosa, sincera e falsa, fiel e infiel... É preciso ser sábio o bastante para crescer na consciência da nossa identidade profunda e não ficarmos presos e fechados na ignorância sobre aquilo que “somos”. Na essência, somos “luz” e, no entanto, vivemos perdidos nas sombras da culpa, preocupação, competição, ativismo, perfeccionismo...
É preciso avançar na compreensão e na consciência do que pensamos, do que sentimos, do que fazemos, do que vemos e ouvimos... a partir do nosso ser profundo. E isso é luminosidade, transparência, trans-figu-ração, plenitude de presença. Na realidade, isso que somos não tem, e nem pode ter, um nome adequado, porque escapa e vai além do sentido das palavras. Dizia José Saramago que “em nós há algo que não tem nome. Esse algo é o que somos”. Isso que somos só pode ser percebido quando calamos nossa mente, nossas concepções estreitas, nossas visões atrofiadas... O monte da transfiguração nos desafia a contemplar nossa interioridade sem o filtro dos pre-conceitos, ideias, percepções...
Celebrar a “transfiguração de Jesus” é despertar nosso ser, nossa essência, nossa originalidade... No encontro com o Jesus transfigurado, também nos trans-figuramos. Já somos “seres transfigurados” e não sabíamos disso. A transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas significa uma abertura à realidade cotidiana e tomar consciência de que a vida e a história estão cheias de sentido. A realidade torna-se “diáfana” (transparência) e nos impulsiona a ir além da pura materialidade.
A transfiguração é mistério de mão dupla: por um lado, nos “diviniza” ao revelar que somos “filhos(as) amados(as); por outro, nos “humaniza”, pois nada do que é humano é descartado; todas as dimensões que compõem nosso ser (corpo, razão, afetividade, coração, memória, vontade, relações...) são perpassadas pela realidade divina que nos habita. Somos seres de transcendência e de enraizamento.
Assim, a transfiguração não é um evento que acontece num determinado momento especial, mas um “modo de ser e de viver” na realidade cotidiana; só quem tem sensibilidade contemplativa pode perceber e entrar no fluxo da transformação, sendo presença transfigurada e iluminante.
Um entardecer, um encontro com alguém, uma ação oblativa, uma oração... podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade e a beleza.
Há pessoas petrificadas por dentro que tudo o que tocam, ou o ambiente em que vivem, se transforma em sombra pesada: a vida familiar, comunitária, política, trabalho, ambiente eclesial... Outras, pelo contrário, transfiguram a vida e os problemas, desafios, cuja presença proporcionam um clima de paz; há quem transforma a vida, a enfermidade, os desafios em paz e serenidade. Há quem transfigura a guerra em paz, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de aceitação da própria finitude, o desespero em esperan-ça... Há pessoas que bloqueiam a ação da luz presente em seu interior; há outras que, tal como um vitral, deixam a luz divina atravessar sua vida e transmitem a luz da bondade, da proximidade, da compaixão...
Enfim, viver é transfigurar a existência, iluminá-la, transcendê-la...
Texto bíblico: Mt 17, 1-9
Na oração: Quem crê se torna luz, reflexo da Luz de Jesus transfigurado.
A vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”. Somos portadores da “luz nova”; não extinguir essa luz que queima dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça, o tesouro que nos foi confiado no batismo.
Devemos guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração, estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.
- Sou pessoa que transfigura a realidade da vida? Deixo transparecer a luz da bondade, do amor, da compaixão que habita em mim? Sou presença “radiante” que tudo des-vela, ilumina...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.08.23
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4)
O primeiro domingo da Quaresma nos des-loca até o “deserto das tentações”; ali Jesus se deparou com as grandes “fomes que desumanizam”: “pão do ego”, “poder auto-centrado”, “vaidade estéril”.
Jesus foi conduzido ao deserto imediatamente depois do seu batismo, com a palavra do Pai ressoando em seu coração: “Tu és meu filho amado...”; mas agora, no deserto, vai escutar outras palavras que “tentam” convencê-lo para que não ponha o centro de sua vida nesse amor, mas no poder, na vida fácil, na fama, nas posses... O relato das tentações resume simbolicamente outros momentos da vida de Jesus nos quais esteve submetido à alternativa entre “a maneira de pensar de Deus” ou “a maneira humana”.
As tentações foram uma ocasião privilegiada para Jesus ativar as “grandes fomes que humanizam”: fome de vida doada, fome do Reino, fome de comunhão, de pão partilhado, de compromisso solidário...
Conduzido pela força do Espírito, Ele viveu uma integração a partir de seu coração e não se deixou levar pelas aparências enganosas.
Sua vocação à messianidade ficou clara no batismo; agora, tratava-se de buscar os meios para viver sua missão. No seu discernimento, Jesus sentiu que o poder, a riqueza, o prestígio não são “meios” para realizar a Vontade do Pai; pelo contrário, inspirado pelo Espírito, elegeu o caminho do esvaziamento de si, da pobreza e do compromisso solidário com os mais pobres e excluídos. Sua missão como Messias devia começar nas periferias, junto aos abandonados pelo poder religioso e civil da época.
À luz do discernimento de Jesus, também nós, durante esta Quaresma, seremos conduzidos pelo Espírito ao deserto interior para o despertar das “fomes” que nos tornam mais sensíveis, abertos à realidade, comprometidos na partilha do “pão”, que é dom e deve chegar a todos.
A Campanha da Fraternidade (CF) deste ano nos alerta para o drama da fome, escândalo e incoerência na vivência do seguimento de Jesus.
Sabemos que a fome e a sede são mecanismos fundamentais dos seres vivos. Todo ser vivente necessita nutrição e hidratação, mas, nos seres humanos, estas necessidades biológicas têm caráter social. Em muitas culturas humanas, compartilhar o alimento e a bebida revela-se como gesto de socialização e de integração.
Na experiência cristã, esta necessidade vital é transladada ao campo da fé: o alimento é dom do Criador para todos. O problema crônico da atualidade não é unicamente a satisfação das necessidades básicas, mas também o despertar de uma consciência que exija a justa distribuição dos recursos naturais, para que a humanidade cultive o melhor de si mesma e viva a solidariedade e a justiça como um projeto social alternativo frente às políticas egoístas e concentradoras de bens.
A CF nos revela que a fome tem várias raízes (escassez de recursos, alterações climáticas, subdesenvol-vimento de alguns povos...); no entanto, em sentido mais profundo, ela provém de duas causas principais: a) o egoísmo de grupos e indivíduos, que se apropriam dos recursos de todos e não partilham seus produtos; b) a injustiça de um sistema político e econômico que não se preocupa com o bem comum. Ter alimento faz parte dos direitos fundamentais de toda pessoa, um direito que deve ser garantido pelo Estado.
A pedagogia quaresmal, portanto, nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças, centradas na riqueza, no poder, na vaidade. Inspirados pelo “discernimento” de Jesus no deserto, somos também movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido de maneira intensa, o Espírito nos conduzirá ao fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida” onde há fartura de pão.
Por isso, é preciso ampliar nosso interior para despertar outras fomes.
O lema da CF – “dai-lhes vós mesmos de comer” – nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”.
Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.
Com frequência, nossa existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, aparecem muitos elementos que nos são familiares: necessidades, ansiedade, insegurança, vazio, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, nos fazem tomar consciência que somos seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que nos movimenta na busca de algo para preencher nosso vazio?
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz.
Não são as “coisas exteriores” que nos tentam. O que nos tenta é a maneira injusta, perversa com o qual utilizamos as coisas, o espírito com o qual vivemos a nossa vida. Só o Pão da Palavra pode preencher nosso interior; só um alimento nos plenifica: “fazer a Vontade do Pai”.
Aqui, também é preciso nos perguntar: - qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de nós mesmos em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossa realidade: famintos de alimento, de proximi-dade, de justiça, de comunhão, de afeto...
Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando.
O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.
O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.
No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto, brilhará tua luz como a aurora” (Is 58,7).
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: Já paramos para pensar na abundância de recursos e nutrientes em nosso coração e que poderíamos compartilhar com os outros? Nem sempre se trata de encher estômagos vazios. Não só o estômago tem necessidades. Há outras muitas necessidades vitais no coração humano. Nosso coração é habitado pelo impulso do “mais”; ali não há carência. Em nossos celeiros interiores há abundância de alimen-tos que nos humanizam.
- Quais são as “fomes” que mobilizam sua criatividade e seus melhores recursos? São “fomes” egocentradas ou oblativas, fomes auto-centradas ou abertas à solidariedade e partilha?
- Visite seu “celeiro interior”; ative suas “reservas” de bondade, recursos, beatitudes originais...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.02.23
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Mais uma vez a Quaresma vem ao nosso encontro e nos convida a recomeçar um caminho novo; talvez seja necessário refazer nossa rota de vida pois nos desviamos por caminhos que levaram a um auto-centramento, à superficialidade, à frieza nas relações com os outros, ao consumismo, ao afastamento da presença de Deus.
A vivência quaresmal nos convida a descer até à raiz da vida, à fonte germinal, porque só a partir dali é que podemos construir o fundamento de uma nova vida centrada no seguimento de Jesus.
Diante do novo que a Quaresma nos propõe viver, na realidade o que importa não é tanto o caminho pessoal que devemos percorrer (podemos cair num intimismo e numa vivência piedosa sem atitude compassiva diante dos outros). O decisivo são os encontros surpreendentes que acontecem ao longo da travessia do deserto existencial, sobretudo na relação com os pobres, excluídos, aqueles que estão à margem da vida...
A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimen-tos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).
“Convertei-vos e crede no Evangelho”: este apelo ressoará em todas as igrejas e comunidades cristãs nesta Quarta-Feira de Cinzas; certamente terá uma ressonância especial em nosso interior, pois irá direto ao mais profundo em nós, ao coração, onde é gerada a confiança que afasta os medos, a aliança que gera relações verdadeiras, a meta que dá sentido à nossa vida. É ali, nas profundezas de nosso ser onde nasce o amor maior, capaz de expandir nossa vida; é ali onde aprendemos a amar ao Tu que nos habita; ali onde aprende-mos que em cada um está presente um desejo de infinito que só o Tu divino pode preencher. É também ali, justamente ali, onde nascem o jejum, a esmola e a oração, ou seja, as atitudes vitais que nos afastam do superficial e nos fazem descobrir o essencial: vida que se faz partilha, amor que se doa, sensibilidade que se compromete.
A vivência quaresmal nos faz descer em direção à nossa própria humanidade; ao mesmo tempo, somos também impulsionados a descer em direção à humanidade dos outros; ela visa colocar “ordem” nos nossos afetos, esvazia nosso ego e desperta nossa solidariedade para com tantos irmãos nossos que carecem do mais essencial, em parte, pelo mau uso que fazemos dos recursos da natureza, em parte devido à nossa acumulação e monopolização desmedida deles.
Assim, o Tempo Quaresmal nos sensibiliza a viver o verdadeiro sentido das conhecidas “práticas quares-mais”: jejum, esmola e oração. Tais práticas nos movem a sair do nosso “ego inflado” e entrar em sintonia com os outros, com a natureza e com o Criador; tal experiência ativa em nós a generosidade, o despoja-mento, o verdadeiro sentido da pobreza evangélica e, sobretudo, o sentir-nos irmão com o irmão. Quem sabe partilhar nunca se empobrece, pelo contrário, se enriquece infinitamente.
Para que isto aconteça, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
À luz da Campanha da Fraternidade deste ano, o jejum adquire um novo sentido; em primeiro lugar, porque nos associa ao jejum de Jesus; e, em segundo lugar, porque nos inspira a viver uma relação justa e harmoniosa com os alimentos, não nos deixando possuir por eles e nem querendo possuí-los (afeição desordenada). A justa relação com as coisas e os alimentos consiste em reconhecer com gratidão o valor destes dons que Deus criou para suprir as necessidades básicas de todos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
No sentido bíblico, o jejum vai além de um ato voluntário: significa uma “atitude de vida”; ele nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum tem sentido quando brota da sensibilidade que evita o desperdício, o consumo desenfreado, o esbanjamento.
Na linguagem inaciana, jejuar é “sair do próprio amor, querer e interesse”, ou seja, viver na simplicidade de quem renuncia a um “eu inflado” em favor de um “mundo diferente”, onde predomina a partilha.
Jejuamos para crescer; jejuamos para recordar que as “coisas” não são um fim, mas um meio; jejuamos como forma de olhar ao redor e recordar que a realidade é muito mais ampla que nossa própria situação.
Jejuar não é “deixar de comer”. É aceitar de maneira consciente que nossos desejos, nossas necessidades, nossos interesses, nossas preocupações não são o centro do mundo.
Por isso, jejuar pode ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua...; purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo.
Por lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê vivemos?
A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha “o ser e o ter” revela-se compassivo e misericordioso. Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para com os desfavorecidos.
A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém profundamente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
Uma das qualidades mais atraentes da esmola é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade. A esmola – misericórdia em ação – é uma realidade central para o cristão. Trata-se de uma virtude tão querida e apreciada pelo Senhor que a pôs em prática fazendo-se, Ele mesmo, “esmoleiro”.
