A vida não é, desengana-te e desengana quem te faz sentir e acreditar que é, sobre tudo o que vais somando e que te fazem sentir que tens de somar. A vida não é sobre tudo o que vais cumprindo e que te fazem sentir que tens de cumprir. A vida não é sobre o tanto que vais correndo e que te fazem sentir que tens de correr. A vida... a vida é sobre o que te enche as medidas da alma e do coração, até transbordar. A vida é sobre o que dá vida.
A vida é sobre os abraços que se fazem casa segura. A vida é sobre as mãos que se entrelaçam e seguram a alma. A vida é sobre os olhares que contam os segredos mais bonitos. A vida é sobre os sorrisos que tocam em cheio no coração. A vida é sobre os beijos que curam as dores. A vida é sobre as dores de barriga de tanto rir. A vida é sobre as lágrimas que se secam com a magia da cumplicidade. A vida é sobre as palavras ditas com o coração e sobre os silêncios escutados com o coração. A vida é sobre as músicas que arrepiam os sentidos. A vida é sobre os sonhos que fazem voar. A vida é sobre olhar o céu cheio de lua e de estrelas. A vida é sobre os momentos que se imortalizam. A vida é sobre as almas que se abraçam. A vida é sobre os corações que se sentem. E que se abraçam também. A vida é sobre as tuas pessoas. A vida é sobre viver e ser com o coração. A vida é sobre os gestos que salvam. A vida é sobre tatuar o mundo com amor.
Desengana-te e desengana quem te faz sentir e acreditar que não: a vida é sobre o amor.
Daniela Barreira
In: imissio.net 21.06.21
Imagem: Henri Cartier Bresson
Após ter anunciado aos discípulos e às multidões algumas parábolas a partir de uma barca encostada à praia, Jesus decide passar à outra margem do mar da Galileia (Marcos 4, 35-41): trata-se de uma “saída” da terra santa de Israel, para ir em direção a uma terra habitada por pagãos. Porquê esta decisão tão audaz? Porque Jesus, apesar de se sentir enviado primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel. quer anunciar a misericórdia de Deus também aos gentios, quer combater Satanás e tirar-lhe terreno também naquela terra estrangeira e não santa. Esta é a razão que move Jesus. Jonas, chamado por Deus a ir a Nínive, cidade símbolo dos pagãos, foge, faz um caminho em direção oposta; Jesus, pelo contrário, enviado por Deus, vai ao encontro dos pagãos.
Os discípulos, portanto, iniciam a travessia do lago, «levando consigo Jesus» (expressão única, porque habitualmente é Jesus que leva consigo os seus discípulos: Ele está exausto devido à longa jornada de pregação, e na barca procura uma enxerga na qual se possa distender para repousar. Mas à vontade de Jesus opõe-se o mar, que é o lugar onde as forças do mal se desencadeiam em tempestade. Não se esqueça que para os judeus o mar era o grande inimigo, vencido pelo Senhor quando fez sair o seu povo do Egito; era a morada de Leviatã, o monstro marinho; era o grande abismo que, quando desencadeava a sua força, amedrontava os navegantes. E eis que o poder do demónio se manifesta numa tempestade de vento, que lança as ondas contra a barca e tenta afundá-la. É noite, é a hora das trevas, e o medo sacode aqueles discípulos, que deixaram de conseguir governar a barca. O naufrágio parece inevitável, e todavia Jesus, à popa, dorme.
Os discípulos, então, tomados pela angústia, ao ver Jesus adormecido, impacientam-se. Decidem por isso despertá-lo, e com modos decerto não reverentes, gritam: «;estre, não te importa que estejamos perdidos?». Esta maneira de se exprimirem é já eloquente: chamam-no “mestre” e com palavras bruscas contestam a sua inércia, o seu sono. Palavras que na versão de Mateus se tornam uma oração - «Senhor, salva-nos, estamos perdidos!» - e na de Lucas um chamamento - «Mestre, mestre, estamos perdidos!». Marcos recorda melhor as relações simples e diretas, até pouco gentis, dos discípulos para com Jesus…
Perante esta falta de fé, Jesus repreende o vento e exorciza o mar. «dizendo-lhe: “Cala-te, acalma-te”. E subitamente o vento cessou e houve grande bonança». Este milagre realizado por Jesus – não escapa a ninguém – tem sobretudo um grande alcance simbólico, porque cada um de nós, na sua vida, conhece horas de tempestade. Também a Igreja, a comunidade dos discípulos, por vezes encontra-se em situações de contradição tais, que se sente imersa em águas agitadas, em grandes vagas, num vórtice que ameaça a sua existência. Nestas situações, em particular quando duram muito tempo, tem-se a impressão que a invisibilidade de Deus é, na realidade, um seu dormir, um não ver, um não sentir o grito e os gemidos de quem se lamenta. Sim, a pouca fé faz os crentes gritar: «Deus, onde estás? Porque dormes? Porque não intervéns?» (cf. Salmos 35, 44, 59, etc.).
Devemos confessá-lo: ainda que acreditemos ter uma fé amadurecida, de sermos cristãos adultos, na provação interrogamos Deus sobre a sua presença, chegamos inclusive a contestá-lo e por vezes a duvidar da sua capacidade de ser um Salvador. O sofrimento, a angústia, o medo, a ameaça à nossa existência pessoal ou comunitária tornam-nos semelhantes aos discípulos na barca da tempestade. Por isso Jesus tem de os repreender com palavras duras. Não só lhes pergunta «porque estais tão amedrontados?», como acrescenta: «Ainda não tendes fé?». Discípulos sem fé, sem adesão a Jesus: seguem-no, escutam-no, mas não colocam nele plena confiança.
E eis que diante destas palavras tão críticas de Jesus, mas também diante do prodígio que viram com os seus olhos, aflora nos discípulos uma pergunta: «Quem é verdadeiramente este rabi, este mestre, que até o vento e o mar a Ele se submetem?». Contudo, também deste acontecimento não saberão extrair uma lição, porque, quando chegar para Jesus e para eles a grande tempestade, a hora da sua paixão e morte, desencorajar-se-ão por causa da sua falta de fé. De facto, esta provação da tempestade no mar é anúncio da grande provação que os aguarda em Jerusalém, onde todos o abandonarão e fugirão. Depois, perante Jesus morto e sepultado, verificarão um grande malogro do mestre e do seu grupo. E só o túmulo vazio e o contemplar Jesus vivo, ressurgido da morte, gerarão neles uma fé sólida, que os conduzirá a confessar Jesus enquanto vencedor sobre o mal e sobre a morte. Então, enquanto testemunhas do Ressuscitado, tornar-se-ão também capazes de enfrentar, por sua vez, a tempestade que se abaterá sobre eles: a perseguição por causa do nome de Jesus e da fé nele.
Quando Marcos escrevia o seu Evangelho e o entregava à Igreja de Roma, a pequena comunidade cristã na capital do Império estava na tempestade e reinava nela um grande medo, ao ponto de impedir àqueles cristãos a missão junto dos pagãos. Assim Marcos convida-os a não temer a “saída” missionária, convida-os a conhecer as provações que os esperam como necessárias; provações e perseguições nas quais Jesus, o Vivo, não dorme, mas está no meio deles. A tempestade sobre o mar da Galileia é uma metáfora da luta contra as potências do mal, luta que Jesus Cristo venceu. Jesus aparece então como Jonas, mas um Jonas ao contrário: não relutante, mas missionário rumo aos pagãos, em obediência a Deus. Em todo o caso, Jonas e Jesus são dois missionários de misericórdia, e ambos pregam a preço muito caro: descendo ao vórtice das águas e enfrentando a tempestade, porque só atravessando-a se vence o mal. É por isso que Jesus dirá que à sua geração será dado apenas o sinal de Jonas, ou seja, a parábola da misericórdia anunciada ao preço da descida às águas da morte, ao preço de ir até ao fundo.
Quanto é cristã a frase: “Naufragium feci, bene navigavi”. Naufraguei, mas naveguei bem, porque aportei ao reino de Deus.
Não há nada que não possa magoar um coração. A sua sensibilidade deriva de uma capacidade de decisão única e extraordinária de não se deixar endurecer apesar do que sofre.
Muitas pessoas afastam-se do seu próprio coração. Tentam ser outras que não elas, mas o que resulta é que acabam por criar algo pior…
A nossa identidade depende muito da forma mais ou menos irracional como lidamos com o mundo, mais do que das nossas ideias claras e da lógica do que julgamos ser.
O coração é simples: ou se alegra e sorri ou, entristecido, sofre. Algumas vezes fica em paz, mas nunca por muito tempo, porque não gosta de estar vazio e quer experimentar cada coisa, seja ela real, possível ou impossível. Aliás, estas distinções não fazem sentido do seu ponto de vista.
No coração cabe o infinito e a eternidade, dimensões inacessíveis à razão humana. É capaz do céu e do inferno, como se fosse uma escada que vai desde o fundo do poço até ao mais alto dos céus.
Amar é um ato de coragem suprema, porque implica abrir os braços para abraçar e ser abraçado, mas, quando assim alguém se dá, abre-se a ser trespassado por algum punhal que o outro traga escondido.
