Para crentes e não-crentes, o Natal é uma estação de confronto consigo mesmos. Por aquilo que os símbolos desta quadra dizem ou não a cada um, por aquilo que as palavras acordam, pela presença ou pela ausência de uma transcendência nos dias que se avizinham. Cada um vive à sua maneira ou como interiormente pode. Mas uma coisa inegável é observar este silencioso sobressalto, esta espécie de “sentimento oceânico” que nos percorre em conjunto, que sem sabermos como nos transporta e que ganhamos em escutar, mesmo se no final as interpretações encontradas possam ser distintas. Recordo-me, a esse propósito, do debate que ligou, por exemplo, Sigmund Freud e o escritor Romain Rolland.
Um dos temas a que Freud prestou atenção foi, como é sabido, a experiência religiosa. O tema fez sempre parte das suas investigações, mesmo quando estas versavam diretamente outros assuntos. E não restam dúvidas sobre a importância que atribuía à religião no âmbito da economia psíquica do sujeito. É certo que a sua tese de fundo remove do fenómeno religioso toda a dimensão externa de revelação e explica-o unicamente à luz dos conflitos não-resolvidos que vêm da primeira infância (desse intrincado e gigante magma, feito, segundo ele, de medos, desejos e culpas a que se procurará a vida inteira dar respostas). Mas, ainda assim, Freud teve a oportunidade de realizar diálogos marcantes neste âmbito. Talvez o mais significativo tenha sido precisamente o que ficou registado na sua correspondência com Rolland. Este, que foi Prémio Nobel da Literatura em 1915, era um intelectual poliédrico, um arquiteto de pontes: entre o Oriente e o Ocidente, entre o ensino académico e a militância pacifista, entre o compromisso civil e a experiência espiritual. Definia-se a si mesmo como um viandante em busca da verdade, e o motor dessa busca era, segundo ele, um “instinto religioso”, que trabalhou com audácia e a modo seu.
Foi Freud quem o procurou, enviando-lhe uma primeira carta, em fevereiro de 1923, e as trocas epistolares durariam até ao ano da morte do pai da psicanálise, em 1939. É curioso constatar como o debate privado que mantinham alcançava depois um eco na produção ensaística de ambos. Recebendo um exemplar de “O Futuro de Uma Ilusão” (dezembro de 1927), Rolland critica Freud por considerar uma mera ilusão supor que as respostas que a ciência não nos pode dar podemos consegui-las noutro lugar (e quando este diz “outro lugar” pensa sobretudo na religião). As representações religiosas não passam, para ele, de ficções que corporizam a necessidade infantil da proteção. A esta radical redução psicológica, Rolland contrapõe “o facto simples e direto” que continua a provar que a religião é uma experiência viva e inalienável: a “sensação de eterno” que ciclicamente assoma ao coração de cada um e nada cancela; a consciência de que somos o ponto de uma relação mais vasta do que nós próprios; a experiência de imersão num “sentimento oceânico”, transbordante e vital, que é uma grafia essencial da vida. Esta corrente espiritual que nos envolve pode-se adjetivar como “oceânica”, por analogia àquilo que o mar desperta em nós. Ao mesmo tempo traz ao coração humano a ressonância de algo primordial e a evidência sensível do que é maior, do que nos transcende, do que só tocamos com o desejo, do que tentamos nomear chamando de infinito. Para Roland, se não se encara de frente o impacto deste “sentimento oceânico”, não se compreende o caminho do humano.
Os dias 24 e 25 de dezembro passam depressa, mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
27.12.21
In: imissio.net
Há uma síndrome do Natal, como o há da primavera. Às vezes chega a primavera e não nos conseguimos adaptar facilmente a tamanha vitalidade, ao apelo ao renascimento que se pressente em nosso redor. Sentimo-nos embaraçados com essa espécie de recomeço do mundo, estranhamente vulneráveis e vazios, num frustrante desacerto com o surto primaveril. E a mesma coisa pode acontecer em relação ao Natal. De repente, no turbilhão dos dias, vemos avizinhar-se o Natal com todos os compromissos, com o que é necessário preparar, com o que tem de ser — e olhamos para ele esmagados. Há anos em que nos descobrimos entusiasmados por viver este tempo, e há outros em que parece uma violência tudo isto, porque nos percebemos em contraciclo, numa desamparada desolação. É para quem se sente assim que escrevo este texto de Natal.