Por fim, a Quaresma nos revela o verdadeiro sentido da oração: ela é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.
A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: - Mobilize todo o seu ser para viver com mais intensidade este “percurso quaresmal”;
- Alimente ânimo e generosidade para deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus;
- Ao longo da Quaresma, você é movido(a) a “cristificar” suas relações básicas: com Deus, com os outros, com as coisas e consigo mesmo; verifique sua vivência frente a estas relações: qual delas está mais fragilizada? como alimentá-las? como torná-las mais oblativas, abertas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.02.23
Imagem: pexels.com/Marshall Jones
“Vós ouvistes o que foi dito: ‘olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo...” (Mt 5,38)
Não é preciso ser um especialista em análise da realidade para perceber e sentir que está se difundindo na nossa sociedade uma linguagem que deixa transparecer o crescimento da agressividade e do ódio. Cada vez, com mais frequência, ouvimos e lemos nas “redes sociais” insultos agressivos, intolerantes, preconceituosos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir a dignidade do outro. São “palavras ácidas” nascidas da rejeição, do ressentimento, da vingança...; palavras proferidas sem amor e sem respeito, que envenenam a convivência e causam profundas rupturas nas relações interpessoais; palavras que emergem de interioridades mesquinhas, vazias, baixas...Asconversações, nos espaços públicos e privados, estão sendo tecidas de expressões injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas.
Assim, vai sendo gestado, lenta, mas implacavelmente, um espírito de combate, de linchamento, uma guerra de mentiras, um fogo cruzado carregado de desprezos, revanches e incompreensões frente àqueles que pensam diferente, creem diferente, amam diferente.
A virtude da mansidão está cada vez mais distante das esferas públicas e das relações pessoais.
E isso não é um fato que acontece só na convivência social. É também um grave problema no interior da Igreja. São divisões, conflitos e enfrentamentos de “cristãos emguerra contra outros cristãos”. Trata-se de uma situação tão contrária ao Evangelho que o Papa Francisco sentiu a necessidade de nos dirigir um apelo urgente: “não à guerra entre nós!”
Assim fala o Papa: “Dói-me comprovar como em algumas comunidades cristãs consentimos diversas formas de ódios, calúnias, difamações, vinganças, ciúmes, desejos de impor as próprias ideias à custa que qualquer coisa, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. A quem vamos evangelizar com esses comportamentos?”
Diante desse contexto, onde imperam a prepotência, a agressividade e os radicalismos, ressoa estranho as palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”. Parece um grito ingênuo, proferido no deserto da desumanização.
No entanto, talvez sejam as palavras que mais precisamos escutar nestes momentos em que, submersos na podridão do ódio e da intolerância, não sabemos o que fazer de concreto para ir arrancando a violência do nosso mundo e do nosso coração.
E é precisamente aqui onde o evangelho de Jesus tem muito a iluminar, não para oferecer técnicas para resolver conflitos, mas sim para nos ajudar a descobrir com que atitudes devemos abordá-los.
Há uma convicção profunda em Jesus: não se pode vencer o mal apelando à espiral do ódio e da violência.
Já dizia Martin Luther King que “o último defeito da violência é que gera uma espiral descendente que destrói tudo o que engendra. Em vez de diminuir o mal, aumenta-o”.
Sempre há tentativas de justificar, em algumas circunstâncias, a legitimidade da violência. No entanto, Jesus nos convida a trabalhar e lutar sempre para que ela não seja nunca justificada. Por isso, é decisivo buscar sempre caminhos que nos conduzam à convivência fraterna e não ao fratricídio.
“Amar os inimigos” não significa tolerar as injustiças e retirar-se comodamente da luta contra o mal. O que Jesus viu com claridade é que não se luta contra o mal quando se destrói as pessoas. É preciso combater o mal, mas sem buscar a destruição do adversário.
A dificuldade maior para compreender o “amor aos inimigos” está no fato de que confundimos “amor” com sentimento. O amor evangélico (ágape) não é instinto, nem sentimento. Portanto, não podemos esperar que seja algo espontâneo. O verdadeiro amor, seja ao inimigo ou a um filho, não é o instinto que nasce de nosso ser biológico. O amor ágape é algo muito mais profundo e humano. Nem sequer nossa razão pode nos conduzir a este nível.
Amar o inimigo não é questão de voluntarismo, mas atitude de vida. Um exemplo: no mar sempre haverá ondas, de maior ou menor tamanho, mas sempre estarão aí. Ao chegar no litoral, a mesma onda pode encontrar-se com a rocha ou encontrar-se com a areia. Contra a rocha, quebra-se em mil pedaços; contra a areia, ela se desfaz suavemente.
Os inimigos sempre vão aparecer em nossas vidas; mas a maneira de encontrar com eles dependerá de cada um de nós. Se somos rocha, o encontro se manifestará com estrondo e todos sofrerão danos. Se somos praia, todo seu potencial de violência ficará anulado e chegará até nós com a maior suavidade.
Um detalhe, a rocha e a areia são constituídas da mesma matéria, só muda seu aspecto exterior.
“Assim seremos filhos de nosso Pai...” Um Deus que ama a todos de maneira igual, porque seu amor não é a resposta às atitudes ou às ações, mas é anterior a toda ação humana. Deus nos ama não porque somos bons, mas porque Ele é bom e ama infinitamente a todos. É da essência de Deus: “Deus é amor” permanen-temente. Da mesma maneira, o amor que temos para com os outros não tem sua origem nem é condicionado pelo que eles são ou fazem, mas pela qualidade de nosso próprio ser. O amor não é resposta às ações de alguém; sua origem está em cada um de nós, pois, na essência, fomos criados à imagem e semelhança do Deus que é amor. “Amar os inimigos”, portanto, é entrar no fluxo do amor que brota do coração de Deus e faz morada no nosso coração.
Por isso, hoje, mais do que nunca, é preciso ativar toda nossa reserva de amor e bondade em favor de uma resistência firme, mas lúcida, para aplacar o rufar dos tambores do ódio; não entremos na barca dos furiosos pois a cólera nos fará naufragar a todos! Nascemos para voar; deixemos voar a ternura e despertemos a mansidão que se encontram na essência do nosso ser profundo. São atributos humanos que tornam a nossa vida mais leve, flexível, aberta, acolhedora... E não nos deixemos envolver por aqueles que, carregados de ódio ou preconceito, não querem alçar o vôo. Quem sabe, algum dia consigamos que ninguém mais decida permanecer no deserto da desumanização.
Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de todo(a) seguidor(a) de Jesus. A maior contradição é alguém dizer que segue Aquele que é “manso e humilde de coração” e, ao mesmo tempo, revela-se como presença agressiva e conflituosa, expele ódio por todos os poros, faz-se mediação para a transmissão das piores mentiras.
A mansidão e a ternura são virtudes irmãs, andam sempre de mãos dadas. Quem cultiva a mansidão mais facilmente se torna terno com todos. É sentimento de suave comoção, de afeto doce e delicado, de atenção amorosa, de profunda e autêntica humanidade, no sentido de constante abertura aos outros, de consideração positiva, de disponibilidade e ajuda.
O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”.
A “revolução da ternura” nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor da quebra da cadeia de violência.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo-o chegar a tantos que dele necessitam, através de nossas palavras mansas, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, seremos pura transpa-rência do Coração manso e humilde de Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: A suavidade é o significado mais relevante e mais perceptível da mansidão. Mas a mansidão não é apenas suavidade; ela é plena de força, de iniciativa, de criatividade...
- Você vive num ambiente onde predomina mansidão, tolerância, compreensão...? Ou, ao contrário, um am-biente carregado de suspeitas, julgamentos, ódios...?
- Como despertar a bem-aventurança da mansidão, presente em seu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.02.23
imagem: pexels.com
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus,
vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20)
A liturgia deste domingo (6º Dom. Tempo Comum) nos apresenta um longo texto do evangelho de Mateus. É importante que descubra-mos a mensagem central, essencial e sumamente importante ali presente, se não quisermos correr o risco de nos enredar em cada detalhe, perdendo aquilo que, de verdade, Jesus desejava para as comunidades cristãs.
O primeiro parágrafo já nos dá a chave de leitura de todo o texto. Mateus explicita a atitude de Jesus frente à Lei: “Vim para dar-lhe plenitude”; ou seja, Ele não se limita a analisar os detalhes da Lei, nem criticar alguns preceitos, mas dar plenitude e sentido profundo.
E esta plenitude não significa melhorar a lei com novas normas que Jesus confrontaria com as antigas, por considerá-las mais perfeitas. A plenitude que o evangelho nos apresenta não vai na direção de “maior perfeição” da lei, mas de uma mudança radical: Jesus mesmo é a plenitude da Lei. Sua pessoa, sua identidade, sua mensagem, sua maneira de viver é a Lei mesma em sua plenitude. Por isso, acolhê-Lo, crer n’Ele, identificar-nos com Ele, vivendo como discípulos seus, nos torna “grandes no Reino dos céus”.
Os evangelistas deixam claro que Jesus não vive centrado na Lei; não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).
Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”.
“Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se ao modo de agir Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.
Para ressaltar a “novidade” da mensagem de Jesus, o evangelista Mateus realça que “se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.
O texto aponta para algo de grande profundidade e que toca uma questão básica do caminho espiritual: “a partir de onde eu vivo? vivo a partir da lei externa ou a partir do coração?”
Os códigos morais insistem nas ações: “não matar”, “não cometer adultério”, “não jurar”. Mas, provavel-mente, todos temos experiência de que é possível não ter cometido nada disso e, no entanto, vivemos com o coração endurecido, desconectado daquilo que é realmente importante.
A mensagem de Jesus é radical pois quer chegar à raiz. E por isso nos confronta com nossa própria verdade interior. O evangelho deste domingo nos revela um Jesus que vem para dar plenitude à lei. Mas essa pleni-tude está muito distante do mero cumprimento externo: não matar, não cometer adultério, não jurar falso... Supõe ir mais adentro, mais a fundo, examinando nossas atitudes, nossas razões, nossos sentimentos e tudo aquilo que nos constrói e define como pessoas. É aí, no centro de nossa humanidade, onde conecta-mos com o espírito e o divino em nós; onde todos somos uno e nossas ações são um fluir dessa unidade interior.
Viver a partir do “coração” significa viver a partir do amor que nasce da compreensão da unidade que somos, e que se modela na “regra de outro”: “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem a você”.
A nova situação que se instaurou a partir da vinda do Messias não é como a antiga aliança, a aliança da lei exterior ao homem; é, pelo contrário, a aliança da interioridade, a situação que se define pelas atitudes que brotam do coração.
Há uma frase que se repete três vezes no texto deste domingo, e que, ao mesmo tempo, é novidade e ruptura. Certamente, ela se revelou escandalosa para muitos contemporâneos de Jesus, judeus fiéis à lei de Moisés, à qual consideravam-na como voz de Deus: “Vós ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo”.
A novidade e a ruptura estão na afirmação: “Eu, porém, vos digo”. A força da expressão é o “eu”. Sua autoridade reside em sua pessoa. Sua maneira de ser e viver é nossa “lei” e referência. A partir de agora, cumprir a lei é crer n’Ele e segui-lo. A coerência de Jesus é a origem de sua autoridade; não é a dos escribas e fariseus que dizem, mas não fazem.
O evangelho pede de todos nós uma mudança absoluta. É como se Jesus nos dissesse: “não fiques só em tuas ações, a lei está dirigida ao coração, ao interior de tua pessoa, às tuas atitudes profundas, às tuas razões para agir, aos teus sentimentos, àquilo que te constrói e te define como pessoa. Tu não podes te limitar em não atacar teu irmão; és chamado a amá-lo, compreendê-lo, perdoá-lo...”
Com a novidade do anúncio e da prática de Jesus, realizou-se uma transformação radical nas relações do ser humano com Deus e com os outros. Esta transformação consiste em que o regime da observância da lei foi sucedido por outro regime, o regime filial, que comporta uma situação muito diferente. Por conseguinte, a nova situação consiste em que não só fomos libertados da lei, senão que, além disso – e sobretudo – Deus nos fez verdadeiros(as) filhos(as) seus(suas).
Nesse sentido, as relações de intimidade familiar não se fundamentam a partir de um regulamento ou de uma codificação legal. Seria simplesmente absurdo que duas pessoas, que se amam, se pusessem a redatar um regulamento no qual se estipulasse taxativamente como dever-se-iam agradar mutuamente. Quando se trata de uma relação pessoal, vivida nessa profundidade, é o dinamismo do amor que faz cada um inventar sua própria conduta, descobrir o que agrada ao outro e evitar a todo custo o que pode causar distância entre eles.
Pode-se e deve-se dizer: a liberdade que a fé exige é viver o amor com todas as suas consequências. As exigências da lei são sempre limitadas; as exigências do amor, pelo contrário, não têm limites.
O único limite do amor é amar sem limites, é a disponibilidade e o serviço incondicional aos outros. Ou seja, no amor não há limite possível. E isso, no fundo, é o que nos dá medo e nos assusta a ideia de uma vida cristã na qual tudo depende, não da observância de algumas leis (com seus limites e casuísticas), senão do grau e da dose de amor sincero, da bondade sem limites que alguém tenha frente aos outros com quem convive.
