UMA VIDA CONSUMADA FAZ FECUNDA A MORTE
“A tragédia não é quando um homem morre; a tragédia é aquilo que morredentro de um homem enquanto ele ainda está vivo” (Albert Schweitzer)
O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer. O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, im-pulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.
A vida tem fome e sede de significado. A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.- Por quê vivemos? Para quê vivemos? Quanto vale uma vida e o quê vale na vida?- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões, gestos, lições, projetos, idéias e sentimentos?Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”. Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.
Por trás do ritmo acelerado e stressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motiva-ções para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível. “Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capa-cidade de amar, de vibrar, de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, es-quivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade” ( C. Drummond de Andrade)
A vida humana é fecunda, é potencial humano, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente espe-rando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transpa-recer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere. O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade. Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente-se a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente, acumulando o mínimo de arrependimen-to possível. Paul Theroux disse que a morte é tão dolorosa de se contemplar que nos faz “amar a vida e valorizá-la com tal paixão que ela poderia ser a causa verdadeira de toda felicidade e de toda arte”.A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”.Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamen-tos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.
E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão...Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros. Este esva-ziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude.O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.A vida aumenta quando compartilha e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que o cuidado doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade da vida à medida que ela é entregue para dar vida a outros.
Texto bíblico: Jo. 12,20-33
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido. Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos para que os outros vivam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Terceira semana da Quaresma: Espaço para a autenticidade
Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?” (Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de uma primavera que não chegou a ser.
Não sei como vai rebentar em nós a primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.
Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?” (Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,2). Sem querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo, porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim, a uma apropriação.
É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o mistério pascal fala.
José Tolentino Mendonça
in: site do secretariado nacional da pastoral da cultura de portugal
Jesus, na sua vida pública, nos revela que Deus não é propriedade de nenhuma religião ou sacerdócio e que ninguém pode reduzi-Lo a uma verdade única, porque Ele se mostra no amor mútuo e na entrega da própria vida. Ao mesmo tempo, Jesus denuncia o “deus” manipulado pelos representantes religiosos e que justificava os seus poderes sobre as consciências das pessoas.
Os fariseus e sacerdotes queriam um Deus e um céu que não se contaminassem com os deserdados desta terra; queriam um Templo como lugar de pureza e de perfeição, legitimado por uma ordem que se constrói sobre o sofrimento e a exclusão. Eles não queriam um Templo que fosse a casa dos impuros, dos abatidos e excluídos, dos encurvados e oprimidos, dos leprosos, cegos e coxos...
O Templo, como não pode ser o lar dos filhos e filhas afligidos da casa de Israel, será destruído.
O lugar da Presença que alimentava as esperanças de Israel se converteu em cova de bandidos; o Templo passou a ser gerido pelos traficantes da dor, aqueles que fazem sofrer em nome de Deus. Tal denúncia desestabilizou o sistema religioso sobre o qual a instituição sacerdotal se sustentava.
Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua cons-ciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus.
O conflito de Jesus foi o conflito com o poder, mas o poder levado até sua raiz última: o “poder religi-oso”. Por isso, Jesus compreendeu que, para mudar o comportamento dos dirigentes do Templo, a pri-meira coisa a fazer era desmontar o “ídolo” que legitimava o poder autoritário daqueles que oprimiam o povo indefeso. No fundo, o que preocupava Jesus era o problema de “Deus”; e Deus não era como os dirigentes imaginavam e que estava de acordo com seus critérios e sua posição social.
Jesus desmontou o “seu deus” e atirou por terra “seus podres poderes”. Este é o círculo infernal que Jesus quis romper.
Templo de Jerusalém! Não ficará pedra sobre pedra. Jesus não quer que se negocie com a dor dos mais pobres e excluídos, os preferi-dos do Pai. Jesus não quer sangue, nem in-censo; quer compaixão, ternura, quer justiça, quer que o ser humano viva, e viva intensamente.
O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como representantes do divino.
O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres.
O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais divinos que sejam. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.
Este confronto de Jesus com os poderes religiosos ficou evidente na cena da “expulsão dos vendilhões do Templo”. Este é o momento mais tenso da atuação de Jesus: com seu gesto Ele atinge o centro do poder religioso, encarnado no Templo; Ele arremessa diretamente contra o Templo, pois este não dá frutos e nunca dará.
O Templo já não é mais a morada de Deus, pois Ele foi desalojado pelo poder sacerdotal. O Templo, o sacerdócio, a lei, não deram frutos libertadores para o ser humano Estão aí, secos e estéreis, e não servem para a realização humana; por isso, Jesus expulsa seus representantes
Jesus colocou o ser humano acima da Lei e diz “não” a uma aliança fundada no culto externo ou ritual.