O milagre que é também um mistério é que não se pode matar um coração. Pode sofrer, mas morrer não. Talvez porque não há mal maior do que o bem. Talvez porque, de certa maneira, sofrer traga algum bem que não faça sentido à razão…
Se já sentes os dias todos iguais e á em ti uma grande indiferença face a tudo o que te rodeia, então é tempo de te retirares e cuidares do teu coração danificado. Muitas vezes, ele desliga quando teimamos em não o escutar ou em fazer o que o faz sofrer.
Não devo ser escravo do meu coração, mas também de nada me vale tentar dominá-lo. A felicidade nasce da paz. Só serei feliz se estiver em paz com o meu coração.
Que nunca o teu coração deixe de ser um castelo onde há espaço para tudo, onde a porta está aberta, tanto para acolher todo o bem como para expulsar todo o mal.
José Luis Nunes Martins
28.05.2021
In: imissio.net
Imagem: pexels.com
Um dos equívocos, dos quais mais penoso é nos libertarmos, reside na concepção de útil e de inútil. Declaramos apressadamente útil tudo que o que se mensura em dinheiro e produtividade, em efeito imediato, em promoção ou retorno visível. Associamos o útil à resolução das necessidades materiais e rodeamo-lo, assim, daquele prestígio próprio das ações indispensáveis. Enquanto que desclassificamos o inútil vendo nele um esbanjamento, uma excentricidade, quando não um desperdício. Assumimos o útil como um dever. Ao inútil concedemos um estatuto eventual, entendido como uma espécie de resto, em relação ao qual não sentimos o apelo e a pressão social de desenvolvimento ou transmissão. E contudo, pensando bem, se do lado do inútil não estarão os deveres, está, porém, algo igualmente precioso: a maturação profunda do que somos. Se não alinhamos da parte do inútil os afazeres que garantem a nossa sobrevivência, podemos, contudo, colocar aí a experiência interior decisiva que representa encarar a vida e a morte, a memória e o desejo, a solidão e a alegria. Se não organizamos no campo do inútil a construção dos diversos saberes que nos servem, a verdade é que sem ele não transitaremos para a sabedoria. Como recorda um poema de Pedro Tamen, “o caracol conhece pouco mundo,/ mas é colado a ele que o conhece”. O inútil, que tem a forma de aéreo assobio, cola-nos diretamente ao mistério da vida e dá-nos um tipo de conhecimento que, de outro modo, não alcançaríamos.
Por isso, devemos mais do que supomos aos mestres do inútil. Normalmente são pedagogos casuais e aquilo que nos dão não se configura, à partida, como ensinamento. Que se tratou de uma poderosa lição de vida damo-nos conta depois. Vínhamos apenas para ver e esses discretos mestres mostraram-nos, por exemplo, a importância da contemplação, abriram-nos ao diálogo com essa sede de êxtase que trazemos alojada na carne. Viajávamos com um propósito fixo e eles conectaram-nos ao perfume daquilo que não tem porquê.
Um dos contos mais extraordinários (e demolidores) de Flannery O’Connor fala disso, apresentando-nos a história de O.E. Parker aos 14 anos quando, numa feira ambulante, tropeça na visão de um homem tatuado dos pés à cabeça. Esse encontro desencadeou nele uma viragem, mas de modo tão delicado que ele não conseguia aperceber-se bem do sucedido. Como explica Flannery, até aquele momento, “nunca lhe passara pela cabeça que a sua própria existência pudesse ser a expressão de alguma coisa fora do comum”. O elenco das visões inúteis que nos espantam é longo e pessoalíssimo. Porém, o seu propósito é sempre esse: o de nos revelar que a nossa pequena existência pode ser o espaço para alguma coisa maior.
Ora, esta consciência, que nos chega pelo espanto, pode-nos chegar também pelo sentimento de fracasso que, por vezes, nos toma. Na última entrevista do sociólogo Zygmunt Bauman, concedida ao jornalista Peter Haffner, a dada altura fala-se de José Saramago como de um mestre admirado. E Bauman refere o significado que teve para ele o encontro com uma página diarística escrita por Saramago aos 86 anos, em que este confessa sem filtros o seu falhanço. As intuições a que havia chegado não pareciam ter influência alguma no curso da história. Por consequência, fazia a si mesmo (fazia contra si mesmo) uma drástica pergunta: porquê, então, pensar? A resposta de Saramago iluminou Bauman: nós pensamos porque não conseguimos evitar, não somos capazes de atravessar o mundo de outra maneira. O pensamento é um exercício humilde e espontâneo, um facto equivalente ao transpirar.
Dom José Tolentino Mendonça
24.05.2021
In: imissio.net
Imagem: pexels.com
No ar que hoje todos respiramos, surge várias vezes, logo afastado, o temor do fracasso. Com efeito, o objetivo que é proposto, e que ressoa como resultado determinante da felicidade e do êxito de uma vida, é o sucesso. E não só o sucesso é perseguido, como é considerado aquilo que salva uma existência. De outra maneira, a pessoa sente-se uma falhada, contada entre os descartados da sociedade.
Esta parece-me ser uma doença espiritual do nosso tempo, e muitos estão convictos de que o sucesso deve ser procurado como o desejo por excelência a inocular nas novas gerações. Não foi por acaso que Pier Paolo Pasolini escreveu: «Penso que é necessário educar as novas gerações para o valor da derrota. Para a sua gestão. Para a humanidade que dela brota. Para construir uma identidade capaz de percepcionar uma comunhão de destino, onde se pode falhar e recomeçar sem que o valor e a dignidade sejam atacados. Para que não se tornem conquistadores sociais, para que não passem sobre o corpo dos outros para chegar primeiro».
Também os cristãos, arrastados e habituados a procurar a aprovação dos outros para os seus comportamentos bons, caritativos e conformes ao Evangelho, perseguem uma espécie de êxito, de sucesso no mundo, e portanto tornaram-se incapazes de entrever a possibilidade da fraqueza e do consequente fracasso.
O drama que vivem nesta reviravolta epocal nas sociedades ocidentais é precisamente determinado por um falhanço da evangelização, da pastoral, da incapacidade de contrapor uma presença de minoria significativa diante da humanidade de hoje. E os seus prantos, as suas lamentações não são diferentes das do profeta Jeremias na cidade santa de Jerusalém. No entanto, declaram-se discípulos de um profeta (este, pelo menos, era-o!) que conheceu como resultado da sua vida um impiedoso fracasso após alguns anos de pregação, de vida comunitária, de ação benéfica entre as pessoas. Traído e abandonado, foi considerado nocivo ao bem do seu povo e blasfemador da autoridade religiosa, e portanto condenado à morte pelo poder imperial romano. Que fim!
Por isso o fracasso deve ser inscrito no itinerário da existência cristã, assim como, bem o sabemos, no da existência humana. A queda e o fracasso não podem ser removidos porque estão inscritos na “infermitas” das vidas humanas, na fragilidade que nos conduz a falhar. Pode chegar a hora da queda e, como dizia um padre do deserto, «no fracasso vai-se ao fundo, toca-se o fundo, mas no fundo descobre-se o fundamental».
A queda e o fracasso que nos esmagam por vezes são legíveis e motiváveis, outras vezes permanecem na obscuridade e são enigmáticos, sobretudo as crises interiores, existenciais, quando caímos no “nada” e deixamos de ser capazes de reencontrar o sentido das coisas e da vida. Então reina a noite, a treva, e também Deus é percepcionado como mudo e ausente pelo crente. Bernardo de Claraval, após uma vida repleta de sucessos, ao ponto de ter sido decisivo inspirador do papa, viveu uma crise terrível: deixou o mosteiro, retirou-se em solidão num bosque, e chegou a reconhecer «ter passado rente ao inferno, caindo e caindo». Mas depois daquela crise escreverá: «Ó desejável fraqueza!».
Não quero concluir estes pensamentos com a cereja da esperança, mas simplesmente despertar a consciência de que também o fracasso faz parte da vida e não deve ser afastado; seja então proclamado: «Feliz fraqueza»!
Enzo Bianchi |In Il blog di Enzo Bianchi
Publicado no SNPC em 07.05.2021
Imagem: pexels.com
Não sejas um egoísta básico, daqueles que só pensam em si a curto prazo. Agarram-se a tudo o que lhes dá prazer e fogem de qualquer sacrifício ou dor. Nunca são felizes, porque vivem desassossegados por nunca saberem quando lhes acaba o que julgam ter ao seu dispor de bom, ao mesmo tempo que vivem com medo de que algo de mau lhes aconteça.
Os egoístas primários não compreendem que são eles próprios os responsáveis pela sua inquietude sem fim. Só são infelizes porque, apesar de até poderem estar no caminho certo, estão a caminhar na direção errada!
Também há os egoístas sábios. São pessoas que procuram o que é melhor para si, não no imediato, mas a médio e longo prazo. Só pensam em si mesmas, apesar de compreenderem que é quase sempre necessário pagar um preço para alcançar algo de importante. E, porque o pagam, a vida sorri-lhes mais do que aos básicos. Embora isso te possa parecer muito equilibrado, não te deixes cair na armadilha deste tipo de pessoas interesseiras, que só fazem algo se tiverem a quase certeza de um lucro qualquer no futuro.
O egoísmo que importa aprender é aquele que coloca a sua meta muito para lá de qualquer interesse, ao ponto de compreender que qualquer gesto que busque um benefício vindo de fora é estúpido e só nos afasta do verdadeiro bem.
