“Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra”
(Laudato Si’, n. 92).
O núcleo da experiência bíblica é a tomada de consciência do Amor divino presente e atuante no mundo. Este mistério primordial da relação de Deus com a Criação constitui o centro mesmo da Revelação. A Criação aparece então como um grande gesto de Amor e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade desse Amor gratuito. A Criação é obra do Amor exagerado de Deus.
E foi do transbordamento do Amor divino que brotou a vida, pois o Amor é sempre criativo, original: ele cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude. E o Amor de Deus é irradiante e expansivo; por isso, tudo está habitado e perpassado por esse Amor. Tudo está inter-ligado, conectado e enredado pelo Amor. É o Amor que nos faz sentir a inter-dependência, pois ele mantém inter-conectados os fios da vida. Tudo é dom do Amor; o Amor está presente em tudo; ele continua trabalhando e re-novando tudo, e em tudo encontramos vestígios dele. Assim, um universo que é fecundado pelo Amor de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
O amor é a força maior existente na Criação, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.
- O que é que nos une? O que é que nos põe em relação uns com os outros?
É a “comunidade universal de vida”, isto é, tudo o que existe, tudo o que vive e que tem sentido pelo fato de estar em relação, em comunhão, desde o mais ínfimo ser ao mais elevado. Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida tal como foi criada e sustentada por Deus.
Há uma interação entre nós, seres humanos, e a natureza. Nosso corpo e nosso cérebro são compostos das mesmas partículas que tecem o brilho das galáxias que ardem nas profundezas siderais. Impossível estabelecer uma nítida separação entre o ser humano e o universo.
Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta. Os acontecimentos da evolução estão inter-relacionados. É um desafio, para a experiência de oração, assumir que o mundo é um santuário que deve ser respeitado e cuidado, que é a morada de tudo, que foi a morada do Filho de Deus, e que continuará sendo a morada da Humanidade e da Criação.
A fé na Criação diz que no princípio do processo da evolução do cosmos há um amor criador. Os textos ligados à Criação falam de Deus como Pai, mas também como Mãe; devemos integrar, nesta visão de Deus criador, a dimensão feminina da Mãe Divina que sofre dores de parto e gera o Universo como ato de amor. Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
No poema da Criação (Gen 1) o verbo usado para “criar” (“qaná”) pode ser traduzido por gerar; a criação é uma espécie de parto divino. Deus diminui a si mesmo para que o Universo possa nascer.
A Palavra criadora e amorosa de Deus gera e sustenta toda a Criação. Isso significa que a ação criativa de Deus não diz respeito apenas à origem do mundo, mas à uma relação de aliança com esse Universo hoje. Não foi uma vez que Deus criou, mas continua permanentemente a “gerar”, a “dar à luz” tudo o que existe. Acreditar na Criação é ver por trás de cada ser do Universo o amor de Deus nele presente e atuante.
Para a Bíblia, a natureza é sagrada, porém não é divina. É de Deus e manifesta Deus. Podemos sempre encontrar Deus no contato com a natureza, mas ela é criatura e sacramento, não a divindade em si mesma; a natureza também é mãe geradora. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para gerar vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie. A criação não é só criada. É co-criadora, participa do ato criador de Deus. Por participação, é também divina.
A Bíblia insiste que é criação de Deus para salientar que toda ela depende de um amor que a ordena. Esse amor é que a tornará ecológica, isto é, casa comum para todos os seres vivos.
A Criação não se completa com a chegada do ser humano, embora a criação do homem e da mulher ocupe o centro do segundo relato do Gênesis (Gen. 2). Deus cria a humanidade da argila da terra, indi-cando que a natureza do ser humano é a mesma da terra. O ser humano tem uma relação visceral com a terra (em hebraico: “adamá”), de onde veio e para onde volta. E o sentido de tudo é a vida.
Deus não criou o ser humano para ser senhor absoluto da criação, mas para “cultivar e guardar a criação” (Gen 2,15) com carinho e ser para com as outras criaturas como Deus é: amor e ternura.
A visão bíblica sobre a criação revela que existe uma pertença mútua, um parentesco cósmico, uma irmandade universal entre todos os seres. Fora de Deus, tudo é criatura. Todos os seres da terra são criaturas de Deus. Todos tem impresso em seu ser mais profundo a marca do seu Criador, uma dignidade própria e maravilhosa. Por isso o Universo é sagrado e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador. O Universo é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. Por isso, no primeiro relato da criação, o cume está na instituição do “sétimo dia”, o shabat, o descanso divino ou, em termos mais precisos, a plenitude da relação gratuita e amorosa do Divino com o Universo.
O termo “shabat” significa descanso e, ao mesmo tempo, plenitude, realização profunda. Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. O sentido da celebração do sábado é novamente se conceber a si mesmo, e à criação, como parceiros da aliança de Deus. O sábado é completude da criação: o repouso, a festa, o coroamento da criação. O sábado faz o casamento entre Deus e a criação.
A instituição do sábado é um dos elementos mais ecológicos de toda a Bíblia. “O ano sabático é uma política ambiental de Deus com suas criaturas e com a terra” (J. Moltmann).
A Aliança com Deus é ligada à relação com a terra. Nessa visão de aliança, a Bíblia destaca que a criação tem uma bondade estrutural: “Deus viu tudo o que tinha criado e viu que tudo era muito bom” (Gen. 1,31). Em toda a Bíblia, a terra aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver com a água, com a terra e com todos os seres do Universo uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora. Os profetas do Primeiro Testamento insistiram em que quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a terra fica estéril.
Uma leitura deformada do livro do Gênesis deu margem a uma ruptura de harmonia com todos os seres da terra. “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gen. 1,28).
O termo “subjugar” (“kabas”), na maior parte dos textos bíblicos é usado no sentido de “amparar”, “proteger”. Da mesma forma, o verbo hebraico usado para “dominar” (“radah”), é um termo usado para expressar o caminhar do pastor com o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens, protegendo-o contra o ataque dos animais selvagens. “Dominar”, portanto, vem do latim “dominus”, que significa “senhor”.
Dominar significa exercer o senhorio sobre as demais criaturas, e este exercício do senhorio deve ser exercido à maneira do “senhor”, que é o próprio Deus. A narrativa da Criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à Criação: ele a cria, ordena o seu crescimento e a sua evolução, garante a sua continuidade, cuida dela e a abençoa.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidado com o meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, harmonia interior, comunhão com as outras pesso-as e caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Textos bíblicos: Gen 1 Dan 3,51-90 Sl 136(135)
Na oração: Durante o tempo de oração deixe que seu sentimento de “irmandade universal” se expresse como gratidão, assombro, louvor, admiração...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
No século V a.C., Sócrates pedia aos seus discípulos aquilo que estava esculpido no frontão do templo de Apolo em Delfos: «Homem, conhece-te a ti mesmo». O conhecimento de si é indispensável para percorrer o itinerário da vida interior e humana. É verdade que tal conhecimento nunca é pleno: cada um continua a ser um mistério inclusive para si mesmo, e por vezes pode parecer até um enigma com sombras e lados obscuros que não quereria ver, e que talvez estigmatize nos outros…
Todavia, é absolutamente necessário conhecer-se a si mesmo, para saber aquilo de que se é capaz, quais são os seus limites e as suas forças, para se ser responsável por si e pelos outros, segundo as impressionantes palavras de Dostoiévski: «Cada um de nós é responsável por tudo e por todos diante de todos, e eu sou mais responsável do que os outros». Trata-se de se conhecer a si próprio como processo de leitura psicológica de si; de conhecer-se para ter de si um juízo justo; de conhecer-se na pertença a uma porção precisa de humanidade.
Cada um de nós existe porque foi gerado, por isso é precedido por pais específicos; existe num tempo e num lugar particulares, por isso veio e vem a cada dia ao mundo, agora e aqui, Está no meio dos outros, por isso está em relação com outros. Sim, cada um é chamado a conhecer-se na consciência de ser também tudo aquilo que a vida e os outros fizeram de si, contribuindo para a formação do seu eu.
Em tal faixa de relações, conhecer-se a si mesmo comporta um necessário passo preliminar: aderir à realidade, conhecer a sua relação com a história, os outros, o mundo, porque é assim que cada um de nós existe e está envolvido. Muitos caminhos espirituais e psicológicos são estéreis, quando não desumanizadores, porque carecem de adesão à realidade. É extremamente perigoso iniciar o caminho interior sem sentir-se no meio dos outros, necessitado dos outros, e nunca sem os outros! Quantas derivas existem da parte de pessoas que se isolam, que deixaram de escutar, que vivem só das suas certezas e descobertas…
Neste processo, alguns têm a tendência de confundir o dado espiritual com o psicológico, reduzindo um ao outro. Por outro lado, no longo trabalho de conhecimento de si nem sempre é possível distinguir estas duas dimensões. Sabemos por experiência que erros de espiritualidade podem tornar-se patologias psíquicas (por vezes até com resultados somáticos), e que, vice-versa, patologias psíquicas podem influenciar a espiritualidade. O ser humano é mais unido do que pensamos: corpo, psique e espírito têm uma profunda relação recíproca, e a vida é o caminho que tende para a sua unificação.
Conhecer-se a si mesmo é, por isso, uma tarefa e um trabalho quotidiano, que requer perscrutar o seu sentir, pensar, falar e agir. Sempre “in dulcedine societatis”, na alegria do intercâmbio fraterno. Graças à prática deste exercício tem início a infinita viagem interior, bem descrita por Dag Hammarskjöld no seu diário: «A viagem mais longa é a viagem interior».
Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 30.06.2020 no SNPC
Faz cinco anos que foi publicada e divulgada a carta encíclica Laudato Si. No presente contexto marcado por uma grave crise – de saúde pública, social e ambiental – a Laudato Si tornou-se um documento mais atual do que nunca que vale a pena revisitar. Vejamos três dimensões específicas da sua atualidade e acuidade.
Em primeiro lugar o facto de abordar transversalmente os problemas ambientais e humanos de uma forma integrada que sublinha a sua complexidade e aponta a sua dimensão ética. Escrupulosamente baseado em informação científica rigorosa e clara, o documento do Papa Francisco traça o retrato do gravíssimo estado em que se encontra esta nossa maltratada ‘casa comum’, fazendo apelo a uma tomada de consciência. E está lá tudo o que constitui a crise ambiental global contemporânea: o erro brutal de destruir a biodiversidade, que é fundamental ao equilíbrio ecosistêmico, e também a base da produção de alimentos e de medicamentos. Está lá um apelo ao reconhecimento e valorização dos bens comuns. Está o desacordo face à privatização da água, recurso escasso e vital, que ‘não é uma mercadoria sujeita às leis do mercado’, mas um direito humano sem o qual outros direitos não se poderão exercer. Estão os oceanos e a necessidade de alterar os sistemas de governança dos bem comuns globais. Está a crítica à substituição da flora e floresta autóctones pelas monoculturas; está a desumanização das ‘monoculturas’ do betão em subúrbios abjetos. Estão obviamente as alterações climáticas: ‘mudanças inauditas de uma destruição sem precedentes’ se a atual tendência se mantiver e continuarmos tão dependentes dos combustíveis fosseis.
Estão também os abusos da lógica cega da ideologia neoliberal que se instalou; e a irresponsabilidade social e ambiental de muitas multinacionais que abusam, poluem e degradam sobretudo os países pobres; está lá a crítica à atual subjugação da Política à finança; e está a corrupção que nos corrói. É toda a problemática global – e não apenas ambiental – que é abordada a partir do ponto de vista da Humanidade e não do jogo cego dos mercados.
E isso abre para a segunda dimensão: a da equidade e da justiça. A encíclica aponta com clareza o modo como os problemas ambientais se ligam aos problemas das desigualdades, mostrando que não é possível pensar uns sem os outros pois o ciclo é vicioso: a degradação dos recursos vai de par com a degradação social e humana. E aponta essa ‘verdade inconveniente’ que há muito devia estar assumida e resolvida, que é a da inaceitável pobreza espalhada pelo mundo inteiro e da enorme responsabilidade política a todas as escalas. Aqui o Papa evidencia claramente a dívida dos países do Norte – pelo uso e abuso dos recursos naturais e pelo excesso das suas emissões fosseis – aos países mais pobres do Sul que já sofrem as consequências das alterações climáticas e que agora vêem a sua situação dramaticamente agravada pelos impactos do Covid-19. O problema da dívida – das ‘dívidas’ – está hoje mais do que nunca na ordem do dia e tem que ser assumida. Não se trata apenas de reequacionar a dívida, mas sim de a pagar objetivamente com: transferência de conhecimento e tecnologias limpas e apropriadas; apoios explícitos à capacitação; assistência técnica e manutenção dos recursos de sobrevivência (água, floresta, recursos marinhos, etc.). Como escreve o Papa: “é necessário que os países desenvolvidos forneçam recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável” (Laudato Si, 2015, pp. 42). Num mundo global e interdependente não se trata apenas de uma obrigação, mas de uma medida de segurança, uma espécie de investimento na nossa sobrevivência coletiva.
A terceira dimensão a destacar é que a encíclica não se limita a diagnosticar; afirma que há soluções ao nosso alcance e por isso propõe um modelo de ação abrindo várias pistas de orientação para agir – do individual e local, ao coletivo e global. Desde logo, é necessário combater fortemente três entraves à implementação das soluções: a tendência para a negação dos problemas, a resignação acomodada e a confiança cega nas soluções técnicas. Isto valorizando simultaneamente a ciência e tecnologia, reconhecendo o papel central dos cientistas e de “usar a técnica, mas orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral” (pp. 86), pois “a tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano.”
Indica em seguida novas formas e fórmulas para repensar a economia e o progresso, desafiando-nos na busca de um desenvolvimento que seja sustentável – a ‘Ecologia Integral’. Nesta linha propõe o que hoje se designa como uma nova Economia Circular que constitui aliás um desígnio da União Europeia e que implica maximizar a eficiência no aproveitamento dos recursos, reutilizando e reciclando. Para o Papa “a resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte que danifica todo o planeta.” (pp. 22).
Depois a encíclica também reforça uma globalização de propósitos humanos que exige uma diplomacia ativa e influente e implica o reforço das Instituições Internacionais que considera indispensável serem “mais fortes e eficazmente organizadas” (pp. 130). Bem como os Acordos internacionais como projetos comuns para um mundo interdependente: “Torna-se indispensável um consenso mundial que leve a programar uma cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda a Terra – quem contaminar deve assumir economicamente os custos derivados (…). Os custos seriam baixos se comparados com os riscos das alterações climáticas.” (pp. 125).
Por fim sublinha a educação para a cidadania ambiental, pois toda a mudança depende da educação e da aprendizagem e é a capacitação que dá viabilidade à ação necessária. Uma cidadania que passa também por estimular o acesso à informação e uma regular participação da sociedade nas decisões às escalas nacional e local. Tal aponta para a importância de novos mecanismos de participação, novas metodologias, novos passos de civismo e a importância das redes comunitárias, nomeadamente nas Paróquias. Exatamente o oposto às funções manipulatórias das redes sociais e à criação de um mercado das consciências a que tristemente assistimos nos últimos anos.
Em suma, temos de evitar deixar às próximas gerações “demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões (…). A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural que acompanha a deterioração ecológica (…)” (pp. 162).
De forma clara e simples, a encíclica indica o caminho que se deve trilhar para decidir a nível internacional; apela ao diálogo para concretizar novas políticas nacionais e locais; insiste no desígnio de pôr a economia ao serviço dos povos e na imperiosa necessidade de outro estilo de vida no caminho da paz e da justiça.
Lançada em 2015 os efeitos da encíclica têm-se feito sentir profundamente – tanto na vida científica como na vida política e cívica com vários movimentos a despontar reunindo várias sensibilidades católicas, e não só, um pouco por todo o mundo. E assim uniu um campo disperso, apesar de convergente, de sensibilidades ambientais e ético-políticas. Em Portugal refira-se a Rede ‘Cuidar da Casa Comum’ (https://casacomum.pt/) que a saudosa economista Manuela Silva lançou entre nós, inspirada justamente pela encíclica e que promove a Ecologia Integral aí proposta.
Cinco anos depois e sobretudo num momento de viragem e recomeço provocado pela pandemia em que tudo tem que ser repensado, a Encíclica Laudato Si mantém-se mais atual do que nunca. Neste sentido, o Vaticano lançou em Junho deste ano um ‘manual’ de aplicação da encíclica ’Laudato Si’ com mais de 200 recomendações em defesa da vida humana e do ambiente. O documento designado ‘A caminho para o cuidado da Casa Comum – Cinco anos depois da Laudato Si’ reforça e atualiza as propostas da encíclica. Lembramos algumas: a educação, o apelo ao ‘investimento ético’ e não ao consumismo cego, o reconhecimento jurídico da figura de ‘refugiado climático’, a exigência crucial de se acabar com a vergonha revoltante dos paraísos fiscais.
A Laudato Si é um guia de sobrevivência para a Humanidade no presente e no futuro e um contributo fundamental para a viabilidade humana no Planeta que nos acolhe. E não temos outro.
artigo postado em ponto.sj.pt em 17.08.2020
É a uma carta do poeta John Keats que se deve a origem deste curioso conceito. A 22 de dezembro de 1817, ele escrevia aos irmãos, George e Thomas, anunciando haver compreendido qual era o segredo que garantia a realização plena de um homem e o tornava, como ele dizia, a “man of achievement”. Este segredo era a capacidade de caminhar na incerteza; de se deixar fluir através dos enigmas da vida, mesmo na dúvida; de se abandonar serenamente ao que lhe é dado viver, sem escapismos nem ressentimentos; e, sobretudo, a capacidade de não cair no erro de avaliar unicamente o caudal da existência pela viciada máquina do cálculo ou da razão. Os trabalhos da vida em nós estão para lá disso, insistia Keats. E um dos mestres para o qual apontava era Shakespeare, pois num grande poeta o sentido da beleza declara supérflua qualquer outra consideração. A esta resiliência para conduzir a embarcação que nos pertence através do oceano vasto e desconhecido, na ausência de mapas e de formas exaustivas de controle, John Keats designava como “capacidade negativa” (negative capability). “Negativa” porque contraposta à necessidade “positiva”, que reconhecemos em nós, de prever tudo, de perscrutar cada pequeno acontecimento pela lente da razão ou de lhes assegurar, de imediato, um desfecho, como se a vida fosse orientada por um guião.
De fato, ao romantismo devemos a abertura da nossa sensibilidade a critérios não puramente empíricos, procurando uma síntese mais polifónica e integradora do humano, onde, por exemplo, a imaginação e o sentimento, a arte ou a religião não fossem enxotados para um estatuto epistemológico de menoridade, como se não tivessem nada a dizer sobre a existência. Novalis escreveu que “quanto mais poético mais verdadeiro”, uma sentença que conserva ainda muito para aprofundar. Sim, os livros de contabilidade dizem alguma coisa sobre o real, mas não dizem tudo e, porventura, não dizem o mais importante.