É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma atitude interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser.
Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai tanto deseja. Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.
Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…
O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano.
- Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.23
Imagem: pexels.com
“Vós sois a luz, vós sois o sal...
”O evangelho deste domingo é a conclusão das bem-aventuranças, proclamadas no domingo passado.Jesus faz uma afirmação lapidar: “vós sois o sal, sois a luz”. O artigo determinado nos adverte que não há outro sal, que não há outra luz. Todos têm direito a esperar algo de nós. O mundo dos cristãos não é um mundo fechado e à parte. A salvação que Jesus propõe é a salvação para todos. É preciso que a única história, o único mundo fique temperado e iluminado pela vida daqueles(as) que seguem a Jesus.
Mateus nos traz uma mensagem de muita transcendência para o discipulado. Este texto pertence ao Sermão da Montanha no qual transparece a intenção de Jesus de construir uma nova comunidade, aquela que decide pertencer ao movimento de vida iniciado por Ele, identificando-se com o modo de ser e viver do Mestre da Galiléia. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores(as): ser presença que ilumina e dá sabor à realidade carregada de tantos conflitos e divisões.
A originalidade desta nova comunidade não está centrada na pertença a uma nova religião, com seus ritos, leis, doutrinas, hierarquias..., mas no fato de prolongar o movimento humanizador iniciado por Jesus. Movimento de inclusão de todos, movimento que põe em questão toda forma de submissão, movimento que abre um horizonte de esperança e de vida.
É importante destacar que as palavras de Jesus dirigidas ao discipulado não são uma promessa, mas uma realidade existencial, porque lhes diz que já são “sal da terra” e já são “luz do mundo”. Ele utiliza estas duas imagens para que todos compreendam que estão equipados de sabedoria e luz para iniciar este caminho.
O sal não tem valor para si mesmo, mas para conservar e dar sabor, para diluir-se no processo da vida da terra. Não somos sal para nós, para um pequeno grupo, mas sal para a terra inteira.
Ser luz... Tampouco a luz tem valor em si mesma, mas para iluminar os outros.
Devemos cair na conta de que Jesus não pede para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência o cristã acredita ser sal e luz, mas sem dar-se conta de que perdeu toda capacidade de dar sabor e iluminar a vida, porque é sal insosso e luz tímida.
O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.
O sal serve para ativar o sabor dos alimentos; não é o sal que “dá sabor”, mas é ele que realça o sabor de cada alimento. As palavras “sabor” e “sabedoria” tem a mesma raiz do verbo latino: “sapere”, que significa, ao mesmo tempo, tanto “saber” quanto “ter sabor”. Assim como está o sabor para os alimentos, também está o sabor da vida.
Sabedoria rica e nova: o coração é “sábio” quando sabe “saborear a verdade”, quando é livre, quando intui a direção da própria existência, quando se sente “seduzido” pelo que é verdadeiro, bom e belo.
Saber é experimentar o gosto das coisas. Saber é sentir o sabor.
“Sapiencia” quer dizer conhecimento que tem sabor. Segundo a Anotação 2 dos EE, “não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”.
Portanto, sabedoria é a arte de degustar, distinguir, discernir...
O sábio é aquele que conhece, não com a razão, mas sente o gosto daquilo que já está dentro dele.
Sábia é a pessoa que sintoniza atentamente seus ouvidos aos desejos do coração.
“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (T.S. Eliot).
A verdadeira sabedoria, portanto, nos ajuda a descobrir a profunda raiz da vida e como investir, da melhor maneira e em sua justa medida, nossas energias vitais. Mas, há um forte alerta: “se o sal perde seu sabor, com que se salgará?” Esta frase é um provérbio usado na literatura rabínica pois se refere a um sal extraído do mar Morto e que perdia seu sabor muito rapidamente. Agora, Jesus situa o discipulado diante de uma grande responsabilidade: a inutilidade de uma fé centrada na razão e não vivida a partir da profundidade humana. Viver o seguimento a partir de uma fé focada na doutrina gera ideologia; mas, quando é vivida como raiz existencial gera sentido para chegar a ser o que somos em potencialidade.
O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.
A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.
Quem segue Aquele que é a Luz, reacende a faísca de luz dentro de si e se torna reflexo da Luz de Cristo.
A vida inspirada pelo seguimento é um “caminhar na Luz”.
“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencializa, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.
Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar.
Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.
A vida do(a) discípulo(a) transcorre em meio a um contínuo discernimento para encontrar a medida justa de sal/sabor e a medida justa de luz. Um excesso de sal torna intragável qualquer alimento, um excesso de luz nos cega. Às vezes, o discipulado se vê envolvido em um ego que expele um excesso de sal até afastar os comensais. Assim também, um excesso de luz faz permanecer na sombra àqueles a quem ela se dirige.
Do mesmo modo, uma dose menor de sal gera uma falta de sabor que dilui o sentido original ou a pouca luz gera um ambiente sombrio e frio. É a tibieza de um discípulo que não se atreve a viver com inspiração esta mis-são, porque suas raízes se desconectaram da fonte e ele se reduz a cumprir alguns ritos ou normas, sem viver uma profunda identificação com Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: Rezar sua presença e sua atuação na realidade cotidiana e no encontro com os outros.
“Ser sal” e “ser luz” significa vida descentrada, oblativa e servidora. Lembre-se: o sal, para salgar, tem de desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.
Seguir Jesus é deixar que a Luz d’Ele transpareça em sua vida; o carvão e o diamante são feitos da mesma matéria: tem a mesma composição química.
No entanto, o carvão afoga a luz, enquanto o diamante a faz resplandecer.
- Você é carvão ou diamante no seu “existir cristão”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.23
“Felizes os pobres em espírito, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os puros de coração...”
Todo ser humano anseia por felicidade; como filhos e filhas do “Sopro criativo”, somos habitados por uma “fome e sede” de eternidade, de infinita liberdade, de vida plena...
Muitas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a “chave da felicidade”. Alguns o situam na arte; outros, numa religião fundamentalista; muitos, num consumo desordenado; vários, na política alienada; tantos, no sucesso a todo custo; poucos, na militância comprometida; inúmeros, no trabalho estressante; raros, no serviço desinteressado...
A sociedade de consumo que tudo invade, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreen-demos nossa busca.
A felicidade não se encontra na saída e nem no final. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que ela está presente na travessia.
Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; é experimentar uma sensação de renascimento contínuo, de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, muitas vezes desconhecida...
A felicidade não vem a nós a partir de fora, nem nos espera no futuro; tampouco se encontra em “algo” que deveríamos alcançar. A felicidade se identifica com o que somos;é outro nome de nossa identidade profunda e transcende toda circunstância e acontecimentos.
Muitas vezes somos ignorantes de nosso estado de felicidade; na essência, já somos felicidade. O problema é que nos identificamos com o que não somos e, nessa mesma medida, nos afastamos da felicidade quando a localizamos em “algo” ou a projetamos “fora”. Mas a felicidade não é um “estado de ânimo” que pode variar, mas um “estado de ser”, que nasce justamente da experiência profunda de nossa vida e que é capaz de abraçar todos os estados de ânimo.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir a cada dia que a vida se inicia novamente a cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura...
As bem-aventuranças, pronunciadas por Jesus sobre um monte, tem o caráter de uma teofania e constituem umas das páginas mais belas da sabedoria universal. Falam de uma felicidade diferente que abre caminho em meio às adversidades e contradições. Cada frase é uma passagem, uma páscoa, onde chega ao auge o que parece contraditório: bem-aventurados são os que sofrem, os pobres, os persegui-dos, os humildes, os que choram... pois demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são, verdadeiramente, os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um novo mundo.
Tanto as bem-aventuranças como o Reino são trans-confessionais. São atitudes que aproximam todos os seres humanos. Seu caráter universal é o que faz com que muitas vezes sejam lidas em encontros inter-religiosos. Elas nos convocam a ir além de nossos pequenos e atrofiados lugares, em direção a uma terra prometida da qual já falavam os profetas de Israel.
Para surpresa de todos, Jesus subiu a uma montanha para ver o amplo horizonte da vida e lá fez um profundo mergulho em seu interior, estimulando também os discípulos e a multidão a descerem no insondável mundo do “eu profundo”. É ali que se encontra a fonte das inspiradas “beatitudes”, aquelas que tecem nossa vida e nos fazem originais.
Não há outro modo de alcançar o divino a não ser “escavar” e fazer emergir aquilo que é mais nobre e humano, escondido nas profundezas da vida. Para ativar as bem-aventuras é preciso perfurar a dura casca do ego inflado e prepotente.
Nas afirmações surpreendentes de Jesus, são chamados de bem-aventurados ou felizes aqueles que vivem em sentido contrário ao que o mundo propõe: pobreza, mansidão, paz, compaixão, sensibilidade solidária.
A felicidade evangélica não é como aquela que o mundo vende, ou seja, euforia fácil e prazer imediato. Ela é muito mais um chamado à plenitude e sabe suportar os embates que a vida apresenta. Com frequência, associamos a felicidade à ausência de problemas, ao êxito econômico, à beleza perene ou ao prazer em todas as suas dimensões. No entanto, tudo isso esgota ou é simplesmente insustentável, pois não tem consistência interior.
Não podemos considerar as bem-aventuranças como leis ou como algo a cumprir. Elas são o horizonte, a meta, o tesouro a descobrir. Devemos nos aproximar de cada uma delas como “atributos divinos” presentes em nosso interior e no interior de todas as pessoas. Elas são como estradas através das quais avançamos até viver na “dinâmica do Reino”, que tantas vezes encontra resistência frente a outras dinâmi-cas egóicas e formas de viver auto-centradas que nós mesmos alimentamos.
- Ao escutar e acolher que somos felizes quando somos “pobres de espírito”, significa ter alcançado a liberdade interior, ser conscientes de onde colocamos a segurança de nossa vida. Mas também implica viver uma existência simples e despojada, sentindo-nos chamados a partilhar os dons e a nossa própria vida com os mais necessitados.
- Quando Jesus proclama que devemos ser “mansos, para possuir a terra” percebemos a radical diferença frente ao orgulho e prepotência cultivados pela nossa sociedade. A mansidão é fruto do Espírito, próprio de quem deposita toda sua confiança em Deus. Se vivemos tensos, agressivos diante dos outros, acabamos cansados e esgotados. Mas, quando olhamos nossos limites e fragilidades com ternura e mansidão, sem nos sentir superiores ou inferiores a ninguém, podemos viver mais integrados, evitando desgastar energias em lamentos ou dissimulações inúteis.
- Ao escutar que somos felizes quando “sabemos chorar com os outros”, significa compartilhar o sofrimento alheio e enfrentar as situações dolorosas, solidarizando-nos com o sofrimento do mundo para transformá-lo.
- E continuamos escutando que somos felizes, bem-aventurados, quando sentimos “fome e sede de justiça”, ou seja, quando emerge de nosso interior um impulso mobilizador para que a vida digna seja possível para todos e sentimos isso como se sente a fome, a partir das entranhas.
- Quando somos “misericordiosos”, significa que deixamos fluir de nosso coração o amor recebido de Deus, significa que estamos acolhendo os outros incondicionalmente, assim como nos sentimos acolhidos por eles.
- Ao nos descobrir que somos felizes quando temos “um coração limpo para poder ver a Deus”, significa ter um coração simples, sem falsidade, autêntico, transparente.
- E nos admiramos, nestes tempos tão sombrios, ao escutar que somos felizes quando “trabalhamos pela paz” sem excluir ninguém; construímos paz quando buscamos o consenso, a harmonia, o perdão, a possibilidade de vida para todos.
- Mais ainda, no final nos é dito que somos felizes quando nos sentimos “perseguidos por causa da justiça”, porque o Reino de Deus pede uma sociedade justa e em paz e isto não é possível sem uma grande dose de entrega pessoal para contrapor todos os obstáculos que nascem dos interesses pessoais e dos egoísmos grupais, retardando a plenitude do Reino.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: “Contemplar” o significado de cada bem-aventurança; verificar em que medida e em que circunstância ela se faz visível em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.01.23
Imagem: Tissot
“Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas...” (Mt 4,23)
Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galileia até pouco antes de morrer. Jesus viu claramente que o melhor lugar em que Ele podia e devia comunicar sua mensagem era precisamente a Galileia. Assim sendo, é evidente que o lugar de onde fala condiciona o que essa pessoa diz. Não é a mesma coisa falar de uma cátedra no Templo que da janela de uma casa simples em um povoado perdido.
“Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (At. 10,37), dirá Pedro em seu discurso, batizando para sempre a Galileia como lugar dos começos. Os galileus não viviam preocupados em conservar a memória de antepassados ilustres ou de veneráveis predecessores; nenhum personagem de peso tinha marcado aquela região com sua fama; nenhuma tumba patriarcal a havia convertido em terra sagrada; nenhum profeta ocorreu nascer ali. O pior da Galileia já havia sido descrito por Isaías quando disse: “caminho do mar, do outro lado do Jordão, Galileia dos gentios... (8,28). Respiravam ares de liberdade naquela sociedade mesclada e heterogênea, acostumada ao vai-e-vem das caravanas do Oriente e de muitos gregos e romanos nas ruas das cidades. Havia algo de “marginalidade” em uma Galileia refratária a continuar escutando os discursos, palavras e temas de sempre.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão docente, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua decisão, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência, que não vivia na abundância e que, ainda por cima, tinha má fama, má reputação. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo. 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.
Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que tinham poder e dinheiro. Mais ainda, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na realidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos (Herodes) e que não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de ninguém. Portanto, Jesus foi para esta região ciente de que estava “entrando na boca do lobo”. Mas nada disso o desviou de seu projeto de ir em busca dos pobres e dos marginalizados, nem o fez tomar precauções para denunciar as mazelas dos poderosos de seu tempo.
Por isso, Galileia é o lugar da luta e compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar do discipulado, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores em favor da vida. Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora que vem das periferias e das margens, daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; neste lugar está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora.
E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade.
Foi na Galileia que Jesus anunciou uma notícia alvissareira: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”; foi na Galileia que Jesus lutou contra os poderes que atentavam contra a vida; foi ali que Ele abriu novo horizonte de vida a todos; foi ali que Ele despertou a esperança no coração de cada um: um mundo de fraternidade, de comunhão, de acolhida, de relações sadias...
O “Reino de Deus” constituiu o centro da mensagem de Jesus: a utopia que enchia seu coração, embora nunca explicasse seu conteúdo concreto. Poderia ser traduzido como o projeto de uma nova humanidade, centrada na vivência da fraternidade e marcada pela compaixão.
Por isso, o anúncio de Jesus não é, em princípio, uma exigência moral, nem a constituição de uma nova religião, com sua doutrina, normas, ritos... O original na mensagem de Jesus está no chamado a despertar, a tomar consciência da nossa verdade mais profunda. Dessa compreensão brotará uma atitude e um comportamento coerentes com o projeto humano – que é o projeto divino – do “Reino de Deus”.
Galileia foi também a terra do chamado e do discipulado.
No evangelho de Mateus, a cena do chamado de Jesus nos introduz na dinâmica da troca de olhares. A resposta ao chamado só é possível a partir do olhar inspirador e mobilizador de Jesus, que consegue ter acesso ao seu oceano interior de cada um e faz emergir as ricas possibilidades, criatividades, inspiração... Com sua presença instigante, Jesus desperta, ativa e faz vir à tona o que há de mais humano nas pessoas e o potencializa. Debaixo das cinzas do cotidiano, encontram-se as brasas da paixão, daquilo que é mais nobre. Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior; Jesus os desafia a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada pessoa; é ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização. O chamado-resposta é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus revela a extraordinária capacidade de “pescar” o maior bem possível do outro, de fazer brotar o melhor de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais.
“Pescar o humano” é extrair a melhor e mais original versão humana de cada um, garimpar a autêntica qualidade humana no cascalho das limitações e fragilidades presentes em todos nós. No contexto do chamado-resposta somos mobilizados a viver a experiência de ter os olhos fixos em Jesus e de nos sentir olhados por Ele, deixando-nos afetar pela Sua Pessoa, Suas relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus e sua Palavra mobilizadora ressuscitam o nosso olhar tímido e estreito e nos capacitam a olhar novas realidades: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar e sua palavra nos predispõem a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual e plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Jesus nos precede com seu olhar, se adianta à nossa necessidade, nos convida e nos desafia a ir mais além de nós mesmos, destravando nossa estreita vida; em outras palavras, o olhar de Jesus vai mais além da casca humana para buscar o que é mais nobre e digno em cada pessoa. Este jogo de olhares é humanizador e não possessivo: nosso olhar fixo em Jesus e deixar-nos olhar por Jesus.
Uma vez que levantamos o olhar para Jesus e nos deixamos olhar por Ele, brota a Palavra. Depois do olhar, a Palavra. Depois do amor, a missão. O olhar de Jesus gera uma atitude de serviço.
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
- Sinta-se movido(a) a ser original, criativo(a), audacioso(a) em dar um estilo e um matiz diferente à principal mensagem de Jesus: a doação ao próximo, o serviço gratuito, a presença inspiradora em um mundo que interpela a sair das estreitas fronteiras pessoais.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.01.23
“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”
É muito significativo que o segundo domingo do tempo litúrgico comum continue falando de João Batista. Tudo o que o evangelista João nos diz do Batista é surpreendente. Ele nos indica uma relação especial de Jesus com o João do deserto. O evangelista quer deixar claro que não há rivalidade entre eles. Por isso nos apresenta um Batista totalmente integrado no plano de salvação de Deus. Sua missão é a de ser precursor, ou seja, preparar o caminho para o verdadeiro Messias.
Recordemos que João não narra o batismo de Jesus em si; vai diretamente ao centro e nos fala do Espírito, que é o mais importante em todos os relatos do batismo do nazareno.
O evangelho deste domingo, com o qual iniciamos o Tempo Comum, depois das festas natalinas, nos convida a fazer uma reflexão sobre o sentido do que celebramos, sobre o que foi verdadeiramente importan-te nestes dias.
Quem é este Jesus que nasceu entre nós? Como é esta Pessoa que o Pai nos enviou? Como Ele afeta nossas vidas?
São as perguntas que as primeiras comunidades cristãs também fizeram a si mesmas e são suas respostas que nos chegam neste texto que o evangelho de João põe na boca do Batista, saltando toda cronologia.
João Batista que nos acompanhou durante o Advento é agora, ao terminar o tempo do Natal, aquele que nos diz: “ficai atentos, abri os olhos, descobri quem é, na verdade, este Menino que nasceu para nós e como tem a força do amor para libertar nossas vidas”.
João não fala porque ouviu dizer, nem estudou nos livros; ele nos fala de sua própria experiência. Afirma que “vê” Jesus que se aproxima dele, que vem ao seu encontro e descobre n’Ele algo novo, que “não conhecia”. Descobre exatamente quem é Jesus. Esse a quem ele mesmo saiu a anunciar, mesmo sem conhecê-lo. E isso que ele vê não o deixa indiferente: afeta-o profundamente, move a tomar posição, a se resituar diante de sua missão.
João Batista confessa a Jesus como o “Cordeiro de Deus”, expressão muito familiar e significativa para o povo judeu contemporâneo de Jesus, mas não para nós. Era para eles uma clara referência à saída do Egito, ao cordeiro com cujo sangue eram marcadas as portas das casas dos judeus e os livrava da morte, abrindo-lhes o caminho para a libertação, saindo do lugar de sua escravidão para viver em liberdade. Recorda-nos o cordeiro que era sacrificado para celebrar, cada ano, a festa da Páscoa, este acontecimento fundamental para a vida de fé do povo de Israel.
Mas João continua: “este Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo”. Fala de pecado, no singular; não está nos falando dos pecados ou falhas individuais, mas da situação global de opressão que impede o ser humano de ser plenamente pessoa segundo o plano de Deus. Todos os demais pecados se reduzem a este; ou, em outras palavras, este “pecado do mundo” é fonte de todos os outros pecados.
Trata-se do grande pecado de “raiz”, presente no coração de todos, que se expressa como ruptura de relações entre as pessoas, quebra de comunhão, esvaziamento da capacidade de amar... Pecado que brota de um coração petrificado, insensível e que se encarna nas estruturas sociais-políticas-econômicas-religiosas, alimentando divisão, ódio, intolerância... Este “pecado do mundo” apresenta vários rostos: injustiça, humi-lhação, violência em sentido moral e físico...
Jesus “tira o pecado do mundo” com sua maneira de viver, elegendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza e da entrega em favor da vida. Esta atitude é fruto de uma radical liberdade que lhe permite ser “homem autêntico”, eliminando de sua vida toda opressão e anulando toda forma de domínio sobre Ele. Por isso, Ele é portador da salvação radical para todos.
Jesus viveu esta liberdade durante toda sua vida. Foi sempre livre; não se deixou avassalar nem por sua família, nem pelas autoridades religiosas, nem pelas autoridades civis, nem pelos costumes ou tradições impostas pelos letrados e fariseus. Tampouco se deixou manipular por seus amigos e seguidores, que tinham objetivos muitos diferentes dos seus (zelotas, Pedro...)
João Batista completa, assim, seu testemunho reafirmando seu olhar contemplativo sobre Jesus. Contemplar é mais que ver, é observar com atenção, interesse e profundidade. E acrescenta que “viu” o Espírito que estava com Ele. E essa contemplação lhe abre os olhos e descobre, na pessoa do nazareno, o Messias do Senhor, o esperado dos profetas. Desvela a origem divina de Jesus, quando percebe que n’Ele está o Espírito. O Filho de Deus é quem batizará com Espírito Santo e fogo.
A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...
“Deus armou sua tenda entre nós” e seu Espírito está nas entranhas de nossas vidas e nas entranhas mesmas da história da humanidade. Assim, os cristãos se deixam transformar internamente pelo Espírito de Jesus.
Esquecer isto é mortal para a Igreja. O movimento de Jesus não se sustenta com doutrinas, normas ou ritos vividos exteriormente. É o mesmo Jesus quem há de “batizar” ou “empapar” os seus seguidores com seu Espírito. E é este Espírito que há de animá-los, impulsioná-los e transformá-los. Sem este “batismo do Espírito” não há cristianismo.
Não podemos esquecer isto: a fé que há na Igreja não está nos documentos do magistério nem nos livros dos teólogos. A única fé real é a que o Espírito de Jesus desperta nos corações e nas mentes de seus seguidores. Esses cristãos simples e honestos, de intuição evangélica e coração compassivo, são aqueles que de verdade prolongam o modo de ser e viver de Jesus e abrem espaço à ação de seu Espírito no mundo. Eles são o melhor que temos na Igreja.
Infelizmente, há muitos outros que não conhecem por experiência essa força do Espírito de Jesus. Vivem uma “religião de segunda mão”. Não conhecem nem amam a Jesus; não O seguem porque não se identificam com Ele. Contentam-se com algumas práticas piedosas, alienadas, autocentradas.
Simplesmente creem no que os outros dizem e não experimentam em seu coração nada do que viveu Jesus.
O que os cristãos hoje precisam não são catecismos que definam corretamente a doutrina cristã nem exortações que apresentem com rigor as normais morais. Só isso não transforma as pessoas. Há algo prévio e mais decisivo: narrar nas comunidades a pessoa de Jesus, ajudar a que as pessoas entrem em contato direto com o Evangelho, ensinar a conhecer e amar a Jesus, aprender juntos a viver com seu estilo de vida e seu Espírito.
João Batista aponta para uma pessoa: “este é o Filho de Deus”. Ele não aponta para uma religião, para uma doutrina, para um código de normas e leis.
Recuperar o “batismo do Espírito” é a primeira missão da comunidade dos seguidores de Jesus.
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.
Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar: “Vinde Espírito Santo!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.22
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
Mateus começa e termina seu evangelho dando a Jesus o título de “rei dos judeus”. Trata-se de um “rei” que nasce e morre rompendo todos os esquemas das realezas mundanas: nasce em uma gruta que acolhia animais e morre numa cruz.
Em seu nascimento, os Magos vão em busca do “rei dos judeus”. Se estamos falando de um rei, compreen-de-se que os magos o buscaram na cidade dos grandes palácios, ou seja, em Jerusalém. Equivocaram-se de caminho e de lugar, porque o “rei” que tinha nascido era tão diferente e tão novo que só podia nascer entre os pobres. O evangelista Mateus não se refere a nenhuma realeza que não seja a de Jesus. Foram as tradições populares posteriores que, usando muita imaginação, consideraram os Magos como reis. O evangelista só reconhece um rei, que é Jesus. Por isso os magos se prostam diante dele e o adoram.
Estamos celebrando a Epifania, quer dizer “manifestação”. Se o Senhor não se manifestasse, sua Encarna-ção não teria chegado à toda a humanidade. Pois bem, a manifestação de Deus em Jesus tem um alcance universal, está destinada a todos os seres humanos.
É interessante que a tradição tenha interpretado que os três magos procediam dos três continentes até então conhecidos: África, Ásia e Europa. O mago negro aparece sempre. No Reino de Jesus Cristo não há distinção de raça ou de origem, não há diferenças nacionais, nem sociais, nem religiosas. Todos são filhos e filhas do mesmo Pai. Jesus Cristo une todos os povos e todas as pessoas, sem perder a riqueza de sua diversidade.
Os Magos são aqueles que vieram dos confins da terra ao encontro do Menino, os estranhos ao povo judeu, os que não eram da raça do recém-nascido, os afastados. Também para eles nasceu o filho de Maria. E também a eles deve chegar a boa notícia do Evangelho.
O Evangelho é para todos os seres humanos porque, mesmo sem saber, todos buscam a Cristo, já que Ele é o “princípio e modelo dessa humanidade renovada à qual todos aspiram, cheia de amor fraterno, de sinceridade e de paz” (Vat. II). A partir desta perspectiva, os Magos representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça. Representam o desejo profundo do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro d’Aquele que se “humanizou” plenamente. Há sempre uma “estrela” na vida de todos indicando o caminho para a gruta da simplicidade e do despojamento, “lugar” onde se faz visível o “novo rebento” da vida.