Rompe com todo o ritualismo e legalismo anterior e nos oferece uma alternativa encarnada na vida. Não se trata mais de uma imposição baseada na Lei, mas algo que todos podemos experimentar.
Não se realiza no Templo, mas fora do Templo, em nossas casas abertas, em nossas ruas e estradas, onde todos têm acesso e a partilha criativa possibilita que todos tenham vida.
Jesus, literalmente, “virou as mesas”, e a nova mesa que Ele propõe está fora do Templo, aberta a todos. O “ser humano” é agora o centro desse culto, que consiste na entrega aos outros. Não é mais a Lei que impera, mas o amor; não é condenação, mas a acolhida e a compaixão. O templo é a própria pessoa que está acima da lei e do culto. A relação com Deus não necessita intermediários e a relação entre as pessoas é horizontal. “Outro Deus é possível”.
Há um traço na personalidade de Jesus que os Evangelhos destacam: Ele era um “transgressor”.
Rompeu com a família, afastou-se da vida normal que todos levavam, rompeu com as tradições de seu povo, violou a lei do sábado, não respeitou as hierarquias, a ordem estabelecida, revelou-se livre perante o Templo, o culto... Sua transgressão decorria da percepção de situações extremamente injustas vigentes na sociedade e das quais as primeiras vítimas eram os excluídos. Jesus optou por ficar do lado das vítimas.
Jesus ousou transgredir. E transgrediu fronteiras que pareciam intocáveis. Transgrediu o sábado e considerou a vida como prioridade. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc. 2,27). Transgrediu a Lei de Moisés e não permitiu que a mulher adúltera fosse apedrejada (Jo. 8,3-11). Transgrediu a prioridade do “sacrifício”.“Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt. 9,13).
Jesus transgrediu fronteiras judaicas e mostrou que o projeto de Deus ultrapassa limites geográficos.
Aquele “dia de entrada no Templo” foi uma autêntica manifestação de desafio; Jesus transgrediu ousadamente ao “expulsar os vendedores e cambistas” instalados no Templo. E essa foi a “sua hora”: desmascarar a manipulação e extorsão com as quais o poder religioso tinha oprimido o povo.
Quando os chefes religiosos perguntam a Jesus com que autoridade desafia o poder estabelecido, Ele responde: “Destruí este Templo e em três dias o reedificarei”. E o evangelista acrescenta: “Ele se referia à própria pessoa”.
O sujeito do culto não é mais o poder, mas a pessoa mesma.
O templo e a lei devem ficar submetidos e devem estar a serviço do ser humano; portanto, este não pode ser objeto de nenhuma manipulação.
Jesus diz que o autêntico templo de Deus é a pessoa e que esse templo não há quem o destrua. Ele revela que o ser humano é o grande valor querido por Deus, e que o sábado, a lei e o Templo são meios para facilitar a humanização; é a vida humana está revestida de sacralidade e não os altares, os templos e os costumes antigos.
Texto bíblico: Jo. 2,13-25
Na oração: As portas do “novo Templo”, que é Jesus, estão abertas para todos; ninguém está excluído.
Podem entrar nele os pecadores, os impuros, os excluídos, os marginalizados da religião... O Deus que habita em Jesus é de todos e para todos.
Somos também o “novo templo”, morada do Espírito, presença que alarga nosso interior para que todos possam ali ter acesso.
Quem são os “frequentadores” do seu “templo interior”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.03.2012
Dizem que no Brasil tudo só começa depois do carnaval. Embora o carnaval tenha acontecido mais cedo neste ano, as pessoas reclamam que o tempo está correndo demais. A verdade é que o dia continua tendo 24 horas. O que há é um descompasso entre o tempo interior e o exterior.
Já diziam os mais antigos: tempo é questão de preferência. O que dá sentido ao tempo vivido é justamente a atenção que damos ao nosso mundo interior. A maior parte das pessoas vive como se a vida interior não precisasse de tempo, esquecem que a vida de dentro se revela na de fora. Outras buscam meios mirabolantes de acessar a vida interior, nem percebem que tudo que nos é essencial Deus provê de forma abundante e gratuita: o ar, a água, o amor e o silêncio. A vida interior precisa de tempo para morar no silêncio. É aí que o sentido do tempo muda nossa história. Silêncio é mistério, é lugar de entrega e encontro. Silêncio é deitar no colo de Deus e deixar-se afagar. Como disse Pe. Libânio: “Deus-Pai é silêncio, Jesus é a palavra e o encontro é o Espírito Santo”. Escolher uma porção do seu tempo para se deixar ficar no silêncio é preferir entrar no compasso da vida plena que Deus nos dá a ficar no descompasso de uma vida sem sentido.
