O antropólogo Roberto DaMatta falou sobre Futebol no programa Canal Livre da Rede Bandeirantes, dia 29 de junho de 2014.
Numa análise muito interessante, o antropólogo fala sobre a importância do Futebol para o povo brasileiro.
Vale a pena ver a entrevista na íntegra. Acesse aqui
[texto precário sobre o amor]
De paixões e namoricos, todos sabemos, falamos e opinamos. Sobre borboletas no estômago e olhos a brilhar, multiplicam-se os artigos, as revistas e os programas da manhã. Dicas, conselhos e estratégias sobre o que fazer para alcançar as nossas paixões não nos faltam. Então e as paixões que devemos deixar? Os amores que devemos perder, os momentos que nos partem o coração, não existem? Não sabemos dizer uma palavra sobre o assunto? Estou convencido de que, por cada amor correspondido, há uma montanha deles que se desencontraram. Por cada casal que deu certo, há uma fila de potenciais casais que ficaram para trás. Por cada jantar à luz das velas, há um rio de corações partidos.
E não se trata apenas de amores daqueles que formam casais. Há também corações partidos em amores de outra natureza. Tenho-os visto de toda a espécie: uma filha que tem pai e mãe no hospital - um deles prestes a partir; uma apaixonada que não é correspondida; uma mulher que sofre, à espera, porque tem o seu amado em coma; uma rapariga que vê a irmã e confidente a morrer ainda jovem; dois apaixonados que percebem que o futuro não é em comum; uma mãe que vê o seu filho partir para a vida religiosa. Enfim, amores partidos há-os de todo o género: alguns estão para partir, outros partiram para sempre; uns partiram para o outro mundo; outros, para o outro lado do mundo. Então, visto que todos deveremos passar por isto, como nos podemos preparar (naquilo que seja possível preparar)?
O que fazer com um grande amor que parte – e nos deixa partidos aos bocados?
Há uma espiral de vida – um círculo virtuoso – em que nos devemos incorporar (e ao qual devemos dar corpo) que supera a tendência natural que temos para achar que a vida e o mundo acabaram ali, na ‘morte’ daquela relação. Na medida em que conseguirmos enveredar por este caminho, essa 'morte' dará lugar a uma nova vida.
1) Sintamos a saudade até ao fim
A primeira coisa de que temos de nos convencer é de que não é possível despedirmo-nos de um grande amor. Por duas razões: primeiro porque, se é amor, e se é grande, então não está só na memória, está espalhado pelo corpo todo: está-nos gravado nas mãos, na pele, alterou-nos a expressão do rosto, o olhar, os cabelos, mudou-nos os sonhos e o modo como vemos o mundo. Em consequência, mesmo que a dor da separação fosse insuportável e quiséssemos atirar todo esse amor pela janela, não o conseguiríamos fazer. Ele ganhou corpo em nós e, se a outra parte da relação partiu, agora devemos abrir todas as nossas portas e janelas e dar à saudade um tempo longo, para que nos visite demorada e intimamente - como se fizesse parte da casa - para que nos limpe e purifique. Todos sabemos o que custa. As saudades doem como álcool sobre ferida aberta. Deixam-nos prostrados como num campo de batalha, impotentes como soldado mutilado. Essas dores declaram quão ligados estávamos àquela pessoa, quanto do nosso espaço interior estava ocupado pela sua tenda. E devemos aceitar que precisamos de um longo período, em silêncio, sozinhos, na cama, a recuperar. Mas sentir a saudade até ao fim significa que também ela deve ter um fim - temos de lhe pôr termo! Não podemos deixar-nos estar numas saudades que, de deserto, se transformam rapidamente em areias movediças. Quando entramos na fase da vitimização é sinal de que temos de nos pôr rapidamente a andar. É porque chegou o tempo de despedirmos as saudades. Já podem ir embora. Mas temos ou não temos o direito de continuar a sentir saudades? Sim, claro - ela há-de fazer as suas visitas. E reclamar com Deus e com a vida? Óbvio. Mas, enquanto fazemos isso, temos de passar a canalizar a raiva que sintamos para a ação: "Pronto, já chega. Já chorei o que tinha a chorar. Agora vou-me embora daqui, senão morro". Chega a fase seguinte.
2) Aproveitemos as lições do amor passado
O amor – como as águas – se o deixamos parado, estagnado, começa a inquinar o nosso coração e dá cabo de nós. Há que se fazer alguma coisa. Assim como o fogo precisa do oxigénio, da mesma maneira precisamos de pôr o amor a circular para fora de nós. Por isso, o amor que descobrimos e desenvolvemos com aquela pessoa de quem nos despedimos, há de ser posto em circulação: já não naquela relação que tínhamos, mas aplicado na relação com as pessoas concretas que temos à nossa volta, aquelas que continuam a fazer parte da nossa vida. Não nos podemos enganar continuando a viver dentro da ficção – seja ela feita de filmes na televisão ou na nossa cabeça – como se o outro ainda estivesse ao nosso lado. Se nos sentimos amados no passado e esse amor nos parecia sublime, então agora, na ausência do amado, é-nos dada a oportunidade de o vivermos de novo passando-o a outros e aprimorando aquilo que aprendemos.
3) Libertemo-nos das ilusões (ou seja, desiludamo-nos)
Um dos maiores problemas nas relações humanas é esperarmos dos outros o que não deveríamos esperar deles. Talvez esperássemos que fossem íntegros, retos, coerentes. Talvez esperássemos que suprissem todas as nossas necessidades de atenção e afeto. Talvez esperássemos que nunca falhassem e nunca nos faltassem. E, na verdade, não há ninguém que cumpra esses requisitos. Todos os amores são precários. E por serem tão grandes e insaciáveis o que os nossos desejos revelam é que, sim, fomos feitos para a relação com os outros, mas também fomos feitos para algo ainda maior. O vazio que sintamos quando levamos uma vida cheia, é fome de Deus. E só a Deus podemos pedir que seja Deus: só a Deus podemos pedir um amor puro, eterno, infinito. A Deus o que é de Deus; aos homens o que é dos homens.
4) Ponhamos as expectativas no lugar
Tudo isso permitirá pôr as expectativas no lugar. Claro que para quem acredita em Deus a realidade continua a ter a mesma dureza de sempre mas tudo se torna mais fácil porque, além de pôr as expectativas no lugar, não vamos exigir de ninguém que nos preencha todas as nossas carências. Ora isso coloca-nos um horizonte de esperança, em que o outro não tem de ser perfeito, completo, nem oni-qualquer coisa, e podemos amá-lo naquilo que é. E, por seu lado, Deus terá campo aberto para fazer aquilo que lhe compete. Afinal, Deus está ativamente interessado no nosso bem e no bem de quem amamos. E, já agora, no bem da pessoa de quem nos despedimos. Sim, porque o nosso coração pode ainda andar preocupado (e, portanto, ocupado) a pensar “como pode o outro viver sem mim? o que será dele?”. E se aprendermos a deixar o outro nas mãos de Deus, Ele não se importa. Antes pelo contrário, deseja isso mesmo e fá-lo-á com toda a competência. Quanto a nós, ficaremos aliviados de uma carga que nos seria insuportável e estaremos livres para continuar a amar na realidade presente. Passaremos a pensar: “ele?... ele está nas mãos do dono disto tudo. E eu? Eu também”. Pronto. Vamos em frente.
5) Aceitemos a realidade como ela é
Há vários aspectos que é bom relembrar:
a) Se calhar é óbvio – e talvez seja um lugar-comum -, mas é melhor insistir no ‘nível zero’ do que andar a fazer de conta que não sabemos isto: romances cor-de-rosa estilo ‘e-viveram-felizes-para-sempre’ cabem apenas nas vistas curtas das revistas e dos filmes de Hollywood (sorry!).
b) Para viver um amor inteiro, há que ter o coração partido – porque é o que temos. Não podemos sonhar com um amor verdadeiro sem que tenha algo de quebrado, partido, sofrido. Foi assim que Deus nos fez, parece-me pouco sensato desejar outra coisa. No fim descobriremos que a fragilidade é lugar de luz, lugar de revelação - do que somos e, num sentido último, do próprio Deus. Porque, de fato, não fomos feitos para sermos completos mas, sim, complementares. Não fomos feitos para sermos indivíduos mas pessoas intimamente constituídas pela relação com os outros. E isso não acontece com um coração irrepreensível, impecável, perfeito - que acabaria fechado e sozinho. Acontece de coração aberto - portanto carente, ferido, inacabado. Mas para chegarmos lá, precisamos de esbracejar um bom bocado e sermos socorridos ‘in extremis’ de afogamento no rio de tensões, perguntas, orgulhos, egoísmos e rebeldias que levamos dentro.
c) e, finalmente, há grandes amores que não são para serem vividos lado a lado: fácil de compreender? Nada. Mas é mesmo verdade? Acredito que sim. Pode haver uma série de razões. Mas, se ainda tivéssemos dúvidas, o mestre e ‘monumento ao amor’ que é Jesus Cristo, disse aos seus melhores amigos: “é bom para vós que Eu parta”. Como é que Ele podia dizer uma coisa dessas? Não sei, mas acrescentou: “não há maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos”. Poderia ter dito: “não há maior amor do que aquele em que os dois vivem juntos e felizes para sempre”; ou aquele em que... sei lá, tanta coisa que ele poderia ter dito. E afinal disse “dar a vida”. Bolas. Dar a vida não é fácil. Porque, se nos dizemos capazes de dar a vida ‘pelo’ outro, pode-nos ser pedido que não demos a vida ‘ao’ outro. Porquê? Porque há outras circunstâncias a considerar, porque Deus nos pede outra coisa, porque o outro (pode nem ele perceber porquê mas) sente que deve partir. Em todo o caso, Jesus diz ainda: "fazei como Eu vos fiz". Ora isso dá-nos uma ótima pista: podemos confiar que há um sentido profundo em repetir para outros, o amor que alguém começou por nos oferecer - mesmo que esse primeiro amor tenha partido para longe ou para sempre.
6) Acreditemos na generosidade da providência
Deus deu, Deus levou.
Deus levou, Deus dará.
Assim como a providência de Deus nos presenteou com aquela relação especial no passado – e ela terá surgido de uma forma esperada ou inesperada, ponderada ou repentina – temos tudo para acreditar que Deus não terá esgotado os seus recursos. Imaginação e criatividade não faltam a Deus para inventar novas portas e janelas por onde alguém especial pode entrar. Será uma nova amizade? Uma paixão repentina? Será a reconfiguração de uma relação que estava adormecida ou esquecida? Será que é um tipo de relação que não estaria à espera? Um grupo novo de amigos? Tudo é possível. Isto é: tudo é possível se não estivermos fechados em casa e metidos na cama, a lamber as feridas. A vida trata sempre de abrir novos horizontes e tê-los-á ao nosso dispor enquanto estivermos vivos. Não será com ‘aquela’ pessoa, não será agora, não será neste lugar. Ou talvez seja - sabe-se lá. A vida não pára de nos surpreender com novos tons, novas texturas, novos paladares de amor.
7) Aceitemos amar precariamente
Depois disto tudo, estaremos mais preparados para assumir o amor como ele é. Por isso deixo também este texto quebrado, incompleto, assim como quebrado e incompleto é o amor. Seja como for, é a melhor coisa que podemos experimentar nesta vida. Coração partido e carente? Temo-lo todos. Levamos a marca da fome, da sede. Ansiamos por um amor pleno, íntegro, total. Está-nos escrito na pele. E vamos encontrando faíscas, brilhos, reflexos desse amor uns nos outros. Mas não o podemos atingir por completo nem possuir porque isso acabaria com ele e só em Deus o podemos encontrar definitivamente e em pleno. Quando estivermos face a face, aí sim, será o momento. Até lá, arregacemos as mangas e façamos tudo para amar (e falhar), amar (e falhar), amar (e pedir ajuda a Deus e aos outros para não falhar tanto) e amar melhor, cada um dos dias da nossa vida. Quando chegarmos ao Céu teremos os nossos nomes escritos no livro da vida. Amem.
Estas linhas estão encharcadas de experiências e palavras que me ensinaram tudo o que sei sobre o amor. Agradeço do fundo do meu coração a quem as partilhou comigo.
João Delicado
(Portugal)
Texto extraído do Blog "Ver para além do olhar"
A primeira das seis propostas que Italo Calvino faz para o próximo milénio (este que estamos a viver) é a reconquista da leveza. Se tudo no tempo parece empurrar-nos com ilimitada gravidade para a rasura, temos de entender, então, a leveza como o ato de contrariar esse peso. De fato, somos chamados a “aliviar” a espessura de tudo aquilo que obscurece o texto do mundo e nos obscurece. A leveza é uma espécie de pacto a estabelecer com a transparência. E, progressivamente, deverá tornar-se um estilo, uma dicção, um modo esperançoso de habitar a nossa história.
Com Calvino aprendemos duas coisas importantes sobre a leveza: a primeira de todas é que ela nos pede uma arte de resistência, pois só reconquistamos a leveza a custo de uma paciente luta (a maior parte das vezes connosco próprios); a segunda é a necessidade de ativarmos a nossa capacidade de deslocação (na verdade, só um olhar peregrino possui a agilidade espiritual para não se deixar sequestrar pelo desânimo).
Fixemo-nos na primeira: uma atitude de resistência. A leveza convoca-nos para a redescoberta das fontes profundas e adormecidas do nosso Ser e da linguagem. Num mundo de ruído, de mensagens que se atropelam, de imagens que se devoram (e nos devoram) de tão repetidas e sobrepostas há que combater a banalização. Mergulhados num excesso de signos, nem nos damos bem conta da pobreza simbólica com que construímos, dia a dia, a nossa vida. Tornamo-nos mais consumidores, que criadores. A nossa ação confunde-se com um automatismo que renuncia à vocação que o gesto, a palavra ou o silêncio têm de impregnar o mundo de sentido. Precisamos de leveza, então. Isto é, de exatidão. Sim, não se pense que a leveza é simplesmente uma forma mais ligeira de conduzir a realidade, pois ela nada tem de ligeireza ou de superficialidade. Com razão, Calvino cita um verso de Paul Valéry: «É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma». «Leve como o pássaro», quer dizer, autêntico, preciso, consistente. A leveza não tem a ver com plumas, mas com a aprendizagem do que é voar, do que é ascender, do que é desprender-se para ser. A leveza é uma escolha.
