
Numa grande cidade do Japão, Keita tem 6 anos. É uma criança calma e delicada, que faz o possível por agradar aos seus pais, uma mãe disponível e sorridente, um pai demasiado absorvido pelo seu trabalho mas exigente quanto aos resultados escolares e artísticos do filho. A vida de Keita vai ser totalmente transformada a partir do momento em que os pais são convocados à maternidade onde nasceu. Quando nasceu, foi trocado com outro recém-nascido. Esta descoberta vai mergulhar duas famílias em momentos dolorosos e sentimentos complexos.
O realizador nipónico Kore Eda Hirokazu tem, na sua belíssima filmografia, vários filmes sobre a infância e a família. Crianças entregues a si próprias com “Nobody knows” (2004), reunião familiar agridoce em “Still walking” (2008), dois irmãos magoados pela separação dos pais em “I wish” (2011).
Desta vez, se as crianças estão novamente no centro da intriga do filme, é um dos pais que é a personagem principal. Interpretado por Masaharu Fukuyama, cantor e ator célebre no Japão, Ryota é aquele que esta história de troca de bebés mais vai transformar. Persuadido de que os laços de sangue são mais fortes do que tudo, ele procura a troca o mais rapidamente possível, provocando a surpresa alarmada do outro pai, para quem não se podem trocar crianças como quem troca de roupa…
Podemos lamentar que as duas famílias sejam tratadas de forma algo caricatural. Na casa dos ricos, a decoração e o vestuário dos pais e da crianças têm cores neutras, pelas quais o olhar desliza. Compreende-se que a mãe se tenha demitido do trabalho para se tornar dona de casa a tempo inteiro, papel que desempenha com uma submissão por vezes desconcertante para os espetadores ocidentais.
Na família mais modesta, pelo contrário, as roupas têm cores vivas, e mesmo berrantes nas camisas do pai, enquanto que a mãe não hesita em repreender o marido e zombar dele. Nesta casa conserta-se o que avariou e demonstra-se corporalmente o afeto, enquanto que na outra se consome e praticamente nunca há contato.
Apesar disto, “Tai pai, tal filho” é um filme tocante. Trata com justeza uma questão muito importante: como é que uma pessoa se torna pai? Recusando o melodrama, o realizador deixa aos seus personagens, e aos espetadores, tempo para caminhar, para digerir o inacreditável. Se cada família está pronta para receber as duas crianças, nenhuma se consegue ver sem o “seu” filho.
O sofrimento infligido às crianças não pode deixar os pais indiferentes. Lentamente, e com uma realização tão brilhante como discreta, cada personagem amadurece segundo os erros cometidos, adultos e crianças. Mesmo no Japão, onde a cultura social e familiar é diferente, a paternidade não é nem uma evidência nem uma questão puramente biológica.
Magali Van Reeth
O ano acabou selado por um belíssimo filme: Ida. Um nome de mulher, a história de duas mulheres, narrada em preto e branco. Uma temática muito conhecida e trilhada, mas filmada com extrema originalidade. Sutil, inteligente, fino e exigente para a mente e o coração do espectador. E de profunda beleza. Saber que ganhou prêmios em importantes festivais dá esperanças em relação ao gosto de nossos contemporâneos. Saber que está cotado para o Oscar de melhor filme estrangeiro nos põe em expectativa quanto à famosa Academia americana.
Ida começa e acaba em um obscuro e humilde convento, em uma cidade do interior da Polônia. A personagem central é Anna, aliás Ida, uma obscura jovem noviça, que se prepara para fazer os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. Antes disso, porém, deverá, por ordem da superiora, empreender uma misteriosa e longa viagem em busca de sua identidade verdadeira. Pois, embora seja uma freira católica, Anna não se chama Anna e sim Ida e não nasceu católica, mas judia.
A única pessoa que pode revelar-lhe isso é sua tia Wanda, irmã de sua mãe, uma juíza do Partido Comunista, mulher de vida livre, que bebe e fuma muito, e tem uma multiplicidade de amantes que a marcam indelevelmente em seu já muito machucado coração. Após revelar à jovem sua verdadeira origem e nome, essa dupla improvável de mulheres parte para uma jornada em busca dos restos do passado, a fim de descobrir mais profundamente quem são.