Sim, o Natal não é apenas a festa do brilho e da abundância. Não é apenas a ronda das vozes felizes. É a festa dos esfomeados, dos sedentos, dos inquietos, daqueles que querem mais, dos que não se conformam com o apaziguamento de rotina, dos que sentem que tem de haver alguma coisa que vá além, dos que obstinadamente tateiam uma verdade, uma razão ou uma brecha algures no cerco da muralha. O Natal é a festa daqueles esfarrapados que não deixam de farejar longe até às estrelas, disponíveis para segui-las para lá das marcas das fronteiras, mesmo se por um incompreensível caminho colado ao chão, como o fizeram os Magos. Ou daqueles que, vivendo expostos ao relento, escutam a boa-nova de uma alegria e acreditam nela. Acreditam que possa ser possível o que habitualmente se declara impossível. E, mesmo na noite, trémulos, precários e puros, partem ao seu encontro, como aconteceu com os pastores de que o Evangelho fala. O Natal não se espelha apenas na fartura de sinais. Toca-se também na escassez e no desabrigo. Na solidão e na margem. Na força nua das direções e das perguntas sem resposta. Sendo assim, que tem o Natal eterno a dizer-nos? Que, no Mistério da Encarnação, a nossa humanidade passa a valer mais. Mesmo na sua indefinição, turbulência ou ruptura: passa a valer mais. Porque, aquele que nasce na manjedoura inaugura um novo ponto de vista, uma compreensão mais ampla, uma hermenêutica dissidente, faz uma leitura mais a fundo daquilo que somos.
Nós olhamos para um homem e dizemos logo: “Um homem é pouco para mudar a história.” Na verdade, que pode um homem perante a complexidade das coisas! Apressamo-nos, por isso, a descrer das suas possibilidades. Seria necessário não um homem, mas um super-homem que efetivamente superasse a endémica vulnerabilidade que trazemos. Seria necessário um ser apetrechado de tudo o que nos falta ou não somos. Uma versão melhorada daquilo que conhecemos. Porém, a história que o Natal desdobra aparece tatuada não no poder, mas na fragilidade; não na diferenciação, mas no desejo de aceitar tudo e se tornar semelhante. Afinal basta um homem. Deus manda à terra o seu Filho e ele vem sem nada, pobre, investido da fragilidade que contemplamos em nós próprios. Mas o Filho, “o Menino que nos foi dado”, vem audaciosamente revelar isto: que a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus. A impreparada humanidade, que tantas vezes nos desilude, a nossa vida inconcludente é a manjedoura de Deus. Por isso, o presépio não exclui ninguém. Ele integra a humanidade na sua inteireza, e ainda mais quando se trata de humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade subtraída, da vida dos excluídos, dos que se sentem sozinhos ou desadaptados, dos que atravessam o presente desejando outra coisa.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
24.12.21
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Somos tentados a sentir que não há condições para o Natal. Não há espírito. Parece que nos falta o que já não volta. Que sentimos as ausências mais do que nunca. Que compreendemos, agora, o que perdemos.
Viramos a cara ao Natal e quase parece que lhe viramos o coração, também. Não nos inquietemos no meio da confusão que nos vamos provocando. O Natal não é uma data. Não é um dia nem dois. Não é uma árvore nem o brilho das luzes das ruas. O Natal é a luz que não passa. Que se acende no lugar mais frio do mundo, mesmo que esse lugar mais frio seja (exatamente) o nosso coração. O Natal não tem nada que ver conosco nem com as nossas vontadezinhas. O Natal foi um presente que nos foi dado e, todos os anos, todos os dias, somos convidados a renovar esse recebimento. E que bonito é perceber que houve um menino que se quis fazer Tudo para nós.
“Mas isso é só para os que acreditam”.
Não.
O Natal é, também, para os que não acreditam nele. Para os que nunca acreditaram. Para os que, um dia, vão acreditar e ainda nem sabem. O Natal é uma mantinha de retalhos das vidas de todos nós. Tal e qual como elas são. Bonitas e feias. Confusas e tristes. Esfusiantes e barulhentas. Mais amargas ou mais doces.
Mas claro que há Natais que doem muito. Que doem mais. Se este Natal for, para ti, um desses dias mais difíceis, lembra-te que não estás sozinho. Que amanhã será melhor. Ou no dia seguinte.
E depois, fecha os olhos, respira fundo e lembra-te que um dia houve um menino-Vida que quis nascer para que a tua fosse melhor. Para que pudesses ter água a correr no lugar do coração. Para que pudesses ser voo em vez de peito estacionado. Para que pudesses ser esperança e asa em vez de tormenta.
Olha para o Céu, assim que puderes. Se usares o telescópio da alma, já deves ver a primeira ponta de luz daquela Estrela que veio para mudar tudo.
