O Pentecostes não se deixa cingir pelas nossas palavras. A própria liturgia multiplica as línguas para o dizer: na primeira leitura (Atos dos Apóstolos 2,1-11) o Espírito arma e desarma os apóstolos, apresenta-os como inebriados por alguma coisa que os atordoou de alegria, como um fogo, uma divina loucura que não podem conter. E isto após a narrativa da casa de chamas, de um vento de coragem que escancara portas e palavras. E a primeira Igreja, enrocada na defensiva, é lançada para fora e para a frente.
A nossa Igreja, tentada, hoje como então, de enrocar-se e fechar-se, porque em crise de números, porque aumentam aqueles que se declaram indiferentes ou ressentidos, sobre esta minha Igreja, amada e infiel, vem a sua paixão que nunca se rendeu, a sua energia imprudente e belíssima.
O Salmo responsorial (103) olha para longe: «Do teu Espírito, Senhor, está cheia a Terra». Uma das afirmações mais belas e revolucionárias de toda a Bíblia: toda a Terra está grávida, cada criatura é como que grávida de Espírito, mesmo se não é evidente, mesmo se a Terra nos aparece grávida de injustiça, de sangue, de insanidade, de medo.
Cada pequena criatura está preenchida do vento de Deus, que semeia santidade no cosmo: santidade da luz e do fio de erva, santidade da criança que nasce, do jovem que ama, do ancião que pensa. A humilde santidade do bosque e da pedra. Uma divina liturgia santifica o universo.
A terceira via do Pentecostes é dada pela segunda leitura (1 Coríntios 12,3b-7.12-13). O Espírito vem consagrando a diversidade dos carismas: beleza, genialidade, unicidade própria para cada vida. O Espírito quer discípulos geniais, não banais repetidores. A Igreja como Páscoa pede unidade em torno à cruz; mas a Igreja como Pentecostes quer diversidade criativa.
O Evangelho (João 20,19-23), por fim, coloca o Pentecostes no entardecer da Páscoa: «Soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo». O Espírito de Cristo, que o faz viver, vem para nos fazer viver, leve e quieto como um respiro, humilde e obstinado como o batimento do coração.
O poeta Ovídio escreve um verso fulgurante: “Est Deus in nobis”, há um Deus em nós. Esta é toda a riqueza do mistério: «Cristo em vós!» (Colossenses 1,27). A plenitude do mistério é de uma simplicidade deslumbrante: Cristo em vós, Cristo em mim.
Aquele Espírito que incarnou o Verbo no ventre de Santa Maria flui, inesgotável e ilimitado, continuando a mesma obra: fazer da Palavra carne e sangue, em mim e em ti, fazer-nos todos grávidos de Deus e de genialidade interior.
Para que Cristo se torne minha língua, minha paixão, minha vida, e eu, como os loucos e ébrios de Deus, me coloque a caminho atrás dele, «o único pastor que pelos céus nos faz caminhar» (D.M. Turoldo).
Começamos a entrever o fim da epidemia que transtornou profundamente os nossos estilos de vida diários. Aconteceu algo de imprevisível, de realmente impensável. Vivíamos num mundo doente, mas não nos aflorava a ideia de podermos adoecer tão rapidamente e desta maneira.
E eis a inesperada vinda de um mensageiro devastador, o coronavírus. Alguns virólogos colocavam remotas hipóteses sobre a possibilidade de uma tal irrupção. Só alguns, sentinelas capazes de discernir os passos da humanidade, denunciavam, quase profeticamente, ainda que de maneira confusa, que «corríamos em excesso, devíamos deter-nos». Sem uma mudança concreta – diziam – aceleraríamos uma crise de proporções desconhecidas e impensáveis.
É significativo que este flagelo se tenha abatido sobre uma sociedade treinada desde há décadas a pensar a “crise”, exercitada a combate-la sob diversas formas: a crise económica, a financeira, a do tecido social. Tudo isto no quadro dos nossos países ricos, que fazem parte do “primeiro mundo”, onde reinam o mercado, o desenvolvimento, o consumo, a vida opulenta, enquanto permanecem cada vez mais ocultos os débeis, os pobres, os “descartados”. E assim as porções de humanidade “alegres e vencedoras” tiveram de acertar contas com a fragilidade, o sofrimento, até a uma morte desesperante.
Neste tempo escutei muita gente, na solidão do meu eremitério pensei muito e procurei interpretar o que estava a acontecer. Na escuta percebi muito medo, até angústia, por este vírus que andava entre nós invisível e desconhecido; um vírus perante o qual não são possíveis as defesas típicas dos ricos, de quantos podem contar com o seu poder.
Em particular aqueles com mais de setenta anos, massacrados pelos boletins dos mortos e da exigência de se meterem “na cauda da fila” em relação aos mais jovens e fortes, passaram por momentos de abatimento. Quase todos pensaram na possibilidade concreta de serem contagiados e morrer. Nunca – diziam-me – tivemos a morte tão presente, nunca estivemos tão conscientes da nossa fragilidade. Desta maneira, a crise tornou-se uma pergunta sobre a fragilidade e sobre o limite da morte, a que ninguém pode fugir.
Também descobrimos os limites da ciência, da medicina, de muitas realidades que antes nos pareciam garantias tranquilizadoras, a nível pessoal e social. Muitos dizem: «Livramo-nos dela. Depressa festejaremos!». Tal reação vital é justificada, mas não deve obscurecer em nós o sentido do limite que (re)descobrimos, nem o acontecimento da morte, que aguarda cada um e pode chegar imprevistamente.
Não creio que nesta crise nos tornamos automaticamente melhores, mais solidários, mais capazes de atenção ao outro. Issto depende da nossa vontade e das nossas opções, a serem renovadas a cada dia. Mas se hoje estamos mais conscientes do limite e da morte, então – como afirma o filósofo humanista Salvatore Natoli – «tendo presente a morte, seremos menos propensos a prevaricar sobre os outros». Só isto já não seria pouco!
O estado de exceção que estamos a viver faz-nos ansiar pela normalidade, absolutamente necessária para o relançamento da vida. Mas de que falamos quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente. A mesma vida, com a sua paisagem, os seus ritmos, rotinas, enquadramentos e motivações. Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstância se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes. Mesmo tornando ao quadro habitual da nossa vida, é importante que nos perguntemos “o que é que no mundo e em nós se modificou” e “o que é que aprendemos com isso”. Não desperdicemos, portanto, a oportunidade que representa, pelo menos, fazer-se perguntas. Isso o escritor João Guimarães Rosa sublinhava: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”
Nem tudo permanece o mesmo quanto à nossa percepção do mundo e à garantia dos nossos estilos de vida. Globalizamos a economia e a comunicação sem prestar atenção às forças e às fraquezas do globo terrestre, descurando assim equilíbrios que precisamos de salvaguardar. Acostumamo-nos a uma visão utilitarista da realidade, pensada como um mecanismo que nunca dorme, assegurado a 100% para uma produção e um consumo ilimitados. Queremos sempre mais, sempre mais depressa, sem aceitar falhas. Vivemos acima das nossas posses como se os recursos — a começar por aqueles naturais — fossem inesgotáveis. Pensamos o espaço físico como um vasto open spaceonde tudo pode acontecer de forma contígua. Ora, a pandemia devolve-nos a consciência do limite, ao mesmo tempo que nos obriga a refletir sobre as formas de habitar o mundo a que podemos voltar e aquelas modalidades que teremos de superar. A presente pandemia começou por ser enfrentada como um assunto sanitário, mas evidentemente reclama que a interpretemos de um ponto de vista mais alargado, como uma encruzilhada civilizacional.
A normalidade não é um conhecido lugar a que se volta, mas uma construção onde somos chamados a empenhar-nos. Teremos certamente para lá chegar de reaprender a conjugar transformação e preservação. Porque este momento, a par da criatividade, também nos pede uma capacidade de perseverar, lutando para que o nosso patrimônio humano mais fundamental não seja omitido, porque somos seres de relação e não podemos viver sem comunidades. Uma das mais belas imagens destes dias é a de um avô de Michigan, nos Estados Unidos, que caminhou quilômetros a pé para ver, através da janela, uma neta que acabara de nascer. Na fotografia que circulou internacionalmente, está de um lado o jovem pai com a criança ao colo, e, do outro lado da vidraça, o sorriso indestrutível de um homem avançado em anos que, naquele momento, se sentirá a criatura mais feliz sobre a terra. A nova distância interpessoal não se pode tornar simplesmente um condicionamento (psicológico e social) que nos condene à solidão. A pandemia tem forçado a muitos “lutos relacionais”: desde a suspensão das práticas comunitárias ao reforçado isolamento dos idosos; desde a abolição do simples aperto de mão à situação daqueles pais que, reentrando em casa vindos do trabalho, hesitam em abraçar os próprios filhos. Mas é verdade também que se têm encontrado formas de comunicação e de presença que, não sendo substitutivas das anteriores, têm garantido o exercício comum da nossa humanidade. Este, a pandemia não deve poder suprimir.
Dom José Tolentino Mendonça
09.05.2020
A nossa vida é um longo diálogo connosco mesmos. Refletir é ver-se e escutar-se como se fossemos um outro diante de nós. Vivemos na constante presença do que somos, mergulhando por vezes bem fundo no nosso interior, em busca da paz que resulta da compreensão.
Depois, há também em nós uma enorme força, uma espécie de pressão, que a partir do nosso interior nos quer para fora, para o mundo, e tudo faz para que partilhemos o que somos, como se o alívio das nossas inquietações só fosse possível no encontro com o outro.
Então, por um lado, sentimo-nos únicos e sós, inexplicáveis a partir de fora! Por outro, a nossa essência empurra-nos para fora, para que nos comprometamos em projetos que ninguém consegue concretizar sozinho. Mas porquê?
A verdade é que ninguém se basta a si mesmo, apesar de parecer que vivemos condenados a um isolamento em relação à compreensão e ao amor dos outros.
Somos o sopro de um vento maior que brota do mais fundo da nossa alma. Vivemos escondidos à espreita de uma oportunidade de fazer explodir o nosso ser.
Há quem tenha certeza da existência de Deus, mas julga-O longe, lá no Céu ou em qualquer outro espaço ou tempo.
Mas estar em silêncio e não se poder ver não significa que algo não esteja diante de nós, ou atrás… ao nosso lado. Talvez até os nossos ombros se estejam a tocar!
Importa que deixemos o nosso coração ver. Sentir. A solidão que ele sente é sua ou somos nós que a forçamos?
É preciso que consigamos criar sossego dentro de nós. O que pensamos, sentimos, queremos, acreditamos, o que temos vontade de fazer e o que em nós nos ultrapassa, devem estar em paz uns com os outros. Talvez não seja preciso estarem afinadíssimos, bastará que não haja guerra!
Sentir e apontar culpas é um sinal claro de uma inquietude enraizada e do nosso distanciamento face à felicidade. Impede-nos de viver, de nos redimirmos, de criarmos o bem a partir do que parece ser vazio. De sermos mais do que somos, sermos quem podemos e devemos ser.
É bom parar de vez em quando, apenas para que depois possamos sair de nós e nos ocupemos das necessidades do outro, do mundo e das nossas próprias.
Nunca estamos sós. Deus existe e não está longe. Está aqui. Ao nosso lado.
O que nos é pedido é simples: que nos deixemos um pouco para trás, que olhemos e escutemos o outro, que o aliviemos das suas feridas… conseguindo fazê-lo sentir tão único quanto próximo!
José Luiz Nunes Martins
In: imissio.net 15.05.2020
Pandemia, bolsonavírus, isolamento, confinamento, nada disso combina comigo. Aliás, com ninguém. É difícil desacostumar de abraços.
Há pouco, fui ver minha mãe, que está de quarentena na casa do meu irmão, Cláudio. Seus netos quase todos, estavam lá. Na rua, de máscara, distância regulamentar entre nós e a avó, separada de todos por uma parede de vidro. Muito difícil, mas é o que temos no momento.
Nessa travessia, para que o bichinho da depressão não se transforme num monstro, estou fazendo o exercício das pequenas felicidades, já que os grandes voos da alegria estão limitados.
No almoço, dividi uma cerveja especial com o Daniel, meu filho, companheiro de isolamento social, saboreando o marmitex da Leia, que tem mãos mágicas no fogão. Foi bom. Arrumar a cozinha é chato, a pilha de pratos, copos, panelas e talheres surge por geração espontânea, mas, depois, entregá-la limpinha à Laila e receber um elogio é muito bom.