O bom egoísmo é aquele que compreende que só quem é capaz de se dar sem esperar nada em troca, só quem consegue escutar o outro sem fazer julgamentos cria verdadeiras ligações, só quem é o que de melhor pode ser… é que atinge a felicidade! Aquela que não passa, a que permanece mesmo quando se tem de carregar uma cruz às costas.
Devemos pensar em nós mesmos, mas como meios e instrumentos da felicidade dos que nos rodeiam.
O amor é a condição da felicidade. Se queres ser feliz, esquece-te de ti e concentra-te no que és, no que que te é possível e no que te rodeia. Contempla o mundo como algo em que podes e deves fazer alguma coisa de bom.
Mais do que procurarmos ser felizes, devemos querer ser merecedores da felicidade.
Se o seremos ou não, isso já não depende apenas de nós.
José Luis Nunes Martins
23.04.2021
In: imissio.net
A árdua travessia que estamos a viver reforça a evidência de duas premissas que interpretamos agora, porventura, melhor. A primeira prende-se com a importância da saúde pública. As dificuldades da hora presente acentuam a sua primazia como direito e valor fundamental que precisa de ser devidamente tutelado e garantido, pois é uma espécie de requisito prévio para que a vida, nas suas múltiplas expressões, se possa afirmar. A vida, que é sempre mais frágil e mais forte do que pensamos, está construída com o sistema das peças do dominó, isto é, numa dependência mútua. Por isso, uma devastadora crise sanitária como a que vivemos não é apenas uma crise sanitária, mas um abalo global. Porém, que precisamente reconhecendo o impacto poliédrico da pandemia, as nossas sociedades tenham elegido, como bem primeiro a salvaguardar, a saúde dos cidadãos é alguma coisa que as qualifica eticamente. Nesse sentido, a dramática e quotidiana luta, que há meses se vem jogando no campo da saúde pública, constitui o mais belo elogio àquilo que representa a ideia de um país. E aqui uma palavra de gratidão é devida aos atores que intervêm diretamente no campo da saúde, partindo das suas competências, mas operacionalizando-as com admirável espírito de abnegação, entrega e sacrifício.
Hoje temos assim mais clara a centralidade atribuída à saúde pública. Mas não só. Como que emerge uma visão mais integradora desse conceito, uma visão que o reconfigura, ajudando-nos a compreender a necessidade de construir um novo paradigma, sobre o que é a cura, o cuidado e a saúde. Não podemos continuar a reproduzir um esquema restritivo ou apenas técnico. A complexa experiência da pandemia impele-nos a identificar novos instrumentos de saúde pública que tenham em consideração a abrangente e intrincada fenomenologia da existência humana. Dois breves exemplos sobre os quais muito se poderia dizer: o consenso cada vez mais assente de que a solidão é uma doença mortal que tem de ser tratada com o mesmo empenho que colocamos no tratamento das outras patologias; e a consciência do papel fulcral que cabe à esperança nos processos terapêuticos e de reconstrução.
Lia, estes dias, uma interessante entrevista com o arquiteto Renzo Piano, que está neste momento a projetar três hospitais, um deles na região norte de Paris e que será o maior hospital de França. Neste último ano, vimos todos insistentemente mais imagens de hospitais do que no resto das nossas vidas. E que lição podemos retirar? O que é que nós vimos? Se pensarmos, o desenho dos hospitais espelham um entendimento social da sua função. Os hospitais no século XIX eram estruturados em diversos pavilhões, consoante as disciplinas médicas, formando um gentil arquipélago clínico, mas de ilhas separadas. No século XX triunfou a concepção do hospital monobloco, onde a técnica médica registou um efetivo domínio e obteve um funcionamento mais unitário, mas onde igualmente a dimensão humana se reduziu, a ponto de desaparecer. Por isso, mesmo se alguns o possam talvez acusar de excessivo otimismo, Renzo Piano defende que a aceleração trazida pela pandemia tornou os tempos maduros para um salto cultural: os hospitais deste surpreendente século XXI são chamados a expressar um novo humanismo. Procurando colocar em diálogo elementos que têm estado desligados: a excelência médica e a excelência de humanidade que se possa viver, o olhar integral à pessoa humana (que é corpo, mas também espírito, sentimento, emoções...), o exercício da ciência e o sentido de beleza, a funcionalidade dos espaços e a relação com a natureza.
Dom José Tolentino Mendonça
19.04.2021
In: imissio.net
Imagem: pexels.com
Entramos na semana que os cristãos chamam “santa” porque é a semana que exprime a fé dos seguidores de Jesus, este galileu que com as palavras e a vida quis narrar-nos Deus e entregou-nos uma mensagem humaníssima. De várias maneiras (ritos, orações…) os cristãos fazem memória sobretudo dos últimos dias de Jesus, da sua paixão e morte, e afirmam que o amor vivido por este homem venceu a morte. Gostaria, se disso for capaz, de procurar exprimir que significado pode ter para todos, inclusive para os não-cristãos, esta memória de acontecimentos ocorridos há cerca de dois mil anos.
De acordo com o quarto Evangelho, Pilatos, o procurador romano, durante o processo apresenta Jesus torturado à multidão que lhe quer a morte com as palavras: «Eis o homem!». Um homem fraco e atingido com violência pelos soldados, um homem ridicularizado, desprezado e desfigurado, homem que está sempre presente na História e que devemos ver no pobre, no oprimido, na vítima do poder, em quem não conta nada neste mundo.
Aquele espetáculo da vigília de Páscoa no pretório é o espetáculo de que continuamos a ser espetadores no nosso hoje. Não se trata de alimentar visões doloristas, mas simplesmente estar conscientes de que aquela paixão, aqueles acontecimentos de injustiça e de violência mortífera, continuam no presente, e que cada um de nós deve dizer: «Eis o homem!». Eis a humanidade! E pensar, naquela condição desumana que não queremos ver, ou ver com resignação: «Se este é um homem…».
Esta é também a epifania do que significa estar na desumanidade, estar no profundo da alienação, ser um refugo nesta corrida que o mundo faz sem se interrogar sobre a violência, a exploração, a guerra e a injustiça de que é capaz. Nos séculos passados, a cristandade, precisamente para não assumir a responsabilidade da violência por ela perpetrada aos seres humanos, inventou o deicídio atribuindo-o aos judeus, impedindo assim de ver na de Jesus a paixão de um inocente perseguido.
Reler, meditar a paixão de Jesus não nos conduz a concluir que estamos ao abrigo do sofrimento, mas revela-nos que pode haver uma confiança que não claudica mesmo em quem sofre, que se pode viver o amor que se dá e que se recebe mesmo quando se é atingido pelo poder do ódio, que se pode alimentar a esperança também no aparente fracasso. E devemos reconhecer que igualmente outros humanos, homens e mulheres como Jesus, souberam viver assim a sua “paixão”.
Sim, Jesus foi condenado pelo poder religioso antes de mais porque libertava o ser humano de imagens perversas de Deus, e foi morto pelo poder imperial totalitário porque era “perigoso”, como, devemos reconhecê-lo, tantos o são ainda hoje. Mas por todas estas vítimas da História é nosso dever fazer memória que nos caminhos do sofrimento pode resplandecer a capacidade da humanidade de amar, de esperar, de perdoar, para esmagar o círculo infernal do ódio e da violência.
A narrativa da paixão de Jesus conclui-se com as palavras: «Começavam a brilhar as luzes do sábado» - um novo dia na história da humanidade
A misericórdia divina é uma temática que ainda não está superada, antes é uma mensagem de grande atualidade. É justamente a atualidade desta temática que nos estimula a escavar na tradição do pensamento humano por uma resposta à nossa situação.
Nas Sagradas Escrituras, encontramos a misericórdia de Deus em diferentes formas de revelação. No Antigo Testamento, esta aparece, algumas vezes, associada ao nome de Iaweh, outras à santidade de Deus, outras ainda à fidelidade do Senhor de Israel.
São Tomás de Aquino, na célebre Suma Teológica, apresenta-nos a Misericórdia associada à Justiça de Deus.
Ao recorrermos ao pensamento do Doutor Angélico, é de esclarecer que, com esta temática tocamos no fundamento e no mistério profundo do cristianismo, no Mistério de um Deus que se faz pequeno para resgatar a indigência da condição humana. Por misericórdia e justiça, Deus se enamora da nossa pequenez, manifestando um amor visceral por cada um de nós: “Ao longo do caminho da história, a luz que rasga a escuridão revela-nos que Deus é Pai e que a sua paciente fidelidade é mais forte do que as trevas e do que a corrupção. (…) A mensagem que todos esperavam, que todos procuravam nas profundezas da própria alma, mais não era que a ternura de Deus: Deus que nos fixa com olhos cheios de afeto, que aceita a nossa miséria, Deus enamorado da nossa pequenez” (Papa Francisco, 2014).
Por isso mesmo, Tomás de Aquino nos mostrará que a misericórdia e a justiça pressupõem um fundamento geral, que remonta à criação do ser humano. O homem é querido e precioso aos olhos do Pai. Pela Encarnação de seu Filho Unigênito, Ele nos justifica e nos eleva até ao seu Coração Misericordioso: “São Tomás mostra, de modo convincente, que a misericórdia opera já na criação. Segundo ele, a misericórdia é a condição sine qua non da justiça, pois a justiça pressupõe sempre a existência de alguém a quem se deve justiça; a existência das criaturas é imerecida e deve-se unicamente à bondade de Deus” (Kasper, A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, 2015).