Para melhor.
Marta Arrais
In: imissio.net 15.12.21
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São muitas as luzes que brilham nesta altura. As luzes baças das notícias tenebrosas. As luzes baças dos que nos fazem acreditar que vivemos para trabalhar, para não ter tempo para mais nada. As luzes do que não é essencial, do dinheiro que é rei em tudo e em todos. As luzes da rua que nos ofuscam os olhos, mas não nos aquecem o coração. As luzes do barulho dos que gritam lá fora, dos que discutem, dos que não se entendem.
São muitas as luzes que brilham nesta época…, mas poucas as que, efetivamente, merecem a nossa atenção e o nosso respeito. A dificuldade é, precisamente, saber que luzes precisamos de apagar, de não ver, de não considerar e que luzes precisamos de acender em cada dia, na nossa vida e no nosso coração.
Julgo que estes dias que antecedem o Natal podem servir-nos para refletir sobre a forma como queremos continuar a viver, sobre as luzes que queremos, de facto, ver. Sobre os assuntos e as pessoas que merecem, de fato, a nossa atenção.
O Menino que se prepara para nascer novamente veio mostrar-nos que não precisamos de muito. Que se pode optar pela pobreza e ser verdadeiramente feliz. Que se pode optar pela simplicidade dos gestos, das atitudes, do trato e fazer dos outros pessoas profundamente felizes, também.
No entanto, penso que será necessário que o Menino nasça todos os dias na nossa vida. Para que consigamos visualizar naquele Presépio todos aqueles que merecem a luz da nossa presença e da nossa atenção. É necessário ver no Presépio as famílias que precisam de ajuda, as famílias que não se perdoaram, as famílias que perderam entes queridos e se debatem com o luto, as famílias que estarão separadas, isoladas e confinadas (mais um ano), as famílias que precisam de tempo para curar feridas.
O Natal existe para que sejamos desafiados a ver melhor. A amar melhor. A ser melhores.
Enquanto perdemos tempo a perseguir as estrelas erradas, que nos permitamos recordar que a única estrela que vale a pena perseguir é aquela que nos leva ao Menino que nasceu por nós. Outra vez.
Marta Arrais
In: imissio.net 22.12.21
Talvez, para a maior parte de nós, o Advento seja apenas um marco cronológico que oficializa os preparativos vários para a festa do Natal. Talvez o vejamos apenas como uma espécie de contador decrescente, sem que consigamos perspectivar o seu conteúdo ou que impacto efetivo poderá ter em nós. E, contudo, o Advento é uma entrada decisiva não só para colher o sentido da celebração do Natal, mas para olhar para a inteireza da nossa própria existência. Mais do que supomos somos figuras do Advento, habitamos o seu território e recebemos dele iluminação para as perguntas que transportamos no tempo.
O termo “advento” provém do latim e significa “vinda”. Na gramática cristã esta vinda é o adventus domini, a vinda do Senhor, acontecimento que configura a vida do mundo como abertura e expectativa. Em Jesus, Deus torna-se humano para que, desse modo, todo o humano se torne capaz de Deus. O mistério que celebramos em cada Natal não é simplesmente um sim pontual de Deus à história dos homens, mas é uma confirmação permanente e irrevogável. Deus entra em contato com a nossa Humanidade, torna-se incessantemente “aquele que vem”, deixa-se conhecer como “Deus conosco”. Nesse sentido, o advento é a tomada de consciência desta expectativa da vinda de Deus que atravessa a nossa existência a todo instante. E a fé não é tanto a disponibilidade para crer no extraordinário, quanto a sóbria e vigilante convicção de que a eternidade de Deus pulsa no nosso tempo pequeno, precário e mortal. No nosso tempo humano. Deus veio e vem a cada momento. Como escreve Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, há possíveis não codificados e existe uma história invisível que reemerge do seu fundo subterrâneo e nos faz compreender que, na sua intensidade descontínua, cada fração de tempo tem uma natureza messiânica. E mais: este exato segundo é a pequena porta pela qual pode entrar o Messias. O advento inscreve-nos aí, expectantes, esperançosos, sedentos.