A segunda tarefa passa pela sabedoria de não ficar aprisionado a um modo único de olhar a realidade. Italo Calvino explica-a deste modo: «Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que […] eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle». A leveza desafia-nos não a mudar de vida ou a romper com aquilo que estruturalmente somos. Pelo contrário, ela supõe uma aceitação. Mas incita-nos incessantemente a olhar a realidade quotidiana com olhos novos. Escrevia Saramago na conclusão do seu “Viagem a Portugal”: «Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem…».
José Tolentino Mendonça
Caminhar... A vida é seguir em frente, haja o que houver, um passo após o outro, como o rio que flui sem medo, assim é o fluir da vida, é o cantar do rio. Ela segue e não nos pede licença. Vez ou outra pensamos ser donos da vida, ledo engano... A vida é algo muito mais grandioso do que nosso pobre pensar. Nós é que somos seus, seres vivos, mergulhados no mistério infinito da força dinâmica que a tudo transforma.
Caminhar é uma palavra própria do meu tempo, mas não revela o que tento descobrir ou somente dizer. No silêncio da alma, lá onde o pensamento cala e a simplicidade existe, sou habitada por diversas palavras. Elas brincam, são crianças a bailar com leveza sob o ritmo da música do rio da vida. Da mesma forma que surgem imagens no contemplar das nuvens, as palavras surgem em mim quando contemplo o fluir da água que passa entre meus dedos sem resistências. Há palavras que moram na gente, essas procedem de Deus, nos devolvem o sentido da vida e apenas estão esquecidas no emaranhado que se forma em nosso consciente. “As palavras que vos disse são espírito e vida” (Jo 6,63). Para ouvi-las é necessário encontrar o silêncio da alma.
Eis que brota a palavra: peregrinar... Com ela surgem imagens, desejos que viajam no tempo, rompem as barreiras do espaço e me revelam sentimentos que tento compreender, como essa solidão que cisma de me acompanhar, esse vazio que me preenche de mistérios feitos de acontecimentos, sinais, ausências, presença e tanta carência...
Colho a palavra com o mesmo cuidado de um jardineiro que colhe uma rosa. Peregrinar... tento sentir seu perfume que acorda certas emoções que me desinstalam, levam-me a um outro lugar, meu lugar... Mas o pensamento é estranho, interpela o sentir buscando dar significados. Penso na figura de um peregrino: ser que caminha em busca de algo. Surge Jesus, o peregrino de todos os tempos em busca de nossos corações para nos libertar da falta de sentido, para nos dar a vida plena, a alegria que ninguém rouba... “Mas vos verei de novo e vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16,22). Nem sempre ele soube o que iria acontecer. “Quanto à data e à hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu nem o Filho, somente o Pai” (Mc 13,32). Cada passo revelava o caminho a seguir, cada pessoa expandia mais sua missão, como no encontro com a mulher estrangeira que lhe pede para curar a filha e ele percebe que não veio apenas para os judeus, mas para toda a humanidade (Mt 15, 21-28). Ah... quanto me identifiquei com Ele em suas andanças! Também uma vez ouvi um chamado, fiz uma experiência profunda de me sentir amada por Deus, isso mudou o itinerário de toda minha vida. O chamado passou a ser mais importante que o caminho. O caminho que a razão tinha traçado com detalhes, em companhia de meus pensamentos, tão dedicados, fora completamente abandonado. Iniciei minha peregrinação.
Deparo-me com a trajetória feita até aqui. Na incerteza para onde o chamado me apontava, peregrinei repleta de dúvidas. Lembrei-me de uma música do Renato Russo que dizia: “A dúvida é o preço da pureza e é inútil ter certeza.” Sim, é da incerteza que se vive a fé! Afinal, “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se vêem” ( Hb 11,1). E peregrinei pelas estradas da vida na companhia da minha fé. No cansaço dos passos a lembrança da experiência do chamado me sustentou. A certeza de estar no caminho certo surgia no encontro com as pessoas e daquilo que conseguíamos edificar. Iniciei um caminho na vida real abandonando ilusões, como a de ser dona da própria vida e ser independente. O chamado fez de mim uma peregrina, nasci de novo, com olhos curiosos, dependente da vida do mundo inteiro, pois me senti parte da vida gerada por Deus. O chamado faz-me recordar quem realmente sou: peregrina em busca de Deus, minha origem, meu fim.
As experiências mais doces que fiz da presença de Deus foi através do amor dos meus pais, do meu marido e do amor que nasceu em mim quando Deus me fez mãe. No meu cotidiano, o Senhor teve mais trabalho para que eu o reconhecesse. Hoje vejo que nessa trajetória não existem fronteiras, ser peregrino é abrir-se ao inesperado e ir encontrando o sentido que dá vida em cada ser sagrado. Deus se revela, se dá a conhecer em cada olhar. Ao me configurar peregrina abandonei mais que ilusões, tive que deixar as malas do passado que carregava pensando ter nelas a segurança e o controle que o mundo tanto valoriza. O peregrino aceita não saber. Que segurança e controle podemos ter no mundo? Com nossas preocupações não podemos acrescentar um só segundo à nossa existência, tão efêmera (Lc12, 25). Só em Deus podemos confiar e entregar de fato nossa vida.
Nas estações da natureza vemos as mudanças... Folhas caem, flores desabrocham, as chuvas vem, o sol devolve a cor. Os olhos de peregrina revelam a constante santificação da disposição de encontrar o Senhor a todo instante. Vivemos nossas mortes cotidianas, banhadas em lágrimas e tristeza que trazem uma incomparável beleza ao caminho que se trilha, por ser verdadeiro. Vivemos nossa pequenez diante das separações daqueles que amamos, na esperança de que daqui a pouco os veremos novamente. A esperança nos devolve o sorriso da fé.
De qualquer forma, prefiro estar nesse mundo a peregrinar do que simplesmente a caminhar. Embora pareça tão similar, cada palavra é carregada de seu próprio mistério. Em mim peregrinar traduz melhor minha forma de existir, me ajuda a acolher esse sentimento de orfandade que ora me ocupa os olhos com lágrimas de dor. Ajuda-me a lembrar que devo continuar a dar passos na certeza de que não caminho sozinha, embora em muitos momentos a solidão me acompanhe, a presença de Deus se revela em tudo que me cerca. A exemplo daqueles que se foram e que deixaram uma história de vida entumecida de um sentido pleno de amor incondicional, sigo peregrinando nesse mundo em busca de Deus...
Lilian Carvalho
“Se você não mover os pés, não reconhecerá o ritmo da vida”
O peregrino é alguém que “entra” numa terra estranha, que se afasta dos apoios comuns da existência; é alguém livre, que “saboreia” cada passo em cada momento, que não se acomoda num determinado lugar, que está sempre na expetativa do novo, do diferente, do inesperado...
A estrada, são os caminhos do mundo... de Portugal, da Espanha, do Brasil... Mas é muito mais a senda de mistério e luz que o Senhor o faz seguir no decorrer de suas longas caminhadas.
Na estrada do peregrino há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, desafios que despertam a criatividade, ousadia que ultrapassa o momento histórico...
Há o imprevisto, o acontecimento inesperado, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as mudanças de rumo... Há o encontro com “fiéis e infiéis”, companheiros que se agregam, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão...
Finalmente, a estrada aproxima o peregrino, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais livre, mais autêntico, mais rejuvenescido...
Anchieta é o homem “peregrino”: vai contemplar a outra face da fronteira geográfica e cultural, até então inédita para ele e para todos; busca viver em profundidade esta “experiência de travessia”, até os limites extremos do despojamento e de tudo. Percorre, a pé e de barco, todo o litoral brasileiro. Seu caminho tinha de ser desbravado com criatividade, ousadia e destemor. “Tinha o coração maior que o mundo...”
Anchieta é o homem de “fronteira”; há nele uma força interior que o arranca da acomodação, o coloca em contínuo movimento e o transforma em cidadão do mundo.
Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Invadido por uma paixão que não lhe dá repouso, Anchieta está presente em tudo, sem extraviar-se nunca na confusão das coisas. Tudo lhe interessa e em tudo deixa o seu “toque”: literatura, educação, medicina, teatro, catequese, botânica... Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Anchieta avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus e seus pobres preferidos.
O “seguidor de Jesus” é, em sua essência, mudança, movimento, dinamismo, energia... pois Deus não nos deu um espírito de timidez, de medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de participação.... A “fidelidade criativa” no mundo de hoje nos impulsiona a “inventar” constantemente, a “ousar” sem medo, a “deslocar-nos” sem parar, a “sair” de nossos esquemas fechados, mentalidades ultrapassadas, formalismos frios, modos de agir arcaicos...
Fidelidade criativa significa uma “leitura” atenta dos sinais dos tempos e abertura dócil a uma realidade em contínua mudança que define o campo de nossa criatividade. É a ousadia, motivada e sustentada pelo amor de Deus, mas também pelo zelo apostólico e por uma sensibilidade para perceber as novas “necessidades” do nosso tempo.
Para isso é importante reconhecer o momento atual, espreitar possibilidades de mudança... que os horizontes sejam ampliados, que a imaginação seja desempoeirada, que os sentidos sejam ativados, que se renovem os tecidos da alma e sejam removidos os véus do espírito... para que avancemos, como Anchieta, em direção às novas fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Isto consiste em colocar-nos nos “passos” de Deus, com suficiente visão da realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.
Textos bíblicos: Mt. 4,18-25 Mc. 4,1-9 Mt. 9, 9-13
Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a viver em “estado de êxodo”: existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, experiências por aceitar, ideias por experimentar... Ainda existe uma “terra desconhecida” que nos desafia, que suscita curiosidade, nos põe a caminho...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
A Campanha da Fraternidade de 2014, com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e o lema, “É para a liberdade que Cristo nos libertou”, coloca o dedo numa chaga aberta na sociedade.
No dia 14/09, a CAEC, Comissão Arquidiocesana das Escolas Católicas (BH), da qual faço parte, promoveu um seminário sobre o assunto, com a participação de inúmeros educadores. A Irmã Maria Helena Lima, da PUC-Minas, fez a apresentação do tema e o Deputado Nilmário Miranda descreveu o cenário a partir da visão da Frente Parlamentar em defesa dos Direitos Humanos.
No intervalo entre uma fala e outra, aconteceu uma intervenção da contadora de histórias Alessandra Nogueira. Com graça e leveza, ela apresentou uma visão lúdica sobre tema tão árido e pesado, contando e cantando a história do “homem do saco”.
Histórias infantis costumam ter muitas versões e variações sobre o mesmo tema. Com “o homem do saco” não é diferente. Na versão de Alessandra, encontro o mesmo refrão da história que ouvi, na minha infância: “canta, canta meu surrão, que eu te dou um beliscão!”.
“Surrão” era o saco onde o homem colocava crianças desobedientes que eram levadas (sequestro) de suas casas. O homem percorria aldeias e cidades, recolhendo dinheiro das pessoas que pagavam para ver “o surrão cantar” (tráfico humano, exploração de trabalho infantil e escravidão).
Na versão da minha família, o homem do saco chamava-se “Tibum Guererê”, não me perguntem por quê. O enredo era o mesmo e, no final, a menina sequestrada era salva pela mãe, que a resgatava do saco, colocando no lugar estrume de vaca para desespero do Tibum Guererê.
Minha infância já vai longe e nela, no imaginário de uma história infantil, a questão do tráfico humano já se fazia presente. Ao longo do tempo, um olhar atento, crítico, pode desnudar outras formas camufladas de tráfico humano. Famílias que traziam meninas pobres do interior para “ajudar a criar”, e que aqui, na capital, sob o manto dessa aparente caridade, eram submetidas à condição de empregadas domésticas num regime quase escravo, mantidas na ignorância, no analfabetismo, na submissão absoluta.
Hoje, com a globalização, a questão é mais complexa. No cenário internacional, o Brasil figura como um dos maiores “fornecedores” de homens, mulheres e crianças submetidos ao tráfico sexual no país e no exterior, assim como para trabalho forçado no próprio país. A Polícia Federal registra índices mais altos de prostituição infantil no Nordeste brasileiro.
Em grau menor, o Brasil é destino e trânsito de homens, mulheres e crianças usados no trabalho forçado e no tráfico sexual.
Um grande número de mulheres brasileiras é encontrado no tráfico sexual no exterior, quase sempre em países europeus, como Espanha, Itália, Portugal, Reino Unido, Holanda, Suíça, França e Alemanha, também nos Estados Unidos e em destinos mais distantes como o Japão. Algumas mulheres e crianças brasileiras também são submetidas ao tráfico sexual em países vizinhos, como Suriname, Guiana Francesa, Guiana e Venezuela.
Em menor escala, algumas mulheres de países vizinhos são exploradas pelo tráfico sexual no Brasil. Alguns transgêneros brasileiros são forçados à prostituição no país, e alguns homens e transgêneros brasileiros são explorados pelo tráfico sexual na Espanha e na Itália.
A pedofilia, na forma de turismo sexual infantil, continua sendo um problema grave, em especial nas cidades litorâneas e em complexos turísticos do Nordeste do Brasil. Turistas em busca de sexo com crianças normalmente vêm da Europa e, em menor escala, dos Estados Unidos.
Segundo a lei brasileira, o termo “trabalho escravo” pode significar trabalho forçado ou trabalho desempenhado durante jornada exaustiva ou em condições degradantes de trabalho. Não está claro quantas pessoas identificadas em situação de trabalho escravo são vítimas de tráfico: no entanto, estudo publicado em 2012 revelou que 60% dos trabalhadores entrevistados no trabalho escravo rural haviam sido submetidos aos principais indicadores do trabalho forçado.
Os que promovem esse tipo de exploração formam grupos poderosos e truculentos. Tem sido destaque na mídia o episódio do assassinato de três fiscais do Ministério do Trabalho e do motorista que os conduzia na região de Unaí, no norte de Minas, onde investigavam denúncias de trabalho escravo em fazendas da região.
A chacina aconteceu em 2004 e, até hoje, o julgamento dos acusados se arrasta na Justiça. Os mandantes do crime seriam fazendeiros e políticos influentes da região, considerados os maiores produtores de feijão do país.