Wilfred Bion irá recuperar este conceito de Keats e colocá-lo dentro do seu modelo psicanalítico, pretendendo descrever a capacidade (trata-se, na verdade, de um treino) para permanecer na confusão e na dúvida enquanto se escuta, sem precipitar-se na tentação de intervir cedo demais. Isso vale para a escuta analítica, mas também para as outras formas e contextos de escuta: o ouvinte tem certamente de aprender a compreender o que o outro lhe comunica; porém, também lhe será útil aprender a resistir à compreensão prematura, aceitando que muitas vezes se tem de relacionar com o que surge como incompreensível, ambíguo e contraditório, sabendo acolher e esperar. Para compreender é necessário esse abraço ao incompreensível de forma desarmada, que permitirá depois ao conhecimento que se constrói superar a dimensão plana, que tão frequentemente o aprisiona.
Penso, por exemplo, nestes tempos que nos cabe viver e de como nos estamos a relacionar com a sua incerteza. A proposta de Keats inspira-nos a tomá-la humildemente como caminho, renunciando à ilusão de encontrar uma resposta rápida para as perguntas que nos estão a ser feitas e que se calhar não ouvimos ainda por inteiro. Há momentos, ensina o poeta, em que a modalidade mais próxima da sabedoria é essa difícil passividade, sem a qual não experimentaremos a receptividade mais verdadeira.
Mas, por fim, “Negative Capability” é também o título que Marianne Faithfull deu ao seu último e comovente disco, um disco feito depois dos 70 anos (depois de um tumor e de inúmeros golpes), tentando agora conjugar o desejo de viver em plenitude com a maturação das próprias incertezas. Foi este disco que me mandou ler Keats.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 10.08.2020
Declarou o concílio Vaticano II:
«No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (“Gaudium et spes”, 16).
O que é, então, a consciência? É a voz de Deus em cada ser humano criado à sua imagem e semelhança, capaz de bem e de mal. É, para cada pessoa, o critério último e definitivo do seu pensar, falar e agir.
No hebraico bíblico, não há um termo correlativo do nosso “consciência”. Na tradução latina das Escrituras, o termo “conscientia” aparece 35 vezes, das quais só três no Antigo e 32 no Novo Testamento. Os termos hebraicos “conhecer” (“jada’) e “coração” (“leb”), como também o grego “syneídesis”, confluem com a sua riqueza semântica para o nosso conceito de “consciência”. Em particular, uma expressão fundamental é «coração que escuta» (1 Reis 3,9), pedido de dom a Deus por Salomão, para poder discernir como concretizar a sua função de rei: o coração capaz de escutar a voz da verdade, a voz de Deus que lhe indica o caminho. Paulo, por seu lado, afirma: «Tudo aquilo que não vem da consciência é pecado» (Romanos 14,23), palavras retomadas pelo axioma: «Quem age contra a sua consciência merece a condenação».
A consciência é voz de Deus, eco da Palavra que ressoa na intimidade, ainda que sempre limitada e condicionada pelo ser humano. Ela é um eco do Espírito Santo, eco reflexo da liberdade de que toda a pessoa é dotada, sempre condicionado pela própria condição humana. Certamente que para exercer a consciência é preciso poder dizer «eu», e, portanto, condição prévia é que haja um espaço de liberdade para este «eu». Isto, no entanto, na consciência de que sobre cada pessoa pesam vários condicionamentos: a história social, familiar, pessoas, as estruturas que nos plasmam, a cultura em que estamos mergulhados, as alterações devidas ao pecado…
É sobre o terreno da consciência que todos os humanos deveriam confrontar-se para caminhar juntos. É a consciência o órgão a exaltar para indicar a verdadeira dignidade de cada homem e de cada mulher: um órgão que deve ser absolutamente exercido, para deixar às novas gerações um esboço de criticismo, de resistência, para as habilitar às escolhas que terão, com responsabilidade e criatividade, de assumir e exercer.
Por isso, os cristãos não esqueçam a realidade da consciência, porque é nela que Deus pode falar:
- quando lê a Escritura, saiba que na sua consciência elas podem tornar-se Palavra endereçada pessoalmente a ele;
- quando pensa, exercite-se no discernimento, interrogando-se longamente, em vez de procurar respostas fáceis. Com efeito, é na consciência que, através do exercício da crítica e do confronto, se pode abrir o caminho para a verdade;
- quando reza, procure antes de tudo escutar mais do que falar a Deus. A voz de Deus é um «silêncio subtil» (1 Reis 19,12), e, por vezes, se Ele parece mudo, é porque a surdez do crente se torna impedimento a uma verdadeira escuta;
- quando tem de fazer escolhas, invoque o «Espírito de sabedoria e de discernimento» (Isaías 11,2), dom sempre renovado a quem o invoca (cf. Lucas 11,13). É o Espírito que ilumina e dá força e coragem, parrésia.
A consciência não é uma voz que nos recorda uma lei “já feita”, a aplicar de maneira mecânica, mas pede-nos criatividade e profecia no discernir situações novas, sempre iluminadas pelo princípio fundamental do amor. Por isso, é inviolável, é um santuário, é o tesouro que cada humano recebeu de Deus como dom.
A consciência deve ser ajudada a descobrir os seus erros, deve confrontar-se, mas nenhuma autoridade humana tem o direito de pisar a consciência pessoal. Nenhuma autoridade, no limite nem o papa, segundo a famosa frase de John Henry Newman: «Se eu tivesse de fazer um brinde à religião após um almoço …, então brindaria pelo papa. Mas primeiro pela consciência, e depois pelo papa».
Estaremos celebrando, no próximo dia 31 de julho, a festa de S. Inácio de Loyola. No período 20 de maio de 2021 a 31 de junho de 2022, a Companhia de Jesus nos convida a viver o “ano inaciano”, ou seja, “fazer memória” dos quinhentos anos da conversão de S. Inácio.
Depois de cinco séculos, S. Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original e através do ritmo de decisões pessoais aprofundadas, no contexto de mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar, de sentir, de viver, novas descobertas, novas terras...
Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes mudanças que colocavam em questão tudo o que até então era recebido.
Depois de ter posto seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a “terra de Cristo” era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.
A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
Mas, seu itinerário não é unicamente geográfico. A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da Igreja e da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Tudo começou em 20 de março de 1521: A “bala” que feriu Inácio na batalha de Pamplona não transpassou tão somente sua perna; atravessou também, de modo igualmente profundo e traumático, todo o mundo de ambições e sonhos de glória que ele havia buscado e fantasiado até esse momento. Todo um sistema de ideais se vê deste modo derrubado.
Foi forçado a um confinamento, de uns nove meses. Nas primeiras semanas debateu-se com a dor e com a morte, mas logo começou a abrir-se, para ele, algo diferente, e desse tempo nasceu um homem novo.
Um castelo interior (um tipo ideal de homem) se desmoronou, ao mesmo tempo que começou a surgir outro edifício humano, não mais centrado na busca de poder e prestígio, mas na força dos grandes desejos e na sedução pela pessoa de Jesus Cristo, que, desde então, ocupará a tela inteira de sua vida.
A partir deste momento, toma como ponto de partida o protagonismo ativo e criativo de Deus em sua história pessoal; Inácio é movido a fazer uma leitura de sua própria história com a chave do protagonismo de Deus. A leitura de alguns livros - “Vita Christi” e “Legenda Áurea” foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.
Da “leitura de textos” à “leitura de si mesmo”: este é o deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionado-ra, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia. Leitura que o ajuda a “ordenar” seu mundo interior. Descobre, então, ser possuidor de uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.
“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Aí se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.
A situação pandêmica, na qual estamos vivendo, pode nos oferecer uma outra perspectiva, se cairmos na conta que talvez estejamos vivendo, de um modo coletivo, o que aconteceu com Inácio de Loyola: não é um tiro de canhão que está detendo nossa correria maluca; rapidamente fomos imobilizados por um pequeno vírus, que nem sequer vemos, derrubando-nos do pedestal da autossuficiência, da soberba, do falso sentimento de que não éramos vulneráveis.
A pandemia está “des-velando” (tirando o véu) como são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde, muitas vezes, não há lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para uma vida interior, não há lugar para a oração...
Confusos e aturdidos, com dor e também com temor, estamos prostrados na cama, cada qual na sua (porque cada um precisa fazer seu próprio processo), mas todos no mesmo quarto, porque esta prostração nos afeta e nos diz respeito a todos.
Inácio precisou de tempo para compreender tudo o que se passava com ele. No começo, teve de lutar contra a febre e a dor de suas feridas; quando elas começaram a diminuir, buscou primeiro entreter-se com leituras amenas e finalmente foi encontrado por Aquele que o buscava, através dessa ferida. Aquilo que no início foi vivido como uma derrota e um fracasso, foi seu segundo nascimento.
Como Inácio, talvez busquemos, num primeiro momento, nos entreter lendo “livros de cavalarias” que nos fazem fugir e esquecer a angustiante situação que estamos vivendo; ou talvez, já tenhamos começado a ler textos verdadeiros, textos reveladores e instigantes que nos devolvem a nós mesmos para dispor-nos a uma outra escuta, agora interna.
O novo de tudo isto é que não se trata de uma situação individual, mas coletiva. É agora que nos é dada a oportunidade de nos colocar realmente a escutar e a discernir os sinais. Mas, não sozinhos, e sim, juntos. Talvez seja esta a diferença fundamental com respeito a Inácio de Loyola. Como aconteceu com ele, o desafio está em passar de um confinamento forçado a um distanciamento, livremente acolhido e carregado de presenças.
Dispomos de muitas ferramentas, entre elas, aquelas que o mesmo Inácio nos deixou, para converter este confinamento coletivo em um retiro partilhado, em Exercícios coletivos de discernimento e re-conversão. São muitos os apelos, as inspirações, os movimentos internos, as reações e os impulsos que estão em jogo. S. Inácio, em seu leito de convalescente em Loyola, começou a dar nomes a tudo isso. Ali aprendeu a discernir e a decidir; ao sair de seu confinamento, não voltou à “normalidade” da vida, mas abriu-se ao novo, sonhando grande, ensaiando outros caminhos, indo ao encontro de um mundo em efervescência.