Pawel Pawlikowski narra com grande maestria a história de Ida e Wanda em admiráveis interpretações de duas Agatas: Agata Kulesza (Wanda) e Agata Trzebuchhowska (Ida), as duas atrizes que encarnam a noviça e a juíza. Enquanto buscam o fio da narrativa de suas vidas e de seus antepassados, relatam em senso invertido a história da maior tragédia que se abateu sobre o século XX, o holocausto nazista.
Em hebraico bíblico, a palavra “holocausto” significa a oferta que sacrifica algo – normalmente um animal - o qual é inteiramente consumido pelo fogo e assim sobe como fumaça até Deus. Tratava-se de um sacrifício expiatório pelo perdão dos pecados, embora também fosse celebrado em ação de graças e adoração a Deus. O específico do holocausto era o fato de que a vítima devia ser um animal macho, sem defeito e ser inteiramente queimado, dele nada restando a não ser seu sangue, separado da carne e derramado sobre o altar.
No século passado, Holocausto passou a designar outro evento, coletivo, ganhando o nome hebraico moderno de Shoá. Enquanto o holocausto bíblico significava etimologicamente “todo queimado” (holos+kaustos), Shoá é sinônimo de catástrofe, destruição e identifica o genocídio ou assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, através de um programa sistemático de extermínio étnico praticado pelo Estado nazista e que ocorreu em todos os territórios ocupados pelos alemães durante a guerra.
Dos nove milhões de judeus que residiam na Europa antes do Holocausto, cerca de dois terços foram mortos; mais de um milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus morreram durante o período. Enquanto o holocausto bíblico oferecia sacrifícios de animais, o holocausto nazista sacrificava pessoas, famílias inteiras.
Em sua peregrinação, Ida vai em busca do que restou de sua família em meio ao horror dos anos do nazismo. Wanda intui o que se passou, mas nunca foi verificar de perto. A presença de Ida a leva até o lugar tenebroso onde, em cena tão terrível quanto bela, ambas devem devolver ao lugar adequado o que lhes foi roubado pela violência e a crueldade de um regime inumano.
Ambas mulheres e feitas para abrigar e alumbrar a vida, Wanda e Ida reagem a essa tremenda experiência de modos diferentes. Enquanto Wanda não encontra outra maneira de libertar-se do círculo infernal da morte senão pela própria morte, o caminho de Ida é diferente. Havendo testado a vida que nunca viveu e contemplado a morte dos seus que nunca conheceu, a pergunta que lhe resta é: “Por que estou viva e não morta?“
É em busca da plenitude desta vida que seu caminho a levará. Porém, irá de encontro a uma vida que consistirá no holocausto de si mesma, oferecendo-se a Deus e aos outros através da consagração religiosa. A noviça Anna/Ida, que não pronunciara seus votos, volta a seu convento. É no caminho para esta casa que o diretor a deixa, não fornecendo detalhes sobre seu futuro. Cabe a cada espectador escrever seu final.
No ano da vida consagrada, Ida é um filme que questiona profundamente cada um de nós sobre o sentido da vida, sobre a alteridade que convoca a uma doação total de nós mesmos, sobre opções de vidas que não são para todos, mas que certamente são para alguns e algumas. Às Idas de ontem e de hoje, que atravessaram as “Shoás” diversas que se apresentaram; àquelas que tiveram a coragem de responder a um chamado e viver uma vocação por inteiro, como holocausto de amor nos altares da vida cotidiana, minha admiração e meu carinho.
Maria Clara Bingemer
"O AMOR é ESTRANHO" –
Ira Sachs –
Estados Unidos/França – 2014
Ode ao AMOR no COTIDIANO
Cena final: É preciso o horizonte aberto e a luz do sol batendo no rosto dos jovens para que a esperança seja a última palavra. É preciso que eles caminhem e se sintam próximos para que existir e confiar sejam possíveis. Em suma, precisamos de esperança: horizonte e luz; precisamos existir e confiar: caminhar no afeto e na cumplicidade.