Recordo aquilo que o teólogo Karl Rahner dizia ser o duplo e esclarecedor impacto do Advento em nós: o primeiro é o sublinhar da nossa condição de precursores; o segundo é o redimensionar surpreendente da nossa visão habitual da vida. De fato, não somos todos, à maneira de João Batista, precursores? Não somos os detentores atuais de uma experiência destinada a ser metamorfoseada e ultrapassada? Os pais são, por exemplo, precursores para os filhos, as gerações mais velhas para as mais novas, a ciência que construímos hoje para a ciência que se formulará em seguida. Mas não apenas nesse sentido somos precursores. O Advento torna-nos precursores porque nos incita a habitarmos criativa e corajosamente a fronteira de um futuro maior do que nós próprios. Porque nos desafia a servir não apenas este presente estabelecido (este presente bloqueado, prisioneiro de tantos impossíveis declarados), mas a antecipar o futuro, ligando-nos desde já a ele, aceitando viver na sua tensão, comprometendo-nos como mediadores credíveis desse horizonte onde cintila a promessa.
E, do mesmo modo, o Advento motiva-nos a compreender o tempo corrente, na sua cinzenta e férrea monotonia, na sua soma de momentos indistintos, na sua extenuante construção como epifania. No seu anónimo e minúsculo formato, naquela que parece ser simplesmente a monocórdica escrita do quotidiano, emerge uma possibilidade radical de ruptura: o nascimento de Deus e o nosso. Não, não é de fora que a vida se ilumina. É por dentro de nós que podemos perceber o mistério que ela é. A vida como advento.
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
06.12.2021
In: imissio.net
Se não deixamos de amar um filho ainda que faça o que julgamos não ser bom, por que razão não amamos também a vida, mesmo quando ela não segue o caminho que pensamos ser o melhor?
Só temos uma vida, a nossa, e quanto mais a amarmos mais felizes seremos.
Quando algo corre mal na nossa vida, e todos os dias isso sucede, uma revolta nossa não serve para nada, porque, afinal, a vida seguirá para onde quer, sem sequer parar um pouco para nos escutar.
Talvez o melhor seja abraçar a nossa vida, não para que consigamos alterá-la, mas para que aproveitemos ao máximo tudo o que de bom há nela. A verdade é que muitos de nós passam a vida sem valorizar o que de bom a sua existência tem. Chega a parecer que até gostam mais do mal que lhe sucede do que de tudo o resto, tal é a forma como o guardam.
Eu sou a história que conto a mim mesmo sobre mim. É aquilo que me acontece e a que atribuo significado e valor que me marca e acaba por constituir a minha identidade.
Ao olhar para o meu passado, se apenas valorizar e guardar o que é menos bom, acabo por me fazer infeliz. Ainda que não me sinta responsável por isso.
Contudo, é possível admirar a minha vida com outro olhar. Se o fizer com amor, darei muito mais importância ao que de bom ocorre. Por pouco que seja… será sempre suficiente para me fazer sorrir.
Sentir e Saborear internamente todas as coisas (EE 2)
Inácio de Loyola, o peregrino
Para Santo Inácio de Loyola, a consistência última da realidade é apreendida pelos sentidos: ver, ouvir, tocar, degustar, sentir o cheiro, e não por um exercício de abstração. O conhecimento lógico-dedutivo não basta para se chegar a um pleno conhecimento da realidade. É preciso a experiência das coisas percebidas, que são conhecidas na medida em que as vivemos, as tocamos, as sentimos. Com efeito, manuais de mecânica não fazem automaticamente de alguém um grande conhecedor do funcionamento de motores reais. Os livros sagrados das religiões tampouco fazem de alguém um santo ou um modelo de pessoa religiosa. Ler o alcorão não faz de alguém um muçulmano; ler a bíblia não faz de alguém um cristão.
O contexto da expressão “sentir e saborear as coisas internamente” o encontramos nos Exercícios Espirituais (EE 2). Trata-se da segunda das vinte anotações que Inácio deixou à pessoa que dá os EE, que acompanha os que fazem os EE. Essas anotações são frutos de sua profunda experiência pessoal.
Na primeira anotação, Inácio esclarece o que se entende por EE e à qual finalidade eles conduzem. Nos diz que “chamam-se EE os diversos modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas”. Trata-se de afetos, não de ideias. Os EE não são um conjunto de anotações para serem estudadas, mas praticadas, não são uma doutrina, uma teoria, um discurso ou um tratado sistemático de teologia trinitária ou de cristologia, tampouco uma obra de autoajuda dedicada ao estudo psicológico dos afetos. Inácio diz que os EE preparam e dispõem a pessoa a ordenar os (seus) afetos. Como?