Também para nós, este é um tempo de kénosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo para despertar uma outra sensibilidade e entrar em sintonia com o Deus presente e atuante em tudo; em qualquer situação que nos encontremos, estamos envolvidos por suas mãos providentes. Aos poucos vamos descobrindo que este tempo é de uma grande intensidade espiritual.
Bendito confinamento se nos serve para receber uma luz e um conhecimento que não teríamos e bendita prova quando ajuda a nos tornar mais humanos e compassivos! Mais do que nunca, precisamos uns dos outros. A luz de um é luz para todos.
Que S. Inácio nos inspire a viver este tempo de distanciamento social como momento privilegiado para uma intensificação nas relações, para dar passos novos, para reinventar a vida e carregá-la de sentido.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.07.2020
Às seis da manhã nem sempre o céu se abre, mas já passou há meia hora o primeiro ônibus roncando, e, meia hora depois, se não está ventando, cantam os bem-te-vis. Nem mais cem dias de confinamento podem me fazer conhecer o que é a vida de um encarcerado. Estamos, no fundo, a nos enviar cartas, que não serão necessariamente respondidas agora ou amanhã. Venho até aqui para atestar se ainda estou viva, se ainda sou capaz de comunicar aquela espécie de revolta que floresce de um bom estado da fé. Uma revolta que vem da boa raiva, a raiva fecunda, aquela raiva que Maria da Conceição Tavares definiu como energia. Num campo de trânsito, há 77 anos, toda terça-feira partia um trem para Auschwitz numa média de mil pessoas por viagem. Agora, aqui, é como se partisse um trem por dia. A lua tem aparecido antes das nove, vem despontando amarela e magnífica entre dois prédios como através de um dólmen. Será fútil pensar na solidão dos museus? Os parques devem começar a ser reabertos a partir da próxima semana, o que é mais um risco à vida e, à tentação da loucura, um desafogo. Recebo notícias de amigos, sinais de farol, suprimentos de energia. O sol tem aparecido só às sete e, se não vieram ainda, agora sim, vêm os bem-te-vis. A vizinha do andar de cima também parece querer provar sua existência batendo porta, batendo janela, arrastando móvel, pondo para gritar a furadeira. Se calhar de voltar como história esse tempo e a cronista com suas cartas ainda estiver por aqui, podendo fazer coincidir desejo com necessidade, só queria envelhecer perto do mar e não ser mais o ouvido que amortece cada pancada de raiva estéril da vizinha.
Mariana Ianelli
In: Rubem 11.07.2020
Ennio Morricone, falecido esta segunda-feira aos 91 anos, «tinha a capacidade única de criar uma música que fazia intuir a imagem. Pensemos em “A missão”: o seu motivo musical é inexoravelmente necessário àquela figura de missionário», assinala o presidente do Conselho Pontifício da Cultura, cardeal Gianfranco Ravasi. Aqui se recorda uma seleção de dez das mais de 500 trilhas sonoras do compositor que sem hesitação se declarava católico.
“Por um punhado de dólares” (Sergio Leone, 1964)
Anti-retórica, empoeirada, experimental, irreverente, mediterrânea. Em perfeita correspondência com a linguagem visual de Leone, marca um ponto sem retorno nas imagens sonoras do oeste.
O bom, o mau e o vilão” (Sergio Leone, 1966)
Assim como para Leone, a Morricone chega ao topo. O mestre, com uma composição livre e repleta de efeitos, reescreveu as regras de todo um gênero.
“Passarinhos e passarões” (Pier Paolo Pasolini, 1966)
Os créditos de abertura entoados pelo contador de histórias Domenico Modugno são talvez únicos em toda a história do cinema, pois o próprio filme pertence a uma categoria em si. A peça, um complexo estilístico de pastiche, está entre os mais "cultos" entre os escritos para o cinema. Morricone assinou a banda sonora de cinco filmes de Pasolini.
“Aconteceu no Oeste” (Sergio Leone, 1968)
Novamente juntos após dois anos, para Leone e Morricone o salto em frente é evidente: do épico picaresco à elegia, que assume quase os tons de Puccini na partitura.
“Inquérito a um cidadão acima de qualquer suspeita” (Elio Petri, 1970)
Uma banda sonora claustrofóbica, cheia de sarcasmo, perfeita para o escárnio de Gian Maria Volonté. Com meios mínimos, quase esqueléticos, Morricone constrói uma inexorável máquina narrativa.
“Aguenta-te, canalha!” (Sergio Leone, 1971)
Cada vez mais orquestra e mais melodia: está aberta a estrada do que Morricone será. Os vocalizos sem palavras do soprano (usados como instrumento musical) ficarão como uma das suas marcas.
“O gato de nove caudas” (Dario Argento, 1971)
Morricone compôs as músicas dos primeiros três filmes do mestre do horror. A ambientação permite ao compositor recorrer a uma linguagem particularmente experimental, difícil de propor noutros contextos cinematográficos. Nas músicas para esta película encontramos a escrita do Morricone “culto”, membro de um grupo de vanguarda.
“Processo de Sacco e Vanzetti” (Giuliano Montaldo, 1971)
“Here’s to you”, com a voz de Joan Baez, acompanha, não sem um efeito de estranhamento, as enxutas cenas finais de um filme. Quase o hino de toda uma época.
“A missão” (Roland Joffé, 1986)
Sem dúvida, o auge de toda uma carreira. Música inspiradíssima, e talvez haja uma profunda adesão de Morricone à história dos jesuítas que, na América Latina do séc. XVII, conquistaram os índios com a música – para, depois, serem traídos pelas instituições. Nesta versão, um único grande trecho constrói um crescendo desde o “Oboé de Gabriel” (ícone sonoro contemporâneo), até ao grandioso coro dos nativos. O Óscar que não ganhou foi um verdadeiro furto – a estatueta atribuída por “Os oito odiados” (que não está nesta lista) foi uma compensação tardia.
“Cinema Paraíso” (Giuseppe Tornatore, 1988)
O longo e pungente desenvolvimento da melodia - escrita com o filho Andrea - confiada ao violino, entra na cabeça e já não sai. É o primeiro filme com Tornatore: a colaboração prosseguirá durante quase todos os outros filmes do cineasta siciliano. Daqui em diante, Morricone bandas trilhas sonoras perfeitas, mas algo parecidas entre si: densas, grandiloquentes (ou melodramáticas), ricas de melodias inconfundíveis. O mérito e o limite da marca Morricone.
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 07.07.2020 no SNPC
Vivemos num tempo de incúria das palavras, no qual abundam neologismos eufemísticos: fala-se de «guerra preventiva» para definir a agressão militar; recorre-se ao termo «flexibilidade» para falar de desemprego ou despedimento. Mais do que nunca há necessidade de filologia, isto é, de amor pelas palavras; ou também, para o dizer com outra metáfora, de ecologia da linguagem.
A esta sorte não escapa sequer um termo que muitas vezes ouvimos ressoar: «Conviver/com-vivência». Na linguagem comum, é agora sinônimo quase unicamente de coabitação entre pessoas não casadas. Que empobrecimento! Essa é só uma pequeníssima parte da questão. Mais em profundidade, con-viver significa aprender a viver juntos, e aprendê-lo como um verdadeiro e autêntico ofício.
Quem pertence à minha geração só pode ligar essa expressão ao título dos diários de Cesare Pavese, “O ofício de viver” (ed. Relógio d’Água, 2005, em Portugal). Pois bem, se aprender a arte do viver é um trabalho pessoalíssimo a caro preço, assim o é também aprender a arte, o ofício do viver juntos: não eu sem ou contra os outros, mas eu juntamente com os outros.
Esse caminho não deve ser pensado em termos de empobrecimento: «Os outros são o inferno (Sartre), porque me cortam as asas, impedem-me de desenvolver a minha personalidade, forçando-me ao compromisso». Não, está na hora de compreender que o encontro, o viver juntos, numa troca de olhares, gestos, palavras, e também silêncios, pode ajudar a fazer florir a personalidade singular: pode ajudar a passar do indivíduo à pessoa. Não se deve esquecer que, segundo uma audaciosa etimologia, “pessoa” poderia derivar do verbo latino “per-sonare”: eu sou enquanto ressoo o apelo do outro…
Partindo dessa dimensão de proximidade, o conviver alarga-se igualmente ao sentido da convivência civil. Como escreve justamente Andrea Riccardi, «sem uma cultura partilhada não se pode fazer muito no nosso mundo, e, sobretudo, arrisca-se muito. A consciência da necessidade da civilização do conviver é o início de uma cultura partilhada entre homens e mulheres diferentes». Numa simples pergunta: é verdadeiramente mais feliz quem ergue muros cada vez mais altos e sofisticados, ou quem sabe partilhar (sinônimo de conviver) aquilo que tem, chegando, assim, a um enriquecimento recíproco?
A minha cultura cristã de proveniência impele-me, quase naturalmente, a ligar o tema do conviver a uma expressão de Paulo de Tarso. Na sua Segunda Carta aos cristãos de Corinto, define assim o fim da vida cristã: «Estais no nosso coração para morrer juntos e viver juntos» (7,3). Parece um absurdo lógico, e em vez disso pode exprimir admiravelmente o fim do con-viver, inclusive a nível humano: só quem está disposto a dar a vida, no limite até à morte, pode conseguir verdadeiramente con-viver, viver junto aos outros com consciência de causa. E assim se aprende, na profundidade do coração, a laboriosa arte do entrelaçar vidas, histórias e destinos.