Música cantada pelo casal: “You’ve got what it takes”(Dinah Washington/Brook Benton). “Você tem o que é preciso”. E do que precisamos? A resposta pode ser escutada como um chavão, mas: Precisamos de AMOR! Todos! Todos nós! Em qualquer tempo e lugar, em qualquer idade e gênero! Sem exceção! E é o que os amigos celebram e cantam, após a cerimônia do casamento de Ben e George, que decidem oficializar sua união, após 39 anos de vida em comum. Valioso atentar ao fato de que o celebrante pede a todos os presentes que se esqueçam de sua vida pessoal e afazeres, e concentrem-se naquele momento único, oferecendo energia e amor ao casal; e ainda pergunta se eles se comprometem a honrá-los e apoiar no amor, vida e casamento, ao que todos alegremente dizem “sim”. Fundamental depreender disso que casamento não implica apenas as “duas pessoas” envolvidas, mas todos os que delas são próximos, e com elas partilham um viver relacional mais amplo. No entanto, no cotidiano temos que admitir que o mais comum é nos esquivarmos de ajudas mais concretas e pontuais. E mesmo o casal, homo ou hetero, muitas vezes termina por não saber o que é partilhável, aquilo que pode ir além do âmbito privado.
Após o casamento, George perde seu emprego. A escola religiosa em que ele ministra aulas e rege o coral demite-o após 20 anos de trabalho, devido à difusão de seu casamento oficial pelas redes sociais, inclusive de alunos do colégio. Embora a instituição soubesse de sua vida conjugal, a propagação do evento criou uma “saia justa” junto às autoridades, e a decisão foi tomada.
Como qualquer família que repentinamente se vê frente a problemas financeiros, decisões têm que ser tomadas. Decidem vender o apartamento; e pelo menos temporariamente não têm condições de alugar outro. Pedem a ajuda dos amigos. E eles a dão. É a partir daí que vamos acompanhar não apenas os caminhos difíceis de uma relação homoafetiva de quase 40 anos, mas também as oscilações do amor entre todos, o que não o faz “menos amor”, mas que o faz “amor real”. Vamos acompanhar a delicadeza e os perigos que sempre rondam nossa relação com quem quer que seja. Vão surgir momentos de aceitação, abnegação, entrega e doação, assim como de incômodo, esquiva, embates, frases irônicas e provocativas. Situações como: – Quem vai receber quem em sua casa? – “Ele é seu tio, mas quem o ‘agüenta’ o dia todo sou eu” (tensão entre o casal). - “Quero minha privacidade” (sobrinho incomodado com a nova presença, e vivendo momento de embate com autoridade e de busca de identidade de gênero). – Os problemas sociais de especulação imobiliária e impostos, dificultando retomada de vida. – Perder espaço pessoal e ter que ouvir música detestável. - Como dirá Ben: “Teria sido melhor não conviver tão próximo, para não ver o que preferia não saber”. – E a resolução surge, quando e de quem não se espera. Ben e George mantêm-se afetivos um com o outro.Mas a fragilidade ganha espaço, e Ben sucumbe a tanta mudança. Mas sua arte ficará; seu último quadro provavelmente será o começo de um reconhecimento tardio. O jovem busca reparação junto a George, entregando-lhe o quadro que o tio pintara de seu amigo (amigo?); entrega também a resolução de suas dúvidas de gênero?... Talvez...
Muito delicadamente o filme mantém o tema da questão de gênero, insinuada até mesmo nos quadros de nu feminino e masculino, no quarto de um casal homossexual (!). E o filme termina com o que se presume ser um casal jovem e hetero. O que podemos pensar? Talvez que a despeito de hoje falarmos clara e abertamente da vida homoafetiva, o padrão introjetado é o do casal hetero.
No entanto, o que de fato importa é o AMOR trocado entre todos, fio condutor do filme.