Ordena-se os afetos tirando de si aquilo que afetivamente se encontra desordenado, fora de ordem. Não se trata, portanto, de tirar os afetos, de apagar a faculdade do sentir, isso transformaria o ser humano numa espécie de zumbi, mas de ordená-los. Para que? Ignácio diz, então, em seguida, que é para que a pessoa possa buscar e encontrar a vontade divina para ela, ou seja, o que Deus quer, não só dela, mas também e principalmente para ela. Se supõe que o que Deus quer e propõe é o melhor para a pessoa. Esse “o melhor” é sinônimo de plena realização, de bem-aventurança, que a tradição bíblico-cristã chama de salvação. É exatamente isso que Inácio, ao final da anotação, diz: “... para sua salvação”.
Se, à luz do evangelho, nos perguntássemos: o que é, afinal, que Deus quer? A resposta de Jesus é bastante clara: o que Deus quer é que ninguém se perca (Mt 18,14), ou seja, o que Deus quer é que o ser humano viva, tenha vida e a tenha em abundância; que viva nele. Isso significa: Deus quer nos salvar.
Mas afinal, Deus quer nos salvar de que? A resposta mais simples a essa pergunta é a seguinte: Deus quer nos salvar de nós mesmos! Como assim… ‘de nós mesmos’? É simples: não temos a vida em nós mesmos, não viemos à vida por nós mesmos e não permaneceremos na vida por nós mesmos. Somos húmus, terra, finitos, mortais, somos criados. “Quem quiser salvar sua vida, vai perdê-la”, disse Jesus (Mt 16,25). Mas, então, “quem poderá salvar-se”?, perguntaram-lhe os discípulos. E Jesus, com todas as letras, responde a Pedro, aos demais apóstolos e a cada um de nós: “ao ser humano isso, ou seja, o salvar-se, não é possível” (Mt 19,25-26). Nós, os humanos, não somos Deus. Só Deus tem vida em si mesmo, só Deus é plenitude de vida. Se ele não nos der de sua vida, não nos der o seu Espírito, morreremos para sempre.
Foi fundamentalmente isso que Jesus disse do seguinte modo: se eu, realizando a vontade do meu Pai de salvar a todos, não vos der a (minha) vida, o meu Espírito, vós não tereis (como nunca tiveram) vida em vós mesmos (cf. Jo 6,53). Ou ainda: quem me recebe, este diz sim à vontade de Deus, e recebe o que é de Deus, o Espírito de Deus, o Espírito da filiação porque Espírito do Filho, e, assim, nasce para Deus, torna-se da família de Deus (cf. Mt 10,40).
Tudo isso é sem dúvida maravilhoso. A salvação é dom de Deus, é um dom que Deus quer dar e que só ele pode dar porque trata-se do dar da sua vida divina. Mas isso tudo pode ser muito abstrato se eu, se você, se cada um e cada uma, concretamente, não entrar em cena. Só Deus pode dar o que é dele, e só eu posso recebê-lo. O dar-se de Deus precisa ser “dar-se a mim”, de modo que ninguém pode receber (nem rechaçar) esse dom no meu lugar, ninguém me substitui e ninguém, que seja um simples mortal como eu, pode me salvar.
Vejamos agora a segunda anotação, que nos ocupa mais de imediato.
“Quem propõe a outro o modo e a ordem [método] de meditar ou contemplar deve narrar fielmente a história de tal contemplação ou meditação, apresentando, breve ou sumariamente, os pontos. Pois, assim, a pessoa que contempla, tomando o verdadeiro fundamento da história, reflete e raciocina por si mesma. Encontrando alguma coisa que a esclareça ou faça sentir mais a história, quer pelo seu próprio raciocínio, quer porque seu entendimento é iluminado pela virtude divina, tem maior gosto e fruto espiritual do que se quem dá os EE explicasse e ampliasse muito o sentido da história. Pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2).
A tarefa de quem dá os EE consiste em “narrar fielmente a história”, o Evangelho, a boa notícia divina. Assim, quem recebe os EE estará às voltas com o “verdadeiro fundamento da história”. A narrativa de uma passagem bíblica a ser contemplada, por exemplo, a do nascimento de Jesus, deve ser breve, sumária, concentrando-se em oferecer apenas a moldura, com alguns pontos. [Recordemos que as pessoas, nos tempos de Ignácio, não tinham a bíblia na palma da mão em quantos idiomas quisessem, como nós a temos hoje].
O maior fruto será aquele que o exercitante encontrar por si mesmo (por raciocínio ou iluminação) a partir do fundamento sólido que lhe foi proposto. Então se diz: “pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”. O que está em questão não é a aquisição de um saber, mas a do sentir, a dos sentidos. Com efeito, quando se trata de sentir e saborear, ninguém pode fazê-lo no meu lugar. Cabe a mim e a cada um assumir essa experiência.