O que me encanta é Jesus que se maravilha com o Pai. Uma coisa belíssima: o Mestre de Nazaré surpreende-se por um Deus sempre mais fantasioso e inventivo aos seus olhos, que surpreende todos, até o seu Filho.
O que aconteceu? O Evangelho tinha acabado de referir um período de insucessos e problemas: João Batista é preso, Jesus é contestado abertamente por representantes do templo, as povoações em redor do largo, após a primeira onda de entusiasmo e de milagres, afastaram-se.
E eis que, naquele ambiente de derrota, abre-se diante de Jesus uma brecha inesperada, uma reviravolta repentina que o enche de alegria (Mateus 11,25-30): Pai, bendigo-te, dou-te graças, agradeço-te, porque te revelaste aos pequenos.
O lugar vazio dos grandes preenchem-no os pequenos: pescadores, pobres, doentes, viúvas, crianças, publicanos, os preferidos de Deus. Jesus não o esperaria, e admira-se com a novidade; a maravilha invade-o, sente-se feliz.
Descobre o agir de Deus, como antes sabia descobrir, na profundidade de cada pessoa, angústias e esperanças, e para elas sabia inventar como resposta palavras e gestos de vida, que o amor nos faz chamar “milagres”.
Revelaste estas coisas aos pequenos… de que coisas se trata? Um pequeno, uma criança, depressa compreende o essencial: se alguém lhe quer bem ou não. No fundo, é este o segredo simples da vida. Não há outro, mais profundo.
Os pequenos, os pecadores, os últimos da fila, as periferias do mundo compreenderam que Jesus veio trazer a revolução da ternura: vós valeis mais do que muitos pássaros, disse-o no outro domingo, tendes o ninho nas suas mãos. Vinde a mim, vós todos que estais cansados e oprimidos, e Eu vos darei alívio.
Deus não é difícil: está ao lado de quem soçobra, leva aquele pão de amor de que necessita todo o coração humano cansado… E todo o coração está cansado.
Vinde, dar-vos-ei alívio. E não vos vou já apresentar um novo catecismo, regras superiores, mas o conforto do viver. Duas mãos nas quais apoiar a vida cansada e retomar o fôlego da coragem. O meu jugo é suave, e o meu peso é leve: palavras que são música, boa notícia.
Jesus veio para eliminar a velha imagem de Deus. Não mais um dedo acusador apontado contra nós, mas dois braços abertos. Veio para tornar leve e fresca a religião, a tirar-nos pesos das costas e a dar-nos as asas de uma fé que liberta. Jesus é um libertador de energias criativas, e por isso é amado pelos pequenos e oprimidos da Terra.
Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, isto é, aprendei do meu coração, da minha maneira de amar delicada e indômita. Dele aprendemos o alfabeto da vida; na escola do coração, a sabedoria do viver.
Uma espiritualidade em tempos de pandemia, o que é, ou melhor, o que pode ser? Porque, no fundo, estamos no improviso. É interessante que, muitas vezes, na coreografia, na dança, se usa o improviso; não gostamos muito, porque preferimos uma vida conduzida por um guião; um improviso faz-nos viver o aberto; e para começar a falar do que é a espiritualidade em tempos de isolamento provocado pela pandemia, tenho de dizer isto: o futuro chegou de supetão, o futuro chegou achando-nos impreparados. Nenhum de nós sabe como lidar com esta situação. Sentimo-nos, todos, mais vulneráveis, mais precários.
À primeira vista, dizemos: aquilo que nos aconteceu é uma distopia; é uma calamidade; é o contrário da graça. E, contudo, em termos de fé, temos de olhar para este cronos, que parece devorar a nossa força e a nossa esperança, como a possibilidade de um kairós, a possibilidade de uma graça.
Este é um tempo de kênosis, de esvaziamento, um tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma incerteza muito grande, um tempo de crise, um tempo em que parece que a vida vem menos. Um tempo precário.
Mas eu lembraria que a mesma raiz etimológica aproxima as duas palavras: precare, rezar, em latim, e precarium, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa. Porque tudo tem de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de calamidade, temos de o interpretar de um ponto de vista teológico e espiritual como um tempo de graça.
Como é que este pode ser um tempo de graça? Na oração que o papa organizou, na praça de S. Pedro, sexta-feira [27 de março de 2020], que muito nos impactou, ele escolheu ler o texto do Evangelho da tempestade acalmada. E no meio da tempestade, os discípulos perguntam a Jesus: Senhor, não te importas que morramos? É uma pergunta. E este é o tempo das perguntas, e das perguntas fundamentais. Se eu tivesse de sublinhar um ponto muito positivo desta experiência exigente que estamos a viver, é a qualidade das perguntas que escutamos.
É como se vencêssemos a banalidade, e as perguntas que ouvimos fazer uns aos outros são muito mais intensas, muito mais carregadas de sentido.
É curioso que aqui, em Itália, no início da pandemia, abriram-se gabinetes de apoio psicológico. E muitos idosos telefonavam, dizendo isto: eu não consigo rezar. E, de facto, este começou por ser um tempo em que parece que não era possível uma vida espiritual. Depois, descobrimos o contrário: que este tempo é de uma grande intensidade espiritual. E qual é o termómetro para perceber isso? São as perguntas, a radicalidade, a força das perguntas fundamentais que estamos a fazer.
Pegando no discurso do papa, há que dizer a verdade: não é a pandemia que nos adoeceu; nós já estávamos doentes. A pandemia descobriu, revelou, uma doença, que são, no fundo, os nossos estilos de vida, onde já não há alugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica, digna desse nome, não há lugar para uma oração. Tudo é cronometrado, tudo passa pelo taxímetro.
Tenho um casal amigo - e é muito belo ouvir as histórias que se passaram nas famílias, porque, de certa forma, uma das coisas que este isolamento trouxe, é a redescoberta da família. Pelas primeira vez muitos casais, muitas famílias, passaram juntas um tempo de qualidade como não passavam há muitos anos, ou como nunca tinham passado – no qual um menino de cinco anos, à mesa, disse isto: eu acho que percebo o que estamos aqui a fazer; estamos aqui a criar memórias. Por vezes as crianças são antenas que nos ajudam a perceber o que estamos a fazer.
Este é um tempo de graça, é um tempo para a graça, é um tempo de maior gratuidade, e é um tempo para criar. Não é só um tempo para “descriar”; não é só a passividade, não é só o não fazer; é um tempo propício, oportuno. Por isso, há aqui um chamamento a modelar o tempo do ponto de vista da fé.
Um dos princípios que o papa Francisco repete muitas vezes é: o tempo é superior ao espaço. Parece uma sentença muito filosófica, e que não tem uma leitura fácil, imediata. Contudo, neste tempo de isolamento social, percebemos isso: o tempo é superior ao espaço. Aconteceu uma espécie de recuo.
A mística judaica fala numa espécie de “tzimtzum”, parece uma coisa brincada. O “tzimtzum” é uma coisa inventada a partir das leituras da Cabala, segundo a qual Deus, para poder criar, teve de dar um passo atrás, teve de se despojar de si mesmo para poder criar. Esta ideia foi retomada por autores tão importantes na segunda guerra mundial como Simone Weil, que disseram, precisamente: o tempo da catástrofe parece um tempo em que Deus recua, dá um passo atrás; contudo, é um tempo para descobrirmos o Deus da ternura, o Deus da misericórdia, o Deus próximo, o Deus comprometido com a pessoa humana, o Deus que está ao lado da vítima, ao lado do que sofre; porque o próprio Deus vive este recuo.
É uma ideia curiosa, que nos deixa a mística judaica, e que nos ajuda a pensar o que está a acontecer com o espaço; está a acontecer o nosso “tzimtzum”, damos um passo atrás para, também, ter uma visão crítica em relação ao modo como habitamos o espaço. Porque, muitas vezes, é pura ocupação de espaço, pura marcação de território, puro automatismo. É uma espécie de colonização do território da comunidade, ou do território público. É sonambulismo existencial.
O “tzimtzum” permite olhar para o tempo, não tanto para o espaço, e ouvir os múltiplos tempos que existem dentro de nós. Santo Agostinho, nas Confissões, fala de três presentes: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes, e o presente das coisas futuras. O tempo é superior ao espaço.
Este é um tempo de grande escuta espiritual. Este é o momento para percebermos que a vida não se esgota no momento, no instante, na arquitetura do quotidiano, mas que a vida tem uma respiração muito maior. E nós temos de ouvir os passos do futuro, e dialogar com o futuro de outra forma.
Não tenho dúvidas de que entramos numa nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos outra época. Culturalmente noutra época. Civilizacionalmente noutra época. Mas também espiritualmente noutra época da história. É importante que em termos da espiritualidade também nos preparemos para entrar nesse tempo novo, que já é o tempo que estamos a viver. Por isso, não podemos olhar para este momento apenas como um parêntesis, como uma suspensão, e depois vamos voltar a viver tudo o que vivíamos – isso não é ajustado à realidade. Temos de encontrar novas linguagens; este tempo é um laboratório. E temos de ouvir o futuro, que já está aqui, porque, como diz Santo Agostinho, há um presente do futuro.
Uma última dimensão que queria sublinhar é que este tempo de isolamento é muito intenso de relação. E é um tempo de intensificação da relação. Porque é muito viciante, e é um jogo viciado, acharmos que só existe uma forma de presença, ou que a ausência tem sempre o mesmo sentido; que a distância e a proximidade se leem de uma forma unívoca. Não. Muitas vezes estamos próximos e estamos completamente ausentes; muitas vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; muitas vezes estamos em comunidade e somos ilhas, não arquipélagos. E este é um tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor. E eu não tenho dúvida de que este tempo faz-nos descobrir tanto, tantas possibilidades.