Para nós, cristãos, o tempo é precioso demais para passar sem ser percebido ou saboreado. “Deixa a vida me levar” não é opção de vida de cristão. Desejamos é ser conduzidos pelo Espírito Santo e, para isso, precisamos saborear a vida internamente para apreendermos tudo o que o Senhor quer nos revelar.
A quaresma é um tempo privilegiado para buscarmos, no deserto do nosso coração, a água viva que dá sentido à nossa vida. Deus marcou nosso tempo, separou o dia e a noite, reservou como tempo festivo os momentos de encontro. Tudo mais é espera do encontro. Mas é nessa espera que vamos colocando o verdadeiro sentido das coisas no lugar. No encontro se revelam os vários senhores que invadiram nosso coração e estão a tentar nos governar. Na espera voltamos o olhar para Aquele que é o nosso único Senhor, Jesus Cristo, e vamos arrumando novamente a casa do coração, com a ajuda do Espírito Santo.
Que possamos nos deixar demorar mais no deserto nessa quaresma, que nossos pés se esgotem nas areias áridas até que estejamos prontos para reconhecer que só em Deus podemos fixar nossas raízes.
Lilian Carvalho
08.03.2012
A EXPERIÊNCIA DO TABOR DES-VELA NOSSA IMAGEM VERDADEIRA
“Transfigurar-se é ascender a ladeira íngreme do Tabor até mergulhar a cabeça na nuvem do não-saber. É um aspirar sem querer, acreditar sem ver, esperar sem ter, dar-se sem possuir. É reduzir todos os pontos cardeais do ego ao seu núcleo central: o amor” (Frei Betto).
Todos os grandes personagens bíblicos fizeram sua experiência de Montanha (lugar de intimidade com Deus; de escuta e discernimento; lugar onde receberam uma “missão” e foram abençoados). Do alto da Montanha esta bênção vai se espalhando e atingindo a todos; experiência pessoal de alcance universal.Também Jesus, o homem dos “vales” (lugar do compromisso, serviço...) sabia reservar momentos de Montanha (comunhão e escuta do Pai); ali Ele busca sentido e força para a sua missão.
No Monte Tabor Ele deixa “trans-parecer” seu coração; diante do olhar assombrado dos discípulos Ele “des-vela” aquilo que a visão superficial não capta: Ele é todo compaixão, bondade, acolhida, amor...Jesus de Nazaré foi o homem que não pôs obstáculos ao Mistério para que se expressasse n’Ele; Ele foi pura transparência da Fonte originante, revelação do Rosto do Pai.
Como seguidores de Jesus, devemos saber criar em nossas vidas, espaço e momentos de Montanha (plenitude, silêncio, interioridade, escuta, discernimento); isso possibilita uma prática eficaz, um compromisso duradouro, uma decisão enraizada, uma presença transformadora nos “vale da vida”.Subir à Montanha nos possibilita ler os horizontes e perceber se estamos caminhando na direção certa; isso implica tomar distância do ritmo diário, descobrir novos caminhos e novas decisões...
A Montanha nos faz perceber (a partir do alto) certos aspectos do vale que passam desapercebidos.Permanecer no vale, sem ter momentos de Montanha, é fechar-se, cair na rotina, não perceber novos horizontes, não abrir a cabeça e o coração, não ampliar a visão das coisas, da realidade, da história...Nossa ação no vale deve ser fruto do discernimento acolhido na Montanha. A Montanha nos devolve ao vale com outra visão, outro dinamismo; a Montanha ilumina, dá sentido e sabor à nossa vida no vale.O vale é o lugar do compromisso, do trabalho, da construção... mas iluminado pela experiência da Montanha. Todo gesto no vale tem plenitude, tem ressonâncias... a partir da Montanha.A Montanha também nos revela que Deus está “trabalhando” no vale e nos impulsiona a “trabalhar” com Ele na mesma direção.
A Montanha não é lugar só do encontro íntimo com o Senhor, mas também lugar do encontro com o melhor de nós mesmos, nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber quem somos nós. Por isso a transfiguração é também descoberta do “eu”, da própria realidade pessoal, do Mistério que habita em nós. É nessa manifestação divina que “descobrimos a nós mesmos”. Começamos a descobrir o nosso ser (único, original, sagrado...) quando “mergulhamos” no misterioso relacionamento com Deus e quando permitimos que o “mistério experimentado” se torne fonte de nossa identidade.Nossa vocação é “trans-figurar-nos”, superar nossa própria figura, ir além de nossa aparência para captar nossa originalidade e riqueza interior, nosso “eu original”.