Desde que saí do último colégio, rompendo de vez meu vínculo com o trabalho formal, aposentei o relógio que, sintomaticamente, quando recebi meu primeiro salário fui à Galeria Ouvidor, o nosso shopping da época, e comprei. Um Mirvaine 17 rubis com o qual cronometrava as minhas horas de trabalho. Fui seu escravo (e dos seus sucedâneos) a vida toda. Agora, ter liberdade em relação ao tempo, à agenda, é uma sensação boa, apesar de sentir muita falta das pessoas que faziam parte da minha rotina.
Ser capaz de recriar rotinas e se deixar surpreender é outra magia. Descobrir pessoas e coisas inspiradoras, nas Redes Sociais, por exemplo. Como tem gente boa, sensível, inteligente, nesse mundão de meu Deus!
Felicidade é, na verdade, uma coisa bem simples. Tão simples como Deus. Sim, Ele é absurdamente simples. Ele é Amor. E amar é muito simples, o que não quer dizer que seja fácil: querer bem, querer ver o outro feliz e ser feliz junto com ele, seja ele ou ela quem for.
Isso vale para mulher, marido, filho, vizinho, empregado, chefe, colega e até os desconhecidos anônimos que todos os dias cruzavam o meu caminho, o nosso caminho. Hoje, todos escondidos atrás da máscara que nos lembra que somos iguais na nossa fragilidade...
Esses rostos que hoje, não vejo, são de pessoas que querem e buscam o mesmo que eu; ser feliz. Quer coisa mais simples? Quer coisa mais extraordinária do que dar às pessoas que me rodeiam, quaisquer que sejam elas, o presente de serem felizes, hoje, pelo simples fato de que se encontraram comigo, ainda que na virtualidade dessa crônica?
Volto ao Flávio Miglaccio...
Que imensa solidão...
É o risco que, hoje, todos corremos. E nosso desafio é encontrar o equilíbrio possível em meio a esse tempo de perplexidades, quando nossas certezas e seguranças parecem se desfazer diante do cenário que se descortina nas janelas da nossa casa, da nossa alma.
Para fazer a travessia do deserto árido da solidão, prima-irmã da depressão, é importante ter paciência e lutar muito, internamente, contra as moções destrutivas que ela provoca.
Jesus, ao mergulhar na nossa História, ao fazer-se um de nós, experimentou nossas fragilidades e nos amou ainda mais por causa delas. Na solidão imensa da cruz, certamente encontrou consolo na presença de João, de Maria, dos poucos e preciosos amigos que ficaram ao seu lado, até o fim. Com os olhos neles, rompeu a solidão e entregou seu espírito nas mãos do Pai, certo de que aquela dor, e dor de morte, não era a palavra final. Sua passagem pelo túmulo não foi mais que isso; passagem.
A escuridão é passageira, Só anoitece até a meia-noite. A madrugada já é o começo do amanhecer.
Somos filhos da luz.
Fica na Luz, seja Luz, Flávio...
Eduardo Machado
09/05/2020
A solidão faz parte de qualquer vida humana. Não importa com quantos amigos e conhecidos nos relacionamos. Seremos sempre sós, porque somos sensíveis e temos consciência.
Por mais que acreditemos que há alguém com quem podemos estar em total sintonia, isso é muito pouco provável. É certo que, no fundo de cada um de nós, somos muito mais iguais do que diferentes, mas depois, cobrindo essa migalha de luz, há um conjunto grande de camadas que nos tornam muito desafinados, resultado de diferentes caminhos, memórias, pesadelos e sonhos, crenças, dúvidas, certezas, fé e medos.
Somos todos iguais, mas só no mais fundo de cada um.
Quando partilhamos o mesmo espaço durante muito tempo com alguém acabamos por dialogar connosco mesmos, encontrando com facilidade o que nos distingue dos outros. Sem que nos julguemos melhores ou piores, apenas autênticos.
Daqui podemos lançar-nos aos outros, estabelecendo laços mais puros com os que nos rodeiam, porque não temos ilusões, nem a respeito do que somos, nem do que os outros podem ser.
A bondade ergue-se a partir de uma certa solidão. Enraíza-se a uma profundidade maior do que o normal. Mais, é necessário que consigamos encontrar o equilíbrio em nós antes de nos oferecermos para ajudar a equilibrar alguém.
Amar é dar-se. Mas só se dá quem se encontra. Quem descobre a riqueza de ser quem é, por mais humilde que possa parecer aos olhos dos outros.
Há quem, sem acreditar Nele, encontre Deus. E quem, buscando-O com fé, não sinta senão uma enorme treva, um vazio sem sentido… A existência de cada um de nós é uma longa peregrinação em busca de algo que nos ultrapassa, mas nos envolve. Algo que nos indica caminhos, mas nos deixa livres. Algo que nos cria, mas como criadores de nós mesmos.
Será melhor estarmos sós ou assumir compromissos para com falsas comunidades?
A solidão é talvez um preço prévio que se deve pagar a fim de mantermos uma perspetiva verdadeira sobre quem podemos e devemos desejar ter próximo.
Os tempos de muito tempo convidam-nos a descobrir as camadas que em nós, quais vitrais, nos tingem a migalha de luz que a todos nos dá vida. Brilhando e admirando o brilho dos outros.
MANTER O CORAÇÃO AMPLO
Ensina-nos, Senhor, nos espaços confinados do presente a manter amplo o coração.
Que a medida do nosso amor não se reduza, nem diminua o nosso compromisso, real e concretíssimo, permanente e apaixonado, para com a vida.
Que não nos deixemos infetar pelo vírus do desânimo ou do medo, que nos trancam nas voltas de um inútil redemoinho interno, sem horizonte.
Lembra-nos, Senhor, que como seres comunitários nos criaste: somos mulheres e homens que realizam a sua mais alta vocação no encontro, na partilha, no caminho feito conjuntamente e na quotidiana vivência da comunhão e do dom. Não permitas que cruzemos os braços ou coloquemos entre parêntesis os nossos deveres fundamentais para com os outros, aprisionando-nos à abstrata suspensão de uma espera sem rosto nem figura.
Dá-nos o sentido da presença, mesmo à distância, e a capacidade da ação, ainda que indireta. Na verdade, a prudência para evitar o contágio, não pode inibir, antes estimular, as mil formas que existem de manter o contato.
Por isso, Te pedimos que o Teu Espírito Santo alavanque em nós o criativo poder de esperança e ative esse desassossego de amor que é a caridade, nas suas múltiplas expressões. E que a nossa oração pessoal seja, em cada dia, uma forma de participação na grande comunidade, como a pequena gota que sabe pertencer ao vasto oceano. Pois somos chamados a aceitar as paredes, mas também a relativizá-las, como nos recorda o Teu Filho Ressuscitado.
Dom José Tolentino Mendonça
27.04.2020
Nos dias que correm. Perdão. Nos dias que andam (bem lentamente) temos sido mais sugados pelo pessimismo. Antes de toda esta suspensão obrigatória e imposta, vivíamos reféns de um ritmo alucinante. Tudo acontecia demasiado depressa, à velocidade de um cruzeiro primo do Titanic. Agíamos como autênticos donos do mundo, sem ter nada que fosse, realmente, nosso.
Não estávamos felizes. E agora também não estamos.
Não sabíamos gerir o tempo. E agora também não sabemos.
Não tínhamos tempo para o mais importante. E agora também não temos.
Não sabíamos ver o lado bom da vida. E agora também não vemos.
Não atravessávamos zonas que fossem além da zona de conforto. E agora também não atravessamos.
Estamos ao colo do pessimismo. Como estávamos antes. Tudo a correr mal. Tudo é demasiado. O ritmo continua a ser de loucos. O trabalho é em quantidades absurdas e inumanas ou calou-se simplesmente e deixou de existir. Estamos fartos uns dos outros e da nossa versão de perfil online e virtual. Queríamos mais pele. Mais beliscões de alma que nos agarrassem à vida e ao mundo com as unhas e os dentes de antes.
Já chega de nos deixarmos estar neste colo de amarguras e queixumes colecionados. O colo da esperança é mais bonito que este. Mais leve. Mais tranquilo. Mais certo. É da esperança que nascem frutos. Do pessimismo só nascem cardos e espinhos.
É da esperança que surge o essencial. O que está escrito nas entrelinhas. O que está subentendido no sorriso que alguém teima em devolver-nos.
É da esperança que nasce tudo.
Enquanto estamos ao colo do pessimismo não nos permitimos reparar que a vida continua a existir. Há bebés que nascem, saudáveis, no meio de um mundo virado de pernas para o ar. Alheios a tudo, mostram-nos a única coisa que importa:
É da esperança que nasce tudo.
Marta Arrais
In: imissio.net 15.04.2020
Tenho uma vizinha que persiste em comprar flores neste tempo. Vejo-a, quase todos os dias, através da janela fechada, a caminhar em ritmos diferentes, como se fossem duas pessoas no mesmo corpo. A mulher que sai de casa ao amanhecer, aquela que atravessa a rua deserta de passo rígido e cabeça levantada como um soldado na frente de batalha, traz consigo as ansiedades de um povo esfomeado. É uma mulher disciplinada que arrisca a vida para atravessar o território proibido.
Ao leitor deixo um conselho: que ninguém se atreva a detê-la. Pela sua saúde, que não a desafie. Se tem amor à vida e aos seus entes queridos, fique em casa e veja, apenas, através da janela fechada, aquela mulher que avança determinada à procura de flores.
Sempre que a vejo regressar da praça, com as flores ao peito, com um ar de mulher perdidamente apaixonada, interrogo-me pela razão da súbita transformação. Terá sido o efeito do roxo dos lírios ou o perfume das rosas? Terá sido o contágio do sol das gerberas ou algum feitiço das pequenas margaridas brancas? A mulher mística regressa serena. Pelo caminho distribui generosamente acenos e sorrisos aos que a espreitam sisudos à janela. No passado sábado, no regresso a casa, perguntou-me se precisava de flores. Nem lhe respondi. «Claro que não, neste tempo, flores para quê?»
Já falei do estranho caso com médicos amigos, em especial, aos entendidos em saúde mental. Dizem-me, pesarosos, depois de longas explicações, que estes “doentes” têm de ser tratados com mão firme e muita paciência.
Há dias, no entanto, em que suspeito do rigor deste diagnóstico. E se eles estiverem enganados? E se esta mulher vai à florista como quem vai à farmácia?
Esta manhã quando a vi, pela terceira vez esta semana, a caminhar de flores nas mãos, houve uma voz que me disse que esta mulher comprava flores para não ceder à tentação de se comprometer com os medicamentos. Há um desequilíbrio na procura. Há mais gente a entrar numa farmácia do que numa florista. Procuram o medicamento certo para adormecer, o que faz esquecer ou, em alternativa, aquele que reaviva a memória. Sonham com a receita certa para emagrecer e não se cansam de perguntar pela combinação adequada para fortalecer o sistema imunitário. Estudam e consomem devotamente mil suplementos alimentares. Investem parte considerável dos seus bens em camadas de cremes na expetativa de renovar a envelhecida pele. A ela, nenhuma dessas soluções lhe interessa. Bastam-lhe as flores.
Talvez ela tenha razão.
Pe. Nélio Pita
In: imissio.net 04.04.2020
Diz Etty Hillesum no seu belíssimo diário: «É preciso cada vez mais poupar as palavras inúteis para poder encontrar aquelas poucas que nos são necessárias; e esta nova forma de expressão deve amadurecer no silêncio.
Muitas vezes para as coisas melhores da vida faltam-nos as palavras, e as poucas que temos surgem-nos retóricas e gastas. As palavras são um grande engano quando nos persuadem de ter atingido a verdade, distraindo-nos da busca. Quando algum de nós pensa que tem uma qualquer experiência espiritual ou religiosa sente de imediato a necessidade de falar dela, de a cobrir de teorias, de a comunicar com muitos discursos.
«Não o digais a ninguém», recomenda Jesus aos apóstolos, as palavras devem seguir os gestos, não antecedê-los. É ilusão pensar que se atinge a essência das coisas só com as palavras, sem primeiro as ter feito viver em nós.
As palavras têm o poder de curar, mas o silêncio cumpre em nós algo mais, faz renascer aquilo que dorme e reata relações com a nossa identidade profunda e autêntica.