Na história da cultura do século passado, vemos que grandes obras da literatura, da filosofia, da música, da pintura, da espiritualidade, aconteceram em contextos dramáticos, como o que estamos a viver. Franz Rosenzweig, o grande filósofo, escreveu a sua Estrela da redenção nas trincheiras da primeira guerra mundial; Messiaen escreveu a sua obra mais famosa, o Quarteto para o fim dos tempos, num campo de concentração. A Guernica, um dos símbolos da arte do século XX, foi escrita no impacto da guerra civil espanhola.
Uma das grandes místicas do século XX é, sem dúvida, Etty Hillesum, esta jovem holandesa judia, muito próxima do cristianismo, laica e crente ao mesmo tempo, que, podendo escapar do campo de concentração, se oferece como voluntária para nele trabalhar, e nele acaba como prisioneira. E Etty Hillesum diz esta coisa espantosa: este tempo em que parece que a nossa alma soçobra, este é o tempo para olhar os lírios do campo.
Há um desafio enorme neste tempo. E vemos a quantidade de histórias de amor, pequenas histórias, os médicos, os enfermeiros, o pessoal técnico, as pessoas dos laboratórios, tantos sacerdotes, tantas comunidades; mas não só: tantos gestos de amor: as pessoas que dizem, nos seus prédios, aos mais idosos, que vão fazer as compras; aqueles que não querem deixar ninguém para trás; todos esses gestos de amor são alguma coisa que está a transformar este tempo numa catedral.
Como é que eu vejo a espiritualidade neste tempo de pandemia? É um tempo de kênosis, mas também de graça; é um tempo de grande precariedade, mas é um tempo para descobrir o precare, a força da oração; é um tempo para voltar às grandes perguntas; é um tempo para criar memórias, para ouvir o futuro, para perceber que o tempo é superior ao espaço.
Podemos pensar: este é um ano para esquecer; este é um ano de vida adiada. Há um grande poeta de língua portuguesa, António Ramos Rosa, que tem um verso maravilhoso: «Não posso adiar o coração para outro século». Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos.
Eu dou um exemplo da porta ao lado. O papa gosta de falar da santidade da porta ao lado. Na praça onde está a casa onde vivo, estão algumas pessoas sem-abrigo. E, claro, eu procuro ser cuidadoso, ser humano e ser próximo. Mas a verdade é que quando nós temos uma casa, e estamos a falar com uma pessoa sem-abrigo, há uma diferença: nós não estamos completamente naquela situação. Para mim, uma das coisas extraordinárias foi, no primeiro mês após a pandemia, sair de casa e perguntar «como está?» à senhora que dorme na rua, e ela perguntar-me: «E você, como está?». E a pergunta era igual. Porque estávamos no mesmo barco, debaixo da mesma tempestade. Penso que esta aprendizagem é de uma riqueza espiritual que nos pode ajudar muito.
Ainda é outono, há tulipas-do-gabão pelas calçadas, deve haver. E há uma lista tremenda de crimes imputáveis ao tirano, que segue livre de sentença, sorridente, jogando seus jogos mortais, negociando. Como a pedra que cai na água e faz brilhar círculos concêntricos, se somarmos aos nossos milhares de óbitos todos aqueles que vão se quebrando sem morrer completamente, teremos uma terra imensa de gente entristecida que não poupa de empestear com náusea a paisagem de quem ainda rega sua paz postiça no meio de uma guerra. Os dias têm amanhecido vermelhos, daquele vermelho denso de fornalha. Em qualquer lugar pode rebentar uma calamidade. Alguém é levado pela violência da voragem como se o chão se abrisse de repente, como se por azar, como se por acaso. Não dura meio minuto para uma mulher armadilhar uma criança só apertando um botão e deixando fechar-se uma porta. E como sair desse pesadelo de apocalipse se ainda há os que fazem festa, os que acarinham suas pistolas, seu muque de mata-leão, seu couro de porrete, e se ainda há os mais perversos que a polícia, em seus quase invisíveis gestos assassinos, em suas palavras-para-a-mídia, em suas assépticas maldades. Como barrar o mal sem sujar as mãos e os pés, sem desaprender a temperança, a diplomacia, o diálogo?
A força bruta bate estaca cedo pela manhã, a força burra. Outro tempo corre nos cassinos do poder. Pessoas se amontoam nas lojas recém-reabertas, umas quantas de máscara à brasileira, arriada para o queixo. E os helicópteros continuam a invadir a nossa primeira hora iluminada. Os helicópteros, as sirenes, as serras. Também os bem-te-vis e os sabiás continuam. Como você está?, pergunta o amigo. Como tem passado esses tempos? Como um desses sabiás, você pensa. Escusada a pretensão, como um desses bem-te-vis. Ainda absurdamente vivo.
Mariana Ianelli
Escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli, da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ardotempo, 2013). Depois, escreveu Entre imagens para guardar (ed. ardotempo, 2017), também de crônicas.
Por vezes, dentro de uma casa, a solidão mais invisível é a dos jovens. A solidão não se mede aos palmos — isto deve ser explicado a quem pensa que ela está confinada ao mundo dos adultos. É certo que, a partir de certa idade, e de uma sucessão de acontecimentos desamparados com os quais se colide, surge esse coágulo da alma, que luta para se tornar fixo. Não admira que os adultos farejem mais recorrentemente a solidão uns nos outros, lhe reconheçam os códigos, despistem os seus ziguezagues... Mas, por serem adultos, podem também fazer uso de mais recursos internos, de forças que possuam já ou que procurem, para fazer-lhe frente. A vulnerabilidade dos (mais) velhos é ainda outro discurso, porque aí a solidão, não raro, é um eufemismo para ocultar a palavra abandono. E, sobre isso, as nossas sociedades precisariam de refletir melhor. Mas a solidão dos (mais) novos é, porventura, aquela mais submersa, mais enigmática e confusa para os próprios sujeitos, aquela sobre a qual falamos menos. Possivelmente só daqui a muitos anos, por exemplo, vamos perceber como é que a geração das crianças e adolescentes de hoje viveu esta experiência da pandemia, que medos e incertezas se alojaram neles pela primeira vez ou que perguntas sem resposta se fizeram. Só mais adiante compreenderemos o que representou para eles o fecho abrupto das escolas, a distância dos amigos e coetâneos ou este regresso a uma intensidade da família nuclear, que antes talvez não haviam tido. Contou-me uma amiga que um dos filhos à mesa, tentando interpretar a situação extraordinária que a família está a viver, disse: “Acho que estamos aqui a construir memórias.” Todos olharam para ele, espantados com a grandeza inesperada da definição na boca de um fedelho, mas seguramente aquelas palavras corresponderam dentro dele a emoções, a um esforço concreto de aproximação a uma realidade complexa, a um apaziguamento que encontrou quando foi capaz de justificar a estranheza com uma missão que unia — e unirá depois ainda — toda a sua família, pois as memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro.
Muitas vezes, quem os vê armados de tecnologia, estirados pela casa, aparentemente fechados nos seus interesses, com a cabeça noutro lado, a responder com monossílabos a frases inteiras não imagina que esse é o modo possível de se protegerem de um mundo que sentem em derrapagem. Que quando vagueiam numa passividade onde só vemos desnorte e indolência eles estejam engolidos, com uma dolorosa reverberação que não captamos, pelo indizível espavento de se terem olhado ao espelho, e de se interrogarem como serão ao acordar no dia seguinte, e no mês seguinte. E que quando parecem implicativos e agressivos estão, a bem dizer, apenas assustados. Nós adultos esquecemo-nos depressa de como as vidas são fragilmente construídas sobre certezas cuja evidência depende da confiança, e que esta é um tão longo e feliz e sofrido caminho.
Ganharíamos tanto se em vez da pressa dos juízos nos déssemos ao trabalho de sintonizar com a solidão dos outros, aprendendo assim a reconciliar-nos com a nossa. A solidão é uma das primeiríssimas experiências de humanidade que fizemos. Lembro aquilo que escreveu a pedopsiquiatra Françoise Dolto: “A solidão dos bebês existe. Eles têm necessidade de que lhes falem, de que lhes cantem, mesmo se ao longe. Ouvem uma voz, não estão completamente sozinhos. O ser humano precisa de companhia. O espaço de um ser humano, desde o nascimento, precisa de ser povoado pela presença psíquica de outro ser para o qual ele existe.”
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 15.06.2020
Quando fomos quase todos para casa por causa da pandemia, foi amplamente propalado que apenas se mantinham em funcionamento os “serviços essenciais”. Fornecimento de água, eletricidade, gás, transportes, hospitais, segurança, recolha e tratamento de resíduos, hiper, super e minimercados, farmácias, bancos, correios, órgãos de comunicação social. Enfim, o que garantisse que a vida como a conhecemos não colapsaria completamente e que algum grau de segurança e de estabilidade estaria assegurado.
Naturalmente que nada foi normal dentro desse “grau mínimo”, desde a corrida ao papel higiênico (cuja procura aumentou 75% face ao período pré-pandemia e a outros bens de primeira necessidade), como o fermento (a moda de fazer pão e bolos lêvedos em casa pegou de estaca no confinamento).
Confesso que nunca estive muito preocupada com as faltas nos supermercados, não sei se por ser incauta, por acreditar na providência ou por confiar no eficaz funcionamento do mercado. Mas abasteci-me previdentemente de ibuprofeno (versões infantil e adulta) e livros para os habitantes de casa.