Essa é a nossa verdadeira identidade; em certo sentido, é como se recordássemos quem somos e, ao recordá-lo, iniciamos um caminho de volta à casa (as “três tendas”). “Voltar à casa” é deixar transparecer aquilo que é mais nobre em nós; é reconhecer que somos Plenitude que transborda, Fonte inesgotável de sonhos, criatividade, inspirações...Cair na conta de nossa condição de “filhos/as amados/as” equivale a reconhecer-nos como transfigurados. E é isso mesmo que se pode afirmar de cada ser humano: cada um de nós é “filho amado”, nascido daquela mesma Fonte e, ao mesmo tempo, transparência dela.
Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside o lado mais positivo da pessoa, que só uma experiência de transfiguração é capaz de des-velar.É aqui, onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
Trans-figurar é deixar trans-parecer toda essa riqueza interior. E isso não é fácil; normalmente cobrimos nossa verdade com máscaras ou com um papel que interpretamos. Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas, sem possibilidade de avaliação (ativismo, rotina, angústias, trabalho sem sentido; mundo fechado, sem horizontes, sem direção...)O cotidiano faz-se rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. Frequentemente vivemos o cotidiano com o anonimato que ele envolve; e isso nos des-figura, desumanizando-nos.Por debaixo somos... como realmente somos. Mas o ocultamos por medo de expor-nos aos outros, de não sermos compreendidos, de não valermos nada...; frequentemente preferimos ignorar partes de nós mesmos, apagar da consciência episódios pessoais; nosso “eu” se dissocia e se desintegra.
No entanto, a experiência do amor incondicional de Deus pode derrubar grossos muros, arrancar nossas máscaras, revelar-nos quanto valemos aos Seus olhos e dar-nos uma nova liberdade para sermos nós mesmos.Na Montanha somos olhados por Ele em profundidade e esse olhar revela nossa verdade mais original.Trata-se de um olhar de aceitação, de amor, que nos faz descobrir o quanto valemos, que nos chama à vida; que nos livra do mundo de sombras, medos e inseguranças; que nos faz descobrir o gosto de viver sem máscaras, como alguém respirando ar puro.
Nos caminhos das Montanhas, sentimo-nos livres de horários fixos, apegos, modas, propagandas, violências, normoses, incompreensões e intolerâncias, e aprendemos o serviço e a entrega incondicional aos outros. É a partir das Montanhas que devemos colocar as bases firmes para edificar uma cidade fraterna e livre. Na Montanha, nunca se conjugam os verbos: escravizar, desprezar, irritar, estafar, odiar, tiranizar, encadear, encarcerar, impôr, fazer calar, humilhar, não aceitar nem compartilhar...
Acima, sobre os cumes, brilha sempre o Sol, que queima os farisaismos, egoísmos, violências e injustiças, que costumam ser produtos da cidade.Subir uma Montanha exige força de vontade e esquecer-se da comodidade, droga atual que tanto debilita a colaboração, a solidariedade, a compreensão e a entrega, pedras angulares de toda sociedade livre.A experiência da Montanha não é para permanecermos aí, isolados e acomodados, mas para “descer” à vida cotidiana, com todos os seus desafios, e viver ali o que vimos, a partir de uma atitude de bondade, compaixão e serviço.
Texto bíblico: Mc. 9,2-10
Na oração:
- sentir como Deus nos conhece e nos ama como somos;
- quê máscaras você usa habitualmente? quê papéis você representa?
- como você se sente quando atua com essas máscaras?
A oração faz emergir à consciência uma nova imagem de nós mesmos e indica com o dedo uma área da nossa personalidade que necessita ser trans-figurada com criatividade; ela promove um desenvolvimento criativo, eliminando a distancia entre a imagem real e as falsas imagens que habitam o nosso interior.Através do encontro com o Senhor, no silêncio da montanha, a oração revela quem somos realmente, e amplia nossa vida para além de nossas pequenas fronteiras. Com efeito, orar é aproximar-nos da “verdade que nos faz livres”; livres para sermos “nós mesmos”, chegar a ser aquilo para o qual somos chamados a ser.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.03.2012
«E logo o espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás» (Marcos 1, 12).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do deserto. Para que o teu coração se deixe purificar. Da tentação de tudo possuir. Do egoísmo do não-compromisso. Da ganância do isolamento. Ou da onipotência de tudo realizar. E querer ser deus. E da ousadia de não saber esperar. E da certeza de possuir a verdade.
Pede à Quaresma que te mostre o caminho do deserto. Onde Jesus te dará o pão da Palavra e do silêncio. No deserto o coração saberá encontrar o silêncio que regenera e reinventa. No deserto o silêncio fará do teu coração uma fonte de onde pode jorrar a verdade de Deus.