As contemplações da vida de Jesus Cristo narrada nos evangelhos são as mais propícias para a “aplicação dos sentidos”. Quais sentidos? Ora, a visão, a audição, o tato, o gosto, o olfato. Mas, como é que isso funciona, se Jesus não está hoje aqui ou ali para que eu possa vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo? Inácio fala em aplicação dos “sentidos da imaginação”, e oferece algumas explicações a respeito quando propõe as primeiras duas contemplações da segunda semana: a da encarnação e a do nascimento de Jesus Cristo.
Antes, porém, é importante recordar o que se pede a Deus como graça a receber: “Pedir o que quero: pedirei aqui conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem para que eu mais o ame e o siga (EE 104). Pedir conhecimento interno não é pedir mais informações sobre Jesus, tais como a cor de seu cabelo ou de seus olhos. Trata-se de conhecer o coração de Jesus, os sentimentos de Jesus, o amor de Jesus, o viver de Jesus.
Encarnação: A breve narrativa da história a ser contemplada na encarnação convida o exercitante a considerar: como as três Pessoas divinas olham o mundo; como veem elas os homens e mulheres se perderem na vida e perderem a vida no desespero de querer, inutilmente, por si mesmos, salvá-la; e como determinam, decidem, que a Segunda Pessoa divina se faça homem para salvar o gênero humano; e, então, o anúncio do mensageiro divino (Gabriel) à Maria.
Nascimento: A breve narrativa da história do nascimento de Jesus convida o exercitante a considerar Nazaré, Maria grávida do Filho de Deus, que parte de Nazaré, com José, rumo a Belém para atender ao edito de Cesar Augusto. Estando em Belém cumpriram-se os dias para o parto: nasce Jesus.
Vale a pena citarmos a passagem (EE 122-125) onde Inácio explica como aplicar os sentidos.
1- O primeiro ponto é ver as pessoas, com o olhar da imaginação, contemplando as circunstâncias onde elas estão, para tirar algum proveito do que vê.
2- O segundo ponto é ouvir o que elas falam ou poderiam falar, refletindo para tirar algum proveito.
3- O terceiro ponto é sentir e saborear com o olfato e o paladar a infinita suavidade e doçura da divindade (e tudo em relação a ela conforme a pessoa que se contempla), refletindo consigo mesmo para tirar algum proveito.
4- O quarto ponto é sentir com o tato, assim abraçar e beijar, os lugares onde tais pessoas pisam e tocam, procurando tirar proveito.
Inácio começa pela visão. Toda contemplação faz referência a um lugar, e não só às pessoas. É um mundo que se abre pela visão da imaginação: desde as pessoas divinas, o quarto de Nazaré ou a gruta do nascimento. A audição, por sua vez, supõe a palavra, o que é dito ou pode ser dito por alguém e, então, pode ser ouvido (por alguém). Ver e ouvir supõe um certo distanciamento, um “fora de nós”. Eram chamados de ‘sentidos superiores’.
Sentir e saborear estão ligados ao olfato e ao paladar (gosto) e definem a interioridade como seu lugar. Suavidade e doçura são os termos correspondentes. “Quão suave é o Senhor” (Sl 34,8); “Quão doce ao meu paladar são as tuas palavras” (Sl 119,103). Absolutamente central na experiência dos EE é essa percepção do que se passa interiormente, do que se sente. Suavidade e doçura se convertem em paz, serenidade, amabilidade, alegria, gosto pela vida ..., sentimentos típicos da consolação espiritual. Aspereza e amargura se convertem em agitação, inquietação, revolta, tristeza, desgosto de viver ..., sentimentos típicos da desolação espiritual.
No sentir com o tato (como o abraço e o beijo) os lugares onde essas pessoas pisam ou tocam, tem-se presente a ‘reverência’ com relação às pessoas mesmas, não se invade a intimidade das pessoas.
A finalidade dos EE, recordemos, é a de ordenar os afetos. Mas é difícil ordenar os afetos se eu não presto atenção no que eu sinto e se não conheço pessoa alguma plenamente ordenada nos afetos. Essa pessoa é o Cristo Jesus. Por isso, ao pedir conhecimento interno do Senhor estou pedindo para conhecer seus sentimentos. “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus”, diz São Paulo à comunidade dos filipenses (Fl 2,5). “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”, diz o próprio Jesus Cristo (Mt 11,29). Aprendei, pois, a mansidão e a humildade.