Maria Teresa Moreira Rodrigues
psicanalista, espiritualidade inaciana - Campinas-SP
O tempo que vivemos é favorável à revisitação das reconstruções fílmicas dos rostos de Jesus. Regresso a um filme menos frequentado, oJesus de Montreal do canadiano Denys Arcand, filmado em 1989. O realizador era conhecido sobretudo pelos seus documentários militantes ao serviço de causas sociais. O seu Jesus de Montreal, que ganhou o prémio do júri do Festival de Cannes, merece um aviso: não se trata de mais uma “vida de Jesus”. A narrativa é ingênua. Daniel Colombe é um jovem ator. Um padre, responsável por um santuário em Montreal confia-lhe a montagem de uma representação da Paixão de Cristo. Mas não pretende a reprodução dos modelos devocionais paroquiais, nem a repetição de uma encenação por ele próprio criada e repetida durante os últimos anos. Quer algo que promova a atualização dessas práticas da memória cristã, de modo a que a via sacra possa interessar à urbanidade moderna dos fiéis crentes. A remodelação terá passado os limites da elasticidade simbólica tolerada pela instituição. As autoridades eclesiásticas, vigilantes, acabaram por interditar essa versão atualizante. Nesse confronto, e em plena representação, o protagonista acaba por ser vítima de um acidente com a cruz. O traumatismo vai conduzir à “morte do artista”. O ator transmuta-se em atuante crístico, que atualiza em si próprio a memória de Jesus – essa colagem do itinerário biográfico do ator ao destino pascal do personagem Jesus é, em meu entender, a chave da narrativa. A remodelação daquela representação da Paixão permite criar um filme (teatro) dentro do filme, numa progressiva sobreposição até à identificação final de uma única narrativa. Tal identificação é sugerida e antecipada pela figura de uma mulher que continuamente interrompe a representação com verdadeiras confissões de fé, identificando ator e personagem (vestígios dos modelos de identificação da soap opera). Descubram-se os meandros desse percurso de identificação.
Chamamento e discipulado. Daniel Colombe, primeiro prêmio do Conservatório, com estágios internacionais, chama para a sua companhia uma atriz sem palco que ocupa parte do seu tempo na distribuição da “sopa dos pobres”, um ator que dá voz a dobragens de filmes pornográficos, um outro que faz a locução de documentários televisivos, e uma atriz/modelo que faz publicidade. O padre tem um lugar charneira. Ele será o fariseu vigilante da instituição, mas ele próprio, apaixonado pelo teatro e por uma mulher, não tem a coragem necessária para refazer a sua vida.
O evangelho. O filme de Denys Arcand transporta o rasto de uma vulgata teológica, corrente nos anos setenta e oitenta em muitos meios cristãos, que atualizava o velho axioma: a Igreja traiu os ideais do Reino de Deus. A descontinuidade entre o evangelho do Jesus histórico e o Cristo ortodoxizado pela instituição tornou-se o mote de muitas querelas teológicas, já desde o século XVIII. No trabalho de releitura da Paixão, o encenador serve-se das indicações dadas por um teólogo que pediu o anonimato, indicações que pretendem corrigir a narrativa religiosa visando quer a verosimelhança histórica, quer a atualização desmitologizante. Jesus é o filho natural de um soldado romano. Pilatos é agnóstico. Dos Evangelhos recolhe-se o discurso profético que anuncia a recuperação dos excluídos, a condenação dos poderosos e propõe um novo código, o mandamento novo – precisamente, a narrativa religiosa mais facilmente apropriável pela linguagem eticizada das sociedades tardo-modernas. Quanto à ressurreição de Jesus, Denys Arcand encena o axioma bultmanniano e pós-bultmanniano: Jesus ressuscita na fé dos discípulos.
As tentações. A sedução do maligno vem na figura de um advogado especializado na gestão de carreiras artísticas, Richard Cardinal. Num restaurante panorâmico, Daniel Colombe é chamado a responder a propostas arrebatadoras que o transportariam aos altares do show-business. Cardinal é persistente: «Tento fazer-lhe compreender que, com o seu talento, pode ter esta cidade a seus pés».
A expulsão dos vendedores. O zelo do Templo é vertido na reivindicação de respeito pela arte e pela pessoa dos artistas, encenado numa sequência em que Daniel Colombe destrói o equipamento montado num casting de atores para a campanha de publicidade de uma cerveja – testemunho exemplar da cólera profética («A minha casa será chamada casa de oração para todas as nações. Mas vós fizestes dela uma caverna de bandidos» – Mc 11, 17).
Conflito com os poderes. Muitas leituras teológicas e espirituais das narrativas cristãs privilegiam tudo o que diz respeito ao conflito entre Jesus de Nazaré e a religião do Templo. Esse conflito entre o profeta e a instituição sacerdotal verte-se aqui no confronto entre a carismática companhia teatral e os poderes eclesiásticos: «As instituições vivem mais tempo que os indivíduos», dirá o padre, numa tradução da lógica política do sacrifício, tal como na narrativa cristã («É melhor que um só homem morra pelo povo do e não pereça a nação inteira»- Jo 11, 50). Esse conflito contrasta com a recepção do público. O entusiasmo é a nota dominante entre os habitués, os críticos e o público anónimo (não falta um crente que mistura a narrativa cristã com os segredos da ufologia num caldo esotérico).