Organizações da sociedade civil identificaram um forte vínculo entre degradação ambiental e desmatamento em áreas com incidência de trabalho escravo, em particular na Amazônia. Milhares de brasileiros são submetidos a trabalho escravo no país, em geral em fazendas de gado, acampamentos de mineração e extração de madeira, plantações de cana-de-açúcar e grandes fazendas produtoras de milho, algodão, soja e carvão, e também na construção civil e no desmatamento. Algumas crianças foram identificadas em situação de trabalho escravo na pecuária, no desmatamento, na mineração e na agricultura.
Vítimas do trabalho forçado costumam ser atraídas por recrutadores locais (conhecidos como gatos) com promessas de bom pagamento em estados do Nordeste, como Maranhão e Piauí, e em Tocantins e levadas para outros estados, em especial, Pará, Mato Grosso, Goiás e São Paulo, onde muitas delas são submetidas à escravidão por dívida, o chamado sistema de “barracão”, onde o trabalhador paga pela acomodação, alimentação e ferramentas quantias maiores que o salário, ficando “preso” ao patrão. Caso recente, descoberto pelas autoridades, revelou que as vítimas foram submetidas a um sistema de escravidão por dívida, na fabricação de tijolos, por mais de 30 anos.
O norte e o nordeste do Brasil já produziram vários mártires dessa luta, destacando-se, na nossa apagada memória, o padre Josimo Tavares, assassinado em Imperatriz, Maranhão, e a irmã missionária Dorothy Stang, morta a tiros no município de Anapu, no sudoeste paraense, em 12 de fevereiro de 2005. Na semana em que escrevo este artigo a Justiça do Pará condenou o mandante do crime, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, a 30 anos de prisão. Mas o que se tem visto é que, de recurso em recurso, os criminosos, amparados e competentes e caros advogados, vão adiando o cumprimento das sentenças, respondendo em liberdade pelas acusações, gerando um círculo vicioso de crime, impunidade e violência.
À margem da violência escandalosa que ocupa as manchetes da mídia, formas de exploração sutis e camufladas continuam presentes no tecido social. A servidão doméstica, em especial de meninas adolescentes, também continua sendo um problema no país.
Em menor escala, o Brasil é destino de homens, mulheres e crianças, provenientes da Bolívia, do Paraguai, do Peru e da China, para trabalho escravo em confecções de roupas e tecelagens clandestinas em grandes centros metropolitanos, principalmente em São Paulo. Algumas dessas fábricas clandestinas são subcontratadas por grandes empresas, várias delas internacionais. O problema veio à luz, recentemente, com o assassinato do garoto Brayan, filho de imigrantes bolivianos que trabalhavam em SP.
O Ministério do Trabalho publica uma “lista suja” na qual divulga os nomes de pessoas físicas e jurídicas identificadas pelo governo como responsáveis por trabalho escravo e que estão sujeitas a penalidades civis. Embora algumas ONGs, uma organização internacional e o Ministério do Trabalho citem a “lista suja” como ferramenta eficaz contra o trabalho escravo, estudo constatou que muitas empresas da lista não sofreram processos criminais.
Como vemos, “o homem do saco” continua ativo e presente em pleno terceiro milênio, convivendo com a tecnologia moderna e até se servindo dela para fazer o “seu surrão” cantar. Ou seja, teremos, no ano que vem um tema difícil de ser abordado, em especial no ambiente escolar, mas que faz parte de um cenário global e local diante do qual não podemos nos calar e omitir, até porque, neste cenário, nosso país ocupa lugar de infeliz destaque.
Eduardo Machado
Educador, escritor
As leituras do VII domingo do Tempo Comum contam muito do que é a pretensão cristã e porque é que o cristianismo se afirmou como uma alternativa, como novo modelo de vida.
Para pensarmos esta novidade, temos de perceber o que é que o cristianismo faz com duas categorias absolutamente sagradas, cada uma à sua maneira, quer do judaísmo, quer do mundo helenístico.
No universo greco-romano, o mais importante era a sabedoria e a sua procura incansável. O que o homem ou a mulher podiam aspirar de mais sagrado no mundo grego era encontrar a sophia, um caminho de sabedoria.
Quando visitamos a antiguidade clássica, o mais belo monumento é a emergência do pensamento humano, a construção da filosofia; pensemos, por exemplo, na escola de Atenas, Aristóteles, Platão, Sócrates, os sofistas. Era uma grande procura, através do conhecimento, a de encontrar sentido e significado para a vida.
Há uma enorme grandeza moral nestes ascetas, que dedicam a sua existência à procura do conhecimento e da racionalidade, tentando perceber qual será o caminho para realizar o coração do ser humano, para justificar o sentido da nossa presença no mundo, o porquê e para quê das nossas vidas.
Se há uma palavra sagrada no mundo helenístico do tempo em que o cristianismo surge, é a palavra "sabedoria". É uma palavra inalcançável, inspiradora, que todos procuravam, que todos queriam.
No mundo judaico, uma palavra igualmente fundamental era "templo", o lugar sagrado. O templo era a certeza de que o Deus transcendente era também o Deus histórico, o Deus que acompanha o seu povo, o Deus cuja glória, a Shekinah, habita num lugar concreto, e nós vamos até ele.
Do templo dimana tudo: os sacrifícios, o dia do perdão, o dia das expiações. E os judeus entregavam o dízimo para que a luz do templo não se extinguisse. Morrer sem ter peregrinado a Jerusalém era a maior das desgraças.
O templo era o lugar da evidência de Deus, a fonte de sentido, aquilo que estruturava a nação judaica, mas também a condição histórica, a cidadania judaica.
O cristianismo emerge assim num mundo em que o sagrado estava no conhecimento e no templo, a lei.
Em relação ao sagrado judaico, vamos ouvir S. Paulo, o primeiro grande intérprete cristão de Jesus, dizer, na carta aos Coríntios, que o templo é o corpo de cada um de nós. O templo somos nós. O lugar sagrado é a nossa vida. Porque o Espírito de Deus habita em cada um de nós.
Então já não estamos dependentes de um lugar, de uma raça, de uma etnia, de uma nação, de uma lei, de um código externo; é em nós que descobrimos Deus. Cada pessoa é o lugar onde Deus está.
Por isso temos de olhar para a nossa vida de outra maneira. Somos sujeitos diferentes porque o que nos caracteriza não é uma ligação a uma estrutura que está fora de nós, mas a descoberta de que Deus nos habita, de que Deus está em nós. E essa descoberta transforma a nossa vida.
Esta vida que por vezes nos custa abraçar, nos custa aceitar, nos custa entender; esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo é lugar de fragilidade, é lugar de dor; esta vida tão misteriosa que parece que nos escapa; esta vida é o santuário de Deus.
Esta vida que construímos dia a dia, esta vida que não existe em abstrato mas em concreto, nos nossos gestos, na nossa decisão, esta vida que não é apenas biológica mas é a vida ética, a vida sensual, a vida de amor, a vida de procura que em cada um de nós quotidianamente se efetua... Isto que nós somos, isto de inominável, de indecifrável, isto é o lugar de Deus.
Esta é uma transformação imensa que o cristianismo operou.
Por isso tenho de olhar para a minha vida como um lugar sagrado; tenho de olhar para a minha vida com outros olhos, com outra esperança, porventura com outra veneração. Tenho de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil que seja. Tenho de olhar para a vida com um coração diferente, um coração novo.
A nossa vida não é apenas um instrumento. Não estamos escravizados a nada; vivemos plenamente a nossa liberdade porque Deus está em nós. Por isso a nossa grande tarefa é descobrir o que somos, é tornarmo-nos naquilo que somos.
Este debate animou o cristianismo desde os primeiros séculos e levou um grande teólogo, Tertuliano, a dizer que o homem é naturalmente cristão. Ele não disse isso no sentido de que o cristianismo é um lugar automático, mas que é na nossa natureza, no fundo daquilo que somos, que temos de descobrir o que é isto de sermos filhos de Deus e de Deus habitar em nós.
Nenhuma vida é para deitar fora, nenhuma vida é para excluir, nenhuma vida é descartável, nenhuma vida é para ser pisada. A nossa vida tem esta dignidade de ser o templo, o lugar sagrado.
Em relação ao modelo da sabedoria, o cristianismo faz um movimento que os exegetas denominam de "autoestigmatização". Entendemos o alcance desta palavra nas palavras de S. Paulo: é preciso tornar-se louco.
Num mundo em que é a sabedoria que confere estatuto, é preciso tornar-se louco. Neste sentido, o cristão diz «eu vou por outro caminho, vou fazer de maneira diferente, considero-me um outsider; no mundo de sábios, quero ser louco».
Vemos esta loucura explicada no Evangelho de Jesus: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; isto é, não acreditar na força da violência, não acreditar na força do mais forte, não acreditar no "olho por olho, dente por dente".
Se alguém te quiser levar a tribunal, deixa-lhe tudo; se te obrigarem a acompanhar durante uma milha, acompanha durante duas; se te pedem emprestado, dá.
Estas palavras têm, ao mesmo tempo, um sentido literal e um sentido metafórico. Um sentido literal porque a palavra de Cristo é para levar a sério. Eu estou aqui a explicar, mas Deus me livre de alterar uma vírgula. A palavra é esta, e nós temos de nos haver com ela. A palavra de Cristo tem uma literalidade com a qual a nossa vida se há de confrontar sempre, como se fosse a primeira vez; e essa literalidade é que é o sentido definitivo.
Mas estas palavras de Jesus são também uma metáfora para dizer: «sê louco»; «sim, mas eu tinha direito a...» - «faz diferente, faz de outra forma». Isto é, foge às lógicas fechadas: «Ele disse-me aquilo, mas eu respondi-lhe na mesma moeda»; «ele fez assim, então vou agir em consonância».
Sermos capazes de romper os ciclos viciosos, os becos sem saída, o afunilamento das nossas histórias, e tentarmos uma coisa diferente. Em vez de odiar os inimigos, amá-los - isto é, ser capaz do perdão, ser capaz da compaixão, ser capaz de aceitar as humilhações. Santa Teresinha dizia que «muitas humilhações fazem a humildade»; e quando este princípio é bem entendido, é importante para que nos relativizemos, porque isto também nos purifica do ídolo que somos.
Amar aqueles que nos amam - claro; mas também amar aqueles que não nos amam. Ser capaz de outra sabedoria, de uma sabedoria que refunde a ordem das coisas, refunde a nossa história, refunde o próprio mundo.
Se o cristianismo é apenas cultural, é muito pouco. Se somos apenas pessoas sensatas, ponderadas, respeitadas, cumpridoras da lei, que pagamos os impostos e somos bons cidadãos... isto é o mínimo. Não é preciso ser cristão para fazermos essas coisas.
Que coisa é necessária para ser cristão? É preciso fazer um gesto que na sua extravagância, na sua rutura, assinale a diferença de Cristo, o salto qualitativo, o salto de amor que Cristo representa. Há um momento na nossa vida em que só um gesto destes nos pode salvar; há um momento na nossa vida em que só um gesto destes faz a diferença.
O cristianismo nasceu sem nenhuma força. Não tinha a seu lado a força de um pensamento, a força de uma cultura, a força do dinheiro, a força da cidadania... não tinha nada. Tinha apenas a certeza de que somos o lugar sagrado e este chamamento de Jesus a que sejamos loucos, a que sejamos capazes de caminhar contracorrente.
Ou vivemos contracorrente, expressando na nossa vida o que isso significa, numa lógica de amor e dádiva, ou então vivemos um conformismo social e cultural que dilui o cristianismo e o torna um folclore, e não um lugar de redenção e transformação das nossas vidas.
O cristianismo não se faz de massa mas das histórias individuais. Quantos lugares sagrados, que são a vida de cada um de nós, estão aqui?
Vamos pedir que o Espírito nos habite, nos fortaleça, nos dê a certeza do amor de Deus, confirme em nós o amor de Deus, e nos dê a capacidade de arriscar uma outra sabedoria, que muitas vezes é loucura aos olhos do mundo, mas outra coisa não é do que abraçar até ao fundo e até ao fim a cruz do Senhor.
Pe José Tolentino Mendonça
SNPC / 23.2.2014
Há conversões e vocações que nascem de grande choque. São Paulo se tornou o paradigma maior. Perseguidor dos cristãos se viu circundado por luz divina e de dentro dela saiu o apóstolo das gentes. Que vida de enorme zelo pela jovem fé cristã! Assim alguns entram para a vida religiosa, para ser jesuíta, depois de forte e estremecida experiência.
João, o apóstolo, bem jovem ouve seu mestre, também ele João, o Batista, dizer-lhe que aquele homem que lá caminhava pelas margens do Lago de Genesaré era o Messias. Na inocência dos anos juvenis, deixa pai, rede, barco e se põe a seguir a Jesus e morrerá, em alta idade, na fidelidade do mesmo Mestre. Paradigma de vocações que se desenvolvem de maneira quase natural, sem sobressaltos, nascidas por algum encontro casual na linguagem dos fatos e providencial sob o olhar da fé.
Ainda criança, um padre jesuíta perguntou-me que queria ser. Naqueles idos, facilmente, sem hesitar, era comum responder diante de um padre que se queria ser padre. Nada de formal nem decisivo. No entanto, tudo começou aí. Da resposta até ir para o Rio estudar com os jesuítas já tendo no horizonte tornar-se um dia um deles foi um pulo.
Os longos dos anos de contacto e formação com os jesuítas me foram forjando numa vocação bem plural como é a deles. Missão no estrangeiro, colégio, universidade, missões populares, vida intelectual, numa palavra, um leque amplo se me abriu diante dos olhos. E embarquei-me para valer nessa nau na qual estou até hoje.
Conjunturas e coincidências conduziram-me para a teologia. A nova trajetória iniciou com a função de diretor de estudos do Colégio de seminaristas brasileiros em Roma. Aí me concentrei na orientação das matérias teológicas que me levaram ao doutorado e depois à docência da teologia até o dia de hoje. Agradeço imensamente a Deus por essa jogada, imprevista, de lançar-me na peleja das Letras Sagradas.
Mais: não estudei teologia para ficar adscrito a uma Faculdade ou Universidade européia. Corri tal perigo e quase fiquei no Velho Continente. De novo, o pequeno aleatório me salvou. A casa de estudos de teologia dos jesuítas do Brasil me tinha solicitado antes e o povo de Roma respeitou tal pedido. E então voltei para o Brasil depois de mais de 10 anos na Europa.