Talvez a presença da “estrela” no relato dos Magos tenha suas raízes na bonita tradição judaica que diz: quando uma criança nasce, “acende-se” uma estrela no céu. Por isso no céu há tantas estrelas. Quando nasce uma criança, acende-se uma luz, um mundo de possibilidades se abre, um universo pessoal se faz visível no espaço da comunidade humana.
A estrela, porém, moveu os Magos a que deixassem de olhar para ela, mas que olhassem antes para o lugar, na Terra, que a sua luz iluminava. Ali havia uma presença surpreendente que dava sentido a todos os peregrinos desta terra.
Cristo como “estrela”, é guia dos homens e mulheres, e por isso “desce” à terra. De fato, a estrela se deteve no presépio, onde estava Jesus. A estrela, portanto, é Jesus presente no cosmos; logo, o cosmos fala implicitamente de Cristo, embora sua linguagem não seja totalmente decifrável para o ser humano.
A Criação inteira desperta no interior de todos uma sintonia com Aquele que, a partir da gruta, abre seus braços para a todos acolher. Suscita também a expectativa, mais ainda, a esperança de que um dia este Deus se manifestará plenamente. A partir de então, as verdadeiras “estrelas” serão as pessoas que mostrarão o novo caminho para o Deus encarnado.
Para a Igreja do Oriente hoje é o dia da Natividade, o dia que Jesus se manifestou como a Luz do mundo, o dia que Deus elegeu para manifestar-se a todos os homens através da pequenez do filho de Maria.
Como os Magos, esta cena nos convida a também “cair de joelhos”. E por que fazer isso? Porque quando aqueles Magos se levantaram já não eram os mesmos.
Ajoelhar-se pode parecer um gesto servil, mas em ocasiões como esta é um gesto de humildade. Implica descer do pódio do ego ao qual subimos constantemente, acreditando ser os melhores, os mais sábios, os mais formosos, os mais perfeitos. De joelhos pedimos compaixão, ajuda, clemência, compreensão, misericórdia. E levantar-nos é poder de novo estar de pé, tendo passado pela experiência da pequenez.
Além disso, pôr-se de joelhos diante daquele Menino de Belém é abrir passagem à ternura, à grandeza que não está em saber mais, nem ser mais forte, mas em ser mais humano, e por isso, profundamente imagem de Deus. E ajoelhar-se diante daquele menino é deixar-se deslumbrar, despertar o assombro e o encanto.
Quando entregamos a luz a alguém, parece que tudo em sua vida se torna mais luminoso, e essa luz se expandirá. Quando alguém recebe sol revela um aspecto mais vital, mais saudável...; é a isso que nos convida a celebração da Epifania.
Como Igreja e como cristãos temos de repensar muitas coisas, mas não a partir do poder (Herodes e Jerusalém), mas a partir da Luz. A revelação, a estrela, estão no fluxo da história da Igreja e da humanidade; precisamos ativar nossa essa luz para que ilumine cada situação humana e eclesial. É preciso despertar os “magos” que nos habitam para sairmos de nossa “normalidade doentia”, de nossos lugares atrofiados, de nossas visões estreitas... Somos seres de travessia; quem não se desloca apaga a estrela que o habita.
Esta festa nos convida a descobrir a epifania não só em nós, mas em tudo e em todos; ela nos inspira a respeitar e acolher quem pensa, sente e ama de maneira diferente. Esta festa também nos instiga a viver a cultura do encontro frente à cultura da indiferença e intolerância que geram tantas rupturas.
Os Magos são sinal da grande missão cristã, ou seja, da missão do evangelho que se abre como dom a todos os povos e culturas da terra, não para conquistar ninguém, nem para fazer proselitismo, nem para destruir outras culturas, mas para oferecer a todos os povos uma experiência de gratuidade.
Em um mundo de pobreza e exclusão, marcado por tanto ódio e intolerância, somos portadores da riqueza de Deus, do amor feito presente... Só podemos encontrar nossa verdade em Jesus quando entramos na Gruta de Belém, onde encontramos Aquele que não foi recebido na cidade, mas entre estrangeiros e margi-nalizados; só O encontraremos quando nos aproximarmos das vítimas de Herodes, de ontem e de hoje.
Uma Epifania política, uma Epifania religiosa, uma Epifania social... No centro do relato dos magos está a oposição do Rei Mau (Herodes) que mata os meninos e todos os inocentes para poder reinar e os milhares e milhões de “magos e magas” que, apesar de tudo (apesar de Herodes) continuam buscando a verdade de Deus nas crianças marginalizadas e nos perseguidos. Por isso os Magos são reis e rainhas de um modo diferente: pela realeza do coração, pelo mistério da vida (a luz na noite), pela peregrinação para a verdade que eles encontram em Belém.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: a mensagem do Evangelho dos Magos é um mapa que nos mostra o terreno onde pisar na busca, encontro e manifes-tação do “Emmanuel”, Deus conosco. E, em versão do séc. XXI: “Deus em nós”.
Ele é a Luz que brilha em nossa gruta interior.
E então seremos lamparinas acesas e colocadas no candeeiro para iluminar àqueles que nos rodeiam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.06.22
“O Senhor volte para ti o seu rosto e de dê a paz!” (Nm 6,26)
O relato do Nascimento de Jesus nos desafia a superar a rotina acostumada e romper as estreitezas da vida para poder acolher a admirável profundidade que se esconde e se revela na simplicidade da cena, que em seu nível mais profundo ou espiritual, fala de todos nós. Ali fala-se de alguns pastores, de um presépio, de um recém-nascido, de uma mulher que “guarda” um segredo, de um homem silencioso... Toda a cena quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz, de paz e de gratidão.
A simplicidade do relato nos convida a mergulhar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí. E, da mesma maneira, tudo é agora. Pastores, presépio, recém-nascido, um casal silencioso...: quando sabemos olhar, descobrimos que tudo está cheio da Presença que pacifica.
A Presença ou o Mistério não é uma realidade separada da nossa vida, nem à margem da realidade e da criação. Por esse motivo, os personagens presentes na Gruta de Belém representam a realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos rodeia neste preciso momento, são todos os seres.
E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados, pacificados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo” que se encontra em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados interiormente, somos presentea-dos com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.
Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convi-vência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.
Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os vínculos, exclui os mais fracos...
Paz: há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a culti-vam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...
A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros. Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.
Paz não é sossego, não é alienação, nem cumplicidade.
Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.
Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. O contexto social-político-religioso no qual vivemos está carregado de profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras, preconceitos, violências... Há um “cheiro de morte” que nos paralisa e nos impede viver relações mais sadias e respeitosas para com os outros.
No entanto, permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o sonho impossível, que reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz, se realizará, graças àquelas pessoas revolucio-nárias, que acreditam, desejam e realizam a paz. Na Gruta de Belém tudo exala paz e o encontro com Aquele que é o “príncipe da paz” nos inspira a sermos presenças pacificadoras.
Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade... (cf. Juvenal Arduini).
Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).
A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Ele revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro.
Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar o que em cada um de nós é áspero e duro; há divisões e conflitos em nosso interior..., mas nós podemos, pacientemente, construir a paz do coração.
Quem tem paz irradia luz; quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.
“Que a Paz de Cristo reine em vossos corações” (Col. 3,15)
No início deste Novo ano confessamos: apareceu um Menino; fizeram-se visíveis a ternura, a paz e a doçura do Deus que salva.
A ternura pobre do presépio ajuda a dizer “sim” ao que importa e a recuperar nosso centro em Deus.
Por isso, a paz é carregada de ternura. Só a ternura de uma criança pode nos tirar de nossos lugares atrofiados. A ternura de Deus continua fazendo-se alternativa original. Quando expandimos nosso espaço interior e a acolhemos, a ternura nos move a fazer visitas inesperadas a enfermos, presentear tempo e não objetos, investir a “fundo perdido” em quietude, oração e reconciliação e substituir as felicitações impessoais dos celulares por palavras de vida, que ajudem a curar feridas do caminho.
A ternura alternativa acolhe solidões, sofrimentos familiares e enfrenta os contratempos da vida tal como aparecem, anunciando que Deus nasce para todas e cada uma de nossas histórias. Depende de nós abrir-lhe a porta e deixar que ela faça morada em nós.
Na Gruta de Belém todos são acolhidos e a paz brota da hospitalidade. Se queremos a paz, preparemos as boas-vindas, aprendamos a ver os outros não como inimigos, mas como seres humanos, cujos rostos nos convidam a expandir nossas fronteiras para encontrar-nos neles, em diálogo e comunhão com suas necessidades, sorrindo com eles e recebendo-os em nossas casas. A hospitalidade é a chave para construir um mundo humano, sem fronteiras, onde todas as pessoas possam viver juntas e em paz.
A paz, por si mesma, é expansiva; por isso, encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Criança de Belém.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: A paz é um dos dons que se faz visível no rosto do Deus-Menino e, como seus
(suas) seguidores(as), somos desafiados(as) a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da verdadeira paz.
- Como exercer o “ministério da pacificação” no seu ambiente cotidiano? Como reconstruir os vínculos que foram rompidos por questões políticas, religiosas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.12.22
“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)
Nenhuma palavra consegue expressar com profundidade o mistério do Natal que estamos celebrando. Talvez o melhor seria aplicar o provérbio oriental: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. Só em chave de silêncio podemos compreender a Encarnação e o Nascimento de Jesus. O que devemos descobrir não pode vir de fora, mas deve surgir do mais profundo de nós mesmos.
As leituras dos evangelhos indicados pela liturgia para o “tempo do Natal” certamente farão transbordar em nosso interior os sentimentos mais nobres e elevados. Mas isto não basta para nos situar diante do Mistério e vivê-lo com intensidade. Falamos de uma noite surpreendente, mas para a contemplação. Sem esta contemplação, permanecerá um vazio interior, sem nenhum sentido religioso. O valor desta festa depende de nossa atitude. Nada substituirá o itinerário para o centro de nós mesmo. Só ali acontece o mistério; só no mais profundo de nós mesmos descobriremos a presença de Deus.
Celebrar a Encarnação-Nascimento de Jesus pode nos ajudar a encontrar a Deus dentro de nós e no coração dos outros. Jesus nasceu, viveu e morreu em um lugar e um tempo determinado, mas não estamos celebrando um aniversário. Os dados históricos não têm maior relevância: não sabemos onde Jesus nasceu, não sabemos quando, nem em que dia ou mês. Tudo o que digamos d’Ele, a partir do ponto de vista histórico, aponta para o desconcerto. Não se trata de recordar e celebrar o que aconteceu faz dois mil anos, mas de descobrir o que está acontecendo hoje em cada um de nós. Devemos descobrir, celebrar e viver conscientemente essa realidade sublime. Este é o sentido do Natal.
O que celebramos, na noite de Natal, é precisamente isso: o “sublime Mistério da Encarnação de Deus” em cada coração humano e em todo o Universo.
Como costuma ocorrer com os grandes mistérios da fé, acabamos adocicando e esvaziando o conceito original de “Encarnação”. Preferimos dizer “natal ou natividade”, fazendo referência a um termo latino relacionado com o “nascimento”. Por isso, nos fixamos em um nascimento – o de Jesus – e colocamos à margem o que realmente significa “encarnação”. Talvez, no fundo, “essa coisa de carne” não nos convence muito: é como se fosse algo muito “vulgar”, material, prosaico..., que se conecta com nossa dimensão corporal-sexual.
Afirmar que “Deus se fez carne” é quase uma heresia. Segundo a mentalidade que foi se propagando no cristianismo Deus é o Absoluto e não pode ser “contagiado” com a matéria corporal.
No entanto, a partir da Revelação bíblica, a Encarnação é Deus dentro de nós e dentro de toda a Realidade existente, sem se confundir ou desaparecer no que é perecível, no transitório.
Este é o grande “milagre” de Deus. “O Verbo se faz carne” na pessoa de um Menino que, dentro de sua corporeidade e sua realidade como ser humano verdadeiro “interioriza Deus na Humanidade”.
“Tão humano, tão humano... só podia ser Deus” (L. Boff).
Assim, a moral cristã, durante muitos séculos, alimentou uma espiritualidade “desencarnada”, piegas, cheia de culpas, angústias e remorsos. No fundo, negou-se uma dimensão humana tão nobre: o ser humano “é carne”. É da sua essência. O mistério da Encarnação-Nascimento vem iluminar e dignificar esta dimensão “carnal” que foi tão desprezada e gerou tantos conflitos morais. Na Encarnação do Filho, Deus se faz “carne”, se humaniza; assume e plenifica tudo o que é humano. Nada do humano é considerado como suspeita, fonte de pecado... Afinal, somos obras maravilhosas do Criador.
É preciso superar a pobreza do dualismo “corpo-alma” e retornar à visão antropológica bíblica onde o ser humano não “tem” corpo nem “tem” alma. Ele “é” corpo, “é” alma, “é” espírito, “é” sentimento, “é” relação, “é” afeto, “é” razão... Ele “é”, nas suas diferentes expressões.
A partir da Encarnação do Verbo não dá mais para imaginar um ser humano “compartimentado”, desintegrado, dividido nas suas dimensões existenciais. Ele “é” um todo, integrado, unido, pacificado...