Procuro aceder ao silêncio sobretudo na transparência da manhã, donde do coração foi removido o tumulto dos nossos rancores, das nossas cóleras, de todos os nossos preconceitos, e se aprende a encarar e a escutar o silêncio de Deus. A minha fraqueza e pobreza precisam de silêncio e de acolhimento para se desdobrarem em mais humanidade.
Quanto mais este mundo está imerso no ruído, mais forte para mim se torna a necessidade de momentos de silêncio, para que minha presença diária com os outros manifeste a presença de Deus em mim.
Ao encontrar os outros tendemos a preencher o vazio que há entre nós e eles com demasiadas palavras, quando deveríamos deixar esse vazio aberto a fim de que a relação com o outro continue a ser viva. O silêncio é condição necessária para continuar a acolher sem subjugar e dominar.
Raramente encontro ouvintes do silêncio. Homens e mulheres que espalham o silêncio mesmo quando falam, que procuram e não se resignam, que sofrem mas não se desesperam, que sabem escutar e ver os sinais da presença de Deus.
Ouvintes do silêncio, que fazem uso do silêncio como de um canto, de uma oração do coração, a aí aprendem a interrogar-se, a ver-se na profundidade ao elevarem-se para além de si próprios.
Ouvintes do silêncio que abraçam na sua doçura e força, sobriedade e liberdade, ao ponto de se tornarem simples e sem pose, livres de toda a máscara ou narcisismo.
O silêncio ao início requer um esforço, mas depois deve tornar-se uma atmosfera de vida, um modo de estar na realidade. O encontro com o silêncio primeiro evita-se, porque tem o sabor de ausência insuportável, de tal maneira que se apresenta passivo como o aborrecimento, a espera e a dor; mas a certo ponto o silêncio torna-se plenitude do vazio, hospitalidade recíproca, sentes que és hospedado pelo silêncio e que tu o estás a hospedar em ti.
«Eis que o atrairei a mim, conduzi-lo-ei ao deserto, e falarei ao seu coração» (Oseias 2,16). O silêncio pede-te para saíres, conduz-te para. Quem procura a essência da vida passa sempre por dúvidas e incertezas, mas só quando encontrares o silêncio, ele te conduzirá para além do limite da inteligência, falará ao teu coração e far-te-á render diante do amor.
Temos visto de tudo nesses tempos de peste à solta. Gente sendo solidária à força. Gente doente só de se ver tolhida em suas vontades e vantagens. Também uns santos na linha de frente socorrendo os esquecidos pelas ruas. E ainda os consortes da peste, a postos para recrudescer o surto, como aquele assassino do poema de Carol Ann Duffy, que, estando farto de ser ignorado, enfim resolve mostrar seu poder de influir no mundo.
Em sacadas e janelas, as pessoas cantam, tocam sanfona, batem panela, gritam. Paralelamente à angústia humana, a natureza agradece, reverdece, leva peixes e cisnes para os canais de Veneza, abre o céu da China para um inominável azul. Ruminamos lições de comunidade experimentando a carne e o nervo de palavras tantas vezes manipuladas mal e porcamente. O amor em mínimos cuidados táteis. O respeito pelos outros ao nos tornarmos quase invisíveis para eles. A gentileza na suspensão de muitos gestos corriqueiros, a gentileza rompendo a casca da palavra gentileza.
No Egito, o medo desce o Nilo. Na Polônia, os velhos não são esperados nas missas de domingo. Em Bangladesh, o temor é mais espesso nos campos de refugiados rohingyas, que sobrevivem de orações e da misericórdia alheia. Na Tailândia, macacos se engalfinham por comida. Fecharam o Taj Mahal, o santuário de Lourdes, a Estátua da Liberdade. O papa abençoa a Praça de São Pedro vazia. Na Espanha, os touros permanecem vivos. Estão cancelados o abraço da paz, as mãos dadas no Pai Nosso, a hóstia na boca.
As campanhas de alento público aos isolados são pela leitura de bons livros, sessões domésticas de filme e música, mas o que fazer se a mente tem o olho cravado nos fatos se sucedendo a uma velocidade indomável, e o olho tem a alma posta nas dores possíveis dentro de cada casa, nos pequenos pesadelos pessoais impublicáveis dentro do grande pesadelo comum? Há gente que está rezando pela primeira vez depois de décadas. Gente que talvez desse tudo por um sorriso de Buda, ainda que fruto de loucura. Também loucos esperando normalmente. De fato, temos visto de tudo nesses tempos.
Mariana Ianelli
Escritora, autora de vários livros de poesia e crônicas.
In: Rubem 21.03.2020
Terei desaprendido a estar em casa?
É preciso recuperar a sabedoria e o gosto de estar em casa.
Parece que entramos num mundo de desconhecidos e estrangeiros que se sentam à mesa aguardando que lhes tragam por entre guardanapos e talheres uma promessa devida. Como se a família fosse um agregado e o irmão a hipótese de um parentesco.
De irmãos passamos a hóspedes numa família pouco hospitaleira e agora de receio hospitalar.
Deixamos de ser pares. Somos vizinhos da própria família. Os quartos passaram a moradias.
Talvez esteja a faltar um tédio saudável para tornar razoável esta relação.
Como se da sala de estar vivessem os finos, tremoços e imperiais e não houvesse no brinde o que nos resta de uma festa.
Que este tempo de regresso a casa reabilite o hábito e a habitação daquilo que um nos inscreveu na biografia.
Sejamos pois gratos àqueles que viermos a encontrar e a tropeçar na própria casa. Não são nossos vizinhos. É a própria família.
Pe. Nuno Branco SJ
Temos medo dele. Fugimos dele. E, no entanto, carecemos deles como de pão para a boca.
Convidá-lo a estar connosco é, nos nossos dias, quase um ato de heroísmo. Mas é – e muito!- um ato de saúde em todas as dimensões. Mais do que isso: é um ato de quem busca a plenitude no aqui e agora! Essa mesma que não pertence a um momento eufórico, de êxtase pontual, passageiro e epidérmico, mas onde a nossa existência ganha um sentido profundo e nos vemos parte íntima e única da criação.
As decisões mais estruturantes da nossa vida reclamam a sua presença, de uma forma contínua.
É um mundo onde nenhuma palavra chega, mesmo a que ainda não se inventou. É um mundo onde até as palavras caladas sobram.
O silêncio é um amigo poderoso e teimoso. E que bom que assim é! Banhados que andamos de ruídos procurados ou que vêm ao nosso encontro, do silêncio nos lembramos já só quando a cabeça lateja, as vozes atrapalham e se atropelam, já só quando nem conseguimos discernir as fontes desses ruídos mas carregamos um vazio crescente que nenhuma voz ou palavra pode preencher.
Creio que o caminho do silêncio é aquele que nos permite saborear profundamente a vida. Nem sempre exteriorizar o que vemos e sentimos é uma atitude amorosa connosco próprios e com os que convivemos. O verdadeiro silêncio não castra as palavras nem as atitudes. Sabe encontrar o papel de cada uma. E sabe assumir o seu próprio lugar numa vida desfocada do essencial.
Não tenhamos medo de remover as entranhas, arrumar as gavetas, conviver com a nossa vulnerabilidade. Essa, que o silêncio nos revela. É aí, nesse tempo (in)finito que também percebemos a grandeza de uma vida fundada no silêncio.
Cristina Duarte
In: imissio.net 5.03.2020
Campanha da Fraternidade (CF). Uma forma que a Igreja Católica no Brasil encontrou de vivenciar a Quaresma. Há cinco décadas a Campanha (CF), coordenada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) propõe temas que apontam para a necessidade de compromisso do cristão. Também propõe discussões e enfrentamento dos problemas que afetam os pobres: precariedade da saúde, do trabalho, educação, moradia, políticas públicas, entre outros já foram foco da CF.
O tema proposto em 2020 é Fraternidade e vida: dom e compromisso! Quatro palavras de profundo significado. Fraternidade: parentesco, solidariedade entre irmãos, harmonia entre humanos. Vida: tem conceito bem amplo, mas aqui interessa vida como existência. Dom: significa dádiva, presente. Compromisso: é responsabilidade. Assim a Campanha convida os cristãos para cuidar da vida! Vida nas suas diversas dimensões: pessoal, comunitária, social, ecológica, política.
Esse olhar atento precisa antes responder a indagações angustiantes: o que aconteceu conosco? Por que vemos e deixamos crescer tantas formas de violência, agressividade e destruição? Perdemos, de fato, o valor da fraternidade? “Olhai para a terra, veja quanta maldade” (samba enredo da Mangueira).
A CF 2020 toma como referência a parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37). O sacerdote e o levita, desviam-se do homem ferido, pois não tinham tempo para ele. Mas o Samaritano aproxima-se da vítima dos salteadores e, movido pela compaixão, gasta seu tempo e dinheiro, ficando com ele na hospedaria. Paga todas as despesas e promete retribuir ao dono da hospedaria tudo o que gastasse para cuidar do homem ferido.
A postura do samaritano contém o centro do ensinamento de Jesus: o próximo não é apenas alguém com quem possuímos vínculos, mas todo aquele de quem nos aproximamos. Sentir compaixão é a chave para fazer a vontade de Deus, que ama toda a criação. Tempo de abertura ao mistério da dor e morte de Jesus. Sua entrega na cruz é o culminar do estilo que marcou sua vida. Somente contemplando o mundo com os olhos de Jesus, olhar samaritano, é possível acolher o grito que emerge das várias faces da pobreza e da agonia da criação.
O olhar do sacerdote e do levita são o da indiferença. Um olhar que gera ameaças a vida. E quais são? O aborto, a migração forçada e as guerras que geram milhares de crianças órfãs. O desemprego que atinge milhões de trabalhadores. O trabalho precário que chega a 41%. A desolação! 27 milhões não conseguem trabalho algum. A miséria que castiga mais de 15 milhões excluídos. O suicídio, quarta causa de morte entre jovens. Violência no trânsito: 19.398 mortes, só no primeiro semestre de 2018. Brasil é o quarto país no mundo em mortes por violência no trânsito. Fé em Deus e pé na tábua?
Feminicídio! Entre 2016 e 2018 foram mais de 3,2 mil mortes no país. No mesmo período, mais de 3 mil casos de feminicídio não foram notificados. Também são ataque à vida ideias como a pena de morte e o armamento. A meritocracia, o individualismo, o fundamentalismo religioso, o consumismo doentio que cria a cultura do descartável. A banalização do mal, chacinas, criminalização dos pobres, racismo, homofobia, ódio. Governo comprometido com os ricos e poderosos: em 2019 o lucro do banco Itaú foi de 10,2%, Santander 17% e Bradesco 20%. O Itaú lucrou um salário mínimo por segundo em 2019! Por segundo. O reajuste do salário mínimo foi de 0,1%.
O que fazer diante de tantos males? Os discípulos e amigos de Jesus estão a serviço da vida. Rompem com a indiferença e derrotam a Justiça. É preciso sentir a dor do outro e comprometer-se com o sofredor. Quem ama não acusa. Sua atitude é misericordiosa. Motiva a igualdade e a justiça. Superar a fome, o desalento social e econômico, a degradação do ecossistema e cultura do desperdício é responsabilidade de todos! A finalidade da vida cristã é promover a solidariedade na construção do Reino de Deus.
“Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão” (samba enredo da Mangueira). Que todo ser humano tenha vida, e vida em abundância (João 10,10). A campanha é um convite ao olhar solidário. A missão do discípulo missionário de Jesus é revelar ao mundo o rosto da misericórdia e da justiça de Deus. Promover a justiça é um ato de fé. A caridade é o verdadeiro sentido da vida. A caridade social nos leva a amar o bem comum. A justiça jamais estará desvinculada da caridade.
A Quaresma é tempo para descoberta da ternura que revela o rosto materno do Deus apaixonado pelo ser humano. Estimula a amar, cuidar e a aceitar os outros. A quaresma deve estimular a Igreja em saída, aquela que vai as periferias sem medo de sujar as sandálias. Servir! Ver! Sentir compaixão e cuidar da vida é o autêntico Programa Quaresmal.
Pe. Élio Gasda SJ
Uma vida vazia é muito pesada. Dar a si mesmo e ao mundo uma vida digna é muito mais do que andar sempre com pressa. O valor da existência não depende da quantidade de coisas que somos capazes de fazer ou das tarefas que executamos.