Ao inserirmos a gênese dessa temática na vida peregrina de Santo Inácio, o encontramos, já no tempo de sua convalescência, nos inícios de sua conversão, surpreendendo-se com a riqueza da diversidade desses sentimentos interiores. Ele começava pouco a pouco a prestar mais atenção no que sentia e na duração do respectivo sentimento.
Quando imaginava conquistar altos postos na carreira militar, o prestígio, a honra, a fama, poder, sentia-se contente, sentia prazer com tais pensamentos. No entanto, esse contentamento não durava mais que o decorrer do tempo em que estava pensando naquelas coisas. Logo em seguida sentia-se vazio e triste. Quando pensava em mudar radicalmente de vida, em viver como os santos, seguindo Jesus pobre e humilde, não só sentia grande consolação quando nisso pensava, mas também depois de deixar esses pensamentos, ficava contente e alegre.
Voltemos, então, à formulação da anotação de Inácio em seu caráter afetivo e à centralidade da pessoa de Jesus Cristo. O cristão/ã segue uma pessoa, a pessoa de Jesus, o Cristo. Sem uma relação espiritual-afetiva com a pessoa de Jesus, o único conhecimento que teríamos dele seriam informações dadas por outros que supostamente o conheceram, ou seja, não estaríamos seguindo a pessoa, mas seguindo o que disseram ou escreveram acerca dela ou que nos ensinaram acerca dela, como o fizeram ou tentaram fazer da melhor maneira possível nossos catequistas.
Conhecer internamente o Senhor supõe muito mais do que um “ouvi falar” ou um simples “eu li sobre Jesus”; supõe antes e muito especialmente o “por mim”, ou seja, desejo conhecer internamente essa pessoa, os seus sentimentos, o seu coração (como símbolo da sede dos afetos) de onde brotam os seus gestos, as suas atitudes, a sua compaixão, a sua mansidão, a sua humildade, o seu modo de olhar, de se aproximar, de falar, de ouvir, de tocar, de conviver, de raciocinar, enfim, o que desejo é sentir a força do amor dessa pessoa por mim, posto que “por mim” se fez homem para que eu pudesse segui-lo e amá-lo, e seguindo-o e amando-o encontrasse, no seu amor por mim, a paz, a saciedade da alma, que como disse Agostinho, não encontra a paz enquanto não repousa no amor de Deus.
O amor é o mais poderoso dos afetos. Por isso se diz do próprio Deus: Deus é amor (1Jo 4, 8.16). E se Deus é amor, o Cristo Jesus é o amor encarnado de Deus por mim e ao mesmo tempo o modelo de ser humano que corresponde a esse amor, que está plenamente ordenado nos seus afetos, totalmente orientado para Deus, e não encerrado em si mesmo. O lugar do amor, para dizer em termos anatômicos, não é imediatamente o nosso cérebro, mas o nosso coração. É aí que Deus escreve Cristo em nós. A interpretação correta dessa escritura divina passa pelo nosso sentido interno.
Se ignoramos o que se passa dentro de nós, não descobrimos as verdadeiras causas de nossos desafetos, nossas inquietações, medos, receios, angústias, crises existenciais, não identificamos a doença espiritual nem nos damos conta da nossa hipocondria religiosa; simplesmente vamos buscar e adquirir mais um “medicamento” no mercado religioso - de preferência vindo da Terra Santa -, algo como um frasco de água do Rio Jordão que promete matar a sede espiritual, ou um pacote de azeitonas do Monte das Oliveiras que supostamente hão de saciar a fome espiritual.
“Marta, Marta! Tu andas preocupada e agitada por muitas coisas. No entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, esta não lhe será tirada” (Lc 10, 41-42). Maria escolheu estar aos pés do Senhor e ouvir suas palavras... e ele lhe falava ao coração. Encostada aos pés de Jesus (tato), Maria não somente via e ouvia Jesus, mas muito especialmente sentia e saboreava a suavidade e a doçura do Amado de Deus que tanto a amava e que ela aprendeu a amar. Essa é melhor parte, a única coisa necessária, a orientação fundamental para colocar ordem nos afetos.
Pe. Luiz Carlos Sureki, SJ
Assessor Eclesiástico do Centro Loyola BH
(Reflexão feita na Noite de Espiritualidade realizada na modalidade on-line pelo Centro Loyola, no dia 13.08.21)
Talvez tudo o que um dia precisa seja de um lado bonito. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser esse lado bonito. Às vezes, um sorriso embeleza um dia.
Talvez tudo o que uma vida precisa seja de luz. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser essa luz. Às vezes, uma mão dada ilumina uma vida.