Afirmar que Deus é Justo e Misericordioso é compreender que Deus tem um amor incondicional pelos miseráveis, que Ele não é um Deus alheio às mazelas humanas, distante, mas antes se compadece e se deixa tocar pela indigência do homem. Não que Deus se comova mas, por causa da sua soberania amorosa, num sentido ativo e livre, Ele se deixa comover e tocar pela miséria humana. Em Deus não há paixão, mas há compaixão.
Tudo isto refere-se à bondade suprema do Criador. O amor e a bondade em Deus nunca têm fim e estas estão intrinsecamente relacionadas com a justiça. Percebemos aqui que é possível conciliar justiça e misericórdia, como bem demonstra S. Tomás: “Deus dá a cada um o que é devido. É devido a Deus que seja realizado nas coisas aquilo que na sua sabedoria e bondade se manifesta” (S. Th., I, q. 21, a. 1). Por outras palavras, a ideia da misericórdia e da justiça em Deus não são meras ideias abstratas, mas é uma realidade experiencial, na qual Ele próprio revela o Seu amor incondicional. No dizer do Papa Francisco, na Bula Misericordiæ Vultus, nº 6, “é verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor «visceral». Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.”.
Um sacerdote dominicano, ao falar destes atributos divinos, descreve que “se a justiça é um galho da árvore do amor de Deus, esta árvore não é senão a sua misericórdia e a sua bondade, sempre desejosa de comunicar-se aos homens e irradiar-se” (Garrigou-Lagrange, Providence, 1998). Em suma, compreendemos que a justiça divina sempre se manifesta na vida dos homens através de um amor entranhado e da misericórdia incondicional de Deus Pai. A existência das criaturas deve-se unicamente à bondade misericordiosa de Deus e, por isso mesmo, não é a justiça que fundamenta a misericórdia de Deus, mas antes a misericórdia é que é a prima radix à qual se há-de atribuir todo o resto (cf. S. Th., I, q. 21, a. 3).
Desta forma, percebe-se em S. Tomás a precedência primordial da misericórdia, através da Graça Divina, em relação ao pensamento unilateral da justiça castigadora. O próprio apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, exalta a revelação da justiça misericordiosa de Deus: “Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem, - pois não há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus - e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3, 21).
Assim sendo, não podemos compreender a justiça de Deus numa perspectiva legalista, reduzindo o seu sentido original ou obscurecendo o seu valor profundo, pois nas Sagradas Escrituras e, também no pensamento tomista, a justiça é concebida como um abandonar-se inteiramente nas mãos ternurentas de Deus, com plena confiança e perseverança no amor misericordioso.
O Beato Miguel Sopoko, confessor de Santa Faustina Kowalska, dizia que um fator decisivo para a obtenção da misericórdia Divina é a confiança. A confiança em Deus deve ser firme e perseverante, sem hesitações nem fraquezas.
S. Tomás diz que “a misericórdia deve ser ao máximo atribuída a Deus; porém, como efeito e não como emoção, fruto da paixão” (S. Th., I, q. 21, a. 1). Pode-se compreender que a misericórdia divina é a perfeição da ação de Deus, que Se debruça sobre os seres humanos com o objetivo de retirá-los da miséria e de apagar as suas falhas. O ato singular de misericórdia é a compaixão, e o estado imutável de compaixão é a misericórdia. Este é o grande mistério de um Deus que revela a Sua ternura perante a fraqueza humana. A sua justiça consiste em sarar as feridas abertas no coração de cada homem.
Afirma o Papa Francisco: “A misericórdia vai além, faz a vida de uma pessoa de tal modo que o pecado é colocado à parte. É como o céu. Nós olhamos para ele e vemos tantas estrelas, mas quando vem o sol, pela manhã, com tanta luz, não as vemos mais. Assim é a misericórdia divina: uma grande luz de amor, de ternura. Deus perdoa não com um decreto, mas com um carinho, acariciando as nossas feridas do pecado. É grande a misericórdia de Deus, é grande a misericórdia de Jesus. Ele nos perdoa e nos acaricia” (Homilia em Santa Marta, 15 de abril de 2015).
A união da miséria humana somada ao Coração de Deus, cheia de amor, resulta na misericórdia. A misericórdia divina não consiste no entristecer-se de Deus com os nossos defeitos, pois Ele é perfeito e entristecer-se é algo impossível para Deus; porém, a sua misericórdia consiste em eliminar os nossos defeitos (cf. S. Th., I, q. 21, a. 3). Conforme nos exorta Tomás de Aquino, Deus atua sempre com justiça, pois tudo o que faz nas coisas criadas, o faz com ordem e proporção. A misericórdia não suprime a justiça, antes é a plenitude da justiça. É o momento que Deus Se doa totalmente para resgatar o género humano. Por isso mesmo, o perdão só é possível à mercê da ação salvadora de Deus em Cristo Jesus: “Mas agora foi sem a Lei que se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas: a justiça que vem para todos os crentes, mediante a fé em Jesus Cristo. É que não há diferença alguma: todos pecaram e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus. Deus ofereceu-o para, nele, pelo seu sangue, se realizar a expiação que atua mediante a fé; foi assim que ele mostrou a sua justiça, ao perdoar os pecados cometidos outrora, no tempo da divina paciência. Deus mostra assim a sua justiça no tempo presente, porque Ele é justo e justifica quem tem fé em Jesus” (Rm 3, 21-26).
Quando Deus concede o dom do perdão é então que somos introduzidos na alegria celeste, como reza a Oração de Coleta da XXVI Semana do Tempo Comum: “Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis, infundi sobre nós a vossa graça, para que, correndo prontamente para os bens prometidos, nos tornemos um dia participantes da felicidade celeste.”
A fé é uma virtude teologal, pela qual o homem adere a Deus, movido pela vontade que recebe o influxo da graça. A fé alimenta a esperança, a caridade e a misericórdia. S. Tomás afirma que toda a vida cristã se resume na misericórdia pelos outros quanto às obras exteriores. Porém, o sentimento interno da caridade, que nos une a Deus, está por cima tanto do amor como da misericórdia pelo próximo. Essa caridade se funda na fé. De facto, a caridade nos faz semelhantes a Deus, unindo-nos a Ele, agindo também com misericórdia para com o nosso próximo.
Santa Maria Alacoque diz que do Coração do Senhor brotam três canais de graça: a misericórdia, a caridade e o amor: “O primeiro é o da misericórdia, que infunde o espírito de contrição e penitência. O segundo é o da caridade para auxílio de quantos padecem tribulações e em especial dos que aspiram à perfeição, a fim de que superem todas as dificuldades. O terceiro é de amor e luz para os seus amigos verdadeiros, que deseja unir a Si participantes da sua ciência e dos seus desígnios” (Vie et Oeuvres, 1991). Também nós, depois de experimentar a eficácia do amor divino, somos convidados a testemunhar a Verdade da misericórdia e da graça santificante de Deus.
Por isso mesmo, a prática da misericórdia consiste num verdadeiro processo de conversão, que nasce do encontro pessoal com Cristo e do seguimento da Sua Palavra. De fato, a palavra de Deus vem ao nosso encontro, ilumina o nosso agir e convida-nos a seguir o caminho da misericórdia. As obras de misericórdia são motivadas pela fé que age pela caridade. A conversão do coração consiste sempre na descoberta da Sua misericórdia, daquele amor que é paciente e benigno como o é o Criador e Pai, fiel até às últimas consequências, na história da Aliança com o homem; até à cruz, morte e ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno do filho pródigo para junto deste Pai, que é rico em misericórdia.
O Apóstolo Paulo rende graças ao Pai da Misericórdia: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação” (2Cor 1, 3). Segundo Walter Kasper, é por isso que “a Igreja tem de narrar a história concreta do Deus compassivo com os homens, tal como ela é testemunhada na Antiga e na Nova Aliança; e deve apresentá-la do modo como Jesus o fez nas suas parábolas, dando testemunho do Deus, que revelou definitivamente a sua misericórdia na morte e na ressurreição do Seu Filho” (A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, 2015).
O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, ainda que este seja o mais penetrante e o mais cheio de compaixão, mas sim quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem.
No Mistério Pascal de Cristo está a força, a justiça e a misericórdia de Deus. É na cruz e ressurreição do Senhor que encontramos a ternura divina que nos envolve nos amorosos braços do Pai onde, pelo Seu Espírito e através da Santa Mãe Igreja, continua a dispensar as graças necessárias para que cada homem alcance a plenitude da vida eterna.
Pe. Alexsander Baccarini Pinto
Mestre em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa, UCP / Lisboa
e Investigador do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião, CITER / UCP
12.03.2021
Os cristãos começam esta semana a quaresma: um ciclo espiritualmente intenso de 40 dias que os prepara para celebrar a Páscoa. A quaresma é um segmento do chamado ano litúrgico onde, numa experiência circular da história, os crentes repetem e atualizam nas suas vidas o impacto da salvação de Cristo. De facto, não se trata apenas de fazer memória das várias etapas da existência histórica de Jesus, mas de receber e maturar, a essa luz, uma nova visão deles próprios. Nesse sentido, não admira que, por exemplo, Carl Jung tenha individuado nos diversos momentos do ano litúrgico uma espécie de sistema terapêutico, pois os ritos são também essenciais ferramentas de cura. Importa, por isso, libertar a quaresma dos reducionismos que a neutralizam. A casuística e a moleza acomodatícia depressa desfiguram o espírito e, aquilo que nos é oferecido como uma oportunidade de aprofundar com autenticidade a vida, descamba numa enésima forma de escapismo. Gosto do modo como um clássico contemporâneo, Romano Guardini, define a liturgia: é uma expansão da vida que toma posse da sua plenitude, já que os tempos e os rituais litúrgicos não são coisas que criamos, mas obras de arte que somos ou em que nos tornamos.