Aqui fazer teologia é outra coisa. Estava nascendo a teologia da libertação. E logo me engajei nela. E faz parte dela não se dedicar unicamente à academia, ao estudo trancado no gabinete e sim imergir-se na realidade pastoral para a partir dela pensar a teologia.
Nos primeiros anos de volta da Europa dediquei-me a circular pelo Brasil, pelo Continente e alguns países da Europa falando da teologia da libertação, mas também bebendo experiências, sobretudo nos países da América Latina. Foram anos muito ricos e me fizeram mergulhar na realidade latino-americana.
Depois aterrissei mais no Brasil. Circulei por todo ele, do Rio Grande do Sul ao Acre. E finalmente acampei em Vespasiano. Aí bebo da seiva gostosa da vida paroquial. Tive a felicidade de encontrar uma paróquia viva e prestar então algum serviço concreto à comunidade em sintonia e em colaboração com o pároco Pe. Lauro. São já anos que aqui venho e dou um pouco de mim nas celebrações, cursos, visitas, atendimentos. A pastoral se alimenta da teologia e me alimenta a teologia. Existe uma circularidade que enriquece. Sou imensamente grato por tudo o que recebi e recebo do contacto com a vida paroquial. Como jesuíta, ajudando um padre diocesano, percebo duas coisas: confluência e complementaridade. Nossas intenções e propostas pastorais convergem e se pautam pelas decisões colegiadas das Assembléias. E pelo fato de eu ser jesuíta e teólogo contribuo com algum toque, por mais simples que seja, que soma ao conjunto da paróquia.
Que tem de fascinante uma vida de jesuíta? Por que ela me reteve tantos anos? E por que espero nela terminar os meus dias? A ordem jesuíta oferece excelentes oportunidades para boa formação espiritual e intelectual. E depois de formados, lança-nos no mundo, dando-nos ampla liberdade de ação apostólica. A missão recebida dos superiores delimita-nos o campo, mas dentro dele existe enorme o espaço de criatividade e originalidade. E, sobretudo cria dentro de nós consciência crítica e livre para “em tudo amar e servir”.
A fonte da vocação encontra-se no desejo, no entusiasmo e na alegria de servir o povo de Deus. Nada faz o ser humano ser tão feliz como colaborar no crescimento interior e espiritual das pessoas. Além desse nível estritamente pessoal, o trabalho pastoral estende, por diversas maneiras, a influência para campos mais vastos. No meu caso, lanço as sementes da Palavra de Deus por muitos rincões quer por escrito nos livros e artigos, quer nas pregações e palestras. E o Mestre maior, o Senhor Jesus, aproveita de nossas pequenas e simples palavras para fazer avançar o seu Reino. E na fé participar desse empreendimento apostólico carrega-nos a vida de sentido. Se algum jovem leitor, ele ou ela, sentir tocado/a pelo desejo de empreender aventura semelhante, que o Senhor lhe dê força e coragem!
Pe. João Batista Libânio
falecido em 30.01.2014
«Jesus começou a pregar: "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus".
Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde e segui-me e farei de vós pescadores de homens". Eles deixaram logo as redes e seguiram-no. Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco, na companhia de seu pai Zebedeu, a consertar as redes. Jesus chamou-os e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-no.
Depois começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.» (Do Evangelho do III Domingo do Tempo Comum)
A palavra inaugural de Jesus, premissa de todo o Evangelho, é «convertei-vos». E logo depois o "porquê" da conversão: porque o reino fez-se próximo. Ou melhor: Deus fez-se próximo, muito próximo de ti, envolve-te, está dentro de ti. Então, «converte-te» significa: volta-te para a luz, porque a luz já está aqui. A conversão não é a causa mas o efeito da tua «noite tocada pela alegria da luz» (Maria Zambrano).
Imaginava que a conversão era fazer penitência pelo passado, uma condição imposta por Deus para o perdão, pensava encontrar Deus como resultado e recompensa do meu empenho. Mas que boa notícia seria um Deus que dá segundo a minha prestação?
Jesus revela-nos que o movimento é exatamente o inverso: é Ele que me encontra, que vem até mim, que me habita. Gratuitamente. Antes que eu faça alguma coisa, antes que eu seja bom, Ele fez-se próximo. Então eu mudo de vida, mudo a luz, mudo o modo de entender as coisas.
Escreve o padre Giovanni Vannucci: «A verdade é que nós estamos imersos num mar de amor e não nos damos conta». Quando finalmente me dou conta, começa a conversão. Cai o véu dos olhos, como a Paulo em Damasco. Abandono a barca como os quatro pescadores, troco a pequena rede por algo de bem maior.
Jesus, ao passar, viu... Duas duplas de irmãos, duas barcas, um trabalho? Não, vê muito mais: em Simão bar Jonas vê Cefas, Pedro, a rocha sobre a qual funda a sua Igreja; em João intui o discípulo da mais fulgurante definição de Deus: Deus é amor. Tiago será «filho do trovão», alguém que tem dentro de si a vibração e o poder do trovão.
O olhar de Jesus é um olhar criador, uma profecia. Olha-me e vê em mim um tesouro enterrado, no meu inverno vê a semente que amadurece, uma generosidade que não sabia ter, estrada à luz do sol. No seu olhar vejo para mim a luz de horizontes maiores.
Vinde após mim: farei de vós pescadores de homens. Recolheremos homens para a vida. Transportá-los-emos da vida enterrada à vida luminosa. Responderemos à sua fome de liberdade, amor, felicidade.
Os quatro pescadores seguem-no de imediato, sem saber onde Ele os conduzirá, e também sem lhe perguntar: já têm dentro de si as estradas do mundo e o coração de Deus.
Jesus caminhava pela Galileia e anunciava a boa-nova, caminhava e curava a vida. A extraordinária notícia é que Deus caminha contigo, sem condições, para curar cada mal, para curar a ferida que a vida te infligiu e os teus enganos de amor. Deus está contigo e cura. Deus está contigo, com amor: a única coisa que cura a vida.
É este o Evangelho de Jesus: Deus convosco, com amor.
Pe. Ermes Ronchi
25.01.2014
Na celebração de Natal da minha família, minha cunhada, Ana, nos presenteou com um texto que lhe foi dado por uma amiga budista, e que dizia assim:
Conta uma antiga lenda que o mestre de um mosteiro estava à morte e mandou reunir todos os seus discípulos.
- Até aqui, fui o mestre de vocês e sempre lhes ensinei como falar com Deus. Agora, que estou partindo ao Seu encontro, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês guardaram bem o lugar sagrado na floresta, onde eu invoco a Deus? Pois bem, vão até lá sempre que quiseram falar com Ele. Façam uma fogueira, bem no centro da clareira, exatamente como eu lhes ensinei. Em seguida, façam a oração, usando as mesmas palavras que eu sempre usei. Façam exatamente assim, e Deus virá a vocês.
Depois que o Mestre morreu, a primeira geração dos seus discípulos obedeceu religiosamente às suas instruções, e Deus sempre veio.
A segunda geração de discípulos, porém, se esqueceu do modo exato de acender a fogueira, assim como o mestre ensinara. Mesmo assim, iam até o lugar sagrado, ficavam lá, parados, faziam a oração, e Deus vinha.
Na terceira geração as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira nem sabiam o lugar exato, na floresta. Mas reuniam-se, diziam a oração, e mesmo assim Deus vinha.
Na quarta geração ninguém se lembrava de acender fogueiras, ninguém sabia mais que havia um lugar sagrado na floresta, e, finalmente, não conseguiam se recordar nem das palavras da oração.
Mas um deles ainda se lembrava de que havia uma história sobre pessoas que se reuniam para falar com Deus. E que elas se amavam e se queriam bem. Ele compartilhou isso em voz alta. E Deus veio...
A pequena parábola me lembrou outra, de outro mestre, Rubem Alves. Ele conta:
Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um século, conservada, como muitas que por lá existem. No entanto, havia muitas coisas a serem consertadas. Tudo teria que ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores novas ele achou melhor raspar das paredes a cor velha, um azul sujo e desbotado. Raspado o azul, debaixo dele surgiu uma cor rosa, mais velha ainda que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu o creme, e depois do creme o branco...
Cada morador havia coberto a cor anterior com uma cor nova, reforma após reforma, mudança após mudança...
E assim, meu amigo foi indo, pacientemente, raspando camada após camada. Queria chegar à cor original, que apareceria depois que todas as camadas de tinta fossem raspadas. Até que o trabalho, finalmente, terminou. E o que encontrou foi uma surpresa inesperada que o encheu de alegria.
Na última raspagem, na textura primeira, original, mais bonita que qualquer tinta, a madeira mais linda, o maravilhoso Pinho de Riga, com nervuras e desenhos formando sinuosos arabescos de cor castanha sobre um imponente fundo marfim.
Esta noite, em todos os cantos do mundo, famílias, comunidades, amigos estarão reunidos festejando a chegada de mais um ano a que chamaremos novo.
Muita gente, talvez, terá esquecido que toda festa é, na verdade, um ritual. E todo ritual conta uma história. A Eucaristia cristã, católica, acontece ao redor de uma mesa. Sobre ela, há comida e bebida. Há música, cantos, palavras compartilhadas, pessoas que se alegram por se encontrar, por estarem juntas, em comunhão.
Em todas as crenças, e até nas descrenças, há ritos assim. Mesmo que as pessoas não saibam ou não se recordem da sacramentalidade das coisas, dos objetos, da profundidade dos gestos, da universalidade das palavras.
Onde houver um desejo que nos aproxime, ao redor de uma mesa ou em qualquer lugar, na emoção de um abraço, na saudade que brota, espontânea, nesses momentos mágicos e místicos em que o coração humano se aproxima da beleza original, do lugar sagrado de onde todos viemos, onde há amor, Deus não precisa vir.
Ele já está.
Feliz Ano Novo!
Eduardo Machado
Escritor e professor
31/12/2013
Sois imenso, e fizestes-vos pequenino; sois rico, e fizestes-vos pobre; sois onipotente, e fizestes-vos frágil
«O povo que andava nas trevas viu uma grande luz» (Is 9, 1). Esta profecia de Isaías não cessa de nos comover, especialmente quando a ouvimos na liturgia da Noite de Natal. E não se trata apenas de um fato emotivo, sentimental; comove-nos, porque exprime a realidade profunda daquilo que somos: somos povo em caminho, e ao nosso redor – mas também dentro de nós – há trevas e luz. E nesta noite, enquanto o espírito das trevas envolve o mundo, renova-se o acontecimento que sempre nos maravilha e surpreende: o povo em caminho vê uma grande luz. Uma luz que nos faz refletir sobre este mistério: o mistério do andar e do ver.
Andar. Este verbo faz-nos pensar no curso da história, naquele longo caminho que é a história da salvação, com início em Abraão, nosso pai na fé, que um dia o Senhor chamou convidando-o a partir, a sair do seu país para a terra que Ele lhe havia de indicar. Desde então, a nossa identidade de crentes é a de pessoas peregrinas para a terra prometida. Esta história é sempre acompanhada pelo Senhor! Ele é sempre fiel ao seu pacto e às suas promessas. «Deus é luz, e n’Ele não há nenhuma espécie de trevas» (1 João 1, 5). Diversamente, do lado do povo, alternam-se momentos de luz e de escuridão, fidelidade e infidelidade, obediência e rebelião; momentos de povo peregrino e de povo errante.
E, na nossa historia pessoal, também se alternam momentos luminosos e escuros, luzes e sombras. Se amamos a Deus e aos irmãos, andamos na luz; mas, se o nosso coração se fecha, se prevalece em nós o orgulho, a mentira, a busca do próprio interesse, então calam as trevas dentro de nós e ao nosso redor. (...)
A graça que se manifestou no mundo é Jesus, nascido da Virgem Maria, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Entrou na nossa história, partilhou o nosso caminho. Veio para nos libertar das trevas e nos dar a luz. N’Ele manifestou-se a graça, a misericórdia, a ternura do Pai: Jesus é o Amor feito carne. Não se trata apenas de um mestre de sabedoria, nem de um ideal para o qual tendemos e do qual sabemos estar inexoravelmente distantes, mas é o sentido da vida e da história que pôs a sua tenda no meio de nós.
Os pastores foram os primeiros a ver esta «tenda», a receber o anúncio do nascimento de Jesus. Foram os primeiros, porque estavam entre os últimos, os marginalizados. E foram os primeiros porque velavam durante a noite, guardando o seu rebanho. Com eles, detemo-nos diante do Menino, detemo-nos em silêncio. Com eles, agradecemos ao Pai do Céu por nos ter dado Jesus e, com eles, deixamos subir do fundo do coração o nosso louvor pela sua fidelidade: Nós Vos bendizemos, Senhor Deus Altíssimo, que Vos humilhastes por nós. Sois imenso, e fizestes-Vos pequenino; sois rico, e fizestes-Vos pobre; sois onipotente, e fizestes-Vos frágil.
Nesta Noite, partilhamos a alegria do Evangelho: Deus ama-nos; e ama-nos tanto que nos deu o seu Filho como nosso irmão, como luz nas nossas trevas. O Senhor repete-nos: «Não temais» (Lucas 2, 10). E vo-lo repito também eu: Não temais! O nosso Pai é paciente, ama-nos, dá-nos Jesus para nos guiar no caminho para a terra prometida. Ele é a luz que ilumina as trevas. Ele é a nossa paz. Amem.
Homilia de Natal do Papa Francisco - 25.12.2013
Edição: Rui Jorge Martins
SNPC | 25.12.13
Entrevista do Papa Francisco ao jornal La Stampa
"O Natal para mim é esperança e ternura...".Francisco relata ao La Stampa o seu primeiro Natal como bispo de Roma.
Casa Santa Marta, terça-feira, 10 de dezembro, 12h50min. O papa nos acolhe em uma sala ao lado do refeitório. O encontro duraria uma hora e meia. Por duas vezes, durante a conversa, desaparece do rosto de Francisco a serenidade que todo o mundo aprendeu a conhecer, quando ele se refere ao sofrimento inocente das crianças e fala da tragédia da fome no mundo.
Na entrevista, o papa também fala das relações com as outras confissões cristãs e do "ecumenismo de sangue" que as une na perseguição. Ele se refere às questões do casamento e da família que serão abordadas pelo próximo Sínodo, responde aos que o criticaram nos EUA definindo-o como "um marxista" e fala da relação entre Igreja e política.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no jornal La Stampa, 15-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O que significa o Natal para o senhor?
