“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo”
Celebramos, neste domingo, a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, a mortificação, as cruzes de cada dia... Nela mesma, a Cruz não tem sentido (instrumento de tortura), mas o que aconteceu nela: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados da história.
Assim, à luz do Crucificado, vemos a Cruz como fonte de vida em um mundo de morte. A Cruz tem suas raízes no deserto em um momento de morte e como sinalo de vida (1ª. leitura). Agora, a Cruz é reveladora do Amor com que Deus ama o mundo e fonte de vida para que “todo o que n’Ele crer, tenha a vida eterna”.
No rosto desfigurado do Crucificado revela-se um Deus surpreendente, que rompe nossas imagens convencionais d’Ele e põe em questão toda prática religiosa que pretenda prestar culto a Ele, esquecendo o drama de um mundo que continua crucificando os mais indefesos e inocentes. Se Deus morreu identificado com as vítimas da maldade humana, sua crucifixão se apresenta como um desafio inquietante para os seguidores de Jesus. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas.
Deus não está de acordo com a Cruz, mas está a favor do Crucificado. Na Cruz de Jesus se revela, ao mesmo tempo, o que Deus não quer (o sofrimento das vítimas) e o que Deus quer: a vida e a felicidade para todos, o entendimento e a reconciliação entre as pessoas e os povos, o trabalho por um mundo mais justo, no qual seja possível a vida para todos os filhos e filhas d’Ele.
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, foi a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão foi expressão de uma opção, assumida fielmente por Ele até o fim. A segunda paixão foi a da cruz (patíbulo), imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não foi fruto da opção de Jesus e nem fazia parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada pelo mesmo Jesus.
Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morreu na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional ao Pai e o compromisso com os excluídos.
No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, estar preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim... Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não foi um evento, mas um modo de viver, pois perpassou toda a vida de Jesus.
“Cruz-staurós” foi vivida a partir de uma causa: o Reino.
Nesse sentido, a cruz de Jesus não foi um “peso morto” a ser suportado; ela foi consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significou passividade e resignação, pois ela brotou de uma vida plena e transbordante. Nesse sentido, a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
A cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir. A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30). Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus também acolheu e integrou a “cruz patíbulo”, dando um sentido a ela e revelando sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, na Cruz assumida o Crucificado se fez amigo dos crucificados.
A Cruz assumida por Jesus manifestou-se “expansiva” porque foi expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projetou para a “margem” onde Ele revelou uma presença despojada, vulnerável, que se identificou com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifestou que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele” a dor de seus filhos e filhas.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
São cruzes que nós mesmos colocamos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas nos fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus, que leva a Cruz da fidelidade, nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
A festa da “exaltação da Santa Cruz” nos faz “descer” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, o compromisso com a vida e com a causa do Reino, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.
Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, inspirados no Crucificado, consomem suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com suas presenças ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamem; são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer; pessoas solidárias que ajudam a carregar as cruzes de tantos que são rejeitados, incompreendidos, odiados, perseguidos...; pessoas que visibilizam a Cruz da fidelidade de Jesus.
Texto bíblico: Jo 3,13-17
Na oração: Associar-se ao Crucificado em sua “descida” para “subir” com Ele significa, também, arrancar do próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-se possuir pela glória de Deus.
- Quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplarmos mais atentamente, logo descobriremos, nesse Rosto, o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.
- Diante do Crucificado, trazer à memória os crucificados de hoje: isto o afeta? o deixa inquieto? O incomoda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
11.09.2025