O sentido da vida depende da qualidade com que se vive. Não cometer erros evitáveis ajuda muito. Quem julga que terá sempre segundas e terceiras oportunidades engana-se a si mesmo de forma infantil. Importa aprender a caminhar de forma um pouco mais lenta.
Tens de parar. De quanto em quanto tempo interrompes as tuas rotinas, para descansar bem e para avaliar o percurso feito? Quando costumas decidir qual o caminho a seguir?
É difícil aceitar que a razão de não encontrarmos paz se deve a que a procuramos onde ela não está. O descanso que ansiamos está em nós. É inútil procurá-lo em qualquer outro lugar que não em nós mesmos.
A vida impõe-nos uma luta constante contra maldades e indiferenças, mas, ao contrário do que se julga, grande parte delas são nossas. Tendemos a projetar nos outros o que está dentro de nós, chegando ao ponto de sermos ainda mais intolerantes com quem revela os mesmos problemas que nós! Não devia ser ao contrário? Sim, mas isso supõe que os assumiríamos. E esse é um passo de uma coragem de que muitos não são capazes.
Quando te olhas ao espelho, gostas do que vês?
Viver é amar. Aprender a abraçar e aprender a perder o que se abraçou. A vida é uma perda constante do que amamos, mas é também um mistério imenso de onde brotam sempre mais e mais mãos estendidas à espera do nosso amor. Não mendigam, são talvez sinais que nos apontam o caminho.
A vida é um conjunto de aparentes acasos que se sucedem. Há quem confie que têm sentido, apesar de não o conseguir descobrir. Outros investem e perdem tempo e forças a tentar compreender o que está muito acima da sua capacidade de entender!
Se tivesses de viver para sempre como vives agora, viverias bem?
Descansa um pouco e aproxima-te da grande pergunta: o que devo fazer para ser feliz? Não procures a resposta em lado algum a não ser em ti. As respostas dos outros são deles. De cada um deles. Há muitos que são infelizes da mesma forma e juntos, porque adotaram para si soluções que não eram as suas.
A minha vida é um caminho único de mim para os outros, não o contrário.
A vida é amor, não é egoísmo.
José Luiz Nunes Martins
In: imissio.net 31.01.2020
O AFASTAMENTO DO PENSAMENTO DE WINNICOTT DOS PRESSUPOSTOS PATRIARCAIS DA METAPSICOLOGIA FREUDIANA
Resumo
Carlos Plastino
Embora afirmando enfaticamente sua filiação freudiana, Winnicott se afasta explicitamente da metapsicologia elaborada por Freud. Está aparente contradição se dissolve considerando que na obra do fundador da psicanálise é preciso distinguir com clareza sua experiência clínica, fonte do saber psicanalítico, da elaboração metapsicológica, por ele definida como especulativa e provisória. O afastamento de Winnicott em relação a essa elaboração tem como fundamento o fato dela incorporar os pressupostos fundamentais do imaginário patriarcal, adotado e adaptado pelo paradigma da modernidade: determinismo, banimento da fantasia criativa, dualismo, concepção mecanicista da natureza, conflito inevitável entre indivíduo e sociedade e necessidade da repressão como condição da sociabilidade humana. O trabalho discute brevemente o afastamento do pensamento de Winnicott desses pressupostos fundamentais que organizam a metapsicologia freudiana.
Palavras chave: afastamento, metapsicologia, fantasia, criatividade, dualismos.
A psicanálise nasceu na prática clínica de Freud, tornada experiência deconhecimento. Experiência singular de conhecimento, a experiência psicanalítica se diferencia das práticas desenvolvidas pelo e para o conhecimento científico. Sustentada numa relação intersubjetiva atravessada de afetos, é dessa experiência que emanam as grandes descobertas freudianas. Foi nelas que, precisando vencer as resistências opostas pelas crenças teóricas que embasaram sua formação e os saberes da época, o fundador da psicanálise descobriu a existência do psiquismo inconsciente, de seu específico processo de conhecimento –o processo primário- e do papel fundamental dos fatores afetivos. Contrariando crenças cientificas então dominantes (Freud,1900,V.VI), transformou a compreensão dos sonhos, afirmando serem portadores de sentido. Foi nessa experiência ainda que Freud compreendeu o sentido e modo de organização das que denominou neuroses de transferências e o papel central desempenhado na sua etiologia pelo complexo de édipo. A elaboração teórica dessa experiência -a teoria clínica-, é quase uma transposição da experiência na teoria, para dizê-lo com as palavras do próprio Freud. Na dimensão epistemológica da experiência clinica criada por Freud, a participação fundamental dos fatores afetivos na relação analítica e na compreensão de seu sentido, assim como a relevância da apreensão e compreensão intuitivas nessa relação, são dominantes, criando assim uma nova forma de saber, radicalmente diferente do imaginário que nutre a perspectiva iluminista do conhecimento, perspectiva que embasava a visão do mundo herdado por Freud. O “Juramento de Berlim”,[1] no qual participaram dois de seus mais importantes mestres, ilustra exemplarmente o peso das crenças que engessavam os ensinamentos que recebera. A caráter inquestionável da concepção materialista do real e a exclusividade atribuída à epistemologia empirista e racionalista cria um abismo entre a concepção então vigente do processo de conhecimento, e a experiência na qual Freud criara a psicanálise.
Na perspectiva iluminista que herdara, Freud pensava “teoricamente” as emoções e os modos de apreensão ligados à intuição, sem questionar a concepção que os privava de sua autonomia como portadores de sentido. Os considerava como expressão da natureza humana, porém concebendo esta na perspectiva reducionista e mecanicista do paradigma dualista, através do qual a modernidade adoptara e adaptara a perspectiva patriarcal de longa data dominante. Como consequência da adesão acrítica desse pressuposto patriarcal, as emoções foram, na elaboração teórica de maior nível de abstração –a metapsicologia- privadas de qualidade e sentido, sendo situadas, na perspectiva dualista no polo inferior. Sendo a concepção dualista hierarquicamente organizada, eram destinadas a ser dominados pela atividade racional do “polo superior”, monopolizadora da produção e transmissão de sentido, assim reduzido ao significado. Esta crença dualista dominante na época presidia a perspectiva de Freud desde antes da criação da metapsicologia, como mostra seu segundo artigo sobre a Psiconeuroses de transferência(Freud,1896). A compreensão teórica dos afetos ao interior da camisa de força da ontologia e da epistemologia moderna, levou Freud a impasses importantes entre a compreensão que obtinha na sua experiência clínica –e a consequente teoria clinica- e a concepção de “maior grau de abstração”, a Metapsicologia”[2], concebida como uma “superestrutura especulativa”, criada para lidar com as questões não passíveis de observação direta. Um exemplo importante desses impasses fica evidente no seu artigo de1915 sobre o inconsciente (Freud,1915). Nele, considerando o processo do recalque, cujo efeito seria a separação do afeto e da representação, Freud afirma que apenas a representação seria objeto de recalque, os afetos não pudendo sê-lo em razão de não possuir, em si mesmos, sentido que o justificasse. Sua experiência clínica, entretanto, lhe impede de ignorar o caráter genuinamente inconsciente que o sentimento de culpa muitas vezes possui. O que o levou a um grande impasse, reproduzido desde outra perspectiva no seu artigo sobre o recalque, do mesmo ano(Freud 1915,).
A desvalorização dos afetos no nível teórico, em aberta contradição com suas descobertas clínicas, revela a hegemonia das categorias centrais da modernidade e do imaginário patriarcal no pensamento metapsicológico de Freud. Essa desvalorização, vigente de longa data, tornou-se dominante num processo concomitante com a afirmação da dominação patriarcal. A evolução do papel dos afetos no processo que levou a afirmação do patriarcado e do racionalismo na Grécia antiga é ilustrativa da formação dessa concepção. Inicialmente considerada a força da vida porém tendendo ao excesso, a paixão requeria a existência de uma “medida” (ratio). Essa “ratio” transformou-se, com a emergência do racionalismo grego, em razão, tendo agora como um de seus objetivos os domínio das paixões.Transformação operada num contexto de afirmação do dualismo hierarquizante da vida social e da própria realidade, base do domínio masculino e racional sobre a mulher, o corpo, os afetos e tudo aquilo considerado pertencente à natureza. Assim, a paixão devia ser dominada pela razão e a sociedade pela dominação patriarcal. A afirmação de uma concepção da vida social e da atividade humana presidida pela ideia de conquista, conflito e dominação, constitui o arcabouço deste processo de desvalorização das emoções. O mesmo processo atingiu a concepção do imaginário humano, reduzido no contexto de afirmação da ontologia determinista, a momento segundo da percepção, ignorando sua participação fundamental do processo de criação. (Castoriadis,1978).
A relação entre a afirmação da perspectiva determinista e o patriarcado é ostensiva. A obra de Platão ilustra a natureza fundamental dessa relação. Reconhecendo explicitamente a paternidade intelectual de Parmênides, Platão afirma a perspectiva determinista, banindo a concepção do real como devir. Nessa concepção a parte emocional é pensada como feminina e situada na parte inferior do dualismo. Como consequência da concepção que desvaloriza os afetos e a imaginação e, sendo a intuição e a imaginação central na atividade poética, Platão propunha que os poetas deviam ser expulsos da cidade. A afirmação da filosofia racionalista implicou assim no banimento do imaginário (da fantasia) e o rebaixamento dos afetos e do feminino, sendo a mulher reduzida ao mundo da necessidade e barrada da atividade política, inserida no mundo da liberdade, reservado aos homens livres. Atualizada pelo dualismo da modernidade, esta concepção dominou o imaginário freudiano, como demonstra exemplarmente no seu “Moises e a religião Monoteista (Freud 1937/39). As relações sociais vigentes no tempo em que Freud realizou suas descobertas, organizadas em torno de um imaginário social ainda fortemente dominado pela perspectiva patriarcal, deu sustento empírico a sua construção teórica, sendo que o determinismo dominante nos pressupostos ontológicos e epistemológicos, o levaram a naturalizar o que constituíam práticas originadas na história e, como o processo histórico posterior mostrou, questionáveis e contingente.
Foi neste contexto que Freud descobriu o complexo de édipo e seu papel central no sofrimento neurótico, realizando uma das maiores descobertas operadas pela psicanálise.[3] O cenário no qual foram realizadas a descobertas freudianas, fundamentalmente vinculadas ao sofrimento neurótico, cimentou a crescente centralidade outorgada à vivência edipiana na organização do psiquismo, fortemente desenvolvida pelos sucessores de Freud no que Winnicott denomina a psicanálise ortodoxa. A ausência de experiência empírica com crianças barrou para o fundador da pasicanálise o aprofundamento da compreensão do processo de formação do psiquismo e de constituição do ego. Mas mesmo quando a psicanálise ortodoxa se aventurou no trabalho clínico com crianças muito pequenos, fundamentalmente no início através da obra pioneira de Melaine Klein, essa primazia teórica do édipo foi mantido. No seu “Enfoque pessoal sobre a contribuição kleiniana” Winnicott escreve : “..nos anos vinte tudo tinha o complexo de édipo no seu âmago” (Winnicott,1983,1962”), acrescentando que as dificuldades anteriores à vivência edipiana que vinham a tona, eram tratadas como regressões a pontos de fixação pré-genital, atribuindo sua dinâmica ao conflito próprio do conflito de édipo, marcadamente genital. O atraso no estudo do ego, reconhecida por Freud, limitou sua compreensão do período de formação do psiquismo a algumas intuições geniais, entre as que se destaca sua formulação da identificação primária, que define como sendo anterior as relações de objeto, operada exclusivamente por fatores afetivos e não mediada pela representação. Como se verá, Winnicott acolhe a intuição freudiana porém formulando uma concepção que, ilustrada pelo seu conhecimento do processo primitivo de desenvolvimento, difere sensivelmente da elaborada pelo fundador.