É o encontro com Jesus. Deus sempre procurou o seu povo, conduziu-o, conservou-o, prometeu estar sempre perto dele. No livro do Deuteronômio, lemos que Deus caminha conosco, nos conduz pela mão como um pai faz com o filho. Isso é bonito. O Natal é o encontro de Deus com o seu povo. E é também uma consolação, um mistério de consolação. Muitas vezes, depois da missa da meia-noite, eu passei algumas horas sozinho, na capela, antes de celebrar a missa da aurora. Com esse sentimento de profunda consolação e paz. Lembro uma vez aqui em Roma, acho que era o Natal de 1974, uma noite de oração depois da missa na residência do Centro Astalli. Para mim, o Natal sempre foi isto: contemplar a visita de Deus ao seu povo.
O que o Natal diz ao homem de hoje?
Ele nos fala da ternura e da esperança. Deus, encontrando-nos, nos diz duas coisas. A primeira é: tenham esperança. Deus sempre abre as portas, nunca as fecha. Ele é o pai que abre as portas. Segundo: não tenham medo da ternura. Quando os cristãos se esquecem da esperança e da ternura, tornam-se uma Igreja fria, que não sabe para onde ir e se refreia nas ideologias, nas atitudes mundanas. Enquanto a simplicidade de Deus te diz: segue em frente, eu sou um Pai que te acaricia. Tenho medo quando os cristãos perdem a esperança e a capacidade de abraçar e acariciar. Talvez por isso, olhando para o futuro, eu falo muitas vezes das crianças e dos idosos, isto é, dos mais indefesos. Na minha vida de padre, indo à paróquia, eu sempre tentei transmitir essa ternura, especialmente às crianças e aos idosos. Me faz bem e me faz pensar na ternura que Deus tem por nós.
Como se pode acreditar que Deus, considerado pelas religiões como infinito e onipotente, se faz tão pequeno?
Os Padres gregos chamavam isso de synkatabasis, condescendência divina. Deus que desce e está conosco. É um dos mistérios de Deus. Em Belém, no ano 2000, João Paulo II disse que Deus se tornou uma criança totalmente dependente dos cuidados de um pai e de uma mãe. Por isso, o Natal nos dá tanta alegria. Não nos sentimos mais sozinhos, Deus desceu para estar conosco. Jesus se fez um de nós e sofreu por nós na cruz, o fim mais horrível, o de um criminoso.
O Natal é apresentado muitas vezes como uma fábula açucarada. Mas Deus nasce em um mundo onde há também muito sofrimento e miséria.
O que lemos nos Evangelhos é um anúncio de alegria. Os evangelistas descreveram uma alegria. Não se fazem considerações sobre o mundo injusto, sobre como Deus faz para nascer em um mundo assim. Tudo isso é fruto de uma contemplação nossa: os pobres, a criança que deve nascer na precariedade. O Natal não foi a denúncia da desigualdade social, da pobreza, mas sim um anúncio de alegria. Todo o resto são consequências que nós tiramos. Algumas certas, algumas menos certas, outras ainda ideologizadas. O Natal é alegria, alegria religiosa, alegria de Deus, interior, de luz e de paz. Quando não se tem a capacidade ou se está em uma situação humana que não permite compreender essa alegria, vive-se a festa com a alegria mundana. Mas, entre a alegria profunda e a alegria mundana, há diferença.
É o seu primeiro Natal [como papa], em um mundo onde não faltam conflitos e guerras...
Deus nunca dá um dom a quem não é capaz de recebê-lo. Se Ele nos oferece o dom do Natal é porque todos nós temos a capacidade de compreendê-lo e recebê-lo. Todos, desde o mais santo ao mais pecador, do mais limpo ao mais corrupto. O corrupto também tem essa capacidade: pobrezinho, talvez a tenha um pouco enferrujada, mas a tem. O Natal, neste tempo de conflitos, é um chamado de Deus, que nos dá esse dom. Queremos recebê-lo ou preferimos outros presentes? Este Natal, em um mundo conturbado pelas guerras, me faz pensar na paciência de Deus. A principal virtude de Deus explicitada na Bíblia é que Ele é amor. Ele nos espera, nunca se cansa de nos esperar. Ele dá o dom e depois nos espera. Isso também acontece na vida de cada um de nós. Há aqueles que o ignoram. Mas Deus é paciente, e a paz, a serenidade da noite de Natal é um reflexo da paciência de Deus conosco.
Em janeiro, serão 50 anos da histórica viagem de Paulo VI à Terra Santa. O senhor também irá?
O Natal sempre nos faz pensar em Belém, e Belém está um ponto preciso, na Terra Santa, onde Jesus viveu. Na noite de Natal, eu penso acima de tudo nos cristãos que vivem lá, naqueles que têm dificuldades, em muitos deles que tiveram de deixar aquela terra por vários problemas. Mas Belém continua sendo Belém. Deus veio em um ponto determinado, em uma terra determinada, lá apareceu a ternura de Deus, a graça de Deus. Não podemos pensar no Natal sem pensar na Terra Santa. Cinquenta anos atrás, Paulo VI teve a coragem de sair para ir lá, e assim começou a época das viagens papais. Eu também desejo ir até lá, para encontrar o meu irmão Bartolomeu, patriarca deConstantinopla, e com ele comemorar esse cinquentenário, renovando o abraço entre o Papa Montini e Atenágoras, ocorrido em Jerusalém em 1964. Estamos nos preparando para isso.
O senhor encontrou-se várias vezes com crianças gravemente doentes. O que se pode dizer diante desse sofrimento inocente?
Um mestre de vida para mim foi Dostoiévski, e aquela sua pergunta, explícita e implícita, sempre girou no meu coração: por que as crianças sofrem? Não há explicação. Vem-me esta imagem: em um certo ponto da sua vida, a criança se "desperta", não entende muitas coisas, se sente ameaçada, começa a fazer perguntas ao pai ou à mãe. É a idade dos "porquês". Mas, quando o filho pergunta, ele não ouve tudo o que você tem a dizer. Ele logo pressiona você com novos "porquês". O que ele busca, mais do que a explicação, é o olhar do pai que dá segurança. Diante de uma criança sofredora, a única oração que me vem é a oração do porquê. "Senhor, por quê?" Ele não me explica nada. Mas eu sinto que Ele me olha. E assim eu posso dizer: "Tu sabes o porquê, eu não sei, e Tu não me o dizes. Mas Tu me olhas, e eu confio em Ti, Senhor, confio no teu olhar".
Falando do sofrimento das crianças, não podemos esquecer a tragédia daqueles que passam fome.
Com a comida que sobra e jogamos fora, poderíamos dar de comer a muitos. Se conseguíssemos não desperdiçar, reciclar a comida, a fome no mundo diminuiria muito. Fiquei impressionado ao ler uma estatística que fala de 10 mil crianças mortas de fome a cada dia no mundo. Há muitas crianças que choram porque têm fome. Outro dia, na audiência da quarta-feira, atrás de uma barreira, havia uma jovem mãe com o seu bebê de poucos meses. Quando eu passei, a criança chorava muito. A mãe o acariciava. Eu lhe disse: "Senhora, acho que o pequeno tem fome". Ela respondeu: "Sim, já está na hora"... Eu respondi: "Mas dê-lhe de comer, por favor!" Ela tinha pudor, não queria amamentá-lo em público, enquanto o papa passava. Eis, eu gostaria de dizer o mesmo para a humanidade: deem de comer! Aquela mulher tinha leite para o seu bebê. No mundo, temos comida suficiente para saciar a todos. Se trabalharmos com as organizações humanitárias e conseguirmos estar todos de acordo em não desperdiçar comida, fazendo com que ela chegue a quem dela precisa, daremos uma grande contribuição para resolver a tragédia da fome no mundo. Gostaria de repetir à humanidade o que eu disse àquela mãe: deem de comer a quem tem fome! Que a esperança e a ternura do Natal do Senhor nos sacudam da indiferença.
Alguns trechos da Evangelii gaudium atraíram-lhe as acusações dos ultraconservadores norte-americanos. Qual é a sensação de um papa ao ouvir que é definido como "marxista"?
A ideologia marxista é equivocada. Mas, na minha vida, eu conheci muitos marxistas bons como pessoas, e por isso eu não me sinto ofendido.
As palavras que mais chamaram a atenção são aquelas sobre a economia que "mata"...
Na exortação, não há nada que não se encontre na Doutrina Social da Igreja. Eu não falei de um ponto de vista técnico. Eu tentei apresentar uma fotografia do que acontece. A única citação específica foi sobre as teorias da "recaída favorável", segundo as quais todo crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue produzir por si só uma maior equidade e inclusão social no mundo. Havia a promessa de que, quando o copo estivesse cheio, ele transbordaria, e os pobres seriam beneficiados com isso. O que acontece, ao invés, é que, quando está cheio, o copo magicamente se engrandece, e assim nunca sai nada para os pobres. Essa foi a única referência a uma teoria específica. Repito, eu não falei como técnico, mas segundo a doutrina social da Igreja. E isso não significa ser marxista.
O senhor anunciou uma "conversão do papado". Os encontros com os patriarcas ortodoxos lhe sugeriram algum caminho concreto?
João Paulo II falara de modo ainda mais explícito de uma forma de exercício do primado que se abra a uma situação nova. Mas não só do ponto de vista das relações ecumênicas, mas também nas relações com a Cúria e com as Igrejas locais. Nesses primeiros nove meses, eu recebi a visita de muitos irmãos ortodoxos, Bartolomeu, Hilarion, o teólogo Zizioulas, o copta Tawadros: este último é um místico, entrava na capela, tirava os sapatos e ia rezar. Senti-me seu irmão. Eles têm a sucessão apostólica. Eu os recebi como irmãos bispos. É uma dor ainda não poder celebrar a Eucaristia juntos, mas a amizade existe. Acredito que o caminho é este: amizade, trabalho comum e rezar pela unidade. Abençoamo-nos uns aos outros, um irmão abençoa o outro, um irmão se chama Pedro, e o outro se chama André, Marcos, Tomás...
A unidade dos cristãos é uma prioridade para o senhor?
Sim, para mim o ecumenismo é prioritário. Hoje, existe o ecumenismo do sangue. Em alguns países, matam os cristãos porque carregam uma cruz ou têm uma Bíblia, e, antes de matá-los, não lhes perguntam se são anglicanos, luteranos, católicos ou ortodoxos. O sangue é misturado. Para aqueles que matam, somos cristãos. Unidos no sangue, embora entre nós ainda não consigamos dar os passos necessários rumo à unidade, e talvez o tempo ainda não chegou. A unidade é uma graça, que deve ser pedida. Eu conhecia um pároco em Hamburgo que acompanhava a causa de beatificação de um padre católico guilhotinado pelos nazistas porque ensinava o catecismo às crianças. Depois dele, nas filas dos condenados, havia um pastor luterano, morto pelo mesmo motivo. O sangue deles se misturou. Aquele pároco me contava que tinha ido ao encontro do bispo e lhe dissera: "Eu continuo acompanhando a causa, mas de todos os dois, e não só do católico". Esse é o ecumenismo do sangue. Ele também existe hoje, basta ler os jornais. Aqueles que matam os cristãos não pedem para você a carteira de identidade para saber em qual Igreja você foi batizado. Devemos levar em consideração essa realidade.
Na exortação, o senhor convidou a escolhas pastorais prudentes e audazes com relação aos sacramentos. A que o senhor se referia?
Quando eu falo de prudência, não penso em uma atitude paralisante, mas sim em uma virtude de quem governa. A prudência é uma virtude de governo. A audácia também é. Deve-se governar com audácia e com prudência. Eu falei do batismo e da comunhão como alimento espiritual para seguir em frente, a serem considerados como um remédio, e não como um prêmio. Alguns logo pensaram nos sacramentos para os divorciados em segunda união, mas eu não entrei em casos particulares: eu só queria indicar um princípio. Devemos buscar facilitar a fé das pessoas, mais do que controlá-la. No ano passado, na Argentina, eu havia denunciado a atitude de alguns padres que não batizavam os filhos das mães solteiras. É uma mentalidade doente.
E quanto aos divorciados em segunda união?
A exclusão da comunhão para os divorciados que vivem uma segunda união não é uma sanção. É bom lembrar disso. Mas eu não falei disso na exortação.
O próximo Sínodo dos Bispos irá tratar disso?
A sinodalidade na Igreja é importante: falaremos sobre o matrimônio em seu conjunto nas reuniões do consistório em fevereiro. Depois, o tema será abordado no Sínodo Extraordinário de outubro de 2014 e, novamente, durante o Sínodo Ordinário do ano seguinte. Nesses âmbitos, muitas coisas serão aprofundadas e se esclarecerão.
Como procede o trabalho dos seus oito "conselheiros" para a reforma da Cúria?
O trabalho é longo. Quem queria fazer propostas ou enviar ideias o fez. O cardeal Bertello recolheu os pareceres de todos os dicastérios vaticanos. Recebemos sugestões dos bispos de todo o mundo. Na última reunião, os oito cardeais disseram que chegamos ao momento de fazer propostas concretas, e no próximo encontro, em fevereiro, eles me entregarão as suas primeiras sugestões. Eu sempre estou presente nos encontros, exceto na manhã da quarta-feira, por causa da audiência. Mas eu não falo, apenas ouço, e isso me faz bem. Um cardeal idoso, há alguns meses, me disse: "O senhor já começou a reforma da Cúria com a missa cotidiana em Santa Marta". Isso me fez pensar: a reforma começa sempre com iniciativas espirituais e pastorais, antes que com mudanças estruturais.
Qual é a relação certa entre a Igreja e a política?
A relação deve ser ao mesmo tempo paralela e convergente. Paralela, porque cada um tem o seu caminho e as suas diversas tarefas. Convergente, apenas em ajudar o povo. Quando as relações convergem primeiro, sem o povo, ou não se importando com o povo, começa aquele conúbio com o poder político que acaba apodrecendo a Igreja: os negócios, os compromissos... É preciso prosseguir paralelamente, cada um com o seu próprio método, as suas próprias tarefas, a sua própria vocação. Convergentes só no bem comum. A política é nobre, é uma das formas mais altas de caridade, como dizia Paulo VI. Nós a sujamos quando a usamos para os negócios. A relação entre a Igreja e o poder político também pode ser corrupta, se não converge no bem comum.