O passo do evangelho que se lê no primeiro domingo da quaresma — e que lhe serve de chave — é o que relata as tentações de Jesus no deserto. O desafio é que aceitemos escutar a vida que nos pertence como se estivéssemos realmente num deserto, sem armaduras nem desculpas, deixando que as perguntas fundamentais nos habitem de novo, interrogando-nos sobre o que fizemos da nossa liberdade ou do nosso amor, reconhecendo que o vazio desprotegido da paisagem é afinal simétrico ao nosso camuflado vazio, urdido por este vício nosso de viver às metades. Mesmo sabendo, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, que “Meia verdade é como habitar meio quarto/ Ganhar meio salário/ Como só ter direito/ A metade da vida”. O texto evangélico das tentações é um mapa para readquirir a inteireza e coloca-nos perante três núcleos de questões: 1) se é certo que não vivemos só de pão, vivemos de quê para lá do pão? Qual é verdadeiramente a nossa fome e a nossa sede? Onde é que elas acabam? Aonde nos conduzem? 2) a fé serve-nos para quê? Para submeter Deus às condições que consideramos necessárias para acreditar nele ou, antes, para nos abrirmos, como nómadas e peregrinos, à radicalidade do mistério? 3) estamos dispostos a renunciar ao equívoco do domínio e da posse, quaisquer que eles sejam, como supostas fontes de realização e de sentido, reduzindo a isso o horizonte de significação da vida? O que fazemos com as coisas que possuímos? E também: o que é que as coisas que possuímos fizeram de nós?
A quaresma é uma proposta de discernimento e viragem. Os instrumentos práticos que apresenta para que operemos esta transformação espiritual são de ordem prática, não abstrações: o jejum, a oração e esmola. O jejum, como explica o Papa Francisco na mensagem quaresmal deste ano, é uma experiência de privação voluntária (de alimento ou de um tipo de alimentos; de dependências de todo o género, pequenas e grandes; dos consumos fáceis a que nos permitimos, etc.), adotando um estilo assumidamente frugal que ajude a devolver-nos liberdade. A oração volta o nosso olhar para Deus, para as coisas grandes e amplia a nossa respiração. A esmola retira-nos do conforto autorreferencial. Torna objetivos a compaixão, a solidariedade e o cuidado que nos permitem passar da indiferença à responsabilidade pelos outros, sobretudo os mais vulneráveis.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 02.03.2021
Imagem: pexels-pixabay-67642.jpg
CFE 2021 - Fraternidade e diálogo: compromisso de amor
“Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade” (Ef 2,14a)
Pe. Geraldo De Mori SJ
A Igreja Católica, junto com várias Igrejas cristãs membros do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), participam, na quaresma deste ano de 2021, de mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). Paradoxalmente, o que está em jogo nesta CFE, a fraternidade e o diálogo, é posto rudemente à prova pelas polêmicas desencadeadas nas últimas semanas por diversos grupos, dentro e fora da Igreja, semeando confusão, escândalo e desorientação na cabeça dos fiéis e das pessoas que de fora seguem as discussões acaloradas contra e a favor da CFE de 2021. Este texto não tem a pretensão de “jogar mais lenha na fogueira”, mas quer ser uma contribuição no aprofundamento da intenção profunda do tema escolhido para preparar-se para celebrar o “grande mistério da fé” cristã, neste ano: a paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.
Já há alguns anos o mundo e o Brasil experimentam um processo de polarização de origem política, social, cultural e religiosa. Sob muitos pontos de vista, discordar é constitutivo da existência humana. De fato, a dissenção é a assinatura da diferença e, neste sentido, é extremamente positiva. São muitas as diferenças a partir das quais há discordância nos grupos humanos: sociais (ricos e pobres), gênero (homem e mulher), étnicas (brancos, negros, amarelos), religiosas (cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, tradições religiosas afro e ameríndias), familiares (pais, filhos, irmãos). Essas discordâncias fazem surgir a originalidade e a particularidade, e isso, em si, não é negativo, pois pode aportar uma nova perspectiva a determinado debate ou ponto de vista. Nem sempre, porém, a diferença, com as discordâncias que suscita, é experimentada como enriquecimento, sendo muitas vezes vivida como oposição e ameaça, tornando-se então rejeição, intolerância e violência, como o atesta a dramática história da humanidade.
Certos períodos da história humana são mais acolhedores das discordâncias introduzidas pela diferença e outros mais intolerantes. A primeira metade do século XX, por exemplo, foi marcada pelas guerras mundiais que eliminaram milhões de pessoas em nome de interesses de todo tipo (étnicos, ideológicos, econômicos etc.). Já na segunda metade desse mesmo século, parecia que a abertura a acolher a diferença havia vencido. Contudo, desde que ingressamos no século XXI, vivemos várias “guerras aos pedaços”, como tão bem se expressa o Papa Francisco. Essas guerras não se reduzem apenas aos conflitos entre nações, grupos étnicos e religiosos, mas se introduziram no coração mesmo das sociedades plurais e hipertecnológicas que compõem boa parte do mundo atual. Somos muitas vezes seus promotores ou difusores, por meio das redes sociais e das campanhas de todo tipo que buscam tornar o outro inimigo porque não pensa como nós.
Em grande parte, a última encíclica do Papa, Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, quer ajudar os cristãos e todas as pessoas de boa vontade a mergulharem na riqueza que é a diferença, com todas as discordâncias e ameaças que pode representar, apontando o caminho que conduz à sua acolhida e ao enriquecimento mútuo que pode provocar. Digno de nota nessa encíclica, que também se encontra no tema e no lema da CFE de 2021, é o texto bíblico a partir do qual o Papa busca aprofundar o tema da fraternidade e da amizade social: a parábola do bom samaritano. O próximo do homem espoliado e jogado à beira do caminho, segundo a resposta do doutor da lei à pergunta de Jesus, foi aquele que “usou de misericórdia com ele” (Lc 10,37). Esse texto é fundamental para se pensar o incômodo das inúmeras discordâncias suscitadas pela diferença do outro.
No Texto Base da CFE de 2021, o lema remete a Ef 2,14a: “Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade”. Nessa passagem, Paulo recorda o “muro” construído no templo de Jerusalém, que separava o espaço reservado aos pagãos (gentios) do espaço reservado aos judeus. Segundo o Apóstolo, em Cristo esse muro foi derrubado, do que estava dividido ele fez uma unidade. Em Gl 3,27, “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus”, Paulo é ainda mais radical. Ele evoca não só a diferença religiosa, como a que aparece na parábola do Bom Samaritano, que é a base bíblica da encíclica do Papa Francisco, mas também a diferença social (escravo e livre) e de gênero (homem e mulher), mostrando como o ter sido revestido de Cristo pelo batismo, provoca uma mudança radical, que elimina tudo o que na diferença é motivo de separação, ódio, violência, guerra, intolerância, inimizade.
Só nos enriquecemos com as discordâncias da diferença se nos abrirmos ao diálogo. Este é o convite da CFE de 2021. Portanto, mais que nos deixar “distrair” pelos falsos argumentos que pretendem salvar uma suposta “catolicidade” da fé, urge, nesse tempo de quaresma, acolher o convite ao diálogo. A verdadeira fraternidade só é possível se nos abrirmos à acolhida daquilo que o outro possui como próprio, único, que me é oferecido como dom, da mesma maneira que eu, ao entrar em diálogo com o outro, me torno oferenda para que ele possa acolher-me e enriquecer-se com aquilo que lhe ofereço.
O caminho do diálogo não é, porém, fácil. Todos sabemos o quanto é difícil “abrir mão” do que Santo Inácio de Loyola chama do “próprio querer e interesse”. Sob muitos pontos de vista queremos impor nossa opinião, nosso ponto de vista, nosso jeito de ser e de fazer. Nem sempre estamos dispostos a viver no cotidiano os processos implicados no verdadeiro diálogo, temos muita dificuldade de “dar o braço a torcer”. Cientes disso, as igrejas cristãs que fazem parte do CONIC, inserem a dinâmica do diálogo na conversão, para a qual esse tempo da quaresma nos convida, preparando-nos para a celebração do mistério pascal, no qual Cristo reconciliou consigo o que estava dividido.
Oxalá possamos aproveitar a oportunidade única que nos é dada com essa CFE, destruindo os muitos muros que nos separam e criam inimizades e construindo espaços de reconhecimento e enriquecimento mútuos, nos quais experimentamos o sentido da paz!