A influência do imaginário patriarcal persistiu no pensamento de Freud até o final de sua gigantesca produção teórica, e isto apesar dos importantes artigos escritos nos últimos anos sobre a feminilidade (1931 e 1933). Em um de seus últimos textos, acima citados(Freud 1937/39), reflexionando sobre o que denomina “progresso da espiritualidade”, a caracteriza como sendo o estabelecimento do domínio do pensamento abstrato e a razão sobre a sensualidade e a afetividade. No processo do estabelecimento do monoteísmo pelo povo judeu, discorre Freud, a proibição de criar imagens constitui a expressão do abandono da representação sensorial de Deus em favor de uma representação mais abstrata. Assim a sensualidade e irracionalidade, expressão do que no homem é natural, teriam passado a ser dominados, junto com a mulher e a fantasia, pelo poder masculino reestabelecido pela instauração do patriarcado e o relevo da sociedade matriarcal. No mesmo processo, continua, o direito materno teria sido substituído pelo paterno. Na espiritualidade “representações, lembranças e processos de raciocínio se tornavam decisivos por oposição a atividade psíquica inferior, que tem como conteúdo percepções imediatas dos órgãos sensoriais. (Freud, 1937/1939,110). Continua afirmando que a superioridade do pensamento abstrato sobre a percepção dos sentidos embasa a superioridade masculina, posto que a paternidade é um suposto construído sobre um raciocínio e sobre uma premissa enquanto a maternidade é constatada pelo órgãos dos sentidos. Este processo caracterizaria, na sua opinião, “Um trunfo da espiritualidade sobre a sensualidade” representando “ uma renuncia ao pulsional, com suas necessárias consequências sobre a vida psíquica”(Freud,1939,108-110). Assim, na que seria uma de suas derradeiras elaborações teóricas, sustentando a concepção dualista central do patriarcado, atribui os sentidos e a imaginação à mulher, os considerando negativamente. Neste ponto de sua reflexão Freud se pergunta sobre os motivos que teriam impulsionado esses processos e por quê em determinado momento histórico esse processo de substituição foi avaliado positivamente? Dito de outro modo, por que em determinado momento um indivíduo ou um povo considera que a renúncia ao sensual e sua substituição pelo pensamento abstrato seria um progresso e um motivo de orgulho e de afirmação de si? Freud responde a esta pergunta construindo um argumento centrado no processo de emergência do super-ego, retrocedendo até suas origens na pré-história humana, retomando seu trabalho de 1912 “Totem e Tabu”(Freud,1912) no qual atribuía a origem da religião totêmica ao parricídio. O assassinato do pai primitivo pelos seus filhos, afirma Freud, teria produzido “o clan fraterno, o direito materno, a exogamia e o totemismo” (Freud,1939,127). No longo processo posterior, que vai desses tempos primordiais ao estabelecimento do monoteísmo, já em épocas históricas, Freud supõe que se opera lentamente um “retorno do recalcado” e a vivência das moções pulsionais antagônicas e o sentimento de culpa. Vivências que foram conservadas inconscientemente, sendo que ‘o conteúdo do inconsciente é coletivo, patrimônio universal dos seres humanos”(Freud,1939,127). Fazendo uma analogia entre as vivencias coletivas dos povos e os processos individuais estudados pela psicopatologia, Freud declara ter optado por sustentar o suposto segundo o qual as vivências dos tempos primordiais tinham se tornado patrimônio hereditário de todas as gerações seguintes. Aceito este suposto, Freud especula que “o retorno do recalcado”, isto é das vivencias que acompanharam o assassinato do pai primordial, foi acontecendo pouco a pouco ao longo da história humana. A figura paterna teria voltado a ser o chefe da família humana, mesmo que sem o poder irrestrito do pai primitivo. Assim, escreve Freud “foi restaurado o império do pai da horda primordial e puderam ser repetidos o afetos dirigidos a ele” (Freud,1939,129). O estabelecimento da religião monoteísta significaria então o momento histórico no qual “no desenvolvimento da humanidade o sensual é avassalado pelo espiritual.
Presente inicialmente na concepção freudiana pelo papel atribuído ao conflito e à repressão na sociabilidade humana, esta concepção patriarcal, exprimida na cultura ocidental pela crença no “pecado original”, torna-se dominante na última etapa do pensamento freudiano através da concepção da pulsão de morte. Winnicott comenta, criticando explicitamente Freud e Klein, que a afirmação da pulsão de morte caracterizava a incorporação da crença do pecado original na teoria psicanalítica.
Winnicott, filiação e heterodoxia
Na avaliação da obra de Freud e sua compatibilidade com os saberes contemporâneos, é fundamental diferenciar com clareza suas grandes descobertas clínicas –e sua elaboração teórica- da elaboração metapsicológica dessas descobertas. Como foi lembrado acima, Freud pensou a metapsicologia como uma superestrutura provisória, passível de ser modificada ou substituída quando se mostrasse insuficiente ou equivocada à luz da experiência clínica. Confrontado com impasses clínicos, modificou algumas de suas teorias mais importantes, como é o caso da teoria tópica, da teoria pulsional e da teoria sobre a angustia. Entretanto manteve intocado o arcabouço que organiza a perspectiva do imaginário patriarcal e de sua atualização na formulação do paradigma da modernidade. A distinção entre experiência e teoria clínica e metapsicologia é claramente feita por Winnicott. Nas primeiras reivindica sem ambiguidades sua filiação freudiana, chegando a afirmar que os que trabalhavam na clínica deviam tudo a Freud. Em relação à metapsicologia, entretanto, se afasta com igual clareza, afirmando, em correspondência com Anna Freud “não utilizar os termos da metapsicologia” por que “eles podem fornecer uma aparência de compreensão onde tal compreensão não existe” (Gesto Espontâneo, s/d,51.) De fato, a perspectiva de maior nível de abstração criada por Freud, definia limites estreitos para pensar as descobertas clínicas e os conceitos elaborados a partir deles. As importantes modificações introduzidas por Freud depois dos anos XX abriram certamente possibilidades significativas para pensar conceitos fundamentais. O conceito de “primado da afetividade”(Freud,1926), postulado no contexto da segunda teoria pulsional, constitui um bom exemplo, na medida que enfatiza a importância dos fatores afetivos para além de sua característica de força. Entretanto, inseridas numa concepção global dos afetos presidido pelos pressupostos dualistas e deterministas da perspectiva patriarcal, estas transformações teóricas não puderam desenvolver, ao interior da psicanálise ortodoxa, uma linha de pensamento que permitisse aprofundar o formidável potencial de transformação teórica contida nessa afirmação do primado da afetividade. Na teoria tópica são notórias as dificuldades que enfrenta para pensar teoricamente o conceito de Id, como designa o inconsciente originário a partir da publicação do “O ego e o id”.
A precedência dos processos inconscientes sobre os conscientes fora salientada por Freud já na época de elaboração da “A interpretação dos sonhos”. Afirmou, já nesse período inicial, que o psiquismo inconsciente constituía o psiquismo genuíno, podendo a atividade consciente acompanhar ou não os processos inconscientes. Descobrira também que a modalidade de funcionamento do psiquismo inconsciente, por ele denominada de “processo primário”, operava ignorando a linguagem e sua lógica identitaria, constituindo uma forma de pensamento que operava combinando afetos e emoções. O processos primário, afirmava, possuía sentido e era também cronologicamente primeiro, tanto na história da espécie quanto de cada indivíduo e ainda de cada ato psíquico. Todavia estas descobertas revolucionárias foram fortemente limitadas e até ocultadas pela formulação metapsicológica , desenvolvida por Freud no famosos capítulo VII da “A Interpretação dos sonhos”, por ele denominado na sua correspondência com Fliess de “capítulo filosófico”. Nesse capítulo, adota a concepção antropológica cartesiana, pensando a “origem do inconsciente” através de uma dinâmica na qual determinada representação é rejeitada e recalcada, dando origem aos conteúdos inconscientes. É verdade que na segunda tópica designa o Id como psiquismo originário, porém na medida em que não questiona os pressupostos dualistas e a desvalorização que eles impõem do “polo” corporal, Freud não pode avançar muito além de formular a existência originaria do Id, o pensando no registro biológico e reduzindo seu conteúdo às pulsões. Groddek, de quem tomara o conceito (Freud, 1923) comenta que Freud o tinha esvaziado.
Foi enfatizado acima que o saber psicanalítico teve como fonte a prática clínica de Freud. O mesmo pode ser afirmado em relação à teoria elaborada por Winnicott, sendo esta uma das razões que o levaram a afirmar sua filiação freudiana. Winnicott construiu sua teoria a partir de sua longa e diversificada prática clínica. Seu afastamento da metapsicologia –e dos pressupostos patriarcais que a organizam-, tornaram possível a criação de conceitos construídos à partir da sua experiência, e, progressivamente, lhe permitiram formular uma visão de conjunto sobre o desenvolvimento emocional primitivo do ser humano. Ciente desse fato, afirmava já em 1948, contar com “hipóteses de trabalho muito úteis”, enfatizando que “realmente elas funcionam” (Winnicott 1948,2000,234). Não é o intuito deste pequeno trabalho comentar a Teoria do Desenvolvimento Emocional Primitivo ou aprofundar alguns de seus aspectos, mas explicitar o afastamento radical da prática e da teoria Winnicottiana dos postulados centrais do imaginário patriarcal, tão influentes na metapsicologia freudiana.
A concepção do ser humano como definido pelo seu individualismo radical e do laço social como inevitavelmente caracterizado pelo conflito, a repressão e a dominação, configurando sociedades organizadas em forma hierárquica e dualista, constitui, como assinalado acima, o cerne da concepção antropológica patriarcal. Esta concepção do ser humano como radicalmente conflitivo foi retomado pela atualização do paradigma patriarcal operado pela modernidade (Hobbes), enfatizando particularmente o individualismo como cerne desse conflito. O dualismo constitutivo dessa concepção sustenta a exclusividade da razão nos processos de conhecimentos e o monopólio do pensamento lógico na atividade intelectual humana. Consideradas disruptivas, as emoções são nessa perspectiva submetidas à atividade racional e privadas de sua participação nos processos de apreensão, dos quais também a intuição será excluída. O “saber dos poetas” –o saber do inconsciente-, belamente mencionado por Freud nos momentos mais livres de seu pensamento, foi explicitamente condenados na reflexão filosófica organizadora da perspectiva patriarcal, que teve na obra de Platão importante formulação. A concepção do real da perspectiva patriarcal, por sua vez, foi organizada em torno do princípio da determinação, fazendo da racionalidade e da identidade as peças centrais dessa concepção. O banimento da fantasia, e com ela da capacidade de criação de novas formas do ser, consagra uma concepção radicalmente objetiva da realidade, sendo a atividade do sujeito limitada a conhecer a organização racional do real e operar a partir desse conhecimento. A crença da mediação necessária da representação nos processos de apreensão do mundo e de comunicação intersubjetiva, acompanhou a desvalorização do papel da intuição e a separação radical postulada entre o ser humano, pensado como sujeito de conhecimento, e a realidade externa a ele. Estas crenças patriarcais embasam a metapsicologia freudiana, em alguns casos em aberta contradição com suas descobertas teóricas e a teoria que construíra a partir dela. O exemplo do valor da intuição, plenamente reconhecido neste registro, e terminantemente negado na metapsicologia. Sua 35ª. das “Novas Conferências de Introdução à psicanálise”(1933) constitui um claro exemplo dessa negação do valor da intuição.
Nos parágrafos que seguem tentarei por em evidência como os conceitos fundamentais de Winnicott, o conjunto de sua teoria do desenvolvimento emocional e a concepção antropológica que surge de sua teoria, se afastam radicalmente desses pressupostos patriarcais, constituindo uma valiosa experiência de conhecimento para a substituição desses pressupostos e crenças dominantes na nossa civilização.
O conceito de psicossoma
Todo o contexto subjacente à elaboração da metapsicologia freudiana foi afastado pela reflexão de Winnicott. O ponto de partida da concepção antropológica que surge de sua teoria é o conceito de psicossoma, através do qual ele abandona tanto o dualismo antropológico cartesiano como a crença na precedência do indivíduo em relação aos laços sociais. Na sua perspectiva, esse ser denominado psicossoma atravessa um longo e complexo processo de individuação para tornar-se um individuo. Ao nascer é um mamífero dotado pela natureza e pelo processo evolutivo, de tendências cuja atualização criativa, em cada caso, depende radicalmente da presença acolhedora do ambiente humano, inicialmente representado pela figura materna. Característica fundamental desse organismo humano, é sua capacidade inata de elaborar imaginativamente suas experiências, constituindo esta capacidade o cerne de seu psiquismo. Embrião da fantasia, essa capacidade imaginativa embasa a essencial capacidade criativa do ser humano, caracterizando esta afirmação winnicottiana a superação do banimento milenar da fantasia, fundamentando a compreensão da decisiva participação humana na constituição da realidade e relativizando a vigência antes omnipresente do determinismo. Convém desenvolver, nos limites possíveis neste artigo, o pensamento de Winnicott sobre estas questões.