Posso perguntar-lhe se teremos mulheres cardeais?
É uma brincadeira que saiu não sei de onde. As mulheres na Igreja devem ser valorizadas, e não "clericalizadas". Quem pensa nas mulheres cardeais sofre um pouco de clericalismo.
Como está o trabalho de limpeza do IOR?
As comissões referentes estão trabalhando bem. O Moneyval nos deu um relatório bom, estamos no caminho certo. Sobre o futuro do IOR, veremos. Por exemplo, o "banco central" do Vaticano seria a APSA [Administração do Patrimônio da Sé Apostólica]. O IOR foi instituído para ajudar as obras de religião, missões, as Igrejas pobres. Depois se tornou como é agora.
Há um ano, o senhor podia imaginar que celebraria o Natal de 2013 em São Pedro?
Absolutamente não.
Esperava ser eleito?
Não esperava. Eu não perdi a paz enquanto os votos aumentavam. Permaneci tranquilo. E essa paz ainda existe agora, eu a considero um dom do Senhor. Terminado o último escrutínio, levaram-me ao centro da Capela Sistina e me perguntaram se eu aceitava. Eu respondi que sim, disse que me chamaria Francisco. Apenas então me afastei. Eles me levaram para a sala adjacente para trocar de hábito. Depois, pouco antes de me assomar, me ajoelhei para rezar por alguns minutos, juntamente com os cardeais Vallini e Hummes, na Capela Paulina.
Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas.
O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos.
Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.
A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16.
Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los.
Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância.
Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor.
Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard.
O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.
A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade.
Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história.
"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.
Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.
Luiz Felipe Pondé
(texto publicado na Folha de São Paulo em 28/10/2013)
Dias atrás entrei na catedral de Santiago do Chile. Minha mulher, discípula de Guimarães Rosa, para quem "quanto mais religião melhor", adora todo e qualquer santo. Eu, mais miserável nesse assunto, apesar de não religioso, sou facilmente capturado pelo aspecto estético e sublime de templos sagrados. Foi um prazer ver e ouvir aquela missa "en chileno".
A catedral silenciosa, discreta e com pouca luz, com sua altura gigantesca, nos ajudava a lembrar nosso lugar no mundo -que não me venham os inteligentinhos fazer o blá-blá-blá da crítica à religião, porque a conheço desde o jardim da infância.
Sentir-se "em seu justo lugar no mundo" é parte clássica de toda boa espiritualidade, contra esse narcisismo dos "direitos do Eu total" de hoje, essa coisa "ninja brega".
Este "justo lugar no mundo" é parte daquilo que o historiador das religiões Mircea Eliade chama de perceber que não somos o "axis mundi" (o eixo do mundo). Toda verdadeira espiritualidade deve nos ajudar a vivenciar este "descentramento" de nosso próprio valor.
O mistério me encanta e me faz sentir menos banal. A sensação da banalidade de tudo me esmaga continuamente. Sou um peregrino da falta de sentido. Uma testemunha da noite escura da alma de San Juan de la Cruz e Terrence Malick. Não levo a sério ateus militantes que ainda acham que ateísmo é "evolução espiritual". Para mim, ateísmo é, apenas, o modo mais óbvio de ser e um estágio elementar em filosofia.
Fiquei ateu com oito anos. Alguém poderia dizer que com os anos me tornei um ateu encantado pelo "personagem" Deus e pela possibilidade de existir o perdão no mundo, justamente porque, no fundo, não o merecemos. Sou cego, mas pressinto o espaço à minha volta.
O padre em sua homilia falava da alegria da vida. O papa Francisco quando cá esteve tocou neste tema, falando da "religião da alegria". Não se trata de autoajuda, como pode parecer aos desinformados, mas da mais fina teologia moral cristã (e judaica também). O que é essa alegria? Vejamos.
A vida é precária. A pobreza (material, espiritual, psicológica) é como a gravidade, na hora em que relaxamos, ela nos consome. É uma questão de tempo. Nosso caminho é "para baixo". Não é à toa que tomamos antidepressivos o tempo todo, cada um se vira como pode. A solidariedade na melancolia devia nos unir a todos. O que não perdoo na autoajuda é que ela mente para nosso justo desespero dizendo que ele é mera questão de incompetência.
É aqui que começa a consistência da teologia da alegria a qual se refere o papa Francisco: temos todas as razões "materiais" do mundo para sermos tristes, o milagre é não sermos tristes todo o tempo.
Confiar na vida é quase impossível. A fé na vida é um mistério e um dom. Muito mais caro do que a inteligência e a cultura -não as desprezo, porque inclusive elas são quase tudo que tenho. Este é o sentido de fé como "estar acompanhando" em sua encíclica "A Luz da Fé".
A alegria da qual falava o padre chileno e o papa Francisco é a "alegria teologal", aquela que nasce das três virtudes teologais básicas: a esperança, a fé e a caridade (o amor).
Ter esperança, crer na vida e amar são experiências que separam a infância espiritual da maturidade d'alma. O desespero é o caminho mais curto entre dois momentos na vida. A esperança é que é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é. Por isso, toda literatura espiritual séria começa pelo vale das sombras.
Dizer que uma virtude é teologal é dizer que ela é fruto da graça de Deus, não uma dedução a partir dos fatos do mundo. Dos fatos, apenas deduzimos o desespero. Mas, por isso mesmo, esta alegria, quando nos visita, tem o hálito divino, por sua própria quase total impossibilidade de ser, para quem reconhece o vale das sombras à nossa volta. Na mística, esta alegria pode nos levar às lágrimas. Este é o conhecido "dom das lágrimas", marca de quem vê a beleza do mundo em meio ao véu absoluto do desespero.
Nada a ver com religião como muleta, mas sim com uma espiritualidade de quem caminha só, eternamente, entre sombras.
Luiz Felipe Pondé
Texto publicado na Folha de São Paulo em 26/08/2013
A ação do papa e a nova época para a Igreja que ele prefigura também têm efeitos sobre o mundo laico. Já se falou dos males da Igreja e das reformas de que ela precisa, mas eu acho que seria sábio se perguntar se também não existe algo na mente laica que precise ser reformado. A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 04-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Iniciará realmente uma nova época para a Igreja e, portanto, inevitavelmente, também para a sociedade, como prefigurava Scalfari na conclusão da entrevista com o Papa Francisco? O que surpreende nas respostas do papa é o ponto de vista assumido, um inédito olhar extra moenia ou "fora dos muros", que não pensa o mundo a partir da fortaleza-Igreja, mas, exatamente o contrário, pensa a Igreja a partir do mundo. Nos seus raciocínios, não há traço algum da costumeira perspectiva eclesiástica centrada no bem da Igreja e na defesa a priori da sua doutrina, da sua história, dos seus privilégios e dos seus bens tão frequentemente objeto de cuidado zeloso por parte dos eclesiásticos de todos os tempos (um monumento do pensamento católico como oDictionnaire de Théologie Catholique dedica nove páginas ao vocábulo "Bem" e 18 ao vocábulo "Bens eclesiásticos"!).
Ao contrário, há um pensamento que tem na mira unicamente o bem do mundo, e, por isso, o papa pode dizer que o problema mais urgente da Igreja é o desemprego dos jovens e a solidão dos idosos. Não as igrejas, os conventos e os seminários semivazios; não o relativismo cultural; não o sentir moral do nosso tempo tão diferente da moral católica; não a ameaça à vida e ao modelo tradicional de família. Não, o desemprego dos jovens e a solidão dos idosos.
O fato de ter assumido o bem do mundo como ponto de vista privilegiado levou o papa às duas seguintes afirmações capitais: 1) a Igreja não está preparada para o primado da dimensão social, ao contrário, há nela uma perspectiva vaticanocêntrica que produz uma nociva dimensão cortesã ("a corte é a lepra do papado"); 2) historicamente, ela nunca foi livre das fusões com a política – e, a esse propósito, a Igreja italiana de Ruini e Bagnasco deveria recitar muitos mea culpa por não ter denunciado a "imoralidade pública e privada de quem governava a Itália durante anos, dos quais, ao contrário, chegou até a contextualizar benignamente as blasfêmias públicas.
Mas a ação do papa e a nova época para a Igreja que ele prefigura pode não ter efeitos também sobre o mundo laico? Já se falou dos males da Igreja e das reformas de que ela precisa, mas eu acho que seria sábio se perguntar se também não existe algo na mente laica que precise ser reformado. É só a Igreja que deve mudar, ou a mudança e a reforma também interessam àqueles que se declaram laicos e não crentes? Naturalmente, que essas insígnias encontram-se os ideais mais variados, da extrema direita à extrema esquerda, e eu aqui me limito a discutir o pensamento laico progressista representado por Scalfari.
À pergunta do papa sobre o objeto do seu crer, Scalfari respondeu dizendo: "Eu acredito no Ser, isto é, no tecido do qual surgem as formas, os Entes", e pouco depois especificou que "o Ser é um tecido de energia, energia caótica, mas indestrutível e em eterna caoticidade", atribuindo a combinações casuais a emergência das formas, incluindo o homem, "o único animal dotado de pensamento, animado por instintos e desejos", mas que contém dentro de si também "uma vocação de caos".
Em suma, Scalfari se professou, como já havia feito nos seus livros, um discípulo de Nietzsche. Mas o que falta nessa visão do mundo? Tratando-se de uma herança daquele que quis ir "para além do bem e do mal", falta, obviamente, a possibilidade de fundar a ética como primado incondicional do bem e da justiça. Para Nietzsche, de fato, o Ser é um "monstro de força, sem princípio, sem fim, uma quantidade de energia fixa, como o bronze", o mundo "é a vontade de poder e nada mais".
Mas se o mundo é isso, segue-se daí que o liberalismo, como vontade de poder que só quer incrementar a si mesma, é a sua consequência mais lógica. Por que, portanto, se deveria lutar em nome da justiça, da solidariedade, da igualdade? Como não dar razão a Nietzsche que considerava esses ideais somente um truque velhaco dos fracos, incapazes de lutar com armas iguais com os fortes? Se o ser é só caos e força, a ação que busca a paz e a justiça está destinada, inevitavelmente, a permanecer sem fundamento.
Há muito tempo tenho pensado que a cultura progressista vive a grande aporia da incapacidade de fundamentar teoricamente a sua própria ideia-mãe, isto é, a justiça. Darwin substituiu Marx, e Nietzsche (atento leitor de Darwin) tornou-se o ponto de referência para muitos. O resultado é Darwin + Nietzsche, ou "o eterno retorno da força", isto é, uma visão obscura e machista do mundo, segundo a qual a força e a luta são a lógica fundamental da vida.
Se chegou o tempo de uma Igreja que dê mais espaço ao feminino, também chegou o tempo de um pensamento laico igualmente capaz de hospedar o feminino, entendendo-se com isso uma visão do mundo e da natureza que faça da harmonia e da relacionalidade o ponto de vista privilegiado.
De Aristóteles a Spinoza a Nietzsche, a substância sempre foi pensada como prioritária com respeito à relação: antes os entes e depois as relações entre eles. Hoje, a ciência nos ensina (esse é o sentido filosófico da descoberta do bóson de Higgs) que o contrário é verdadeiro, que antes há a relação e depois a substância, no sentido de que todos os entes são o resultado de um entrecruzamento de relações e tanto mais consistem quanto mais se alimentam de relações fecundas.
Esse é o pensamento feminino, um pensamento do primado da relação, contra o pensamento masculino baseado no primado da substância, e é escusado dizer que o pensamento feminino não significa necessariamente pensamento das mulheres, porque todo ser humano contém a dimensão feminina, e há mulheres que pensam e agem no masculino (considere-se, por exemplo, Margaret Thatcher, sem falar de algumas políticas italianas), enquanto há homens que pensam e agem no feminino (pense-se, por exemplo, em Gandhi e antes ainda em Buda ou em Jesus).
Eu penso que o nosso tempo realmente precisa de um novo paradigma da mente, de uma ecologia da mente no sentido etimológico de redescoberta do logos que informa o oikos, o termo grego para "casa", do qual vem a raiz "eco" e que se refere à natureza.
Scalfari, no seu credo, insiste no caos e não se equivoca, porque o caos é uma dimensão constitutiva da natureza; não é a única, porém, há também o logos, a cuja ação organizadora se deve a emergência da poeira cósmica primordial dos entes e da sua maravilha, incluindo a mente e o coração do homem.
Os grandes sábios da humanidade sempre entenderam isso, chamando o logos também de dharma, tao, hokmà etc., dependendo da sua tradição. Cito deliberadamente um pensador não cristão, o pagão Plotino: "Mais de uma vez aconteceu de eu me reaver, saindo do sono do corpo, e de me estranhar de tudo, nas profundezas do meu eu; nessas ocasiões, eu gozava da visão de uma beleza tão grande quanto fascinante que me convencia, então como nunca, de fazer parte de um destino mais elevado, realizando uma vida mais nobre: em suma, de ser equiparado ao divino, constituído sobre o mesmo fundamento de um deus" (Enéadas IV, 8, 1).
A união de logos + caos é a dinâmica dentro da qual o mundo se move e evolui. Ela nos faz compreender que a verdade não é uma exatidão, uma fórmula, uma equação, um dogma ou uma doutrina, em suma, algo estático. A verdade é a lógica da vida enquanto estendida à harmonia, portanto é um processo, uma dinâmica, um fluxo, uma energia, um método, uma via. A verdade é o bem enquanto harmonia das relações.
Nesse sentido Jesus dizia: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", certamente não pretendendo com isso exaltar o seu ego em um supremo narcisismo cósmico, mas prefigurando o seu estilo de vida baseado no amor como aquilo que melhor serve o Ser.
Decorre daí uma visão do mundo na qual a ontologia cede o primado à ética, isto é, na qual o verdadeiro não pode ser alcançado se não passando pelos caminhos do bem, e o amor se torna a suprema forma do pensar. Amor ipse intellectus, ensinava o místico medieval Guilherme de Saint-Thierry.
Os crentes são chamados a se renovar, e eu penso que, com humildade, sob a orientação desse papa extraordinário, muitos estão começando a fazê-lo. Mas os não crentes também são chamados a renovar a sua mente à luz do Ser não só caos, mas também logos, isto é, relacionalidade original em nível físico, que fundamenta o bem em nível ético. Talvez assim o ideal da justiça e da igualdade no centro do pensamento progressista mundial será removido das névoas do bonismo dos indivíduos e radicado em uma visão mais harmoniosa do mundo.