«Seis dias depois, Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e os levou, sozinhos, para um lugar retirado sobre uma alta montanha. Ali foi transfigurado diante deles» (Marcos 9, 2).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. Para que ouses subir ao lugar do encontro com o Deus da vida e da história. Na montanha contemplarás o Rosto. E fixarás nele o olhar. E descobrirás nele o teu rosto. E contemplarás todos os horizontes. Os do teu coração e todos aqueles onde o humano se espraia em tantos desafios.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho da montanha. E ousarás descer para que o teu olhar de encantamento incendeie a vida por onde passas. E sejas sinal de ressurreição.
«Chegou, então a uma cidade da Samaria, chamada Sicar… Ali se achava a fonte de Jacob... Uma mulher da Samaria chegou para tirar água.» (cf. João 4, 5-7).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Sentado à beira desse lugar de encontros singulares está Alguém que te oferecerá água viva. Outrora uma samaritana deixou-se enamorar pelo olhar e pelo coração livre de um sedento. Também ela não ousou recusar dessa água que sacia todas as sedes.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do poço de Sicar. Para que Deus se sente contigo e te sacie. E o teu poço-coração possa recriar-se e ser fonte. E alimentar outras nascentes. Também as que teimam em não jorrar. E saciar todas as sedes e as de todos os que se cruzam com a borda do teu poço.
«Partiu, então, e foi ao encontro do seu pai. Ele ainda estava ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos» (Lucas 15, 20).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. O caminho para esse lugar onde a festa nunca termina. O caminho para esse lugar de onde saíste para viver a vida do sem rumo e do sem sentido. Porque querias ser livre. Porque querias escutar as mil melodias que ainda não tinham sido tocadas no teu coração. Em vez disso a vida empurrou-te para um lugar de desespero onde nem as bolotas eram tuas amigas.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho para o abraço de Deus. E ousa recomeçar. E ser filho. E vestir o traje da festa que o Amor prepara para ti a todo o instante.
«Não é preciso que vão embora. Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mateus 14, 16).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. Daquele que está debruçado sobre o próprio coração em sangue. O coração daquele que a vida atirou para a beira da estrada e que agora espera um qualquer samaritano. O coração e a vida daquele que este tempo defraudou espera que tu sejas consolo e abrigo. Também abraço.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho do coração do irmão. E ousa partilhar da tua pobreza. Daquilo que mesmo fazendo-te falta suavizará a dor de quem já nada tem. De quem já não tem onde morar ou de que se alimentar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho da partilha e o coração do irmão pulsará com renovada esperança.
“Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só: mas se morrer, produzirá muito fruto” (João 12, 24).
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. A cidade santa espera que os teus passos sigam firmes na senda d’Aquele que já fez o mesmo caminhar. Arrisca nesse seguimento. Mesmo que a luz teime em esmorecer dentro de ti. Mesmo que te impeçam de caminhar atrás do Mestre. A cidade santa espera por ti.
Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. Porque a vida e a felicidade que tanto desejas também passa por lá. Não ouses voltar as costas à cruz que a cidade te entrega. Segue atrás desse desejo de vida que nenhuma dor será capaz de enterrar. Pede à Quaresma que te ensine o caminho de Jerusalém. E deixa-te morrer. A terra que és será nova quando o milagre do grão de trigo irromper.
Pe. Manuel Afonso de Sousa, CSh
Diretor espiritual do Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, Braga, Portugal.
In: site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
Um dos mais espantosos apelos de Quaresma que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo, mas sim por um poeta. Escreveu-o T.S.Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero, sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjetivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”. Nesse poema, dizem-se três coisas fundamentais. Se as soubermos ouvir, percebemos que elas correspondem a caminhos muito objetivos (a mapas pessoais e comunitários) de conversão. E não é esse o desafio da Quaresma, e desta Quaresma em particular?
1. A Quaresma vem ao nosso encontro para que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem dramaticamente com os do nosso rosto: vivemos uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado no essencial, e passássemos a olhar para as nossas asas (e para as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo, esmorecendo”.
2. A Quaresma vem ao nosso encontro para nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais à revigoração da fonte, o que do sono nos dá acesso à vigília iluminada da vida é aceitarmos o desafio de nos fazermos de novo à estrada, e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de restos, do que uma primavera do Espírito.
3. A Quaresma vem ao nosso encontro para que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida. Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A Quaresma faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus.