A atividade do psicossoma é pensado por Winnicott através de dos conceitos fundamentados na sua prolongada observação de bebês. O ponto de partida é a constatação de um movimento natural que denomina força vital (Winnicott,1950/55,2000) e se exprime na motilidade que caracteriza a vida do ser humano desde seu estagio fetal. Winnicott a designa singelamente como a caraterística humana que faz que o bebê se mexa ao invés de ficar quieto. Esta força natural o move a buscar algo fora de si, configurando uma característica que Winnicott designa como agressividade, atividade essencial na qual se exprime a espontaneidade que constitui uma característica e uma necessidade fundamental de seu ser.
Winnicott não ignora a existência da agressão e a inimizade entre os seres humanos e na vida social. Ao interrogar-se sobre ela, contudo, se afasta da postulação de uma pulsão determinada pela natureza e insuperável, construindo uma compreensão teórica inspirada pela experiência clínica. O movimento agressivo existe desde o início da vida, no movimento natural do bebê que denomina “amor primitivo”. A presença da agressão desde o começo da vida não obriga entretanto a postular a existência de uma “pulsão natural de destruição”, como teoriza Freud na sua segunda teoria pulsional, definindo as pulsões como sendo um “bloco de natureza indomável na nossa composição psíquica”(Freud,1930). Verificando ser a agressão a resposta à frustração de uma satisfação, Winnicott salienta que, sendo “na prática é impossível a satisfação total do Id” (Winnicott, 1950/55,295), as frustações são, desde o início da vida, inevitáveis em algum grau. Esta compreensão se funda na constatação que, embora fundamental para cimentar um desenvolvimento emocional sadio, mesmo a ação de uma mãe suficientemente boa em estado de “preocupação materna primária”, não pode evitar o surgimento de alguma medida de frustação da satisfação do bebê. No amor primitivo, entretanto não há ainda um ego organizado, não sendo em consequência possível a aceitação da responsabilidade pela agressão, na qual também no existe ódio. Simplesmente a destruição é, no impulso do id, parte do objetivo, sendo meramente incidental à satisfação. A raiva e o consequente temor à retaliação requerem a presença de um eu integrado, ainda inexistente ou em processo inicial de formação, não sendo portanto experiências que o bebê viva no amor primitivo. Este contém então um aspecto destrutivo, embora não exista a intenção de destruir dado que nesse período precoce ainda não existe o concernimento.
A concepção antropológica.
Outra diferença fundamental da compreensão winnicottiana em relação à psicanálise ortodoxa e seus pressupostos é o papel atribuído na sua concepção do desenvolvimento inicial primitivo do ser humano à dependência, acompanhado da tendência natural da mãe a sustentar o nível inicialmente absoluto dessa dependência na capacidade temporária possibilitada pela “preocupação materna primária” (Winnicott, 1956/2000,399), capacidade excepcional que tem como fundamento o “amor devotado” (Winnicott, 1964,1982) Esta participação fundamental do sentimento do amor na relação primária do bebê humano é fundamental na concepção antropológica elaborada por Winnicott. No período primitivo do desenvolvimento emocional, que conclui com a formação do ego e o reconhecimento da alteridade, as pulsões não tem um papel protagónico posto que, não existindo ainda um ego unificado, elas são, como afirmara Freud, parciais. O processo no qual o eu se constitui e a participação decisiva do papel materno nele, é atribuído ao amor, sentimento que tem também um papel decisivo no processo no qual o bebê percebe e reconhece a existência da mãe como alguém diferente dele, concluindo assim a constituição de seu eu (realização), preparada pelos processos de integração e personalização. Também neste processo –a posição depressiva- o amor tem um papel decisivo, guiando a resposta acolhedora e não retaliativa da mãe face a destruição fantasiada pelo bebê como resposta ao processo de diferenciação. O sentimento de empatia que então surge no bebê, “facilitado” pela manutenção do acolhimento amoroso da mãe, embasa nele a conquista do sentimento de culpa, desdobrado na conquista do sentimento de concernimento e no movimento de reparação. Novamente é o amor que permite a percepção materna dessa mudança no bebê e das tentativas de reparação que ele realiza, as aceitando com alegria.
Os desdobramentos desta concepção são gigantescos. Ela permite a fundamentação da emergência do super ego sobre a base de uma tendência natural do ser humano (a empatia) e ao interior da relação ainda dual com a figura materna, no contexto presidido pelo acolhimento amoroso. Trata-se de uma origem espontânea e não imposto da instância superegoica. Winnicott reconhece a existência e necessidade do super ego social descoberto e teorizado por Freud, mas mesmo reconhecendo sua importância, não lhe atribui a centralidade que ganhou na psicanálise ortodoxa. Não lhe atribui a característica de ser a “origem” da moralidade no indivíduo, nem de seu processo de reconhecimento e aceitação da alteridade. (Winnicott1963/1983). No seu “Enfoque pessoal da contribuição kleiniana” equipara a descoberta por Klein da posição depressiva à descoberta por Freud do complexo de édipo, considerando ambos os grandes momentos da descoberta psicanalítica (Winnicott 1962/1963, 160) . O ambiente em que um e outro se desenvolvem é claramente diferenciado, a primeira tendo como característica central a não retaliação e o acolhimento amoroso e o segundo o conflito, a repressão e o recalque. O complexo de édipo, na sua teoria do desenvolvimento emocional, é vivenciado por todos os que tiveram um relativo sucesso na face primitiva do desenvolvimento emocional, não sendo por tanto uma experiência necessariamente enfrentada por todos os seres humanos, como afirma Freud. Na sua perspectiva, aqueles cujo processo de desenvolvimento primitivo fracassa ao ponto de impedir a plena formação do ego, continuam vivendo no mundo da necessidade, não atingindo verdadeiramente o mundo do desejo.
Na concepção winnicottiana, no contexto de um desenvolvimento emocional primitivo bem sucedido, e no contexto da nova figura do pai tornada possível pela acentuada –embora ainda incompleta- decadência da concepção patriarcal, o édipo pode ser vivenciado como um drama e não necessariamente como uma tragédia.[4] Embora reconhecendo a importância da vivência edipiana no desenvolvimento emocional e sua participação no reconhecimento da diferenciação sexual e intergeneracional, a concepção winnicottiana e o papel nela atribuída à passagem pela “posição depressiva” como cenário da emergência do sentimento moral e do reconhecimento da alteridade, afasta, neste importante aspecto da teoria, o pensamento de Winnicott do pensamento freudiano. Se na perspectiva de Freud o indivíduo sai menor do processo de emergência do superego (Freud 1930), operada no desfecho do complexo de édipo, para Winnicott, o surgimento do super-ego espontâneo no desfecho da posição depressiva, torna o indivíduo maior já que “completa” seu processo de individuação pelo início de seu reconhecimento do outro e da sociabilidade que lhe é constitutiva. A imposição do superego pensado como a “implantação de uma cidadela no coração de uma cidade inimiga” (Freud, 1930) tem como consequência o que o pensador carioca Nahman Armony designa como “matriz materna”, forma de relacionamento primário do bebê feita por uma comunicação “corporal, afetiva e intuitiva”( Armony,1013). Esta forma inicial de comunicação do bebê humano, desvalorizada pela patriarcado é por ele destinada a ser dominada, e finalmente esmagada. Esta experiência inicial do bebê é o que leva Winnicott a afirmar a “bondade originária”, terminologia que assinala radical afastamento com a concepção de “pecado original” e a postulação da pulsão de morte.
Na ótica freudiana a ambivalência afetiva gera e sustenta a existência de um sentimento de culpa insuperável, tornando impossível a felicidade na experiência humana e o mal-estar social inevitável. Winnicott não desconhece a existência da ambivalência, mas a considera parte da experiência do ego e não de uma determinação indominável do Id. Lidar com ela constituem, na sua concepção, uma tarefa para a vida toda, sem no entanto fazer do sentimento de culpa o cerne da experiência humana nem impedir sua transformação em sentimento de concernimento e responsabilidade social.
Concebendo a experiência do desamparo inicial como uma possibilidade decorrente da falha do acolhimento ambiental no período inicial da vida, Winnicott não o considera uma experiência inicial inevitável. A importância que atribui ao respeito à espontaneidade do bebê leva-o a questionar a concepção do trauma de nascimento. O cerne de sua compreensão –sustentada em diversas experiências de regressão em trabalho analítico com psicóticos( Winnicott,1949/2000) reside na sua compreensão da enorme significação do agir espontâneo na experiência do bebê, desde seu estado fetal. Não desconhece que na experiência do nascimento a interferência ambiental existe e é inevitável, mas considera que no parto normal não é nem tão intenso nem prologado que exija do bebê uma reação de adaptação, rompendo o fio da experiência de ser (ibidem,265). O parto normal é então não traumático por não ser significativo, sendo que após o nascimento, a “adaptação absoluta da mãe” permite ao bebê retornar à experiência do viver espontâneo. Já no parto traumático a irrupção ambiental, sendo excessivamente intensa e prolongada , torna-se significativa, impedindo que o nascimento seja vivenciado pelo bebê como uma experiência espontânea. O fator mais importante do trauma é, então, a imposição ao bebê de um agir reativo, que provoca nele perda temporária da identidade e um sentimento extremo de insegurança e desesperança quanto à possibilidade de atingir uma vida significativa.
Indivíduo e individuação
Assim, se a teoria ortodoxa pensa o desamparo como experiência inicial fundamental do bebê humano, Winnicott atribui esse lugar a experiência de espontaneidade em situação de dependência absoluta. Esta diferença fundamental de perspectiva é indissociável das concepções antropológicas subjacentes. Freud parte da concepção de um indivíduo anti-social enquanto que Winnicott afirma, a partir de sua experiência clínica, que é preciso considerar o processo de formação desse individuo, ou seja seu processo de individuação. Vejamos isto mais de perto, toda vez que o pensamento freudiano neste ponto é complexo, já que si por um lado aceita a inexistência do ego no início da vida, afirma, ao sustentar a existência do “narcisismo primário”, afirma a precedência de um indivíduo. No primeiro capítulo do seu “O mal-estar na Cultura”, Freud relata seu diálogo com seu amigo Raymond Rolland em torno do que este último designa como “sentimento oceânico”. O texto mostra que, embora reconhecendo a inexistência inicial do ego, Freud mantém o pressuposto individualista central na concepção antropológica patriarcal. A influência desse pressuposto no seu pensamento é de tal ordem, que o levam a modificar radicalmente a afirmação central de seu interlocutor sobre o “sentimento oceânico” sem perceber que sua interpretação do dito pelo seu amigo é radicalmente contraditória com o que Rolland escreve e ele transcreve. Rolland descreve o sentimento oceânico como “um sentimento de ligação indissolúvel, de pertencer ao todo do mundo exterior” enquanto Freud o entende como “um sentimento de conter o todo”. (Freud,1930,66) Embora o fundador da psicanálise pareça considerar ambas as expressões equivalentes, elas exprimem perspectivas radicalmente diferentes. O sentimento de ‘conter o todo’, cuja reminiscência fundamentaria, na opinião de Freud, o sentimento oceânico, supõe a existência do narcisismo primário. O “sentimento oceânico , escreve Freud, “aspiraria a reestabelecer o narcisismo irrestrito”(Freud,1930,73) um sentimento egoico primário (Ibidem,1930,69). O sentimento de “ligação indissolúvel ao todo do mundo exterior”, como escreve Rolland, não supõe um ego, mas uma situação inicialmente indiferenciada. Pensando esta questão na perspectiva da teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo, esta situação pertence aos primórdios da vida psíquica, na qual é construído o narcisismo do indivíduo, inicialmente inexistente. As consequências para a vida psíquica de ambas formas de compreender esse período inicial são radicalmente diferentes e de enorme importância. No primeiro caso é postulada a existência do narcisismo primário, que embasa a inevitabilidade do conflito entre indivíduo e sociedade e da repressão; no segundo caso torna-se necessário postular o conceito de individuação e o papel fundamental do ambiente – da sociedade – nesse processo. A importância dessa participação ambiental, que pode ou não favorecer a atualização das tendências naturais do sujeito, constitui outra diferença fundamental na medida que sustenta a historicidade, das modalidades de relacionamento entre o indivíduo e a sociedade, que não seriam assim determinadas por pulsões elementares, como afirma Freud.