Publicado no IHU em 09.10.2013
Mas o que é a alegria? A alegria é expansão pessoalíssima e profunda. Não há duas alegrias iguais, como não há duas lágrimas ou dois prantos iguais. A alegria é uma gramática singular. Por um lado, tem uma expressão física, mas, por outro, conserva uma natureza evidentemente espiritual. Não se reduz a uma forma de bem-estar ou a um conforto emocional, embora se possa traduzir também dessas maneiras. A alegria é uma revelação da vida profunda. É abrir uma porta, um caminho, um corredor para a passagem do Espírito.
No espaço teológico e eclesial, infelizmente, a alegria tornou-se um motivo tratado com alguma parcimônia. Falamos pouco do Evangelho da Alegria e, entre tudo aquilo que assumimos como dever, como tarefa, raramente ele está. O dever da alegria, estarmos quotidianamente hipotecados à alegria, enviados em nome da alegria, não nos é tantas vezes recordado quanto devia. As nossas liturgias, pregações, catequeses e pastorais abordam a alegria quase com pudor.
Isto para dizer que a alegria tornou-se um tópico mais ou menos marginal, uma espécie de subtema e, por vezes, até uma espécie de interdito. Nietzsche dizia que o cristianismo seria mais credível se os cristãos parecessem alegres. Que fizemos nós do Evangelho da Alegria?
Definimo-nos culturalmente como homo faber, homem artesão, fabricante, aquele que se realiza na própria ação. E distanciamos da nossa própria vida o horizonte do homo festivus, isto é, o que é capaz de celebrar, aquele que conduz a criação à sua plenitude.
A alegria nasce do acolhimento. Nasce quando aceitamos construir a vida numa cultura de hospitalidade. Há um filme de Ingmar Bergman em que uma personagem é uma rapariga anoréxica - e sabemos como a anorexia é uma forma de desistir da própria vida, de desinvestir afetivamente. A moça vai falar com um médico e ele diz-lhe isto, que também vale para todos nós: «Olha há só um remédio para ti, só vejo um caminho: em cada dia deixa-te tocar por alguém ou por alguma coisa». A alegria é esta hospitalidade.
José Tolentino Mendonça
É diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
(Texto publicado in: Agência Ecclesia - 24.09.13)
Publicamos abaixo a carta enviada pelo Papa Francisco ao Jornal La Republica e publicada dia 11.09.2013. A carta é uma resposta a indagações feitas pelo Jornalista Eugenio Scalfari.
Eis o texto:
Ilustríssimo Doutor Scalfari, é com viva cordialidade que, embora somente em grandes linhas, gostaria de tentar com esta minha carta responder à sua, que, a partir das páginas do La Repubblica, o senhor quis me endereçar no dia 7 de julho com uma série de reflexões pessoais suas, que depois o senhor enriqueceu nas páginas do mesmo jornal, no dia 7 de agosto.
Agradeço-lhe, acima de tudo, pela atenção com que quis ler a Encíclica Lumen fidei. Ela, de fato, na intenção do meu amado Antecessor, Bento XVI, que a concebeu e em grande medida a redigiu, e do qual, com gratidão, eu a herdei, é dirigida não somente para confirmar na fé em Jesus Cristo aqueles que nela já se reconhecem, mas também para suscitar um diálogo sincero e rigoroso com aqueles que, como o senhor, se definem como "um não crente há muitos anos interessado e fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré".
Parece-me, portanto, certamente positivo não só para nós, individualmente, mas também para a sociedade em que vivemos determo-nos para dialogar sobre uma realidade tão importante como a fé, que se refere à pregação e à figura de Jesus. Eu penso que há, em particular, duas circunstâncias que tornam hoje necessário e precioso esse diálogo.
Ele, aliás, constitui, como se sabe, um dos objetivos principais do Concílio Vaticano II, desejado por João XXIII, e do ministério dos Papas que, cada um com a sua sensibilidade e o seu aporte, desde então e até hoje caminharam no sulco traçado pelo Concílio. A primeira circunstância – como se refere nas páginas iniciais da Encíclica – deriva do fato que, ao longo dos séculos da modernidade, assistiu-se a um paradoxo: a fé cristã, cuja novidade e incidência sobre a vida do ser humano, desde o início, foram expressadas precisamente através do símbolo da luz, foi muitas vezes rotulada como a escuridão da superstição que se opõe à luz da razão. Assim, entre a Igreja e a cultura de inspiração cristã, de um lado, e a cultura moderna de marca iluminista, de outro, chegou-se à incomunicabilidade. Chegou agora o tempo, e o Vaticano II inaugurou justamente a sua época, de um diálogo aberto e sem preconceitos que reabra as portas para um sério e fecundo encontro.
A segunda circunstância, para quem busca ser fiel ao dom de seguir Jesus na luz da fé, deriva do fato de que esse diálogo não é um acessório secundário da existência do crente: ao invés, é uma expressão íntima e indispensável dela. Permita-me citar-lhe, a propósito, uma afirmação a meu ver muito importante da Encíclica: como a verdade testemunhada pela fé é a do amor – sublinha-se – "resulta claro que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; ao contrário, a verdade o torna humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e nos possui. Longe de nos enrijecer, a segurança da fé nos põe a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos" (n. 34). É esse o espírito que anima as palavras que eu lhe escrevo.
A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus. Um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência. Mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela comunidade de fé em que eu vivia e graças à qual eu encontrei o acesso à inteligência da Sagrada Escritura, à vida nova que, como água que jorra, brota de Jesus através dos Sacramentos, à fraternidade com todos e ao serviço dos pobres, imagem verdadeira do Senhor. Sem a Igreja – acredite-me –, eu não teria podido encontrar Jesus, embora na consciência de que aquele imenso dom que é a fé é custodiado nos frágeis vasos de barro da nossa humanidade.
Ora, é precisamente a partir daí, dessa experiência pessoal de fé vivida na Igreja, que eu me sinto confortável para ouvir as suas perguntas e para buscar, junto com o senhor, as estradas ao longo das quais possamos, talvez, começar a fazer um trecho de caminho juntos.
Perdoe-me se eu não seguir passo a passo as argumentações propostas pelo senhor no editorial do dia 7 de julho. Parece-me mais frutífero – ou, ao menos, é mais natural para mim – ir de certo modo ao coração das suas considerações. Não vou entrar nem na modalidade expositiva seguida pela Encíclica, em que o senhor entrevê a falta de uma seção dedicada especificamente à experiência histórica de Jesus de Nazaré.
Observo apenas, para começar, que uma análise desse tipo não é secundária. Trata-se, de fato, seguindo, além disso, a lógica que guia o desdobramento da Encíclica, de deter a atenção sobre o significado do que Jesus disse e fez, e, assim, em última instância, sobre o que Jesus foi e é para nós. As Cartas de Paulo e o Evangelho de João, aos quais se faz referência particular na Encíclica, são construídos, de fato, sobre o sólido fundamento do ministério messiânico de Jesus de Nazaré que chegou ao seu auge resolutivo na páscoa de morte e ressurreição.
Portanto, é preciso se confrontar com Jesus, eu diria, na concretude e na rudeza da sua história, como nos é narrada sobretudo pelo mais antigo dos Evangelho, o de Marcos. Constata-se então que o "escândalo" que a palavra e a práxis de Jesus provocam em torno dele deriva da sua extraordinária "autoridade": uma palavra, esta, atestada desde o Evangelho de Marcos, mas que não é fácil traduzir bem em italiano. A palavra grega é "exousia", que, literalmente, refere-se ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou forçado, portanto, mas de algo que emana de dentro e que se impõe por si só. Jesus, com efeito, impressiona, surpreende, inova a partir – ele mesmo o diz – da sua relação com Deus, chamado familiarmente de Abbá, que lhe confere essa "autoridade" para que ele a gaste em favor dos homens.
Assim, Jesus prega "como quem tem autoridade", cura, chama os discípulos a segui-lo, perdoa... todas coisas que, no Antigo Testamento, são de Deus, e somente de Deus. A pergunta que mais vezes retorna no Evangelho de Marcos: "Quem é este que...?", e que diz respeito à identidade de Jesus, nasce da constatação de uma autoridade diferente da do mundo, uma autoridade que não tem como fim exercer um poder sobre os outros, mas servi-los, dar-lhes liberdade e plenitude de vida. E isso até o ponto de pôr em jogo a sua própria vida, até experimentar a incompreensão, a traição, a rejeição, até ser condenado à morte, até desabar no estado de abandono sobre a cruz. Mas Jesus permanece fiel a Deus, até o fim.
E é precisamente então – como exclama o centurião romano aos pés da cruz, no Evangelho de Marcos – que Jesusse mostra, paradoxalmente, como o Filho de Deus! Filho de um Deus que é amor e que quer, com todo o seu próprio ser, que o ser humano, cada ser humano, se descubra e viva também ele como seu verdadeiro filho. Isso, para a fé cristã, é certificado pelo fato de que Jesus ressuscitou: não para trazer novamente o triunfo sobre quem o rejeitou, mas para atestar que o amor de Deus é mais forte do que a morte, o perdão de Deus é mais forte do que todo o pecado, e que vale a pena gastar a própria vida, até o fim, para testemunhar esse imenso dom.
A fé cristã crê nisto: que Jesus é o Filho de Deus que veio para dar a sua vida para abrir a todos o caminho do amor. Por isso, o senhor tem razão, ilustre Dr. Scalfari, quando vê na encarnação do Filho de Deus o eixo da fé cristã.Tertuliano já escrevia: "Caro cardo salutis", a carne (de Cristo) é o eixo da salvação. Porque a encarnação, isto é, o fato de que o Filho de Deus veio na nossa carne e compartilhou alegrias e dores, vitórias e derrotas da nossa existência, até o grito da cruz, vivendo todas as coisas no amor e na fidelidade ao Abbá, testemunha o incrível amor que Deus tem por cada ser humano, o valor inestimável que lhe reconhece. Cada um de nós, por isso, é chamado a fazer seu o olhar e a escolha de amor de Jesus, a entrar no seu modo de ser, de pensar e de agir. Essa é a fé, com todas as expressões que são descritas pontualmente na Encíclica.
Ainda no editorial do dia 7 de julho, o senhor me pergunta, além disso, como entender a originalidade da fé cristã, uma vez que ela se articula justamente na encarnação do Filho de Deus com relação a outras fés que gravitam, ao invés, em torno da transcendência absoluta de Deus.
A originalidade, eu diria, está precisamente no fato de que a fé nos faz participar, em Jesus, da relação que Ele tem com Deus que é Abbá e, nessa luz, da relação que Ele tem com todos os outros seres humanos, incluindo os inimigos, no sinal do amor. Em outros termos, a filiação de Jesus, como ela é apresentada pela fé cristã, não é revelada para marcar uma separação intransponível entre Jesus e todos os outros: mas para nos dizer que, n'Ele, todos somos chamados a ser filhos do único Pai e irmãos entre nós. A singularidade de Jesus é pela comunicação, não pela exclusão.
Certamente, segue-se também disso – e não é uma coisa pequena – aquela distinção entre a esfera religiosa e a esfera política que é sancionada no "dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César", afirmada com clareza por Jesus e sobre a qual, laboriosamente, se construiu a história do Ocidente. A Igreja, de fato, é chamada a semear o fermento e o sal do Evangelho, isto é, o amor e a misericórdia de Deus que alcançam todos os seres humanos, apontando para a meta ultraterrena e definitiva do nosso destino, enquanto à sociedade civil e política cabe a tarefa árdua de articular e encarnar na justiça e na solidariedade, no direito e na paz, uma vida cada vez mais humana. Para quem vive a fé cristã, isso não significa fuga do mundo ou busca de qualquer hegemonia, mas sim serviço ao ser humano, a todo o ser humano e a todos os seres humanos, a partir das periferias da história e mantendo desperto o senso da esperança que impulsiona a fazer o bem apesar de tudo e olhando sempre além.
O senhor me pergunta também, na conclusão do seu primeiro artigo, o que dizer aos irmãos judeus acerca da promessa feita a eles por Deus: ela foi totalmente esvaziada? Esta é – acredite-me – uma interrogação que nos interpela radicalmente, como cristãos, porque, com a ajuda de Deus, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos que o povo judeu ainda é, para nós, a raiz santa a partir da qual germinou Jesus. Eu também, na amizade que cultivei ao longo de todos esses anos com os irmãos judeus na Argentina, muitas vezes na oração interroguei a Deus, de modo particular quando a mente ia ao encontro das recordações da terrível experiência do Holocausto. Aquilo que eu posso lhe dizer, com o apóstolo Paulo, é que nunca falhou a fidelidade de Deus à aliança feita com Israel e que, através das terríveis provações desses séculos, os judeus conservaram a sua fé em Deus. E por isso, a eles, nós nunca seremos suficientemente gratos, como Igreja, mas também como humanidade. Eles, além disso, justamente perseverando na fé no Deus da aliança, lembram a todos, também a nós, cristãos, o fato de que estamos sempre à espera, como peregrinos, do retorno do Senhor e que, portanto, sempre devemos estar abertos a Ele e nunca nos encastelarmos naquilo que já alcançamos.
Chego, assim, às três perguntas que o senhor me faz no artigo do dia 7 de agosto. Parece-me que, nas duas primeiras, o que está no seu coração é entender a atitude da Igreja para com aqueles que não compartilham a fé emJesus. Acima de tudo, o senhor me pergunta se o Deus dos cristãos perdoa quem não crê e não busca a fé. Posto que – e é a coisa fundamental – a misericórdia de Deus não tem limites se nos dirigimos a Ele com coração sincero e contrito, a questão para quem não crê em Deus está em obedecer à própria consciência. O pecado, mesmo para quem não tem fé, existe quando se vai contra a consciência. Ouvir e obedecer a ela significa, de fato, decidir-se diante do que é percebido como bom ou como mau. E nessa decisão está em jogo a bondade ou a maldade do nosso agir.