José Tolentino Mendonça
in: site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
13.02.2012
“Deus é Criador, e dos escombros constrói novidades surpreendentes”
Nos Evangelhos encontramos uma estreita vinculação entre perdoar e curar. O perdão tem um indubitável efeito terapêutico, e a cura dos enfermos é revelação da presença da misericórdia de Deus. Em seu caminho Jesus cura perdoando os pecadores e dando vida aos que estão envolvidos nas amarras da enfermidade e da morte. A experiência de sentir-se perdoado impulsiona o enfermo para além da sua situação vivida. É, portanto, um elemento prévio à cura.No NT, alguns textos nos fazem perceber que o perdão reconciliador de Deus é necessário para vivenciar e reconhecer a cura. Ex: paralítico toma seu leito e caminha curado como sinal do perdão dos pecados (Mc. 2,1-12). A reconciliação é um dom que gera harmonia e paz.
Em Jesus, as curas se convertem em resposta de Deus à dura realidade da condição humana marcada pelo sofrimento e exclusão e que clama uma contínua re-criação por parte de Deus.Jesus é presença visível da misericórdia re-criadora de Deus. Nesse sentido, perdoar é re-criar. Deus re-cria o ser humano a cada instante. Cada dia que passa é um perdão sempre novo, pessoal, criativo, mas também discreto e silencioso. Um perdão que abre um futuro cheio de possibilidades; um dom que permite o ser humano ir além de si mesmo.Só o amor misericordioso de Deus reestrutura as pessoas por dentro, abrindo-lhes horizontes maiores de coragem, responsabilidade e compromisso.O perdão aparece, no ministério de Jesus, como elemento terapêutico de uma práxis de regeneração que faz com que o ser humano viva, apesar do pecado, e cujo primeiro suposto terapêutico é a misericórdia.Para além de sua autoridade, os milagres mostram a reação de Jesus frente à dor dos pobres e fracos. A misericórdia é n’Ele virtude e princípio de sua atuação ética; é ela que quase “obriga” Jesus a curar.Os milagres são sinais poderosos que surgem da dor de Jesus diante do sofrimento alheio, em especial os enfermos. À luz de Jesus a misericórdia é mais que compaixão pela desgraça, é ternura diante de um alguém gestado nas entranhas do Deus Pai-Mãe. Jesus percorre a Galiléia e cura toda enfermidade e dolência, cura a situação de solidão de uma multidão desamparada. Cura, em definitiva, a carência de Deus.
Jesus insiste fortemente sobre o perdão, porque este é uma necessidade vital quando a vida foi ferida.O perdão re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabelecer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e a vida que as rodeia.O perdão é uma experiência forte que nos re-conecta com a vida; ele quer abrir uma porta à vida, em um muro fechado de dores, de sentimentos feridos, de auto-agressividade. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É um ato de realismo, em profundidade e a longo prazo. Jesus vive comprometido com a vida saudável, e faz a vida crescer de forma integral, sem divisões. Ele devolve às pessoas a saúde em seus corpos, em suas emoções, projetos e relações. Jesus vê nas enfermida-des uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. Para as palavras saúde e salvação o latim utiliza um mesmo termo: “salus”. A saúde não é alheia à salvação que Jesus traz. A recuperação da saúde e a salvação que Deus desperta estão em íntima relação com as fontes de energia curativas e a capacidade interna de regeneração do próprio ser humano.A proximidade de Jesus põe em movimento grandes dinamismos de vida do doente; debaixo do costume paralisado do enfermo, existe uma possibilidade de vida nova nunca posta em movimento. Jesus recons-trói “pessoas quebradas”. As obras que Ele realiza consistem em libertar o ser humano de sua inati-vidade e dar-lhe capacidade de ação. Podemos chamar Jesus de terapeuta do perdão: com seu perdão ativo desencadeia o processo de conversão, mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura o universo relacional e abre a interioridade à alteridade. Como presença visível da misericórdia, Jesus se dirige a cada com a força da torrente que jorra para a vida eterna e quer arrastar a todos para aquela Fonte de comunhão que o Pai deseja, a fim de que toda a vida esteja exposta ao seu amor.Em última análise, o perdão é um ato de fé na bondade fundamental do ser humano.
O paralítico do evangelho de hoje é um homem afundado na passividade: incapaz de mover-se por si mesmo e sem liberdade para desenvolver-se como ser humano; não fala, não diz nada; deixa-se conduzir pelo outros; vive preso ao seu leito, impedido de ser plenamente humano.Toda a cena se desenrola “em casa”, não no templo. O templo era o paradigma da instituição, mas havia deixado de ser o lugar da presença de Deus, porque seus dirigentes fizeram dele lugar de exploração e violência aos mais fracos e excluídos.Jesus passa da sinagoga, lugar oficial da religião judaica, à casa, lugar onde se vive a vida cotidiana junto àqueles mais queridos. Nessa casa vai-se gestando a nova família de Jesus.A casa não é lugar onde se vive a Lei, mas o lar onde se aprende a viver e conviver de maneira nova, à maneira de Jesus.