Em jeito de provocação ou de aforismo, foi sendo insinuado que a circunstância provocava a distinção entre o que é essencial e o que é meramente acessório, entre o que realmente importa para o funcionamento da sociedade e o que é dispensável. Mas o óbvio rapidamente veio à tona e nele amarrada a certeza da “utilidade do inútil” (roubando a Nuccio Ordine o título – e não só – de uma obra muito aconselhável). Com teatros e cinemas fechados, com milhares de eventos culturais cancelados, a cultura, em múltiplas expressões, é uma das protagonistas da quarentena. O que seria de nós nestes dias sem filmes, sem séries, sem música, sem livros, sem wikipedia, sem priberam, sem receitas de culinária, sem poesia?
Não vivemos só das linhas escritas antes disso tudo mas também das que se escreveram durante estas semanas. Inventaram-se concertos online, criaram-se diários gráficos. Os coros cantaram a partir de muitas casas, os bailarinos dançaram coreografias trinchadas em palcos improvisados. Em cada casa, as tintas encheram telas e papéis. Barro e plasticina ganharam novas formas. Profissionais e amadores a fazer o que nos torna mais humanos porque é isso que nos distingue dos não-humanos.
Confesso: não li os dois livros que comprei para mim. Entre as edições disponibilizadas gratuitamente, as playlists geradas para diferentes ocasiões, as exposições virtuais, os folares e a massa fresca, afinal não foi preciso. E o ibuprofen também não.
É possível sair disto mais humanos. Muito graças à cultura e ao que ela transforma em nós, longe da discussão sobre o que é útil e inútil.
Cito Henry Miller, afirmado e reconhecido descrente e anti-cristão: “A arte, como a religião, não serve para nada a não ser para mostrar o sentido da vida”.
Clara Almeida Santos
In: opontosj.pt 05.06.2020
Tenacidade
s.f. Qualidade do que adere fortemente a uma superfície.
O que leva alguém a arriscar a sua vida para subir o Evereste? Ou escalar a solo (sem corda) uma parede de 1000 metros? Será simplesmente pela razão que George Mallory terá dito ao New York Times em 1923 - «Porque está lá.»- ? Penso noutra razão. Tenacidade.
Entre os significados de tenacidade encontra-se esta qualidade do que adere fortemente a uma superfície, como a essencial para escalar a solo qualquer parede. Mas a aderência maior é a interior diante da escolha de se ter colocado numa situação de vida ou morte dependente dessa aderência.
Por outro lado, a tenacidade é também uma grande persistência, perseverança e afinco, como quem escala o Evereste sabendo que ao chegar ao cume faz uma experiência de unidade com a montanha como nunca antes. Mas foi preciso a persistência para vencer a resistência de cada passo, perseverar diante da gradual dificuldade em respirar e o afinco de manter todo o olhar e vontade fixo no cume. Também a vida está em risco.
Parece haver uma ligação entre tenacidade e a atitude de fazer tudo como se a nossa vida dependesse disso. É uma qualidade que raramente entra no horizonte de tudo o que fazemos no quotidiano, mas, talvez, por não vivermos tudo como se a nossa vida dependesse disso.
Podemos criticar, procrastinar, viver distraídos, e passar toda uma vida sem sair realmente do sofá, e arriscar viver fora da nossa zona de conforto. Mas será que vivemos realmente quando a vida não está em risco?
Uma vida plena atinge-se com a totalidade daquilo que somos.
O que ousa escalar procura-a com o corpo.
O que ousa escrever procura-a com a mente.
O que ousa servir procura-a com o espírito.
Tenacidade é a qualidade de viver uma vida plena com o corpo-mente-espírito que nos caracteriza. É o que permite fazer dos atos simples, arriscados, mas totalmente vindos de um dom-de-si, gestos da grandeza que o ser humano é chamado a ser.
«A coisa mais difícil é a decisão de agir, o resto é, meramente, tenacidade.» (Amelia Earhart, primeira mulher a sobrevoar sozinha o oceano Atlântico. Desapareceu em Julho de 1937)
Mas não será a tenacidade uma decisão em ato?
Miguel Oliveira Panão
In. imissio.net 04.06.
O Pentecostes não se deixa cingir pelas nossas palavras. A própria liturgia multiplica as línguas para o dizer: na primeira leitura (Atos dos Apóstolos 2,1-11) o Espírito arma e desarma os apóstolos, apresenta-os como inebriados por alguma coisa que os atordoou de alegria, como um fogo, uma divina loucura que não podem conter. E isto após a narrativa da casa de chamas, de um vento de coragem que escancara portas e palavras. E a primeira Igreja, enrocada na defensiva, é lançada para fora e para a frente.
A nossa Igreja, tentada, hoje como então, de enrocar-se e fechar-se, porque em crise de números, porque aumentam aqueles que se declaram indiferentes ou ressentidos, sobre esta minha Igreja, amada e infiel, vem a sua paixão que nunca se rendeu, a sua energia imprudente e belíssima.
O Salmo responsorial (103) olha para longe: «Do teu Espírito, Senhor, está cheia a Terra». Uma das afirmações mais belas e revolucionárias de toda a Bíblia: toda a Terra está grávida, cada criatura é como que grávida de Espírito, mesmo se não é evidente, mesmo se a Terra nos aparece grávida de injustiça, de sangue, de insanidade, de medo.
Cada pequena criatura está preenchida do vento de Deus, que semeia santidade no cosmo: santidade da luz e do fio de erva, santidade da criança que nasce, do jovem que ama, do ancião que pensa. A humilde santidade do bosque e da pedra. Uma divina liturgia santifica o universo.
A terceira via do Pentecostes é dada pela segunda leitura (1 Coríntios 12,3b-7.12-13). O Espírito vem consagrando a diversidade dos carismas: beleza, genialidade, unicidade própria para cada vida. O Espírito quer discípulos geniais, não banais repetidores. A Igreja como Páscoa pede unidade em torno à cruz; mas a Igreja como Pentecostes quer diversidade criativa.
O Evangelho (João 20,19-23), por fim, coloca o Pentecostes no entardecer da Páscoa: «Soprou sobre eles e disse: recebei o Espírito Santo». O Espírito de Cristo, que o faz viver, vem para nos fazer viver, leve e quieto como um respiro, humilde e obstinado como o batimento do coração.
O poeta Ovídio escreve um verso fulgurante: “Est Deus in nobis”, há um Deus em nós. Esta é toda a riqueza do mistério: «Cristo em vós!» (Colossenses 1,27). A plenitude do mistério é de uma simplicidade deslumbrante: Cristo em vós, Cristo em mim.
Aquele Espírito que incarnou o Verbo no ventre de Santa Maria flui, inesgotável e ilimitado, continuando a mesma obra: fazer da Palavra carne e sangue, em mim e em ti, fazer-nos todos grávidos de Deus e de genialidade interior.
Para que Cristo se torne minha língua, minha paixão, minha vida, e eu, como os loucos e ébrios de Deus, me coloque a caminho atrás dele, «o único pastor que pelos céus nos faz caminhar» (D.M. Turoldo).
Começamos a entrever o fim da epidemia que transtornou profundamente os nossos estilos de vida diários. Aconteceu algo de imprevisível, de realmente impensável. Vivíamos num mundo doente, mas não nos aflorava a ideia de podermos adoecer tão rapidamente e desta maneira.
E eis a inesperada vinda de um mensageiro devastador, o coronavírus. Alguns virólogos colocavam remotas hipóteses sobre a possibilidade de uma tal irrupção. Só alguns, sentinelas capazes de discernir os passos da humanidade, denunciavam, quase profeticamente, ainda que de maneira confusa, que «corríamos em excesso, devíamos deter-nos». Sem uma mudança concreta – diziam – aceleraríamos uma crise de proporções desconhecidas e impensáveis.
É significativo que este flagelo se tenha abatido sobre uma sociedade treinada desde há décadas a pensar a “crise”, exercitada a combate-la sob diversas formas: a crise económica, a financeira, a do tecido social. Tudo isto no quadro dos nossos países ricos, que fazem parte do “primeiro mundo”, onde reinam o mercado, o desenvolvimento, o consumo, a vida opulenta, enquanto permanecem cada vez mais ocultos os débeis, os pobres, os “descartados”. E assim as porções de humanidade “alegres e vencedoras” tiveram de acertar contas com a fragilidade, o sofrimento, até a uma morte desesperante.
Neste tempo escutei muita gente, na solidão do meu eremitério pensei muito e procurei interpretar o que estava a acontecer. Na escuta percebi muito medo, até angústia, por este vírus que andava entre nós invisível e desconhecido; um vírus perante o qual não são possíveis as defesas típicas dos ricos, de quantos podem contar com o seu poder.
Em particular aqueles com mais de setenta anos, massacrados pelos boletins dos mortos e da exigência de se meterem “na cauda da fila” em relação aos mais jovens e fortes, passaram por momentos de abatimento. Quase todos pensaram na possibilidade concreta de serem contagiados e morrer. Nunca – diziam-me – tivemos a morte tão presente, nunca estivemos tão conscientes da nossa fragilidade. Desta maneira, a crise tornou-se uma pergunta sobre a fragilidade e sobre o limite da morte, a que ninguém pode fugir.
Também descobrimos os limites da ciência, da medicina, de muitas realidades que antes nos pareciam garantias tranquilizadoras, a nível pessoal e social. Muitos dizem: «Livramo-nos dela. Depressa festejaremos!». Tal reação vital é justificada, mas não deve obscurecer em nós o sentido do limite que (re)descobrimos, nem o acontecimento da morte, que aguarda cada um e pode chegar imprevistamente.
Não creio que nesta crise nos tornamos automaticamente melhores, mais solidários, mais capazes de atenção ao outro. Issto depende da nossa vontade e das nossas opções, a serem renovadas a cada dia. Mas se hoje estamos mais conscientes do limite e da morte, então – como afirma o filósofo humanista Salvatore Natoli – «tendo presente a morte, seremos menos propensos a prevaricar sobre os outros». Só isto já não seria pouco!