Um ser natural e um ser histórico.
Na concepção winnicottiana o ser humano é pensado, indissociavelmente, tanto como um ser natural quanto como um ser histórico. Ancorado na natureza, o bebê humano é portador de tendências cuja atualização suficiente depende no entanto da insubstituível participação do ambiente favorecedor, inicialmente representado pela figura materna. Dinamizado pela força vital, o desenvolvimento emocional primitivo não está entretanto garantido. Um severo fracasso ambiental no acolhimento do bebê pode afetar em diverso grau a atualização das tendências naturais, dando origem ao adoecimento. Assim o conceito de saúde emocional é indissociável da qualidade do processo de desenvolvimento emocional e do cuidado ambiental. A maneira de conceber a natureza é, no pensamento winnicottiano, totalmente diferente da sustentada pelo pensamento patriarcal -e retomada pelo paradigma moderno e pela metapsicologia freudiana. Afastando-se radicalmente do pressuposto que a pensa ao interior de uma dualidade na qual ocupa a parte inferior, Winnicott não reduz a natureza humana a sua parte material. Seu conceito de psicossoma engloba um organismo (o soma) dotado de uma capacidade ao mesmo tempo natural e imaterial, que caracteriza no início da vida o psiquismo. Também as emoções possuem um sentido na natureza humana, não sendo esse sentido tributário da linguagem, como concebe o discurso dualista inspirado no imaginário patriarcal. Os significados que os sentimentos recebem em cada cultura é certamente uma produção aleatória da linguagem, porém eles possuem um sentido que lhes é próprio. Sentimentos de amor e empatia constituem uma tendência humana fundamental, embora sua atualização criativa dependa –como é o caso de todas as tendências naturais- da atividade acolhedora do ambiente. Sentidos ainda mais fundamentais, como o de que a vida vale a pena de ser vivida ou seu contrário, que não vale a pena, nada tem a ver com a atribuição de significações pela cultura. A não diferenciação entre sentido e significado constitui uma marca do imaginário patriarcal.
Na contramão do imaginário patriarcal e da metapsicologia freudiana, que desvaloriza o corpo a intuição e os afetos, a concepção do desenvolvimento emocional primitivo os considera o suporte da comunicação na relação primária. Na concepção de Winnicott, sustentada em uma longa experiência clínica, é na matriz materna, caracterizada por ser uma relação dual, afetiva, corporal e inconsciente, que o indivíduo constrói seu narcisismo, seu ego e seu super-ego espontâneo. Esta concepção supera assim a concepção cartesiana segundo a qual a representação constitui a mediação imprescindível nos processos de percepção da realidade objetiva. Explicitamente derivada do dualismo antropológico e da redução do corpo (e do que no homem é natural) a uma máquina, esta concepção cartesiana foi encampada pela metapsicologia freudiana, embora não pela sua teoria clínica. Como já mencionado, para Winnicott o que no homem é natural não se reduz a seus aspectos biológicos, mas inclui também a vida emocional e suas tendências, bem como sua capacidade de elaboração imaginativa.
A concepção das tendências naturais e da dependência destas do cuidado ambiental para sua atualização criativa, caracteriza o abandono dos pressupostos deterministas, mecanicistas e individualistas –centrais na construção da metapsicologia freudiana- no pensamento de Winnicott. Sua concepção do desenvolvimento emocional adota claramente a perspectiva historicista, substituindo o conceito de indivíduo pelo de individuação. Na sua perspectiva o desenvolvimento constitui um processo contínuo que abrange tanto o corpo quanto a personalidade. (Winnicott, 2015, 83). Neste processo a experiência da alimentação do corpo e da atividade imaginativa do bebê é fundamental, sendo estes processos indissociáveis posto que baseados um no outro(Ibidem, 2015, 95). Na sua concepção a mente não se confunde com o psiquismo e constitui uma aquisição mais tardia do bebê, surgindo como parte do psiquismo especializado no pensamento lógico. A atividade psíquica existe entretanto desde o inicio da vida, sendo que, como atividade psicossomática, desenvolve as relações do bebê com o mundo externo, que ele ainda não reconhece como tal. Após o desenvolvimento do pensamento lógico, iniciada no contexto de diferenciação operada na posição depressiva, a atividade psíquica continua diferenciando-se do pensamento lógico operado pela mente, ao qual sempre precede.
Fantasia, realidade e construção da subjetividade.
A experiência clínica de Winnicott com os processos de desenvolvimento emocional e o afastamento de sua reflexão teórica da camisa de força da metapsicologia, lhe permitiu construir uma perspectiva original do processo de construção da subjetividade, do funcionamento psíquico e das relações com a realidade. Livre da pesada herança determinista do pensamento ocidental que reduz o papel da fantasia a uma mera reprodução do percebido na realidade, Winnicott pensa a fantasia na sua dimensão de atividade fundamental e incessante da criatividade humana e de sua relação com a realidade. Na problemática da fantasia, como em tantos outros aspectos fundamentais, o gênio de Freud abriu uma nova perspectiva a partir das suas experiências clínicas, mas tornou a fechá-la na elaboração metapsicológica. Descobriu o papel central da fantasia na etiologia do adoecimento psíquico, mas a reduziu a uma reação patológica à aceitação da realidade frustrante. A perspectiva determinista impediu-lhe de compreender a dimensão criativa da fantasia, limitando severamente a possibilidade de pensar a criatividade humana, restringida nesse campo, basicamente, ao estudo dos processos criativos de grandes artistas ou escritores (Winnicott 1975/100).
Na concepção winnicottiana, pelo contrario, a elaboração imaginativa das experiências constitui a matriz da capacidade humana não apenas de apreender a realidade mas também de construí-la, considerando, em consonância com os postulados da física quântica, que a participação das fantasias nos processo de conhecimento é indissociável do ato de conhecer. “A fantasia é mais primária que a realidade -escreve- e o enriquecimento da fantasia com a riqueza do mundo depende da experiência da ilusão” (Winnicott,2000/1945,228). Esta compreensão do processo de apreensão da realidade e da construção do conhecimento pelo indivíduo, exige a superação do dualismo e da perspectiva que atribui à consciência racional o monopólio na atividade de conhecimento. Exige ainda o abandono da concepção mecanicista do corpo e da redução os afetos naturais humanos a pura força desprovida de sentido. Para Winnicott, “a criatividade é uma atitude face a realidade externa”(Winnicott, 1975,95), sustentada pelo agir espontâneo. Seu contrario, que é o agir reativo, tem como consequência a submissão e a incapacidade para uma vida criativa. Como assinalado acima, esta atitude criativa face à realidade externa e à vida, faz o indivíduo sentir que a vida é digna de ser vivida, sentimento este ausente nos relacionamentos de submissão, no qual a realidade é apenas reconhecida como algo a que ajustar-se, a exigir adaptação. A consequência desta última atitude, para Winnicott, é a emergência de um “falso self” –um self construído por adaptação-, o contrario do verdadeiro self, que requer para sua emergência um agir espontâneo e por isso criativo. É nesta concepção que se sustenta sua insistência em que, desde o inicio da experiência de viver, o bebê humano encontre a realidade a partir de um impulso e não de uma adaptação. Estar vivo e saudável exige manter uma relação criativa com a realidade externa e isto é assim porque o impulso criativo é “naturalmente necessário” quando qualquer pessoa realiza algo de maneira saudável.
Enfatizando que o impulso criativo não pode ser explicado, Winnicott afirma no entanto a possibilidade de estabelecer um vínculo entre o viver criativo e o viver propriamente dito, constatando-se assim que “a criatividade relaciona-se ao estar vivo” já que “ser humano é perceber o mundo de maneira criativa’.(Ibidem,1975,99-100). A relação criativa que o indivíduo humano é capaz de estabelecer com a realidade externa, é indissociável das experiências emocionais, sendo o respeito pela expressão da espontaneidade no viver do indivíduo que, como semente da liberdade, embasa a apropriação por parte do indivíduo, dessa capacidade criativa. A experiência do viver criativo é assim condição do desenvolvimento emocional sadio. É assim possível compreender as causas que levam a perda desse viver criativo, compreensão de grande interesse para a teoria do desenvolvimento emocional e para prática clínica
A fantasia media sempre a relação humana com a realidade externa, sendo essa a razão que faz com que dita realidade esteja sempre em processo de criação. Neste ponto de seu raciocínio, tão afastado do imaginário moderno e tão perto da perspectiva contemporânea, Winnicott pergunta com bom humor o que diferencia os “normais” dos psicóticos, já que ambos se relacionam com a realidade através da mediação das fantasias. Responde que os ditos “normais” aprenderam com a experiência, quais são as fantasias que funcionam e quais não, conservando as segundas para o terreno da religião e da arte. Assim, questões tais como, criatividade, fantasia, participação na realidade percebida e inserção do homem na natureza são, na sua perspectiva, indissociáveis da saúde humana, lembrando que, radicalmente afastado da perspectiva determinista, a inserção do homem natureza é compreendida como fonte de exigências cuja satisfação depende da inserção criativa no ambiente.
Na concepção da realidade e das relações com ela, o pensamento winnicottiano se afasta radicalmente da postulada pelo pensamento moderno e encampada por Freud. “Objetividade - escreve - é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente percebido é, por definição, até certo ponto, subjetivamente concebido”(Ibidem,96) A obvia participação da fantasia criativa nesses processos o levaram assim a discordar de Freud no que tange ao papel da fantasia. O que Freud denomina fantasia, isto é uma reação doentia face a uma frustração imposta pela realidade, é denominado por Winnicott de “devaneio”, sendo diferente da fantasia que, como foi lembrado, considera ser anterior à realidade e mediadora de todo contato humano com ela.
A apreensão inconsciente da realidade externa não opera apenas durante o processo de desenvolvimento emocional primitivo, mas constitui uma forma permanente de funcionamento do processo de apreensão do real pelo psiquismo humano. Diferentemente dos processos de apreensão consciente, não é mediada pelo ego. É por essa razão que Winnicott afirma que o ato de criação é feito sempre em estado de não integração. A apreensão inconsciente da realidade é direta, supondo não uma atividade que ordena a realidade constituindo objetos, mas uma atitude de recepção e acolhimento do impacto do real sob sua forma magmática. Constitui um pressuposto dos atos reflexivos, permitindo pensar a difícil questão da eficiência do saber científico. Com efeito, se a ciência deve ser considerada não como um espelho do real mas como uma construção contingente que o ordena, como explicar então que essas construções tenham valor operatório, isto é, sejam capazes de manipular o real? Excluindo a hipótese de uma “feliz coincidência”, torna-se necessário postular a existência de processos que orientem a construção dos modelos científicos de maneira a torná-los capazes de apreender algo da forma de ser do real. Assim, a experiência da apreensão direta supõe uma forma de ser do real que não se confunde nem com uma organização racional nem com o puro caos. Dito de outra maneira: a compreensão da decisiva participação humana na produção da organização presente no real, não equivale a conceber este como privado de toda e qualquer forma própria de ser. Mas por outro lado não é possível atribuí-lhe uma ordem determinada existente em si mesma, na medida que o ato de conhecimento introduz algo do sujeito não apenas no ato de conhecer, mas no próprio objeto.
No contexto de uma concepção do conhecimento que, abandonando tanto a onipotência do racionalismo como o pressuposto de uma forma de ser do real inteiramente organizado conforme a lógica identitaria, nossos conhecimentos se legitimam não por ser expressão da “verdade” do ser, mas pela sua pertinência. Isto é, sua capacidade para, apreendendo algo da forma de ser do real, poder agir sobre ele. Assim, eles são úteis, pertinentes. Mas também provisórios. São “hipóteses que realmente funcionam” ( Winnicott, 1948/1982,288)eficientes para lidar com seus “objetos”
Verdadeiro e falso self.