A cruz. O instrumento de condenação e salvação para os cristãos é descrito segundo critérios arqueológicos e historiográficos, mas não deixa de ser o lugar crucial de elaboração simbólica da metáfora viva que alimenta esta cinematografia. Numa cena trágico-cómica, os seguranças procuram pôr termo a uma representação não autorizada. Um indivíduo presente no público, de proporções avantajadas, toma a defesa dos atores injustiçados, mas o zelo provocará acidentalmente a queda da cruz, fazendo do elemento cenográfico autêntico instrumento sacrificial. A queda provocará um traumatismo craniano a Daniel Colombe. A crucifixão passa-se fora dos muros da cidade. Daniel não tem lugar nos hospitais centrais, sendo obrigado a uma passagem por um hospital periférico onde abundam filas de doentes por todos os corredores.
A descida aos infernos. O ator recupera ainda o suficiente para abandonar o hospital pelo próprio pé. Numa estação de metropolitano, um não-lugar urbano e subterrâneo, tem um discurso terminal à espera do (último) metro que passa – discurso terminal antes de mais porque apocalíptico (“o mundo das trevas e da solidão”). Esse é o momento de interceção em que a identificação crística do ator Daniel Colombe se consuma – com mais ousadia teológica poderia falar-se de incarnação. Se antes as narrativas permaneciam paralelas, agora é o próprio ator, sem a máscara da personagem, que se mostra profeta de um evangelho apocalíptico para os homens e mulheres da metrópole contemporânea. O corpo moribundo regressa ao hospital para uma intervenção sem sucesso. Daniel morre, mas para dar vida. Os seus órgãos inscrevem-se no circuito da dádiva permitindo que a alegoria conquiste conotações salvíficas.
A Igreja. A companhia teatral sente-se órfã do seu fundador. O advogado-sedutor-maligno tem a chave do futuro: a instituição de uma companhia teatral com o nome do ator-mártir, perseguindo a perpetuação dos seus valores éticos e estéticos.
Jésus de Montréal, Prémio do Júri no Festival de Cannes de 1989. Realização: Denys Arcand. Com: Lothaire Bluteau, Catherine Wilkening, Johanne-Marie Tremblay, Rémy Girard, Robert Lepage, Gilles Pelletier, Yves Jacques. Diretor de Fotografia: Guy Dufaux. Música: Yves Laferrière. Produtores: Roger Frappier, Pierre Gendron. Produção: Max Films Productions, Gérard Mital Produtions, Office National du Film du Canada.
(Revisitação abreviada de: Alfredo Teixeira, «As instituições duram mais tempo que os indivíduos»: uma leitura do Jésus de Montréal, in: Susana Bastos Mateus & Paulo Mendes Pinto (org.), A sétima arte no sétimo céu: o cinema e a religião, Lisboa: Ed. Firmamento, 2005, 81-83)
Alfredo Teixeira
Universidade Católica Portuguesa
Publicado no SNPC em 26.03.2015
Um filme para crianças que ensina aos adultos que no fim há sempre um começo.
Na pré-história os Croods são uma família de seis que vive ao abrigo do sentido de proteção do patriarca. Confinando-os à caverna onde habitam e a uma escassa área em seu redor, Grug, o pai, crê ser esta a melhor forma de cuidar dos seus, não os expondo a nenhum tipo de ameaça... desnecessária.
Porém, quando um fenómeno incontrolável destrói a caverna e o idílio em que Grug imaginava poder viver para sempre, não resta aos Croods senão partirem em busca de um novo lugar para viver. Assim começa uma grande aventura que, sem evitar perigos lhes, proporcionará inúmeras descobertas e ótimas surpresas.
Desde 1998 que a Dreamworks Animation mantém em pleno o seu ritmo de produção cinematográfica pensado para o público mais novo, destacando-se filmes como o primogénito "Ant Z - Formiga Z", "O Príncipe do Egito", "Shrek", "Pular a Cerca", "Madagáscar", "O Panda do Kung Fu" e, mais recentemente, "O Gato das Botas".