Pe. Geraldo de Mori SJ
17.02.2021
In: site da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de BH
A dúvida é um extraordinário patrimônio humano partilhado por nós todos. A etimologia latina da palavra dúbium reconduz-nos ao termo “duo”, dois. E também no sânscrito ou no grego a semântica é a mesma. Podemos dizer que existe a dúvida, porque existem duas possibilidades de interpretação, por vezes dolorosamente contrárias entre si. Existe o sim e o não, a noite e o dia, o claro e o escuro, o nítido e o fosco, o verso e o reverso. E essa dualidade costura de modo universal a humanidade de que somos feitos. Por um lado, constatamos em nós a aspiração a uma unidade, a uma empatia que nos avizinhe do que amamos de modo irrevogável, que nos permita realizar uma experiência de inteireza e comunhão. Por outro, percebemos que a nossa existência se debate continuamente com dualidades, dentro e fora de si. Pode ser que a sentença do Livro do Eclesiastes esteja certa: “Deus criou-nos simples e diretos, mas nós complicamos tudo” (Ecl 7:29). O que constatamos, porém, é que nos descobrimos e maturamos numa viagem que compreende incertezas, ambivalências, ambiguidades, hiatos, distâncias e interrogações. E que nos obriga a todos a aprofundar o que seja a dúvida.
A filosofia, a ciência e o pensamento em geral devem uma parte significativa do seu desenvolvimento à dúvida, pois ela é um dos motores de busca internos mais ancestrais que o ser humano conhece. O teólogo e filósofo medieval Pedro Abelardo (séc. XII) dizia: “Duvidando chegamos à necessidade da procura, e procurando percebemos a verdade.” Quer dizer, a dúvida não é um ponto de chegada no qual fixamos convicção e morada, mas é sim um instrumental desafio ao nomadismo do espírito, à realização de um percurso indagativo, uma tentativa de aproximação à verdade que, da nossa parte, está sempre em curso e nunca está completa.
Na sua lição inaugural como professor no Collège de France, Roland Barthes recordou que “há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: a isso se chama pesquisar”. “O que não se sabe” é o território para onde a dúvida — mas, do mesmo modo, também a fé, também a sabedoria ou o amor — nos reenviam, por uma operação de descolagem que não está longe, por exemplo, daquilo que no léxico do cristianismo se chama quenosis, essa espécie de subversão que acontece pela experiência voluntária do esvaziamento. Como está escrito na Carta de São Paulo aos Filipenses, Cristo sendo de condição divina esvaziou-se da forma de Deus para se tornar semelhante aos homens, e não só dos homens de bem, mas para assumir na carne a humanidade desprezada dos últimos (Fil 2: 1-11). A dúvida, à sua maneira, é também um precioso “operador quenótico” com o qual nos precisamos reconciliar, lendo-a não apenas como demolição, mas como relançamento do caminho.
É importante sublinhar que o património da dúvida tem sido enriquecido tanto pelos não-crentes como pelos crentes. Não me esqueço da maneira franca e iluminante como o poeta italiano Tonino Guerra, de quem tive a felicidade de ser amigo, se definia “um não-crente com dúvidas”. Nem daquilo que escreveu o monge trapista Thomas Merton: “O crente que não experimentou jamais a dúvida não se pode dizer um crente. Porque a fé não é propriamente a remoção da dúvida... A dúvida só se vence atravessando-a.” Na verdade, a dúvida não é a linha divisória ou a fronteira que separa a descrença da crença. Muitas vezes é um hífen, o traço de união, a zona enigmática de contato que nos revela a todos de mãos vazias diante da vastidão do mistério. Embora, é claro, a interpretação desse vazio possa ser muito diferente.
José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 30.01.2021
Imagem: pexels.com/Foto de Aleks Magnusson
- A vida humana é o valor supremo e nada é mais importante do que ela.
- A saúde é a realidade mais valiosa para o nosso bem-estar e qualidade de vida.
- Somos todos feitos da mesma matéria e todos estamos sujeitos à doença e à morte.
- Parar é importante para refletirmos nas coisas verdadeiramente importantes.
- É essencial termos consciência da vulnerabilidade das pessoas mais idosas.
- É importante viajar rumo ao nosso interior, na descoberta do nosso ser mais profundo.
- O tempo é um bem precioso que pode e deve ser sempre bem aproveitado.
- O otimismo e o sentido de humor são armas para vencer as adversidades.
- Os médicos, enfermeiros e instituições de saúde são imprescindíveis para a sociedade.
- Os verdadeiros heróis são aqueles que tudo fazem para dar vida aos demais.
- Abraçar as pessoas é muito importante, faz-nos bem e humaniza-nos.
- Sorrir é essencial para aproximar as pessoas e tornar a vida mais bonita e colorida.
- Muitas vezes, a melhor maneira de amar e ajudar uma pessoa é não estar perto dela.
- Não conseguimos viver sem amigos e fazemos tudo para nos relacionarmos com eles.
- São fundamentais as iniciativas de solidariedade a favor das pessoas mais vulneráveis.
- A humanidade vive num ritmo elevadíssimo e é urgente desacelerar.
- Podemos viver bem com menos bens materiais e com mais afetos.
- Toda a humanidade está no mesmo barco e somos responsáveis uns pelos outros.
- A globalização e a interdependência dos povos são uma realidade incontestável.
- Temos uma enorme capacidade de adaptação, empreendedorismo e criatividade.
- A nossa casa será sempre o nosso refúgio e o melhor lugar do mundo.
- A nossa família, com as suas virtudes e defeitos, é muito importante para nós.
- A oração une as famílias de todo o mundo na fé, na esperança e no amor.
- O trabalho doméstico e a participação de todos nas tarefas do lar são fundamentais.
- É bom e necessário ter mais tempo para as brincadeiras entre pais, filhos e irmãos.
- Só Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida nos pode verdadeiramente salvar.
- É ótimo fazer coisas em família: conversar, ver séries, cozinhar, cuidar da casa, etc.
- É bom poder ter mais tempo para ler, escrever, pesquisar, aprender, jogar, etc.
- É estimulante a oportunidade de passear e conhecer melhor a nossa terra.
- Deus é o princípio e o fim de todas as coisas e só Ele confere sentido à existência.
- Informaticamente, as empresas adaptaram-se, reinventaram-se e modernizaram-se.
- As escolas, empresas e instituições adotaram formas de trabalho e conexões virtuais.
- O teletrabalho, os eventos online e a gestão à distância têm aspetos muito positivos.
- A Ciência é fundamental para a vida das pessoas e para o progresso da humanidade.
- Os serviços de compras e pagamentos online e de entrega ao domicílio são ótimos.
- Há coisas que se podem muito bem fazer sem tanta burocracia e deslocações.
- Faz bem à nossa economia comprar e consumir preferencialmente coisas nacionais.
- Os Meios de Comunicação Social são fundamentais para a vida em sociedade.
- A diminuição da emissão de gases poluentes é muito importante para o meio ambiente.
- A natureza recupera o seu esplendor sem a intervenção e presença do ser humano.
- A máscara desafia a olharmo-nos nos olhos e a falarmos e sorrirmos com eles.
- A máscara convida-nos a calar a boca e a pensar mais antes de falarmos.
- A máscara ensina-nos a amar com o coração e não com os lábios.
- A colocação da máscara nas orelhas lembra-nos que devemos escutar mais os outros.
- A desinfeção das mãos é decisiva, mas há que eliminar o vírus do egoísmo do coração.
- É importante lavar as mãos, mas é ainda mais importante limpar a consciência.
- Também é importante manter uma distância de segurança das pessoas maldosas.
- O recolhimento domiciliário também nos ajuda a pensar nas epidemias interiores.
- A etiqueta respiratória é também não infetarmos os outros com mentiras e ofensas.
- O vírus do Amor é muito mais poderoso e contagiante do que qualquer pandemia.
Paulo Costa
In: imissio.net
27.01.2021
Diante das preocupações do tempo presente, o que fazer?
Antes de mais, urge que façamos uma distinção clara entre o que está dentro da nossa responsabilidade e o que está fora.
O que está dentro da nossa responsabilidade é para assumir.
O que está fora da nossa responsabilidade é para largar.
É uma questão de higiene e disciplina - mental e espiritual.
Essencial para manter a sanidade em tempos 'insanos'.
Na prática, precisamos de abrir mão de ideias fixas, apegos e expetativas; precisamos de admitir que a vida é muito (muito, muito, muito) maior do que nós; finalmente, precisamos de tomar a responsabilidade por aquilo que realmente depende de nós, aquilo a que somos realmente chamados a dar resposta.
Imersos nesse processo, podemos então relaxar.
Porque é isso importante? Porque quando relaxamos é quando estamos mais disponíveis para nos darmos por inteiro - a nós próprios, aos outros, à nossa missão neste mundo.
Há lá responsabilidade maior do que essa?
João Delicado
In: verparalemdolhar
imagem: pexels.com/pexels-jaymantri-2909
As personagens da narrativa (João 1,35-42): um João de olhos penetrantes; dois discípulos maravilhosos, que não estão nem confortáveis nem satisfeitos, à sombra do maior profeta do tempo, mas que se aventuram por caminhos desconhecidos, atrás de um jovem rabi de quem ignoram tudo, exceto uma imagem fulgurante: eis o Cordeiro de Deus!
Uma narrativa que perfuma de liberdade e de coragem, na qual estão encastoadas as primeiras palavras de Jesus: que procurais? Assim ao longo do rio; assim, três anos depois, no jardim: mulher, quem procuras?» Sempre o mesmo verbo, aquele que nos define: somos buscadores do ouro nascidos do sopro do Espírito.