O estado de exceção que estamos a viver faz-nos ansiar pela normalidade, absolutamente necessária para o relançamento da vida. Mas de que falamos quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente. A mesma vida, com a sua paisagem, os seus ritmos, rotinas, enquadramentos e motivações. Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstância se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes. Mesmo tornando ao quadro habitual da nossa vida, é importante que nos perguntemos “o que é que no mundo e em nós se modificou” e “o que é que aprendemos com isso”. Não desperdicemos, portanto, a oportunidade que representa, pelo menos, fazer-se perguntas. Isso o escritor João Guimarães Rosa sublinhava: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”
Nem tudo permanece o mesmo quanto à nossa percepção do mundo e à garantia dos nossos estilos de vida. Globalizamos a economia e a comunicação sem prestar atenção às forças e às fraquezas do globo terrestre, descurando assim equilíbrios que precisamos de salvaguardar. Acostumamo-nos a uma visão utilitarista da realidade, pensada como um mecanismo que nunca dorme, assegurado a 100% para uma produção e um consumo ilimitados. Queremos sempre mais, sempre mais depressa, sem aceitar falhas. Vivemos acima das nossas posses como se os recursos — a começar por aqueles naturais — fossem inesgotáveis. Pensamos o espaço físico como um vasto open spaceonde tudo pode acontecer de forma contígua. Ora, a pandemia devolve-nos a consciência do limite, ao mesmo tempo que nos obriga a refletir sobre as formas de habitar o mundo a que podemos voltar e aquelas modalidades que teremos de superar. A presente pandemia começou por ser enfrentada como um assunto sanitário, mas evidentemente reclama que a interpretemos de um ponto de vista mais alargado, como uma encruzilhada civilizacional.
A normalidade não é um conhecido lugar a que se volta, mas uma construção onde somos chamados a empenhar-nos. Teremos certamente para lá chegar de reaprender a conjugar transformação e preservação. Porque este momento, a par da criatividade, também nos pede uma capacidade de perseverar, lutando para que o nosso patrimônio humano mais fundamental não seja omitido, porque somos seres de relação e não podemos viver sem comunidades. Uma das mais belas imagens destes dias é a de um avô de Michigan, nos Estados Unidos, que caminhou quilômetros a pé para ver, através da janela, uma neta que acabara de nascer. Na fotografia que circulou internacionalmente, está de um lado o jovem pai com a criança ao colo, e, do outro lado da vidraça, o sorriso indestrutível de um homem avançado em anos que, naquele momento, se sentirá a criatura mais feliz sobre a terra. A nova distância interpessoal não se pode tornar simplesmente um condicionamento (psicológico e social) que nos condene à solidão. A pandemia tem forçado a muitos “lutos relacionais”: desde a suspensão das práticas comunitárias ao reforçado isolamento dos idosos; desde a abolição do simples aperto de mão à situação daqueles pais que, reentrando em casa vindos do trabalho, hesitam em abraçar os próprios filhos. Mas é verdade também que se têm encontrado formas de comunicação e de presença que, não sendo substitutivas das anteriores, têm garantido o exercício comum da nossa humanidade. Este, a pandemia não deve poder suprimir.
Dom José Tolentino Mendonça
09.05.2020
A nossa vida é um longo diálogo connosco mesmos. Refletir é ver-se e escutar-se como se fossemos um outro diante de nós. Vivemos na constante presença do que somos, mergulhando por vezes bem fundo no nosso interior, em busca da paz que resulta da compreensão.
Depois, há também em nós uma enorme força, uma espécie de pressão, que a partir do nosso interior nos quer para fora, para o mundo, e tudo faz para que partilhemos o que somos, como se o alívio das nossas inquietações só fosse possível no encontro com o outro.
Então, por um lado, sentimo-nos únicos e sós, inexplicáveis a partir de fora! Por outro, a nossa essência empurra-nos para fora, para que nos comprometamos em projetos que ninguém consegue concretizar sozinho. Mas porquê?
A verdade é que ninguém se basta a si mesmo, apesar de parecer que vivemos condenados a um isolamento em relação à compreensão e ao amor dos outros.
Somos o sopro de um vento maior que brota do mais fundo da nossa alma. Vivemos escondidos à espreita de uma oportunidade de fazer explodir o nosso ser.
Há quem tenha certeza da existência de Deus, mas julga-O longe, lá no Céu ou em qualquer outro espaço ou tempo.
Mas estar em silêncio e não se poder ver não significa que algo não esteja diante de nós, ou atrás… ao nosso lado. Talvez até os nossos ombros se estejam a tocar!
Importa que deixemos o nosso coração ver. Sentir. A solidão que ele sente é sua ou somos nós que a forçamos?
É preciso que consigamos criar sossego dentro de nós. O que pensamos, sentimos, queremos, acreditamos, o que temos vontade de fazer e o que em nós nos ultrapassa, devem estar em paz uns com os outros. Talvez não seja preciso estarem afinadíssimos, bastará que não haja guerra!
Sentir e apontar culpas é um sinal claro de uma inquietude enraizada e do nosso distanciamento face à felicidade. Impede-nos de viver, de nos redimirmos, de criarmos o bem a partir do que parece ser vazio. De sermos mais do que somos, sermos quem podemos e devemos ser.
É bom parar de vez em quando, apenas para que depois possamos sair de nós e nos ocupemos das necessidades do outro, do mundo e das nossas próprias.
Nunca estamos sós. Deus existe e não está longe. Está aqui. Ao nosso lado.
O que nos é pedido é simples: que nos deixemos um pouco para trás, que olhemos e escutemos o outro, que o aliviemos das suas feridas… conseguindo fazê-lo sentir tão único quanto próximo!
José Luiz Nunes Martins
In: imissio.net 15.05.2020
Pandemia, bolsonavírus, isolamento, confinamento, nada disso combina comigo. Aliás, com ninguém. É difícil desacostumar de abraços.
Há pouco, fui ver minha mãe, que está de quarentena na casa do meu irmão, Cláudio. Seus netos quase todos, estavam lá. Na rua, de máscara, distância regulamentar entre nós e a avó, separada de todos por uma parede de vidro. Muito difícil, mas é o que temos no momento.
Nessa travessia, para que o bichinho da depressão não se transforme num monstro, estou fazendo o exercício das pequenas felicidades, já que os grandes voos da alegria estão limitados.
No almoço, dividi uma cerveja especial com o Daniel, meu filho, companheiro de isolamento social, saboreando o marmitex da Leia, que tem mãos mágicas no fogão. Foi bom. Arrumar a cozinha é chato, a pilha de pratos, copos, panelas e talheres surge por geração espontânea, mas, depois, entregá-la limpinha à Laila e receber um elogio é muito bom.
Desde que saí do último colégio, rompendo de vez meu vínculo com o trabalho formal, aposentei o relógio que, sintomaticamente, quando recebi meu primeiro salário fui à Galeria Ouvidor, o nosso shopping da época, e comprei. Um Mirvaine 17 rubis com o qual cronometrava as minhas horas de trabalho. Fui seu escravo (e dos seus sucedâneos) a vida toda. Agora, ter liberdade em relação ao tempo, à agenda, é uma sensação boa, apesar de sentir muita falta das pessoas que faziam parte da minha rotina.
Ser capaz de recriar rotinas e se deixar surpreender é outra magia. Descobrir pessoas e coisas inspiradoras, nas Redes Sociais, por exemplo. Como tem gente boa, sensível, inteligente, nesse mundão de meu Deus!
Felicidade é, na verdade, uma coisa bem simples. Tão simples como Deus. Sim, Ele é absurdamente simples. Ele é Amor. E amar é muito simples, o que não quer dizer que seja fácil: querer bem, querer ver o outro feliz e ser feliz junto com ele, seja ele ou ela quem for.
Isso vale para mulher, marido, filho, vizinho, empregado, chefe, colega e até os desconhecidos anônimos que todos os dias cruzavam o meu caminho, o nosso caminho. Hoje, todos escondidos atrás da máscara que nos lembra que somos iguais na nossa fragilidade...
Esses rostos que hoje, não vejo, são de pessoas que querem e buscam o mesmo que eu; ser feliz. Quer coisa mais simples? Quer coisa mais extraordinária do que dar às pessoas que me rodeiam, quaisquer que sejam elas, o presente de serem felizes, hoje, pelo simples fato de que se encontraram comigo, ainda que na virtualidade dessa crônica?
Volto ao Flávio Miglaccio...
Que imensa solidão...
É o risco que, hoje, todos corremos. E nosso desafio é encontrar o equilíbrio possível em meio a esse tempo de perplexidades, quando nossas certezas e seguranças parecem se desfazer diante do cenário que se descortina nas janelas da nossa casa, da nossa alma.
Para fazer a travessia do deserto árido da solidão, prima-irmã da depressão, é importante ter paciência e lutar muito, internamente, contra as moções destrutivas que ela provoca.
Jesus, ao mergulhar na nossa História, ao fazer-se um de nós, experimentou nossas fragilidades e nos amou ainda mais por causa delas. Na solidão imensa da cruz, certamente encontrou consolo na presença de João, de Maria, dos poucos e preciosos amigos que ficaram ao seu lado, até o fim. Com os olhos neles, rompeu a solidão e entregou seu espírito nas mãos do Pai, certo de que aquela dor, e dor de morte, não era a palavra final. Sua passagem pelo túmulo não foi mais que isso; passagem.
A escuridão é passageira, Só anoitece até a meia-noite. A madrugada já é o começo do amanhecer.
Somos filhos da luz.
Fica na Luz, seja Luz, Flávio...
Eduardo Machado
09/05/2020
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