Sabemos que a enfermidade e o sofrimento tem muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão.Há muitos enfermos que, além da dor física, sofrem com sentimentos de culpabilidade, impotência, fragilidade, solidão... A reconciliação contribui a diminuir o sofrimento e potencia a saúde na dupla direção: integração pessoal e comunhão com os outros, tal e como fez Jesus.Ser curado por Jesus gera harmonia, equilíbrio saudável, unificação interior e reconciliação com a vida, com o que se é e com o que foi:“Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa” (Mc. 2,11). Jesus rompe as amarras da enfermi-dade que paralisa a pessoa, liberando o potencial humano presente em cada um. Ele desperta em cada enfermo a responsabilidade frente à própria saúde. É um chamado a evitar as atitudes patogênicas. Assumir este compromisso com a própria vida gera liberdade.
O valor terapêutico e reconciliador do perdão é central para restabelecer as fraturas da relação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus.Disse-lhe Jesus: “Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa!”O paralítico levantou-se imediatamente e, carregando o leito, saiu diante de todos.A ordem de vida é dada por Jesus. O homem obedece. Não sabe quem é Jesus, mas pressente que Aquele que lhe fala é portador de vida. O paralítico poderia ter perfeitamente permanecido deitado, mas adere à ressurreição. Jesus não o toca, como faz com outros enfermos; não o toma pela mão, para ajudá-lo a levantar-se, pois a cura desse homem passa, precisamente, pela recuperação da confiança em sua própria identidade. O doente deve escolher levantar-se por si mesmo; deve reencontrar seu desejo de viver.As três ordens que Jesus dá ao paralítico já dizem tudo: “levanta-te” (coloca-te de pé, recupera tua dignidade, libera-te daquilo que paralisa tua vida); “toma o teu leito” (aprende com o passado e abre-te ao futuro com fé renovada); “vai para tua casa” (aprenda a conviver).
O leito também não é abandonado imediatamente. É pedido ao homem curado “carregá-lo” e não jogá-lo fora. Carregar seu leito é um ato interior preciso; eis um verbo ativo, opondo-se à passividade do “estar deitado” e “ser carregado”. Deixa de ser “peso morto” para ser “companheiro” de estrada. Carregar seu leito é inverter o movimento, mudar de direção, substituir um movimento de morte por um movimento de vida. Antes, o leito o carregava; agora é o homem curado que carrega seu leito.Isto significa que o enfermo não partiu do nada, não partiu do zero, mas ergue-se, coloca-se em marcha a partir do passado. Carregar seu leito é romper com a prisão a seu mal. É tomar consciência de seus verdadeiros problemas, livrar-se do “vitimismo” e não mais esperar que os outros o carreguem.Terá ele um trecho do trajeto a perfazer, carregando seu leito. Depois, virá o tempo de lançá-lo fora e, então, tornar-se-á livre da dependência que lhe fizera tanto mal.
Na oração: não é possível seguir Jesus vivendo como “paralíticos” que não sabem como sair do imobilismo, da inércia ou da passividade; há muitas atitudes petrificadas, traumas paralisantes, feridas não cicatrizadas que nos impedem viver “como Deus manda”. Só o perdão terapêutico de Deus reequilibra nossa existência a nos impulsiva a viver a comunhão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.05.2013
"Se queres, podes purificar-me" (Mc. 1,40)
Só o horizonte do "querer" de Deus é garantia de superação de um horizonte que limita demais a expansão da vida. A partir do “querer” de Deus, nosso “querer” se amplia: no encontro dos dois “quere-res”, algo novo acontece.O parâmetro único e insubstituível é o querer de Deus. Só este querer é a garantia de um exercício de autoridade que se toma incontestavelmente um serviço à vida. Não é uma satisfação pessoal, nem um perpetuar situações favoráveis, cômodas ou agradáveis com o risco de uma incapacidade para ver as necessidades dos outros. Em Mc. 1,40-45, o leproso, dentro de sua necessidade, reconheceu que o "querer" é de Deus. A súplica que brota do seu coração toca o centro do coração compassivo de Jesus. Esta escuta direciona a ação terapêutica d'Ele. A lição do coração de Jesus é única; outro percurso é sempre perigoso e cria cenários de violência, exclusão, sofrimento...