Que procurais? O Mestre começa pondo-se à escuta, não quer nem impor nem doutrinar, serão os dois jovens a ditar a agenda. A pergunta é como um anzol lançado para dentro deles (a forma do ponto de interrogação evoca um anzol revirado), que desce ao íntimo a prender, a mostrar à luz coisas ocultas.
Jesus, com esta pergunta, põe as suas mãos santas no tecido profundo e vivo da pessoa, que é o desejo: o que desejais verdadeiramente?; qual é o vosso desejo mais forte? Palavras que são «como uma mão que toma as entranhas e te faz dar à luz».
Jesus, mestre do desejo, exegeta e intérprete do coração, pergunta a cada um: que fome torna viva a tua vida? De que sonhos caminhas atrás? E não pede renúncias ou sacrifícios, nem imolações sobre o altar do dever, mas reentrar em si, regressar ao coração, olhar para o que acontece no espaço vital, guardar aquilo que se move e germina no íntimo. Pede a cada um, são palavras de S. Bernardo, encosta os lábios à fonte do coração e bebe.
Rabi, onde moras? Vinde e vede. O Mestre mostra-nos que o anúncio cristão, antes de se palavras, é feito de olhares, testemunhos, experiências, encontros, proximidade. Numa palavra, vida. E é isso que Jesus veio trazer, não teorias, mas vida em plenitude (cf. João 10,10).
E vão com Ele: a conversão é deixar a segurança de hoje para o futuro aberto de Jesus; passar de Deus como dever a Deus como desejo e espanto. Milhões de pessoas desejam, sonham poder passar o resto de vida de pijama, no sofá de casa. Talvez isto seja o pior que nos possa acontecer: sentirmo-nos chegados, permanecer imóveis.
Ao contrário, os dois discípulos, aqueles dos primeiros passos cristãos, foram formados, treinados, ensinados por João Batista, o profeta rochoso e selvático, a não parar, a andar e a andar, em busca do êxodo de Deus. Como eles, feliz o homem, feliz a mulher que tem caminhos no coração (cf. Salmo 83,6).
Enzo Bianchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 14.01.2021 no SNPC
Um modo para descrever a estranheza e a dor, mas também a oportunidade deste ano das nossas vidas é, por exemplo, este: constatar a importância que, de repente, passaram a ter os números. Os meses deste ano interminável trouxeram essa novidade. Os acontecimentos grandes ou pequenos do mundo, os fatos da nossa vida pessoal, quaisquer que eles fossem, vimo-los perfurados pelo zumbido dos números. Dentro de nós, a impressão que tantas vezes tivemos é a de que os dias não se contaram por palavras ou por imagens, como estávamos habituados, mas sobretudo por números. Números desconhecidos, aguçados, trémulos, foscos, distópicos. Números que nos engoliam no seu ventre confuso, no seu universo sempre mais dilatado à medida que os tentávamos explicar, à medida que se multiplicavam os gráficos comparativos ou a infinidade de variantes e opiniões. Mas, ao mesmo tempo, números que enigmaticamente nos chamavam — e nos chamam — à atenção para que vejamos como a vida se declina também em medidas exatas, em concretos números. E números que não narram apenas o ziguezague de testes efetuados, de contagiados, de curados, de doentes em terapia intensiva ou de vítimas. Que não relatam apenas vulnerabilidade e restrições, dias de emergência e confinamento, empobrecimento e vida adiada. Mas falam também do primado reconhecido à vida, da resiliência que descobrimos possuir, do empenho, da dádiva de tantos, do reencontro conosco próprios, da reconstrução e do cuidado. O que quer que venha a seguir não pode ser um mero virar de página. De um modo que não pensávamos, o futuro entrou-nos pela porta.
Esperançosa frase essa que escreveu Albert Camus em tempos também nada fáceis: “No meio dos flagelos aprendemos que existe nos seres humanos mais coisas para admirar do que para desprezar.” É verdade: talvez não voltemos simplesmente ao mundo de antes. Que é, como quem diz: talvez não nos tenhamos tornado piores. Talvez a máscara não se nos cole definitivamente ao rosto. Talvez o distanciamento seja apenas uma forçada esquadria externa que o nosso interior não confirma, bem pelo contrário. Talvez ativemos a nossa responsabilidade por uma ecologia integral, celebrando um novo contrato social com a Criação. Talvez investamos em encontrar equilíbrios mais satisfatórios: entre o lucro e o dom, entre o crescimento e a sustentabilidade, entre o individual e o comunitário, entre o direito a usar e o dever de reutilizar, entre o furor da tecnologia digital e a natureza artesanal da nossa humanidade e do que a ela mais profundamente diz respeito. Talvez aprendamos a interagir de modo mais inteligente com a complexidade do mundo, mas prossigamos também mais disponíveis a nos maravilharmos com a sua desarmante simplicidade. Talvez que entre as competências que mais passemos a treinar estejam a gentileza e a fraternidade. Talvez não deixemos as escolas como realidades isoladas, mas as encaremos como centros de uma ampla rede implicada num pacto educativo de futuro. Talvez, tão claramente como percebemos o lugar da educação física ou da científica, percebamos o lugar da educação emocional e espiritual. Talvez, por fim, troquemos o conflito pela empatia. Talvez, quando pronunciemos o verbo conectar, este já tenha ganho o sentido de uma interação presente e criativa, a 360 graus com a realidade, e não apenas o de estar imobilizado diante de um ecrã. Talvez, finalmente, nos preocupemos mais com o que iremos transmitir do que com aquilo que vamos herdar.
Penso naquela passagem do salmo bíblico, que propõe: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que guiemos o nosso coração na sabedoria.” Termos contado tão dramaticamente os dias deste ano que termina, a que sabedoria nos conduzirá?
Dom José Tolentino Mendonça
31.12.2020 in: imissio.net
ESCOLHE, POIS, A VIDA!
Nestes dias, vários grupos católicos têm tido a oportunidade de meditar sobre a dignidade radical da vida, sempre compartilhada com os outros e, para a fé, dom de Deus:
- A vida ainda invisível de pessoas nascituras;
- A vida ameaçada de pessoas migrantes e refugiadas;
- A vida fragilizada de pessoas enfermas ou idosas;
- A vida ferida de pessoas indígenas e quilombolas;
- A vida desviada de pessoas que cometeram crimes graves.
Alguns de nós somos mais sensíveis a algumas dessas dimensões; outros, mais sensíveis a outras. Mas em todos esses casos, nosso senso de humanidade cresce quando não fazemos recair sobre os mais fracos e pobres o pesado fardo da violência de nossas sociedades e, também, quando renunciamos a entrar numa lógica de vingança e de autodefesa.
Deixo aqui um trecho da Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, que pode nos ajudar a expandir este desejo de cuidar melhor da vida de cada pessoa humana:
“A defesa do inocente nascituro deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento”.
“Igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”. (Francisco, Gaudete et exsultate, 101)
Pe. Francys Silvestrini Adão SJ
30.12.2020
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Nesta noite, cumpre-se a grande profecia de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Is 9, 5).
Um filho nos foi dado. Com frequência se ouve dizer que a maior alegria da vida é o nascimento duma criança. É algo de extraordinário, que muda tudo, desencadeia energias inesperadas e faz ultrapassar fadigas, incómodos e noites sem dormir, porque traz uma grande felicidade na posse da qual nada parece pesar. Assim é o Natal: o nascimento de Jesus é a novidade que nos permite renascer dentro, cada ano, encontrando n’Ele força para enfrentar todas as provações. Sim, porque Jesus nasce para nós: para mim, para ti, para todos e cada um de nós. A preposição «para» reaparece várias vezes nesta noite santa: «um menino nasceu para nós», profetizou Isaías; «hoje nasceu para nós o Salvador», repetimos no Salmo Responsorial; Jesus «entregou-Se por nós» (Tit 2, 14), proclamou São Paulo; e, no Evangelho, o anjo anunciou «hoje nasceu para vós um Salvador» (Lc 2, 11). Para mim, para vós…
Mas, esta locução «para nós» que nos quer dizer? Que o Filho de Deus, o Bendito por natureza, vem fazer-nos filhos benditos por graça. Sim, Deus vem ao mundo como filho para nos tornar filhos de Deus. Que dom maravilhoso! Hoje Deus deixa-nos maravilhados, ao dizer a cada um de nós: «Tu és uma maravilha». Irmã, irmão, não desanimes! Estás tentado a sentir-te como um erro? Deus diz-te: «Não é verdade! És meu filho». Tens a sensação de não estar à altura, temor de ser inapto, medo de não sair do túnel da provação? Deus diz-te: «Coragem! Estou contigo». Não to diz com palavras, mas fazendo-Se filho como tu e por ti, para te lembrar o ponto de partida de cada renascimento teu: reconhecer-te filho de Deus, filha de Deus. Este é o ponto de partida de qualquer renascimento. Este é o coração indestrutível da nossa esperança, o núcleo incandescente que sustenta a existência: por baixo das nossas qualidades e defeitos, mais forte do que as feridas e fracassos do passado, os temores e ansiedades face ao futuro, está esta verdade: somos filhos amados. E o amor de Deus por nós não depende nem dependerá jamais de nós: é amor gratuito. Esta noite não encontra outra explicação, senão na graça. Tudo é graça. O dom é gratuito, sem mérito algum da nossa parte, pura graça. Esta noite «manifestou-se – disse-nos São Paulo – a graça de Deus» (Tit 2, 11). Nada é mais precioso!