Quão distante estamos da essência do Mistério da Encarnação!
Inácio de Loyola, ao propor a “contemplação da Encarnação”, nos Exercícios Espirituais, afirma: “recordar como as Três Pessoas divinas determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano”.
A Encarnação é o mistério fundante de nossa fé a ser vivido e não pensado. A Encarnação não é um evento isolado da história. Toda a Criação foi afetada; todos os fatos da história encontram nela seu sentido. A história humana se faz História de Salvação.
Assim sendo, “Deus não só se encarna; Ele é Encarnação”. A Encarnação não é um ato pontual, mas uma “atitude eterna de Deus”. A Encarnação já começa na criação do mundo: “Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1,3); tudo é perpassado pela Sua Presença. Estamos falando do Verbo que tem a ousadia de penetrar as categorias de espaço e tempo, as únicas que nós temos para conhecer em plenitude a realidade de tudo.
Deus já veio, está vindo deste sempre; só o esperamos e o celebramos seu Nascimento de um modo simbólico, religioso, fraternal. Por isso, o Natal é tão inspirador e nos enche de paz, por saber que carregamos Deus dentro de nós, embora nem sempre saibamos disso, nem O vejamos. Deus deixa de ser o eterno desconhecido para se tornar “Emanuel”, Deus conosco. Já estamos salvos porque Deus se “encarnou” em nós, em todos: sem distinção de credo religioso, raça, língua, época em que se viva, idade que tenhamos, etc. “Assim novamente encarnado”, nos diz S. Inácio nos EE (n. 109). Encarnação permanente.
E por isso nos felicitamos, porque não somos órfãos, nem estamos perdidos em um Universo imenso, mas porque Deus é nosso cúmplice, o melhor avalista de que nossa vida é já Vida n’Ele.
Eis o “realismo da Encarnação”! Cada vez mais nos conscientizamos, com maior evidência, de que a Encarnação do Filho é isto: tomar a carne concreta da humanidade para viver nela, a partir dela, através dela, para dignificá-la na sua plenitude.
O Verbo não fez uma experiência de homem, mas, antes, “se humanizou”, se fez “carne”, na expressão de João (1,14). Mas é “Carne” que podemos ouvir, que podemos ver com os olhos, que podemos contemplar ou apalpar com as nossas mãos (1Jo. 1,1); “carne” de presépio e de patíbulo, “carne” de ternura e de coragem, “carne” de trabalho e de descanso; “carne” de homem e de mulher, “em tudo semelhante a nós”.
No Natal celebramos precisamente que Deus se fez “pele” e se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível no Menino do Natal.
Texto bíblico: 1Jo. 1,1-18
Na oração: No Natal, diante do “Deus Ternura”, nossas reservas de bondade, compaixão, ino-cência, mansidão... são ativadas para dizer “sim” ao incompreensível Amor...
- Alargue seu interior para acolher a surpresa perma-nente da Encarnação d’Aquele que, em sua humanida-de, iluminou e deu sentido a tudo o que é humano.
- Mergulhe na contemplação do “mistério da Encarnação” e deixe ressoar o chamado a ser “presença encarnada” neste mundo tão carente de vida, de beleza, de humanização...
Desejo a todos(as) um inspirado Natal!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.12.2022
Imagem: adoração dos pastores - Rembrandt
“José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa...” (Mt 1,20)
A liturgia do quarto domingo do Advento nos motiva a buscar inspiração na pessoa de S. José, indicando-o como apoio e guia nos momentos de obscuridade e de dificuldade; ele é o homem do discernimento que, na solidão, no silêncio e na atenção ao seu coração, vai vislumbrando o caminho a assumir e a decisão a ser tomada. Sua presença silenciosa põe em destaque a pessoa de Maria que, por seu “fiat” e sua maternidade se revela a protagonista do Advento.
No contexto do mistério da Encarnação José se revela como um personagem de “segundo plano”, discreto e silencioso, recordando-nos o protagonismo oculto, mas imprescindível, de todos(as) aqueles(as) que atuam em favor do Reino, aparentemente escondidos(as) ou na “segunda fila”.
O Advento realça o valor de todas essas pessoas que não são como os cata-ventos que brilham no alto, mas vigas que sustentam o edifício no porão, e que tecem o essencial da existência. Pessoas aparentemente anônimas – mães, mestres, avós, amigos – que estão aí ajudando a construir um novo mundo, às vezes sem o reconhecimento por sua atitude sem preço. Assim também foi o caso do próprio Jesus de Nazaré, durante a maior parte de sua vida.
Neste 4º. domingo do Advento, fazemos memória de S. José como o referente de todas as pessoas que vivem uma profunda fidelidade a Deus, quase sem serem percebidas, mas com um protagonismo sem igual na história da Boa Notícia. O mundo precisa de homens e mulheres de discreta e humilde presença para sustentar os outros, sobretudo aqueles que carecem dos recursos necessários e vínculos humanos.
A atitude de José, homem de “segunda fila”, revela uma humildade e uma confiança tão cheia de generosidade como de incompreensão. Também foi grande o seu “fiat”. Abandonou-se no mistério de Deus, e isto implicou assumir uma missão incômoda que, certamente, não foi compreendida e aceita entre seus parentes e vizinhos; com plena disponibilidade e fé adulta acolheu os planos de Deus sem exigir maiores explicações. Seu lugar, a partir de então, é de “segunda fila”, cuidando amorosamente de sua família e renunciando todo protagonismo de intenso brilho.
José é conhecido como o santo do Advento porque neste tempo nos ensina com sua vida a atitude da espera e da confiança total em Deus que sempre cumpre suas promessas, embora, às vezes não coincidam com nossos planos. Com S. José podemos aprender de sua fé e sua humildade a dobrar nosso ego; sua valentia nos inspira a viver com mais disponibilidade; seu despojamento nos ajuda a afastar de nossa vida a busca de ostentação e vanglória... Atitudes estas que certamente acabaram lhe proporcionando uma verdadeira paz interior.
José de Nazaré foi aquele que se abriu ao Deus surpreendente e deixou-se conduzir por Ele. Dele não se diz muito nos evangelhos, mas o que ali se diz nos revela uma presença surpreendente, capaz de ver mais além do cotidiano e estabelecido. Presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus.
Lendo o Evangelho com uma sensibilidade mais apurada podemos encontrar, com facilidade, uma descrição muito aproximada de quem era José, da casa de Davi. Em cada gesto de Jesus, revelava-se um ensinamento do Pai e de seu pai José; em cada parábola havia uma expressão da natureza e da terra com o selo de José, e uma mensagem espiritual inspirado a partir do alto. Em cada cura que Jesus realizava havia um modo e uma sensibilidade de tratar o enfermo, o desvalido, herdados da tradição mantida por José; e à hora de orar havia um hábito criado na casa de seu pai, fiel cumpridor da lei mosaica e aberto à novidade e ao mistério que seu filho Jesus deixava transparecer.
Enfim, quem, senão José, juntamente com Maria, pôde ensinar a Jesus a tratar às pessoas, a servir os mais pobres, a olhar, a falar, a sorrir...! Seria um equívoco considerar José uma espécie de marionete nas mãos de Deus, ou que fosse atropelado na sua liberdade. A mensagem evangélica tem como ponto de partida a convicção de ser possível o ser humano "escutar e praticar" a vontade de Deus, mesmo quando lhe é pedido algo, à primeira vista, superior à capacidade de suportar. José não deu mostras de agir a contragosto, acuado, pressionado ou duvidoso. Agiu com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição de Deus, com total generosidade. Ele conhecia as bases em que se fundamenta sua relação com Deus, onde se enraíza sua disposição para viver em profunda sintonia com Aquele que conduz a história para a sua plenitude.
José, na sua vocação paterna, torna-se “diá-fano” de Deus Pai (deixa transparecer a imagem pater-na/materna de Deus). Através do seu modo de ser e de agir, carregado de silêncio inspirador, José, não só revela uma profunda comunhão com Aquele que o chamou a assumir a vocação paterna, mas deixou “fluir”, no cotidiano e na simplicidade de sua vida, os atributos d’Aquele que o conduzia. O coração de José passa a pulsar em acorde com o coração de Deus Pai: a Paternidade divina flui na paternidade humana.
Deus Pai encontrou liberdade para ativar e tornar visível em José as características próprias de um pai:
“Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito”. (Papa Francisco, Patris Corde)
Porque estava presente a Deus, José fez-se presente nos momentos decisivos da Família de Nazaré, bem como fez-se presente na vida das pessoas. Uma presença que faz a diferença: presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de um pai que acompanha tudo com ternura.
Sua presença não era presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” nos lugares cotidianos e escondidos, que sabe enternecer-se e escutar as inquietações que procedem desses lugares. Uma presença que descobre o próximo no próximo, que sabe resgatar a solidariedade na vida cotidiana; uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Em meio à rotina de uma vida simples, José foi fazendo-se perguntas, esperando as respostas, ouvindo o que seu coração lhe dizia e discernindo o que Deus queria dele. Ano após ano, em um pequeno lugar, detrás de uma vida que nada tinha de diferente das outras vidas.
José, em Nazaré, continua sendo luminoso e inspirador para todos nós, num momento em que as transformações são rápidas e exigem de nós maturidade, aprendizado, diálogo, novas expressões de fé...
Como homem, José precisou passar pelo processo do amadurecimento lento, lançando mão de todos os recursos que encontrou em seu próprio interior e ao seu redor.
Cozinhar a fogo lento é bem difícil neste mundo de pressas e imediatismos. E hoje, mais do que nunca, se fazem necessários os “tempos de Nazaré”, esses tempos de aparente rotina nos quais se alimentam os sonhos, onde se forjam as vontades, se domam as impaciências, se aclaram os caminhos, se discerne a Voz, se dissipam as névoas do caminho... Em definitiva, esse tempo onde nosso canto e o de Deus se afinam juntos para formar uma única melodia e fazê-la ressoar no mundo.
Texto bíblico: Mt 1,18-24
Na oração: Deus nunca deixa de atuar no meio das nossas noites, dúvidas, provações. Ele conhece nossos pensamentos e temores. E, no momento certo, nos liberta dos nossos medos e nos dá a conhecer sua Vontade.
- Recordar momentos de dúvidas, incertezas, desolações..., mas que lhe ajudaram a amadurecer na fé e na adesão ao projeto de Deus.
- Diante de pequenas ou grandes decisões: há espaço e tempo de discernimento? de escuta atenta?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.12.22
Imagem: Vicente Lopes Portaña
“Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4)
Na prisão de Maqueronte, onde está confinado por ordem de Herodes, João Batista recebe notícias de Jesus; e o que ele ouve o deixa desconcertado, pois Jesus não corresponde às suas expectativas. João espera um Messias que se imponha pela força terrível do juízo de Deus, salvando àqueles que acolheram seu batismo e condenando àqueles que o rejeitaram. Quem é Jesus? Nem João, nem os rabinos, nem os sacerdotes, nem os apóstolos estavam capacitados para entender Jesus. Sua presença e atuação não se ajustavam ao que eles esperavam do Messias. Jesus rompe com todas as concepções e esquemas mentais, desmonta todas as expectativas, frustra uma visão...
A novidade de Jesus é muito maior do que aquilo que podiam esperar; além disso, o que Ele traz vai na direção contrária do que esperavam do Messias. Não vem com podere força; não vem impor nada, senão propor uma dinâmica de serviço e desatar a vida travada. Jesus “tem um caso de amor com a vida”.
Para sair de suas dúvidas João envia dois discípulos que perguntam a Jesus sobre sua verdadeira identidade: “És tu, Aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro”?
A resposta de Jesus não é teórica, mas muito concreta e precisa: contai a João o que estais vendo e ouvindo. Eles perguntam a Jesus por sua identidade e este responde através de sua atuação terapêutica (curar e cuidar da vida); Ele se dá a conhecer através de ações concretas em favor da vida: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam...
O que o profeta Isaías anunciava como futuro, agora se faz presente em Jesus.
Jesus sabe que sua resposta pode decepcionar àqueles que sonhavam com um Messias poderoso. Por isso acrescenta: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!”. Que ninguém espere outro Messias que realize outro tipo de “obras”; que ninguém invente outro Cristo a seu gosto, pois o Filho foi enviado para tornar a vida mais digna e ditosa para todos, até alcançar a plenitude na festa final do Pai.
Estes são os sinais da presença do Messias: alívio para quem sofre, acolhida para quem é excluído, vida para quem se sente morrer, visão para quem se encontra na penumbra, fortaleza para os joelhos frágeis... Feliz aquele que aceita que este é o Deus da Vida, Aquele que desce, se faz carne humana, para acolher em si a dor e o sofrimento de todos, sobretudo daqueles que são vítimas e estão excluídos.
O modo de agir de Jesus em favor da vida deve também inspirar o nosso modo de agir durante o Advento. Não tem sentido despertar nossa sintonia com Aquele que colocou a vida dos mais pobres e sofredores no centro de sua missão se não ativarmos nossa sensibilidade e nosso compromisso com aqueles que são vítimas das estruturas sociais e políticas injustas. Viver em “estado de Advento” não é se fixar no futuro, aguardando a vinda d’Aquele que já está sempre presente e que se faz visível nos rostos dessas vítimas.