Em segundo lugar, o senhor me pergunta se o pensamento segundo o qual não existe nenhum absoluto e, portanto, nem mesmo uma verdade absoluta, mas apenas uma série de verdades relativas e subjetivas, é um erro ou um pecado. Para começar, eu não falaria, nem mesmo para quem crê, em verdade "absoluta", no sentido de que absoluto é aquilo que é desamarrado, aquilo que é privado de qualquer relação. Ora, a verdade, segundo a fé crença, é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação! Tanto é verdade que cada um de nós a capta, a verdade, e a expressa a partir de si mesmo: da sua história e cultura, da situação em que vive etc. Isso não significa que a verdade é variável e subjetiva, longe disso. Mas significa que ela se dá a nós sempre e somente como um caminho e uma vida. Talvez não foi o próprio Jesus que disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida"? Em outras palavras, a verdade, sendo definitivamente uma só com o amor, exige a humildade e a abertura a ser buscada, acolhida e expressada. Portanto, é preciso entendermo-nos bem sobre os termos, e, talvez, para sair dos impasses de uma contraposição... absoluta, refazer profundamente a questão. Penso que isso seja absolutamente necessário hoje para entabular aquele diálogo sereno e construtivo que eu esperava no início deste meu dizer.
Na última pergunta, o senhor me questiona se, com o desaparecimento do ser humano sobre a terra, também desaparecerá o pensamento capaz de pensar Deus. Certamente, a grandeza do ser humano está em poder pensar Deus. Isto é, em poder viver uma relação consciente e responsável com Ele. Mas a relação entre duas realidades. Deus – este é o meu pensamento e esta é a minha experiência, mas quantos, ontem e hoje, os compartilham! – não é uma ideia, embora altíssima, fruto do pensamento do ser humano. Deus é Realidade, com "R" maiúsculo. Jesusno-lo revela – e vive a relação com Ele – como um Pai de bondade e misericórdia infinitas. Deus não depende, portanto, do nosso pensamento. Além disso, mesmo quando viesse a acabar a vida do ser humano sobre a terra – e para a fé cristã, em todo caso, este mundo como nós o conhecemos está destinado a desaparecer –, o ser humano não deixará de existir e, de um modo que não sabemos, assim também o universo criado com ele. A Escritura fala de "novos céus e nova terra" e afirma que, no fim, no onde e no quando que está além de nós, mas para o qual, na fé, tendemos com desejo e expectativa, Deus será "tudo em todos".
Ilustre Dr. Scalfari, concluo assim estas minhas reflexões, suscitadas por aquilo que o senhor quis me comunicar e me perguntar. Acolha-as como a resposta tentativa e provisória, mas sincera e confiante, ao convite que nelas entrevi de fazer um trecho de estrada juntos. A Igreja, acredite-me, apesar de todas as lentidões, as infidelidades, os erros e os pecados que pode ter cometido e ainda pode cometer naqueles que a compõem, não tem outro sentido e fim senão o de viver e testemunhar Jesus: Ele que foi enviado pelo Abbá "para levar aos pobres o alegre anúncio, para proclamar aos presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista, para libertar os oprimidos, para proclamar o ano de graça do Senhor" (Lc 4, 18-9).
Com proximidade fraterna,
Francisco
A feliz expressão de Fédor Dostoievski, «a beleza salvará o mundo», faz com que cada um chegue à percepção de que o mundo pode ser resgatado com a beleza, a beleza do gesto, da inocência, do sacrifício, do ideal, da gratuitidade.
Hoje, porém, num mundo que relegou a beleza para o campo do fútil ou do ornamental, é legítimo interrogar-se: quem salvará a beleza do risco de se tornar vazia? Na nossa modernidade, a beleza rebaixa-se, permanece uma palavra que todos pronunciam, de que não conseguem privar-se, mas está confinada a um ângulo banal e sem valor: o efémero.
Foi reduzida a pouca coisa, frente às questões econômicas, financeiras e científicas que agitam a nossa sociedade. Foi-lhe reservado um lugar entre as mil coisas inúteis da vida, ficou confinada ao decorativo, àquilo que é máscara da realidade. Marginalizada também pela teologia.
É necessário salvar a beleza do mundo (Stefano Zecchí). Ela encontra-se, hoje, perante uma encruzilhada: entre a beleza-cosmética, autorreferencial, para a qual não tem sentido a busca do bem e do verdadeiro, porque não existe verdade, e a beleza-símbolo, porta que abre para o conhecimento e para o futuro, em que o homem aperfeiçoa a sua pessoa, intensifica a pesquisa, leva a cabo contínuas aproximações ao ser.
«O bem, separado da verdade e da beleza, é apenas um sentimento indefinido, um impulso privado de força. A beleza sem bem e verdade não passa de um ídolo. A verdade é o bem; a beleza é esse mesmo bem e essa mesma verdade encarnados numa forma viva e concreta» (Vladimir Solov'êv).
A beleza, em sentido próprio, é aquela que nos faz continuar a interrogar-nos com obstinado amor sobre o que vemos. Ela traz uma memória e uma profecia: evoca o reflexo de uma justiça ou de uma harmonia originária da criação, prefigura, com a força do seu fascínio, a restituição da criação ao seu sentido.
Ao invés, desviada da sua profecia, distraída da sua memória, a beleza autorreferencial encoraja também uma extinção voraz do desejo, uma posse destrutiva, como para Narciso. Exilada do seu nómos primeiro, que é o amor, pode introduzir uma trágica anestesia diante da dor do mundo, uma indiferença aos aviltamentos da Terra. A beleza separa-se, então, da esperança do homem.
Cabe a cada um, com as suas escolhas individuais, salvar esta beleza do mundo. Preservar a beleza que conserva em nós a capacidade de êxtase e de comunhão, a possibilidade do prazer de viver e de crer. Preservar o deslumbramento matinal do mundo.
A beleza confere, então, à existência, o sentido de uma aventura inédita que, com a arte e a realidade, com as coisas e com o espírito, com os afetos e com o absoluto, se mede por uma incessante maravilha (Salvatore Natali) e com obstinado amor.
Ermes Ronchi
In Tu és beleza, ed. Paulinas-Portugal
02.09.2013
A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos pecados é a distração». Vivemos num mundo que nos atropela continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram, entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos, vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade. O verbo mais importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira presença.
Escreve o místico Silesius:: «a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’, propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro.
Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira dominamos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que partilhamos, todo o amor com que amamos, preparam-nos para o ato simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas. Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?
José Tolentino Mendonça
Padre e poeta portugues, autor do livro "Nenhum caminho será longo" - Edições Paulinas.
Texto originalmente publicado em Diário de Notícias - Ilha da Madeira - 19.08.2011
Foram dezenas os balanços da visita do papa Francisco ao Brasil. Todos, sem exceção, destacando a mudança de rumos da Igreja Católica. Embora o próprio cardeal Bergoglio propusesse uma nova topologia política – em vez de esquerda e direita entra o par centro e periferia –, desviando da inspiração da ideologia para a do ativismo, o que se constatou foi uma aproximação destemida entre religião e política, como há muito não se via.
Temos, todos nós, ocidentais pós-iluministas, uma concepção muito restrita de religião. Tudo se passa como se a crença fosse apenas experiência individual, enraizada na sensibilidade e na intuição. Perto de ser incomunicável, ela passaria ao largo de todo o esforço da razão em buscar a verdade. Mesmo o compartilhamento de valores, na linha da comunidade de destino, teria como suporte a relação direta com o sagrado, sem necessidade de justificação de qualquer natureza. A crença não precisa ser explicada.
Como se houvesse, no processo que nos constitui como pessoas, etapas que fossem se sobrepondo. Sobrecarregados pelo mistério da vida, todos nascem religiosos, com o tempo aprendem que a fé não garante nada além do próprio sujeito e, então, abre-se o terreno para a razão, as ciências e a arte, entre outras formas de expressão do nosso caminho em direção à maturidade.
Esse tem sido um caminho convencional, que separa fé e razão, ciência e superstição, indivíduo e sociedade. Basta prestar atenção na forma como as pessoas se tornam religiosas ou têm sua concepção de Deus moldada por uma cultura infantil: o Deus do medo, que tudo vê e tudo pode, além do espaço da compreensão e do diálogo. No entanto, quando se trata da experiência racional, quanto mais maduros, mais estamos abertos ao debate com o outro. Nossa concepção de razão amadurece com o tempo, nossa concepção de Deus queda adormecida em motivos atávicos.
Os adultos sabem que não existiram Adão e Eva, compreendem que se trata de uma história simbólica, o que permite, portanto, que convivam no mesmo sujeito dimensões da religião e da ciência. No entanto, nem tudo na religião (como querem os novos profetas do ateísmo) se reduz ao embate com a racionalidade. Não somos fé ou razão, mas fé e razão. A experiência religiosa, para merecer o campo de constituição do homem maduro, precisa dar a ele uma experiência que não seria alcançada em outro terreno que não o da espiritualidade.
Por isso, na história do pensamento, encontramos grandes filósofos e cientistas que, mesmo senhores dos instrumentos da razão, não apenas mantiveram sua inserção religiosa no mundo, como fizeram questão de refletir sobre elas. É o caso de, entre outros, dos filósofos Husserl (1859 –1938), Peirce (1839 –1914), Bergson (1859 –1941), Maritain (1892 –1973), Lévinas (1906 –1995) e Ricouer (1913 –2005) e de cientistas do porte de Max Planck (1858 –1947), Werner von Braun (1912 –1977) e Einstein (1879 –1955).
O que, no projeto intelectual desses pensadores, permite que tenham se dedicado com igual empenho à razão e à religião? Sobretudo a certeza de que, no terreno da fé, estamos tratando de uma experiência pessoal, e não de um conjunto de saberes ou instrumentos. A religião – e por isso ela não é contraditória com a razão – não se encaminha para o território do conhecimento, mas da prática de vida. Ser religioso não é sustentar um conjunto de dogmas (quase sempre equivocados), mas se comportar em relação aos outros a partir da noção de compromisso. Nesse sentido, toda religião é, antes de ser dogmática, política.
É preciso, no entanto, distinguir religião de igreja. A experiência religiosa, mesmo em grande parte dos casos se manifestando a partir da convenção que emana de uma igreja, qualquer que seja ela, vai muito além da institucionalidade. Talvez por isso os cismas e as heresias sejam o terreno comum das igrejas: não é possível emparedar o impulso para a transcendência nas normas sistematizadas por uma estrutura hierárquica, marcada por disputas internas.
Uma forma de constatar essa contradição é perceber como, hoje, todas as posições radicais em termos religiosos são resultado de demandas políticas, não de verdades reveladas. Assim, judeus e palestinos disputam a mesma região ancorados em argumentos pretensamente religiosos e de precedência histórica; católicos e evangélicos batalham pelos mesmos fiéis, igualmente sustentados por argumentos fundamentalistas que são traduções de interesses políticos claros; os muçulmanos são considerados perigosos em razão de comportamentos nitidamente políticos, que ganham tradução fideísta.
Reviravolta de Francisco
A visita do papa Francisco ao Brasil foi histórica exatamente por revelar a dimensão política da experiência religiosa. Não se trata de buscar aproximação com a teologia da libertação, em sua opção preferencial pelos pobres, ou de valorizar as críticas dirigidas ao consumismo e ao modelo inviável de desenvolvimento econômico concentrador e anti-humanista. Fosse isso, o papa apenas estaria apontando uma reversão de rota, um arejamento nas posturas tomadas pela Igreja Católica nas últimas décadas.
Há uma radicalidade nas atitudes de pronunciamentos de Bergoglio que apontam para a recuperação da dimensão social e comunicativa da experiência religiosa. O papa assumiu uma posição que vira as costas para o clericalismo (uma igreja que tem como gozo a realização ritual de seus mandamentos e convenções, entre a burocracia e o autoritarismo), para a ostentação (com a desconstrução de todos os símbolos de distinção de classe que vieram da nobreza para os corredores do Vaticano) e para o solipsismo (mantido vivo pelas seitas conservadoras que valorizam apenas atitudes pessoais e, quando muito, assistencialistas e redentoras de culpas psicológicas).
Além disso, e talvez tenha sido o ponto marcante da reviravolta franciscana, o papa fez questão de juntar no mesmo projeto as dimensões da espiritualidade e da convivência social. Reconheceu erros, defendeu punições exemplares aos ladrões, fugiu de qualquer desvio corporativista no julgamento de ações tomadas no âmbito da vida social. Diferenciou pecadores – que somos todos, segundo ele – dos criminosos. Aos primeiros, o perdão; aos outros, a cadeia.
Enquanto os papas anteriores tentavam separar pedofilia de Igreja e crimes financeiros da cúria, por exemplo, o novo papa não quis dar a ações condenáveis a capa de qualquer justificação religiosa, histórica ou dogmática. Nesse sentido, lembra a atitude de João XXIII, que, ao saber de uma greve dos servidores do Vaticano, ordenou o imediato processo de negociação que resultou em aumento de salário. Quando advertido de que o dinheiro sairia de obras da Igreja, respondeu: “Primeiro a justiça, depois a caridade”.
Por fim, a nota preocupante: há preconceito violento de parte da sociedade brasileira em relação aos evangélicos. É preciso reconhecer que grande parte da mídia e dos estudiosos da religião – postura que ecoa na classe média – compreende as religiões pentecostais e neopentecostais como capitulação, um sintoma de empobrecimento espiritual.
Várias análises apresentadas na última semana faziam questão de encarar a perda de fiéis da Igreja Católica para os evangélicos como um problema que precisava ser superado, doença social carente de tratamento, nunca como opção livre dos crentes. Nação acostumada a se sentir católica (“o maior país católico do mundo”), parece haver dor de consciência pelos fiéis perdidos pelo catolicismo, dor esta que instiga pesquisadores, jornalistas e leigos a se esforçar com ideias que contribuam para a “recuperação” dos fiéis à sua origem.
Há inspiração quase higienista e discriminatória por trás dessa atitude. Não que os evangélicos façam por merecer boa vontade, é só seguir suas manifestações preconceituosas, homofóbicas e questionáveis em termos éticos, sociais e econômicos. Mas essas são atitudes das quais a Igreja Católica, por sua vez, não pode igualmente se jactar em sua longa trajetória de equívocos.
A melhor lição ficou mesmo com Francisco ao se dirigir aos jovens: “Sejam revolucionários”. É bem mais edificante que ser católico ou evangélico.
João Paulo Cunha
Coordenador do Caderno Pensar do Jornal Estado de Minas
Texto publicado em 03/08/2013 no Jornal Estado de Minas
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