Esta conceição da criatividade e da fantasia, junto com sua conceição da natureza humana dotada por tendências ao invés que por determinações, constituem no pensamento de Winnicott o contexto que lhe permite formular o conceito de “verdadeiro self”. Este conceito nomeia experiências clínicas no qual a superação do sofrimento neurótico não poder ser considerada equivalente à saúde, já que, mesmo superando o sofrimento neurótico, o paciente em análise continuava sentindo que a vida não valia a pena de ser vivida. O “verdadeiro self” é construído pela vivência do viver espontâneo, sendo frustrado pela imposição ambiental do viver reativo. Ele nomeia a exigência de singularidade que caracteriza todo indivíduo ou o sofrimento de sequer poder sentir essa singularidade. O “verdadeiro self” é uma tendência cuja frustração acarreta sofrimento, não sendo possível entende-lo como sendo uma essência. É preciso superar o pensamento essencialista para poder pensá-lo. Concebê-lo exige o recurso ao paradoxo, conceito que no pensamento de Winnicott não designa uma falha do pensamento lógico identitario, mas os limites dessa modalidade de pensamento. Apreender teoricamente a complexidade do humano exige na perspectiva de Winnicott, superar o monopólio do discurso racional na construção do conhecimento.
Breves considerações finais.
Como assinalado acima, Winnicott abandona decididamente o determinismo afirmando a historicidade não apenas do ser humano mas, até certo ponto, da “realidade objetiva”. Afastando-se da concepção mecanicista e determinista da natureza humana, rejeita a concepção hobbesiana do homem como lobo para o homem , segundo a definição de Hobbes, encampada por Freud e por ele adotada seja na sua concepção da natureza conflitiva do humano e do conflito social como inevitável e da repressão como condição de sociabilidade, seja posteriormente na sua postulação da existência da pulsão de morte (Freud,1930). Reivindicando o que denomina “bondade originária” Winnicott rejeita o conceito de pulsão de morte, afirmando que a origem da moralidade humana não é resultado da imposição operada pela autoridade paterna num contexto de conflito e ameaça, mas emerge a partir da existência de uma aptidão natural para a empatia, atualizada num contexto de acolhimento amoroso do ambiente, representado no período primitivo de desenvolvimento pela figura materna.
Encerrando este breve artigo gostaria de sugerir que a compreensão de Winnicott sobre a sociabilidade constitutiva como característica central do humano, somado a sua concepção sobre o verdadeiro self como uma necessidade fundamental para uma vida com sentido, permite pensar que o conceito de singularidade deve ocupar um lugar central nas reflexões sobre o ser humano, sobre a sociedade e sobre suas relações, constituindo um conceito fundamental para as ciências sociais e humanas. Dito conceito muito auxiliaria na discussão da problemática em torno da questão da identidade de gênero e de novas formas de se vivenciar a sexualidade humana.
Bibliografia citada.
Castoriadis,C. “ Instituição Imaginaria da sociedade”, 1978, Rio de Janeiro, Editora Pas e Terra.
Freud, S. “La interpretacíon de los sueños” 1898/1900/1976, vol IV e V, Buenos Aires, Amorrortu editores.
“ “ “Tótem y Tabú” 1912/1913,1976 vol.XIII. Buenos Aires, , Amorortu editores,
“ “ “Lo Inconsciente”, 1915/1976, , Buenos Aires Vol.XIV, Amorrorut editores.
“ “ “La represíon”, 1915/1976, vol. XIV, Buenos Aires , Amorrortu editores.
“ “ “El Yo y el ello” 1923/1976. vol XIX, Buenos Aires, Amorrortu editores.
“ “ “El Malestar en la cultura”, 1930/1976, vol XXI, Amorrortu editores
“ “ “Moises y la religíon monoteista”, 1939,vol. XXIII, Buenos Aires, Amorrortu editores.
Armony,N “O homem transicional” São Paulo, 2013.
Winnicott,D.W “O Gesto espontâneo” s/d, , Martin Fontes, São Paulo.
“ “ “ Pediatria e psiquiatria”, in “Da pediatria à Psicanálise” 1948,2000., Imago editora, Rio de Janeiro.
“ “ “A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional”,1950/2000,Imago editora, Rio de Janeiro.
” “ “Desenvolvimento emocional primitivo”, 1945/2000, Imago editora, Rio de Janeiro.
“ “ “A criança e seu mundo”, 1962/1982, LTC, Rio de Janeiro.
“ “ ”Moral e educação”, in “O ambiente e os processos de maturação”, 1963/1983, Artmed, São Paulo.
“ “ “A criatividade e suas origens” in “O brincar e a realidade”,1976, Imago editora, Rio de Janeiro.
[1]Freud foi aluno de Du Bois-Reymond e de Brucke, ambos participantes do denominado “Juramento de Berlim”, no qual reafirmavam sua crença materialista. Segundo relato de Du Bois Reymond, se comprometiam solenemente nesse juramento “a impor esta verdade, a saber, que somente as forças físicas e químicas, com exclusão de qualquer outra, agem no organismo. No caso dessas forças não conseguiram ainda explicar, precisamos descobrir o modo específico e a forma de sua ação, utilizando o método matemático, ou então postular a existência de outras forças de igual dignidade às físico-químicas inerentes à matéria, redutíveis à força de atração e repulsão” (citado por Assoun Paul-Laurent, “Introdução à epistemologia freudiana” Rio de Janeiro, 1983, p. 53.)
[2] Convém lembrar que Freud decide criar a metapsicologia após ter sido obrigado a abandonar, com seu “Projeto de uma psicologia para neurologistas” (Freud,1895/1950) sua tentativa de explicar os fenômenos de qualidade, revelados nos processos de recalque descobertos na experiência clínica, a partir de fatores quantitativos operantes nas funções cerebrais. O fracasso dessa tentativa o levaram a desistir dessa tentativa, e, não querendo deixar sua “psicologia solta no ar”(Correspondência com Fliess), Freud cria a metapsicologia, que tomara cuidado de definir como uma “subestrutura provisória” passível de modificação conforme os resultados da experiência clínica.
3.Winnicott afirma que do complexo de édipo por Freud e da posição depressiva por Melaine Klein constituem a duas maiores descobertas da psicanálise (procurar)
[4] Kohut tem uma contribuição importante nesta questão, relatando sua experiência clínica com pacientes que atingem a experiência edipiana durante o trabalho analítico, após superar um longo trabalho sobre seu desenvolvimento emocional primitivo. Ele sublinha que essa vivência do édipo e dos afetos a ele vinculados (agressividade, ciúmes, desejo) não constitui a transferência de um passado com a figura paterna, mas surge na experiência contemporânea tendo como objeto o analista. Esses sentimentos, frisa, são menos intensos, são superados com mais rapidez e são caracterizados pela alegria. (Khout “A restauração do Sel”, cap. V)
Não é a ausência de som, mas de ruído.
Em 1951, o compositor americano John Cage visitou a câmara anecóica mais avançada do mundo da época. Com o seu ouvido apurado poderia ouvir apenas o silêncio, mas não. Ouviu dois sons. Saindo da câmara falou com o técnico e perguntou-lhe que dois sons eram os que tinha ouvido. Um mais elevado e outro mais baixo. Juntos perceberam que Cage tinha escutado o som do seu sistema nervoso e o bombear do sangue. Imaginam?
Silêncio é a escuta daquilo que nos dá vida e faz viver. No silêncio não nos abstraímos do mundo à nossa volta, mas encontramos diversos momentos presentes que se cruzam e entrecruzam em infinitas tonalidades. É a sinfonia da vida escutada em momentos de quietude.
”Não podemos ter medo do silêncio, pois, tem tanto para nos ensinar.” (Ryan Holiday, ‘Stillness is the Key’)
Quando cultivamos o silêncio abrimos a mente ao mar por onde navegam os pensamentos mais íntimos e criativos. Lembras-te daquela ideia luminosa que proveio do silêncio?
Mas hoje o desafio é muito grande porque o ruído não chega apenas através dos ouvidos. Chega também pelos olhos colados nos diversos ecrãs, ou pelos pensamentos exteriores que consomem a nossa atenção para a converter em preocupação. Vemos muita informação. Tanta que a sua suposta luminosidade cega-nos ao longo do tempo. Tanto que perdemos toda a riqueza visual que o silêncio revela.
”A totalidade da vida reside no verbo ‘ver’.” (Teilhard de Chardin s.j.)
O silêncio revela o espaço entre as notas.
”Com as notas lido melhor do que muitos pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, é aí que reside a arte!” (Arthur Schnabel, pianista)
A ausência de momentos de pausa no dia deixa-nos sem fôlego e surdos. Não é, por isso, de admirar quanta dificuldade sentimos ao escutar os outros. Não temos tempo. Nem sequer temos tempo para estar a sós com os nossos pensamentos, em silêncio.
Daí a dificuldade de tantos os que se dirigem a Deus e sentem que Ele não responde. Ele que tanto fala pelo silêncio, simplesmente, não consegue fazer-Se ouvir. Conto-te um segredo… shh… podemos sempre recomeçar.
In: imissio.net 14.11.2019
Uma das piores coisas que pode acontecer a teologia é perder o trem da história, passando a dizer coisas que não fazem mais sentido para o tempo em que é feita. Infelizmente, isso se mostrou em muitos momentos da história do cristianismo, quando ela se negou a trazer questões importantes de determinado momento para o bojo de suas reflexões por estar presa a dogmatismos e ancorada em uma versão de verdade absoluta.
Que ao longo do tempo sempre tenham surgido movimentos de cunho fundamentalista, parece óbvio a quem leia sobre história do cristianismo ou das religiões. Eles desejavam a todo custo voltar a uma “teologia pura”, em que se teriam verdades bem definidas e imutáveis, criadas desde a eternidade.
Em sua maioria, ainda hoje, esses movimentos visam manter o status quo. Não estão dispostos a repensar seus pressupostos, mesmo que sejam os responsáveis por fustigar parcelas consideráveis da população. Quando o fazer teológico é tomado por posturas dogmáticas e fundamentalistas, partindo do princípio de que a “verdade última” lhe foi dita por Deus, passando a ser, portanto, imutável, a própria teologia começa a ser vista como algo que não faz sentido. Ela, assim, serve somente para redizer normas e ordenanças que visam cercear a liberdade de todas as pessoas, porque está convicta de que o que diz é a vontade de Deus. Claramente, a categoria da imutabilidade divina é mal compreendida por tais movimentos. Não se atentam para o fato de que o texto bíblico, principalmente João, mostra Deus como imutável em seu amor, o que nada tem a ver com imutabilidade dogmática.
Toda teologia, portanto, caso queira fazer sentido na sociedade em que está inserida, não pode ser pensada como possuidora da verdade última sobre as coisas. Deve sempre assumir a postura de quem aprende e ouve para, a partir disso, propor respostas para as questões que determinada comunidade levanta.
Crescem movimentos fundamentalistas e retrógrados, que tentam a todo custo fazer com que o cristianismo se torne fechado em si mesmo, surdo às questões atuais. Nesses tempos, é tarefa dos teólogos reafirmar que toda teologia deve ser feita como resposta a determinada comunidade, influenciada e a partir de um contexto social, cultural, político e econômico específico.
Em outras palavras, é necessário que se formem teólogos que saibam ouvir a sociedade, que tenham humildade para se reconhecer como apenas mais um colaborador entre outros, de diversas religiões, na luta por um mundo que haja justiça social, paz, fraternidade e sororidade entre as pessoas. Implica também que assumam o lugar de quem escuta antes de responder, principalmente para não se propor respostas para questões não perguntadas.
Somente uma teologia que observa a realidade ao seu redor é capaz de dizer algo que alcance os corações. Uma teologia somente dogmática – com respostas prontas desde sempre, indisposta a repensar suas categorias e suas formas de explicá-las – tende a ser somente um antro para pessoas reacionárias, certas de alcançar as respostas últimas para todas as coisas e exigentes do extermínio ou conversão à sua verdade por parte dos grupos que não se adéquam à sua visão. No entanto, esse tipo de teologia se mostra perigoso e a história já nos mostrou isso, seja durante a Idade Média, seja durante o período dos sistemas totalitários. Ambos, no nível religioso, ancoravam-se na certeza de que determinada ação era a vontade de Deus para “limpar” o mundo do pecado em que se encontrava.
Com isso em mente, ser teólogo hoje se torna uma tarefa não somente social, mas também intelectual. Sem repensarmos novas formas de fazer teologia, de maneira que esta faça sentido para as pessoas que sofrem, esta sempre ficará relegada ao ambiente eclesial, não tocando a realidade do mundo que está fora da Igreja.
Somente uma teologia que escuta e observa pode tocar a realidade na qual é feita. Do contrário, não passa de ideologia utilizada por classes dominantes para manter as coisas como estão.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia (UFMG) E-mail:
IN: domtotal.com 23.10.2019
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