“Ser Advento” implica “descer” junto à humanidade, recompondo vínculos quebrados, superando ódios e intolerâncias, mobilizando energias e criatividade para que a vida de todos possa ser desbloqueada e encontre espaço para se expressar em sua plenitude. Portanto, Advento sem compromisso com a vida é Advento estéril, com cheiro de morte.
Para conhecer Jesus, o melhor é ver de quem Ele se aproxima e a que Ele se dedica. Para captar bem sua identidade não basta confessar teoricamente que Ele é o Messias, Filho de Deus. É preciso sintonizar-nos com seu modo de ser Messias, que não é outro senão o de aliviar o sofrimento humano, curar a vida ferida e abrir um horizonte de esperança aos pobres.
Os cegos, surdos, coxos, leprosos, pobres e muitos outros coletivos no mundo de hoje, continuam sendo símbolos da marginalização mais radical que afeta muitíssimos seres humanos. O texto do evangelho deste domingo quer ressaltar que a chegada do Reino terá consequências para todos, mas sobretudo para os mais excluídos, que tinham perdido toda esperança e o sentido do viver.
Como podemos perceber, entre os sinais da presença do Messias não há um só sinal “religioso”: nem culto, nem rezas, nem sacrifícios, nem doutrinas, nem leis... Isto nos deveria fazer pensar. Nós cristãos, com frequência, esquecemos que, para Jesus, primeiramente vem a vida, depois o culto; em primeiro lugar, o compromisso em aliviar a dor humana, depois a religião.
Não são só os cegos, surdos, coxos, doentes que fazem presente o Reino, mas também aqueles que se preocupam com eles. Só as ações em benefício dos outros deixam transparecer a presença de Deus. Entrar na dinâmica do Advento, significa estar dispostos a aproveitar qualquer ocasião para tornar presente o Reino, não frustrando aqueles que esperam de nós atitudes comprometidas com a vida.
Nas páginas dos Evangelhos não vemos um Jesus fixo no deserto ou no templo, mas caminhando por toda a Galiléia; aproxima-se dos últimos e excluídos, vítimas do contexto social e religioso da época. O centro da sua missão é aliviar todo sofrimento humano, restabelecendo a vida onde ela está ferida.
Quando se luta contra o sofrimento, quando se alivia a dor, quando se abre uma vida mais sadia... ali está atuando o Reino de Deus. O que Jesus fez, fundamentalmente, foi curar a vida.
Pode-se dizer que toda a atuação de Jesus está encaminhada a criar uma sociedade mais saudável, mais humana, mais respirável, mais leve... Recordemos a rebeldia de Jesus frente a tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa; como Ele critica o rigorismo, o legalismo, o culto vazio de amor... Jesus quer sanar a religião; seu esforço visa criar uma sociedade mais justa e solidária; sua oferta de perdão gratuito é para todos; sua atitude acolhedora envolve a todos os maltratados pela vida ou pela injustiça dos homens...
Em tempos de fanatismos, intolerâncias e preconceitos, precisamos assumir uma atitude firme a partir do evangelho da Boa Nova de Jesus. Atitude que nos faça ter “os olhos fixos em Jesus” (Heb 12,2) para recriar a história a partir de seu sentir. Precisamos desprender-nos de nossas “catedrais simbólicas” e de nossos rituais estéreis que nos distanciam da realidade escandalosa da exclusão. “Não há cristianismo sem carne” (Pagola), sem vida e paixão pelos últimos e abandonados.
É preciso sair dos limites conhecidos, de nossas seguranças, para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições para aprendermos e que nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
As fronteiras e as periferias constituem o espaço privilegiado onde nascem e crescem as alternativas, onde brota o emergente como possibilidade de Vida nova, que transcende todo sinal de morte.
Para meditar na oração:
Como cristãos, a que Messias seguimos hoje? Somos seguidores(as) de uma Pessoa que fez do compromisso com a vida o centro de sua missão ou seguidores de uma religião só preocupada com ritos, doutrinas, leis...?
Dedicamo-nos a fazer as “obras” que Jesus fazia? Que estamos realizando em meio a este mundo marcado por tantas violências e mortes? O que as pessoas estão “vendo e ouvindo” na Igreja de Jesus? O que elas estão “vendo e ouvindo” em nossas vidas? Deixamos transparecer o “espírito do Advento” no nosso encontro com os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.12.22
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“O machado já está na raiz das árvores” (Mt 3,10)
Sentimos indignação quando alguém corta uma árvore e deixa desnudo uma cepa do velho tronco com suas raízes ainda fundadas na terra. Estava já velha, dizem alguns. Era um perigo, comentam outros. Só ocupava lugar, exclamam mais alguns. Todos apresentam justificativas para eliminá-la e jogá-la abaixo. Todos têm razão quando se trata de eliminar o que é visto como inútil ou velho.
No entanto, quando acreditavam que o velho tronco estava condenado a desaparecer, se esqueceram que ainda não tinham arrancado suas raízes. Subitamente, quando menos esperavam, viram como novos rebentos brotavam no tronco velho. O tronco estava para ser cortado, mas as raízes ainda tinham vida. E enquanto há vida nas raízes, a vida é possível. “Do velho tronco de Jessé, brotará o rebento que é Jesus”. A vida é mais forte que a velhice; a vida é mais forte que o robusto tronco; a vida sempre triunfa sobre aquilo que consideramos inútil, estorvo ou perigo.
O problema que nos aflige hoje, talvez, não seja tanto referente aos troncos, mas um problema de raízes. Há demasiadas vidas sem raízes profundas; há demasiadas instituições carentes de raízes, que terminam sendo instituições vazias; há demasiadas vocações sem raízes profundas, que nascem de ideais mais emotivos que evangélicos; há demasiadas decisões sem raízes, porque são tomadas em um momento emocional, mas sem terra que as sustente; há demasiadas convicções ideológicas sem raízes...
Por isso são vidas que morrem facilmente; morrem com a facilidade com a qual morrem os sentimentos que as sustentavam. Suas raízes estão tão na superfície da terra que acabam morrendo antes que o tronco.Cultivamos os ramos com muito esmero, mas nos esquecemos das raízes. Cultivamos muito o tronco, mas não alimentamos as raízes; cultivamos muito a aparência, mas não nos preocupamos em colocar água nas silenciosas raízes que não se veem.
Quando as raízes têm vida, pode ser que alguns ramos se sequem, mas ainda permanecem outros sufici-entes para embelezar a árvore. Quando as raízes têm vida, podemos encontrar dificuldades no caminho, mas a vida é mais forte que os obstáculos. Quando as raízes têm vida, podemos passar por momentos de prova, mas a vida que sobe pelo tronco é mais forte. Com frequência, passamos a maior parte do tempo regando os ramos enquanto as raízes morrem de sede.
O evangelho deste domingo nos revela que João Batista é o broto novo no velho tronco. No velho “tronco” de ontem (1º. Testamento), “vem a palavra de Deus sobre João, filho de Zacarias, no deserto”. João não é do AT. Tampouco do NT. Ele é a travessia, a ponte, o broto novo. Ele é o anúncio do novo que está prestes a brotar. O AT é um velho tronco que já não dá fruto, mas em suas raízes ainda perma-nece uma Vida que no NT será revitalizada. Porque o que Deus semeou durante séculos são sementes de Vida. Desaparecerá o tronco, mas suas raízes ainda têm vida.
João é o novo rebento que anunciará a nova Árvore e a nova Vida. E ele mesmo começa por lançar água nas velhas raízes, anunciando a conversão do coração. Cultivar as raízes é fazer que, até os velhos troncos renunciem a morrer, mesmo que os cortemos, pois a vida das raízes encontrará novos brotos para continuar crescendo e vivendo. Serão vidas novas; serão troncos novos.
O tempo litúrgico do Advento se revela como um momento privilegiado que nos motiva a “descer” em direção às nossas raízes interiores, para ativá-las, cultivá-las e evangelizá-las. Nosso contexto social-político-religioso está saturado das “palhas” da aparência e da superficialidade, gerando o veneno do ódio, da intolerância e da violência contra quem “pensa-sente-ama” de maneira diferente. É preciso levar as águas vivas do evangelho às profundezas do coração.
Nesse sentido, Advento nos revela um componente de expansão, que alarga nosso ser, que nos dinamiza e nos eleva, ao mesmo tempo que é experiência radical daquilo que é mais humano em cada um. A partir das “raízes interiores” o Advento ilumina e dá sentido ao nosso modo de ser e viver; ao abarcar toda a vida, alcança também a nossa ação transformadora no mundo.
Espiritualidade do Advento é a força vital que sacode nosso mundo interior, alimenta nossas raízes e faz surgir novos brotos que se visibilizam na nossa maneira original e inspirada de ser e viver no mundo de hoje. Tal força regenerativa procede do Espírito Santo de Deus, que nutre e aquece nossa vida.
Compreendemos, então, que espiritualidade não tem a ver com práticas piedosas alienadas e autocentra-das; é uma experiência que deve ter raízes no coração, precisa de interioridade. Se não tem interioridade,
não tem sonhos nem criatividade. No interior de cada um existe uma riqueza acumulada que procura se expressar (sentimentos, atitudes e valores, crenças, motivações, intuições...). O nível profundo é o nível da Graça, da gratuidade, da abundância... onde a pessoa mergulha no silêncio à escuta de todo seu ser.
O Evangelho de Mateus nos apresenta João Batista clamando por conversão, “porque o reinado de Deus está próximo”. João contempla a realidade de seu povo e sente o impacto da violência e exclusão que tanto o poder religioso como o civil impunham a todos. Sua mensagem se concentra neste grito: “Preparai o caminho do Senhor, endireitar suas veredas!” Também o Papa Francisco grita a mesma mensagem aos cristãos de hoje e nos lança uma pergunta: “Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta ou nos entrincheiramos em estruturas caducas, que perderam a capacidade de resposta?”.
O Advento nos mobiliza a “descer” ao chão da vida para cultivar e cuidar do nosso ser essencial com o mesmo cuidado que tem o camponês quando trabalha a terra e a plantação. Apenas aquelas pessoas que se mantêm próximas ao chão, às raízes da vida, conseguem manter também esta postura totalmente radical, a “humilitas” que vem de húmus, o chão escuro, úmido e fértil da terra.
Somos Advento, ou seja, pessoas “radicais”, que vivem a partir das raízes. “Radicalidade” significa, portanto, ser suportado, carregado e alimentado por uma raiz que está plantada fundo no chão. É como uma árvore que se apoia, se sustenta e se alimenta das suas raízes. Radical é aquele que vive perto da raiz, que se alimenta da raiz, que toma as coisas pela raiz, pelo fundamento.
O sentido que “radicalidade” transmite é esta proximidade do chão, este estar plantado no chão da vida ou estar enraizado na terra, na realidade. Quando dizemos que os homens e as mulheres do Advento costumam ser radicais, queremos mencionar, em primeiro lugar, esta proximidade da terra e do húmus, esse enraizamento profundo que alimenta a vida, que sustenta o tronco e a copa da árvore em todo e qualquer tempo, dando-lhes firmeza e consistência.
Texto bíblico: Mt 3,1-12
Na oração: Sou pessoa de “raiz” ou me deixo determinar pela superficialidade, aparência? Posso dizer que minha vida está enraizada na pessoa de Jesus e na causa do Reino?
- João foi o oposto da sociedade de seu tempo; ou seja, não se encaixou comodamente à maneira de ser e de pensar de seus contemporâneos. Como eu me comporto no ambiente em que vivo? Há algo de anúncio-denúncia em minha maneira de ser e viver? Minha presença na realidade cotidiana é inspiradora? Faz a diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.12.22
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“...ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44)
Estamos no primeiro dia do Novo Ano litúrgico. Começamos com o Advento, que não é somente um tempo litúrgico, mas um modo de viver. Trata-se de uma atitude vital que precisa atravessar toda nossa existência. Não teremos entendido nada da mensagem de Jesus se ela não nos inspira a viver em constante busca daquilo que já está presente em nosso interior. O importante não é recordar a primeira vinda de Jesus; isso é só o pretexto para descobrir que Ele já está presente em nós e na nossa realidade. Também não se trata de nos preparar para a última vinda, que é só uma grande metáfora. O importante é descobrir que Ele está vindo neste instante.
É preciso re-acender o espírito do Advento, porque estamos adormecidos ou sonhando com conquistas superficiais, e não assumimos a existência com a devida seriedade. Tudo o que esperamos de Deus, já o temos dentro de nós.
“Vigiai”, “estai despertos”, “ficai atentos”: são apelos que ressoarão em nosso interior durante a travessia do Advento. Para ver, é preciso não só ter os olhos abertos, mas também luz. Não se trata de contra-atacar o repentino e nefasto ataque de um ladrão. É preciso estar desperto para assumir a vida com uma consciência lúcida. Trata-se de viver intensamente, para que a vida não transcorra na esterilidade e no vazio.