Um filho nos foi dado. O Pai não nos deu uma coisa qualquer, mas o próprio Filho unigénito, que é toda a sua alegria. Todavia, ao considerarmos a ingratidão do homem para com Deus e a injustiça feita a tantos dos nossos irmãos, surge uma dúvida: o Senhor terá feito bem em dar-nos tanto? E fará bem em confiar ainda em nós? Não estará Ele a sobrestimar-nos? Sim, sobrestima-nos; e fá-lo porque nos ama a preço da sua vida. Não consegue deixar de nos amar. É feito assim, tão diferente de nós. Sempre nos ama, e com uma amizade maior de quanta possamos ter a nós mesmos. É o seu segredo para entrar no nosso coração. Deus sabe que a única maneira de nos salvar, de nos curar por dentro, é amar-nos. Não há outra maneira! Sabe que só melhoramos acolhendo o seu amor incansável, que não muda, mas muda-nos a nós. Só o amor de Jesus transforma a vida, cura as feridas mais profundas, livra do círculo vicioso insatisfação, irritação e lamento.
Um filho nos foi dado. Na pobre manjedoura dum lúgubre estábulo, está precisamente o Filho de Deus. E aqui levanta-se outra questão: porque veio Ele à luz durante a noite, sem um alojamento digno, na pobreza e enjeitado, quando merecia nascer como o maior rei no mais lindo dos palácios? Porquê? Para nos fazer compreender até onde chega o seu amor pela nossa condição humana: até tocar com o seu amor concreto a nossa pior miséria. O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que todo o descartado é filho de Deus. Veio ao mundo como vem ao mundo uma criança débil e frágil, para podermos acolher com ternura as nossas fraquezas. E para nos fazer descobrir uma coisa importante: como em Belém, também conosco Deus gosta de fazer grandes coisas através das nossas pobrezas. Colocou toda a nossa salvação na manjedoura dum estábulo, sem temer as nossas pobrezas. Deixemos que a sua misericórdia transforme as nossas misérias!
Eis o que quer dizer um filho nasceu para nós. Mas há ainda um «para» que o anjo disse aos pastores: «Isto servirá de sinal para vós: encontrareis um menino (…) deitado numa manjedoura» (Lc 2, 12). Este sinal – o Menino na manjedoura – é também para nós, para nos orientar na vida. Em Belém, que significa «casa do pão», Deus está numa manjedoura, como se nos quisesse lembrar que, para viver, precisamos d’Ele como de pão para a boca. Precisamos de nos deixar permear pelo seu amor gratuito, incansável, concreto. Mas quantas vezes, famintos de divertimento, sucesso e mundanidade, nutrimos a vida com alimentos que não saciam e deixam o vazio dentro! Disto mesmo Se lamentava o Senhor, pela boca do profeta Isaías: enquanto o boi e o jumento conhecem a sua manjedoura, nós, seu povo, não O conhecemos a Ele, fonte da nossa vida (cf. Is 1, 2-3). É verdade: insaciáveis de ter, atiramo-nos para muitas manjedouras vãs, esquecendo-nos da manjedoura de Belém. Esta manjedoura, pobre de tudo mas rica de amor, ensina que o alimento da vida é deixar-se amar por Deus e amar os outros. Dá-nos o exemplo Jesus: Ele, o Verbo de Deus, é infante; não fala, mas oferece a vida. Nós, ao contrário, falamos muito, mas frequentemente somos analfabetos em bondade.
Um filho nos foi dado. Quem tem uma criança pequena, sabe quanto amor e paciência são necessários. É preciso alimentá-la, cuidar dela, limpá-la, ocupar-se da sua fragilidade e das suas necessidades, muitas vezes difíceis de compreender. Um filho faz-nos sentir amados, mas ensina também a amar. Deus nasceu menino para nos impelir a cuidar dos outros. Os seus ternos gemidos fazem-nos compreender como tantos dos nossos caprichos são inúteis. E temos tantos! O seu amor desarmado e desarmante lembra-nos que o tempo de que dispomos não serve para nos lamentarmos, mas para consolar as lágrimas de quem sofre. Deus vem habitar perto de nós, pobre e necessitado, para nos dizer que, servindo aos pobres, amá-Lo-emos a Ele. Desde aquela noite, como escreveu uma poetisa, «a residência de Deus é próxima da minha. O mobiliário é o amor» (E. Dickinson, Poems, XVII).
Um filho nos foi dado. Sois Vós, Jesus, o Filho que me torna filho. Amais-me como sou, não como eu me sonho ser. Bem o sei! Abraçando-Vos, Menino da manjedoura, reabraço a minha vida. Acolhendo-Vos, Pão de vida, também eu quero dar a minha vida. Vós que me salvais, ensinai-me a servir. Vós que não me deixais sozinho, ajudai-me a consolar os vossos irmãos, porque, a partir desta noite – como Vós sabeis – são todos meus irmãos.
Papa Francisco 24.12.2020
Imagem: site do Vaticano
Rezo, meu Deus, esta vida, que tantas vezes experimentamos como um caos para o qual não existem nomes possíveis.
Sinto-me como uma criança quando, na escuridão da noite, só o grito lhe permanece. Mas o grito é a forma frágil e intensa com que a nossa vida sai em busca de socorro.
Como uma criança, Senhor, sinto-me exposto a coisas maiores que eu, à mercê de surpresas que não controlo. Então, grito-te,
Ensina-me, Senhor, que nascemos também neste grito, que o teu amor sabe recolher transformando-o em chamamento, em desejo de presença, em ocasião para o abandono confiante à tua vontade.
Ajuda-me a descobrir aquilo que ainda não vejo.
Aproxima, em mim, a lama à estrela, o coração sem norte à sua órbita viva, a alegria introvertida à alegria dirigida para o exterior, o meu pão ao pão de todos.
Explica-me que uma existência respira porque é iluminada por aquilo que não espera.
Na verdade, abrimos os olhos todos os dias, mas não quanto seria suficiente. Vemos, descontentes, a imperfeição e a pedra. Olhamos com desgosto – em nós e nos outros – o avesso e a costura. E não nos damos conta de que poder observar o avesso com amor torna-se uma preciosa aprendizagem do caminho (e de um caminho que conduz ao presépio).
Porque aquilo, exatamente aquilo que hoje nós percebemos como pedra, Deus vem ensinar-nos a transformá-lo em estrela.
Card. José Tolentino Mendonça
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem:
Publicado em 24.12.2020 no SNPC
Erra quem pensa que nascemos uma só vez. Para quem quer viver, a vida está repleta de nascimentos.
Nascemos muitas vezes durante a infância, quando os olhos se abrem em alegria e maravilha.
Nascemos nas viagens sem mapa nos quais a juventude se arrisca.
Nascemos na sementeira da vida adulta, amadurecendo, entre invernos e primaveras, a misteriosa transformação que coloca no caule a flor, e dentro da flor o perfume do fruto.
Nascemos muitas vezes naquela idade avançada em que as atividades não cessam, mas reconciliam-se com os vínculos interiores e os caminhos que tinham sido adiados.
Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.
Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de certas lágrimas.
Nascemos na oração e no dom.
Nascemos no perdão e no conflito.
Nascemos no silêncio ou iluminados por uma palavra.
Nascemos no levar ao termo um compromisso, e na partilha.
Nascemos nos gestos ou para além dos gestos.
Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.
Por isso, peço-te, Jesus, que me ensines a nascer:
quando as esperanças se rompem como coisas gastas;
quando me faltam as forças para o degrau seguinte, e hesito;
quando da semente parece que só recolho o vazio;
quando a insatisfação corrói também o espaço da alegria;
quando as mãos desaprenderam a transparente dança do dom.
Quando não sei abandonar-me em ti.
Não somos nós a preparar o presépio para Deus nascer, é Ele que nos prepara para nascermos
Ganharíamos muito em compreender porque é que as leituras bíblicas do tempo do Advento e do Natal insistem na dimensão visiva. Nós vemos o próprio Deus, o Deus transcendente, fazer-se próximo, e este é o motivo da alegria. Como dirá o prólogo do Evangelho de João: «Contemplámos a sua glória».
Com efeito, o Natal é a antiabstração, é o oposto das generalizações vagas. Cada um de nós, com as interrogações que são as suas, com a serenidade ou o tumulto que traz dentro de si, com a situação concreta de vida que experimenta, é chamado a ver Deus. É chamado a contemplá-lo naquele Deus conosco, naquele nascituro em carne e osso, naquele Filho que nos é dado.
Em Jesus de Nazaré, Deus não vem de maneira indefinida: Ele vem ao encontro de mim, de ti, de cada ser humano, dando-nos, na fé, a possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus.
A mulheres e homens frágeis, imperfeitos e atormentados como nós, Deus oferece a possibilidade de ser filhos seus. Ou seja, de viver uma vida que não seja unicamente a expressão da nossa carne e do nosso sangue, mas que se revele como consequência do impacto da vida divina.
Neste sentido, não somos nós a fazer o presépio, para que Deus nele nasça: é Deus que prepara as condições de um nascimento para cada um de nós.
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