“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)

Há mais de um mês que somos continuamente bombardeados pela publicidade, oferecendo um “natal” esvaziado, centrado no consumo, no impacto das luzes que nos cegam, nas insistentes ofertas que nos ensurdecem... A impressão que temos é que tudo no Natal é publicidade, consumismo, materialismo...

Há uma pergunta que todos os anos nos incomoda, quando observamos pelas ruas os preparativos que anunciam a proximidade do Natal: o que existe ainda de verdadeiro no fundo desta festa tão esvaziada por interesses consumistas e por nossa própria mediocridade? Não há algo mais nobre e profundo que os interesses do mundo não conseguem afogar?

Continuamente ouvimos falar da superficialidade da festa natalina, da perda de seu caráter familiar, da vergonhosa manipulação dos símbolos religiosos e de tantos excessos e despropósitos que deterioram hoje o sentido do verdadeiro Natal.

Mas, o problema é mais profundo. Como pode celebrar o mistério de um “Deus feito homem” uma humanidade que vive praticamente de costas para Deus e que destrói, de tantas maneiras, a dignidade do ser humano? Como pode celebrar “a humanização de Deus” uma sociedade marcada por uma desumana indiferença, onde os grandes sonhos e causas mobilizadoras estão esvaziados?

Para muitas pessoas não faz diferença crer ou não crer, ouvir que “Deus morreu” ou que “Deus nasceu”. Sua vida continua funcionando como sempre. Não parecem necessitar mais de Deus.

A realidade contemporânea está nos empurrando para esta grave situação: já faz algum tempo que se falou da “morte de Deus”; hoje, fala-se da “morte do ser humano”; faz alguns anos que foi proclamado o “desaparecimento de Deus”; hoje, anuncia-se “o desaparecimento do ser humano”. Não será que a morte de Deus arrasta consigo, de maneira inevitável, a morte do ser humano?

No entanto, para quem tem um coração contemplativo, percebe que junto a tantos luminosos sinais, há outros mais discretos, que ninguém anuncia: relatos que falam daquela noite em Belém, de uma Boa Notícia, de um Deus que nasce nas entranhas da terra, que é acolhido por humildes pastores...

Nesta Noite Santa, a esperança que foi sendo alimentada durante séculos, rompe o céu e se derrama numa gruta de uma aldeia insignificante com o nome de poesia: Belém.

Nesta Noite Santa, o rebento de um tronco já seco germina para a vida do Universo, abrindo um novo tempo e uma nova Criação, onde não haverá pranto nem lágrimas.

Nos olhos fechados de um recém-nascido, deitado em um presépio, se revela e se faz visível toda a ternura de Deus, toda a espera de muitos séculos, todos os sonhos de muitas gerações.

Nesta Noite Santa, Deus se faz um de nós, passando a transitar, como um    “clandestino”, por entre os mais excluídos e revelando que todos somos incrivelmente amados e com capacidade ilimitada de amar.

Nesta Noite Santa, o silêncio se faz gesto radical de entrega, amor transbordante, humanidade plenificada. Na presença repousante de uma criança, encontra-se toda a humanidade que sonha um mundo diferente, de paz, de justiça e de concórdia.

A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem; ela representa o “puer aeternus”: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser.

Ter o “eterno Menino” diante dos olhos desperta em nós renovação da esperança, o retorno à inocência perdida, o surgimento de novas possibilidades de vida que correm em direção ao futuro.

Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus, nascido humildemente em um presépio, onde, em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada salvadora do Deus que se humaniza. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo.

Imaginamos um Natal onde aproveitaremos para fazer uma viagem ao interior de nosso coração, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade.

Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde abriremos espaços em nosso interior para que ali encontrem hospedagem todas as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.

Desejamos ardentemente que Deus nasça de novo entre nós, que brote com Luz nova em nossas vidas, que abra caminho em meio aos nossos conflitos e contradições.

Para encontrar-nos com esse Deus não é preciso ir muito longe. Basta nos aproximar silenciosamente de nós mesmos; basta “descer” em nossa gruta interior, em nossos desejos mais profundos.

Deus sempre é surpreendente e novo; é assim que Ele, como um anônimo, se aproxima de nós, onde estamos, para fazer de nosso eu profundo sua Gruta, onde a Vida se revela. O Deus “inacessível” se fez humano e sua proximidade misteriosa nos envolve. Em cada um de nós pode nascer Deus.

Caminhemos até Belém! Vamos todos fazer este caminho em direção ao “Deus clandestino”, para que as águas do Natal possam empapar nossas vidas e despertar em nós o assombro, a acolhida, o olhar contemplativo... diante do Menino que não fala, mas revela tudo de Deus.

Basta “ser gruta” para Ele.

“Eu vos anuncio uma grande alegria... nasceu para vós um Salvador”. Quem está preparado para escutar e acolher esta surpreendente notícia? Somente os pastores, a profissão mais desprezada e marginalizada daquele tempo. A Salvação é anunciada em primeiro lugar aos oprimidos, aos que não são contados, aos excluídos. Os demais estão descansando, adormecidos, acomodados; não precisam de nenhuma salvação.

Deus sempre é Boa Notícia. Deus deixa transparecer seu rosto salvífico no rosto de um recém-nascido.

Atualizando este mistério, podemos assim afirmar: Deus está vindo sempre em nossa direção, para nos comunicar vida plena. Os pastores saem correndo. Não é fácil encontrá-Lo. Alguma pista? Um menino, enrolado em faixas e deitado entre palhas, num coxo de animais. Seus pais não dizem nenhuma palavra. O que poderiam dizer? Deus decide enviar sua Palavra e nos envia um recém-nascido que não sabe falar.

Tudo o que nos torna mais humanos deve ser incorporado a esta Festa: o encontro familiar, a refeição, os abraços, a memória celebrativa...; tudo pode nos ajudar a descobrir o que somos na nossa essência humana e manifestar isso com muita alegria. A festa adquirirá sentido para todos os momentos em que soubermos unir o humano e o divino. Se formos capazes de ir mais além da superficialidade, poderemos nos encontrar celebrando a única realidade que interessa: a Vida que está em nós e espera ser ativada.

Deus continua nascendo entre nós se O deixamos transparecer em nossas atitudes diante dos outros, em nossa entrega e sensibilidade oblativa. Deus está onde nós O descobrimos e nos fazemos presentes. Deus está onde há amor, compaixão, vida partilhada, acolhida...; ali onde um ser humano é capaz de superar seu egoísmo e viver descentrado; ali onde há compreensão, perdão, abertura ao diferente...; ali está Deus, “assim novamente encarnado” (S. Inácio).

Texto bíblico:   Lc 2,1-14

Na oração: O mais importante acontece no silêncio, acontece no centro de sua própria vida e o convida a olhar para além das aparências. Viver um Natal inspirado implica fazer uma viagem ao interior de seu coração, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à sua verdadeira identidade.

Continua sendo Natal em cada história, em cada terra, em cada vida que se abre ao Mistério, em cada verbo que se faz eco das palavras de justiça e de paz, em cada gesto que se soma na mobilização dos direitos de todos, dos direitos da Terra, dos direitos da vida.

Um Natal com sabor de Evangelho fará toda a diferença em sua vida!

 

Um inspirado Natal a todos!

Pe. Adroaldo Palaoro sj

23.12.2025