Na sua linha, variando embora os estilos, temas abordados e equipes encarregues da concretização de cada projeto, permanecem o espírito de aventura e a preocupação de uma mensagem pedagogicamente válida. Os filmes da Dreamworks veiculam valores universais como o espírito de entreajuda, a amizade, a abertura ao outro, sobretudo o desconhecido ou diferente, o respeito pela natureza, as virtudes da esperança ou da caridade e a importância do sentido para a vida – o que normalmente move as personagens a ultrapassar o que crêem ser os seus próprios limites.
Com pouco mais de hora e meia de animada aventura, esta história de risco em que os ganhos resultam sempre superiores às perdas não evita o facilitismo de estereótipos que pouco contribuem para diferenciar o cinema como proposta de genuína interpelação humana.
Por outro lado o filme cumpre uma fórmula certeira com a passagem de uma mensagem positiva relativamente à disponibilidade para o desconhecido e à importância de se sair da zona de conforto para se poder ir mais longe – como pessoa e como família. Rejeitando o heroísmo individualista e transformando o que parece ser "o fim" num surpreendente "reinício". O que nos tempos atuais faz bom sentido.
Margarida Ataíde
In Agência Ecclesia
Wadjda, uma menina de dez anos de idade, vive num subúrbio de Riade, capital da Arábia Saudita. Não obstante o conservadorismo da sua família, que preza o recato da mulher desde o nascimento, Wadjda é uma criança extrovertida, afoita e decidida, a quem é difícil impor limites na sua condição feminina e visão infantil. É o caso das brincadeiras com alguns amigos, como Abdullah, de que, mesmo mal vistas pela família e vizinhança, Wadjda não prescinde.
Precisamente na sequência de uma discussão com Abdullah, Wadjda aposta que é capaz de andar tão bem de bicicleta quanto ele. Uma prática olhada como desvirtuosa para as raparigas, transforma-se num sonho a conquistar. Wadjda está decidida a consegui-lo, mas convencer a família e a comunidade de que uma brincadeira de rapazes não põe em causa nem a sua feminilidade nem a sua virtude não vai ser fácil.
Aberto um concurso de memorização e recitação do Corão na escola, Wadjda encontra a oportunidade de conciliar o seu desejo com as expetativas que sobre si recaem…
Primeiro filme realizado por uma mulher na história do cinema da Arábia Saudita, “O Sonho de Wadjda” é uma proposta atraente para um Ocidente com vasta criação cinematográfica no feminino. Haifaa Al-Mansour, oitava filha do poeta Abdul Rahman Mansour, cresceu com a sétima arte graças à visão do seu pai e a um circuito maioritariamente clandestino de vídeo, num reino, o segundo maior estado do mundo árabe, onde não existem salas de cinema.
Formada em Literatura pela Universidade Americana do Cairo, prosseguiu o mestrado em Estudos Cinematográficos e Realização na Austrália, tendo apresentado esta sua primeira longa metragem no festival de Veneza, em 2012, com aclamação do público, da crítica e de diversos júris, arrecadando três prémios. A estes, outros se têm somado à passagem do filme por países tão diversos como o Canadá, Noruega, Estónia, Estados Unidos, Suécia, Omã e África do Sul.
Inevitavelmente, a história de Wadjda tem algo de biográfico, não obstante a rara sorte da realizadora em ter um pai e uma mãe atentos aos sonhos das filhas, os primeiros a encorajá-las a estudar e a perseguir a sua vontade, sem ceder à pressão do meio cultural em que cresceram, o que lhes custaria algum isolamento.
Precisamente por ter experimentado a constrição humana da condição feminina no seu país, ditada por um rígido normativo cultural, mas também a possibilidade de dilatação, a personagem criada por Haifaa, igual a tantas meninas cheias de potencial que sabe existirem, pelo menos, na sua cidade natal, surge como porta de esperança, consistentemente aberta, para uma Arábia Saudita mais justa e igualitária. E para um mundo, desperto pelo cinema, mais atento a esta realidade.
Bom mote para o diálogo inter-religioso, “O Sonho de Wadjda” ganha pelo sentido positivo que prevalece no tratamento de uma realidade certamente trágica para as mulheres que ousem desafiar o código moral sob o qual nasceram, pela integridade da protagonista e pela justa combinação de vigor e elegância na construção narrativa.
Margarida Ataíde
Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
(in: SNPC 23/04/14)
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