O sentimento que baliza e dá a tônica no exercício da autoridade de Jesus é a compaixão.Jesus revela sua autoridade e esta é o caminho para o serviço e a promoção da vida.A autoridade de Jesus é sempre percebida como garantia e sustento da vida. Tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias.A compaixão esvazia toda pretensão de poder, pois ela projeta a pessoa para o outro, torna a pessoa sensível ao clamor e às necessidades do outro. A compaixão, que toma conta do seu coração, é fruto do corajoso deslocamento para a margem, para a necessidade do outro. A autoridade de Jesus é sempre percebida como garantia e sustento da vida. Tem "autoridade" quem garante a vida e a recupera em todas as circunstâncias.A vida do outro é a razão única da autoridade.O outro, sua necessidade e sofrimento, será sempre a alavanca que gera no coração humano a compre-ensão e o exercício da autoridade como verdadeiro serviço.Só a compaixão desloca cada um para o lugar do outro. Só a compaixão ilumina a realidade do sofri-mento do outro. Só a compaixão move na direção da oferta do outro.
O fato de que Jesus se aproxime dos doentes e se deixe tocar por eles, ou de que os cure de forma pouco ortodoxa, era um atentado contra as normas de pureza que foi imposta à sociedade palestina daquele tempo. Jesus não teve receio em transgredir estas normas, pois só assim podia se aproximar daqueles que estavam em situação de exclusão.O que chama a atenção é a “gestualidade” de Jesus: Ele se aproxima dos homens e mulheres de sua época, toca os enfermos, impõe as mãos, toma as pessoas pela mão, estende as mãos...As verdadeiras curas e milagres de Jesus são, antes de tudo, gestos de “huma-nização evangélica”: de purificação humana, de libertação pessoal, de aber-tura à fé... que mostram que o dinamismo final do Reino implica na destrui-ção da enfermidade e da dor.Em Jesus a “comoção das entranhas” é o núcleo de sua ação curativa.O sofrimento da multidão desperta n’Ele a compaixão e o amor. Curar é sua forma de amar e seu amor curador o impulsiona à proximidade, estima ao enfermo, respeito à capacidade de cura da própria pessoa. Seu amor que cura é gratuito.
Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais são e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, em suas emoções, projetos, relações e abertura ao Transcendente. Através das curas Ele mobiliza todas as dimensões da pessoa, reestrutura seu universo relacional e abre sua interioridade à alteridade; ao mesmo tempo Ele potencia a liberdade do ser humano, recuperando a autonomia e a capa-cidade de dar direção à própria vida. A enfermidade e o sofrimento tem muito a ver com a fragmentação, a dispersão e a divisão. A pessoa curada por Jesus recupera a harmonia, a unificação interior e a reconciliação com a vida. Arriscar-se a curar o ser humano é arriscar-se a colocá-lo de pé, e encaminhá-lo na busca da verdade e da felicidade. A saúde implica viver desde a verdade. Não falamos de um caminho de perfeição farisaico mas de um caminho feito de feridas curadas, apoiado na autenticidade. “Curar”, para Jesus, significava levantar a cabeça daquele que estava encurvado pelo peso do legalismo e comprometê-lo responsavelmente a descer às profundezas de sua condição humana, para aí sentir-se em comunhão com todos os que foram gestados nas mesmas entranhas do Deus Pai-Mãe.Ser curado implica assumir uma responsabilidade que leva a implicar-se na transformação pessoal e social. A saúde integral tem a “carga” da maturidade e da responsabilidade na própria vida e no próprio processo.
Seguindo a Jesus, sentimo-nos chamados não só a levar ajuda direta às pessoas que sofrem, senão também a reconstruir as pessoas em sua integridade, reincorporando-as à comunidade e reconciliando-as com Deus. Nossa missão encontra sua inspiração no ministério terapêutico de Jesus. “Cuidar” de alguém é cuidar do que é saudável nele, porque é a partir desse estado de saúde que se poderá integrar e curar as feridas e fragilidades do outro. O cuidado mobiliza e potencia os recursos presentes no outro; é preciso despertar a consciência que todo ser humano tem reservas de riquezas, criatividade, inspiração, intuição..., e que toda pessoa precisa encontrar uma presença capaz de ativar e despertar o seu mundo interior.
Quando acolhemos a realidade e nenhuma venda nos impede ver o sofrimento do outro, a reação imediata é a compaixão; ela não se reduz a um mero sentimento empático; inclui, além disso, a ação por aliviar o sofrimento do outro e o risco de compartilhar seu destino. A compaixão significa abraçar visceralmente, com as próprias entranhas, o sofrimento ou a situação do outro. Compadecer-se, aproximar-se, curar, cuidar... tecem a rede de ações que definem o compromisso solidário com o outro.
Na oração: pedir a graça de sentir a ternura, o carinho, a proteção e a cura das mãos benditas e providentes de nosso Deus;alargar o coração, para que aí a ternura e a compaixão de Deus possa fazer morada.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.2012
Página 38 de 38