Se permanecemos adormecidos, não acontecerá nada. Isto é o que pode nos causar medo: transcorrer nossa existência sem desatar as ricas possibilidades de plenitude que nos foram confiadas. A alternativa não é salvação ou condenação. Ninguém vai nos condenar. A alternativa é: viver com mais sentido e sabor ou simplesmente vegetar.
O Advento é tempo para dispor-nos a algo surpreendente. O que estamos esperando é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. Intuímos que nossos olhos foram criados para uma visão mais profunda, mais humana, mais plena; desejamos ser um pouco mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.
Eis o mistério: o Esperado traz uma novidade que nos mobiliza e que se revela em cada gesto de humanidade e em cada fragmento de tempo, deste “kairós” colocado em nossas mãos.
Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera.
Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança... No mais profundo de cada um brota um desejo que nos faz bradar ao Eterno, pedindo ajuda: “Vem, Senhor, nos salvar! Vem sem demora nos dar a paz!” Tudo aponta para o vazio infinito dentro de nós, ressoando uma certeza: Ele vem! Ele está vindo em nossa direção!
O texto do evangelho deste primeiro domingo de Advento pertence ao chamado gênero apocalíptico. Este gênero literário, recorrendo às imagens e palavras que parecem catastróficas, se utiliza delas para falar de um futuro que se revela como novidade radical. Para acolher Aquele que vem ao nosso encontro é preciso romper os espaços estreitos de nossa vida, alargar o coração, expandir os sentimentos...
Para além das imagens utilizadas, a intenção parece clara: é um chamado a “despertar”, “a estar vigilantes”, “a estar preparados”...
Dentro do mal-estar social persistente que estamos vivendo, há algo muito saldável: nosso desejo de viver de uma maneira mais propositiva e menos deprimida, mais digna e menos superficial. O que precisamos é re-orientar nossa vida. Não se trata de corrigir um aspecto ou outro de nossa pessoa. Agora o importante é ir ao essencial, encontrar a fonte de vida e salvação.
Não podemos deixar que o desespero e o desânimo destruam em nós o dinamismo e o desejo de continuar caminhando dia-a-dia, cheios de vida; não podemos deixar que a esperança vá se diluindo em nós quase sempre de maneira silenciosa e imperceptível; não podemos deixar que, sem nos dar conta, nossa vida vá perdendo cor e intensidade; quando parece que tudo começa a ser pesado e cansativo, a verdadeira alegria vai desaparecendo de nosso coração e já não somos mais capazes de saborear o bom, o belo e o verdadeiro que há na nossa vida.
Apesar das sombras e sofrimentos causados pela violência social, política e religiosa que estamos vivendo, o Advento vem “des-velar” (tirar o véu) e ativar os dinamismos de solidariedade, compaixão, gratuidade... presentes no coração de cada um. A bondade nos constitui, é da nossa essência O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus-Amor, amor incondicional e misericórdia sem limites. O bem e o amor em
nós, são mais fortes que o mal e o ódio. O que de Deus há em nós é maior que nossa miséria e limites. Nosso verdadeiro ser é bondoso. Fomos feitos de amor e para o amor. Se vivemos isso, de verdade podemos ser sal, luz e força, uns para com os outros, como nos ensina Jesus.
Com a mente bem aberta, atenta, podemos e temos de analisar o que está acontecendo conosco, descobrir e compreender suas causas e comprometer-nos com as mudanças necessárias. Inspirados(as) com a força do Espírito podemos levar adiante as transformações que se fazem necessárias.
Assim, o percurso do Advento vem despertar aquela “virtude teologal” tão ausente no atual contexto social e religioso: a esperança; ela é o recurso secreto do ser humano itinerante. Somos abertura e, portanto, estamos sujeitos à mudança. A esperança é a guia que nos orienta na mudança.
Esperar é ousar re-nascer, advir, vir-de-novo, re-começar... na fulgurante arte de tecer a vida nisso que ela tem de mais íntimo e cotidiano.
Um canto de fé e de esperança segura: esse é o sentido da existência cristã.
Movidos por essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples. Ter esperança é, essencialmente, busca incessante, luta por aquilo que não tem lugar agora, mas, acredita-se, terá um dia.
A esperança tem suas raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.
É preciso ter a audácia de reinventar o humano; é preciso resgatar a paixão por uma causa irrecusável; paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela vitória da esperança; paixão pelo sonho de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo; paixão, em suma, pelo futuro.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração: “é proibido pecar contra a esperança!”
A esperança tem sempre algo em comum com o desejo. Quem não deseja não pode esperar.
Desejar é manter-se maduro(a) para a esperança. Sua ausência paralisa, bloqueia, desumaniza...
- Que esperanças alimentam sua vida neste momento e contexto social tão marcado por divisões, conflitos, ódios?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
25.11.22
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“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado” (Lc 23,42)
Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus. Jesus, rei atípico. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos: explorando, dominando...
Jesus, no entanto, reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres e excluídos, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.
O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.
Esse é a maior contradição da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem pompas, sem poder.
Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!
Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder, sobretudo do poder religioso, o mais nefasto. E não só condenou aqueles que dominam como também condenou, com a mesma veemência, aqueles que se deixam dominar.
Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.
Jesus quer que todos sejamos “reis” ou “rainhas”, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência.
Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...
Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há quase 100 anos, e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.
Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos forem testemunhas da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. E são tantos os crucificados no nosso contexto social e religioso!
O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos persona-gens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora.
Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgavam-se em posse da verdade. Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se.
O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.
Um dos ladrões o insultava: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”.
Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do Pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história. Mas, a grande surpresa está reservada para o final da cena: aquele homem impotente, que agonizava na Cruz, promete o paraíso a outro condenado à morte e que se dirigira a Ele assim: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado”. É o único personagem em todo o Evangelho que se dirige a Jesus chamando-o simplesmente por seu nome, sem acrescentar nenhum outro título como Senhor, Mestre, Filho de Davi ou Messias.
Sem saber, ele estava em profunda sintonia com o sentido da missão daquele Homem crucificado, a quem o invocava: aproximar-se, encurtar distâncias, viver entre nós como um entre tantos, entregar-nos seu nome e sua amizade, compartilhar de nossa fragilidade, estar tão perto a ponto de escutar o sussurro de todos aqueles que, sem alento, morrem ao seu lado...
O “bom ladrão” reconhece a Jesus na cruz como rei, um rei que morre na fidelidade à sua missão de mensageiro de um projeto de vida diferente, de um Reino de misericórdia aberto a todos, também ao pior dos malfeitores, e que oferece sua vida para indicar o caminho da verdadeira vida que vence a morte: o amor até o extremo. E nisso consistiu sua glória, sua realeza e seu triunfo.
Jesus sempre viveu “em más companhias” e agora morre entre dois ladrões. Mais uma vez, não assume o papel de juiz sobre os outros, mas oferece uma nova chance de salvação. Ele é o moribundo que dá vida: presença solidária, que, mesmo em meio ao pior sofrimento, oferece companhia a outros sofredores.
O Justo e o pecador, ambos crucificados, participam da vida definitiva que a morte terrível na cruz não pode vencer. Jesus é o rei, e o primeiro cidadão que ingressa em Reino é esse malfeitor que confiou n’Ele. Assim, impactado pela serenidade e testemunho de Jesus, “rouba o paraíso”.
No alto da Cruz, Jesus revela uma promessa que muitas pessoas precisam ouvir hoje, sobretudo aqueles que carregam cruzes injustas e pesadas, que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, dúvida, incompreensão ou pranto...
Que ressonância têm estas palavras no interior de cada um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Hoje: porque as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar mais; hoje, agora, já...; talvez, se esse “hoje” não chega é por causa de tantas pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas... Comigo: a promessa de viver em sua companhia desperta ecos de uma plenitude que não conseguimos entender.
No paraíso: que não é um mítico Eden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais pranto, nem dor; realidade que já se presente entre nós, sobretudo onde habita a justiça, a paz, a compaixão...
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: Situar-se diante do Rei Crucificado e dos crucificados da história. No nosso atual contexto social, político e religioso são muitos os julgamentos, ódios, mentiras, intolerâncias, precon-ceitos... que continuam crucificando e fazendo vítimas. E tudo isso em nome da “religião e da moral cristã”. O Crucificado Inocente continua revelando seu rosto nos crucificados de hoje.
- Como tirar das cruzes as vítimas inocentes que estão dependurados nelas?
- Como construir hoje o paraíso? Neste momento histórico, como ativar e despertar a esperança nas vítimas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.11.22
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6)
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, con-vicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da brisa da manhã.
São muitas “pedras”, pessoais-sociais-religiosas, que criam muralhas e que precisam ser destruídas: ódio, intolerância, violência... Coração rígido que se visibiliza na petrificação das relações; rompe-se a cultura do encontro para alimentar a cultura da indiferença; trava-se a abertura ao novo para fechar-se no conserva-dorismo mais agressivo; bloqueia-se toda possibilidade de racionalidade para cair nas atitudes mais arcaicas e medievais...
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção, a fechar-se em guetos. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade...
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.
Não há razão para permanecer nos castelos e templos quando todas as circunstâncias mudaram. É muito tarde para reconstruir nossas vidas utilizando moldes antigos. Estamos vivendo um tempo de mudança, mas também tempo emocionante e santo. Há um poderoso fogo sob as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela experiência do discipulado. Com a vida cristificada seremos impulsionados a inventar constantemente, a ousar sem medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo começo” ...
A possibilidade de romper com hábitos que nos atrofiam ou com padrões conservadores que travam o fluir de nossas vidas é a marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa vida está “estreita”, cercada por pedras e muralhas, e que precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento nos revela que a utopia de Jesus é possível. N’Ele acontece algo totalmente novo, é Ele que nos revela uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas. O Seguimento é uma novidade que rompe velhos barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um coração ardente; visão nova em olhos ousados; razões inspiradas em uma mente aberta.
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é inútil permanecer nos “templos” e “bloqueados” nos guetos de fanáticos. É preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde o Vivente se deixa encontrar; vivemos mergulhados na magia do discipulado; esta é a paixão que não nos dá repouso.
Mais uma vez, e evangelho deste domingo nos situa diante de Jesus, homem livre e transparente, que não se deixou “formatar” pelas estruturas sociais e religiosas desumanizadoras de seu tempo. Ele não quis purificar o Templo para reformulá-lo, mas quis destruí-lo para que pudesse surgir um santuário diferente, “não feito por mãos humanas”. As coisas que o ser humano “fabrica” são “ídolos”, algo que pode pôr-se e se põe a serviço do poder e do domínio de uns sobre os outros. Contra isso, o verdadeiro templo deve identificar-se com a humanidade reconciliada, que é o Reino de Deus.
Quem segue Jesus, aos poucos vai descobrindo que permanecem ainda muitos muros por derrubar; é preciso entrelaçar mãos que construam pontes de reconciliação e não de divisão; essas mesmas mãos que, em lugar de empunhar armas, devem pegar em martelos e malhos para derrubar as paredes do ódio e da intolerância.
Não esqueçamos esta dura realidade: também aqueles que constroem muralhas acabam se tornando vítimas de sua sandice; tornam-se prisioneiros das fortalezas que edificam, vítimas do próprio veneno da soberba e da crença de que são “donos” da verdade. Tudo isso é expressão de um coração petrificando.
Na vida, nem sempre é questão de construir. Também, às vezes, é preciso destruir. De fato, a vida e a mensagem de Jesus revelaram uma novidade de tal magnitude que gerou uma radical conflitividade com as estruturas desumanizadoras de seu tempo. Com a presença de Jesus, chega também para nós a “Boa Nova”, não precisamente para pôr remendos no tradicionalismo, moralismo e legalismo, mas para anunciar a possibilidade de uma nova maneira de viver, uma nova atitude que deixa transparecer as “beatitudes originais” e que habitam nosso coração: compaixão, mansidão, paz, busca da justiça, partilha...
Precisamos profetas que vão derrubando nossos muros de ignorância e de resistência à novidade do Espírito e que saibam apresentar respostas criativas aos problemas que a humanidade tanto padece.
Mais cedo ou mais tarde, a vida mesma se encarrega de derrubar muitos desses muros que nos impedem ver a realidade externa com mais claridade. Quando vemos tudo escuro, é sinal de que há algum muro que impede a entrada da luz do discernimento em nossas vidas.
“Constrói pontes em lugar de muralhas, e terás amigos”: pontes de diálogo humanizador, onde o outro possa ser respeitado na sua diversidade, no seu modo de pensar, de ser, de amar; também o outro diferente é possuidor de fragmentos da verdade que podem se integrar aos nossos e, assim, alimentar uma consciência mais plena e expansiva. Que busquemos viver a “cultura do encontro”, confiando no desafio da diversidade que nos enriquece!
É preciso estender pontes de reconciliação que nos permitam ter acesso aos lugares onde ninguém quer estar, para abraçar àqueles que são rejeitados e saborear juntos o mistério da comunhão e da acolhida; pontes que permitam apalpar, na dor solidária e na beleza dos “sacramentos de cada dia”, a presença carinhosa do Deus Pai/Mãe que sempre bendiz a humanidade inteira. No Seu coração a diversidade é aquecida e pacificada.
Texto bíblico: Lc 21,5-19
Na oração: Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano. Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.11.22
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