Talvez tudo o que um coração precisa seja de paz. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser essa paz. Às vezes, um abraço serena um coração.
Talvez tudo o que uma alma precisa seja de verdade. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser essa verdade. Às vezes, um olhar de dentro toca uma alma.
Talvez tudo o que alguém precisa seja de acreditar. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser esse acreditar. Às vezes, uma palavra do coração inspira alguém.
Talvez tudo o que o mundo precisa seja de um milagre. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser esse milagre. Às vezes, um gesto de amor salva o mundo.
Talvez o amor seja tudo o que é preciso. E talvez nós tenhamos sido feitos para ser esse amor.
Mesmo com dias cinzentos, mesmo que a vida troque planos, mesmo que o mundo esteja do avesso.
Às vezes, o amor é tudo. Todas as vezes.
(Talvez seja por essas vezes que ainda cá estamos.)
Daniela Barreira
15.11.21
In: imissio.net
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Preocupa-me a forma como nos comportamos em sociedade. A forma como gritamos impropérios, no trânsito, a alguém que nos ultrapassou, não fez pisca, passou por onde não devia, não nos cedeu a passagem. Preocupam-me as demasiadas vezes em que fui insultada com nomes e palavreado que faria corar os mais malandros. Preocupam-me, também, as vezes em que também gritei coisas menos bonitas ou simpáticas, ainda que inofensivas. Que raiva é esta que trazemos dentro que nos faz ser malcriados, rudes, grosseiros e, até, profundamente estúpidos e irracionais? Que coisas são estas que temos por digerir que nos fazem disparar estupidezes ou ofensas para rostos que não conhecemos de parte alguma?
A verdade é que parece muito mais legítimo ofender alguém “desconhecido” e com quem nunca mais nos cruzaremos na vida. Mas, se pensarmos bem… isso vale-nos de quê? Somos assim tão mal resolvidos e mal-amados que precisamos de espancar verbalmente os que fazem asneiras na estrada?
Parece que somos mesmo. Parece-me que gostamos de ter sacos de pancada para descarregar as nossas frustrações, dificuldades, zangas interiores. Não podemos aceitar que, tal como nós, também os outros podem fazer coisas que não devem? E mais… não podemos dirigir a nossa raiva para outro lugar?
Podíamos fazer uma lista dos nomes, das atrocidades que se ouvem, veem e sentem enquanto conduzimos, passeamos, andamos na rua.
Duas ou três notinhas breves:
Não temos o direito de fazer o que nos apetece. De gritar o que nos apetece. Seja a pessoa a quem nos dirigimos um desconhecido ou um conhecido. Não temos o direito de, gratuitamente, fazer o outro sentir-se mal só porque estamos infelizes com as nossas vidas.
Estás infeliz com a tua vida? Muda o que tiveres que mudar ou contenta-te com a falta de coragem para o fazer e vive de acordo com isso. Agora não venhas lançar chamas para cima de quem não tem culpa.
Falta tudo. Não estamos pessoas melhores e precisamos de percorrer um longo caminho até chegarmos onde devíamos.
A ti que lês este texto: vê se fazes melhor amanhã.
Marta Arrais
In: imissio.net 10.11.21
É estranho que amemos alguém sem que lhe digamos. Muitas vezes são pessoas da nossa família próxima a quem podemos passar anos e anos sem que expressemos de forma clara o que sentimos e pensamos a seu respeito. A nossa vontade de que sejam felizes devia considerar que escutarem da nossa boca um Amo-te, ou um Gosto Muito de Ti é algo que faz diferença.
Quão importante para nós é escutá-lo, mesmo quando temos a certeza de que é essa a verdade?
Em quase todas as casas existe amor, mas em poucas há quem seja capaz de o expressar de forma tão simples quanto clara.
Que vergonha pode existir em dizer que amamos os nossos filhos ou os nossos pais? É possível que também nós nunca o tenhamos escutado, mas essa é uma boa razão para o não dizermos?
Há quem espere por uma oportunidade tão acertada… que esse momento nunca chega. Até que, em alguns casos, quando estamos dispostos a dizê-lo, já o outro não está.
Se acabou, então não era amor… mas nada sobrevive sem ser alimentado. Sem cuidado tudo se degrada.
Quando eu abraço a minha felicidade à de alguém, isso significa que essa pessoa me inspira e que posso ser feliz apenas por… admirar a sua felicidade.
Que eu nunca tema o amor que sinto, nem me envergonhe da sua verdade. Que eu tenha coragem de amar por obras, mas também de dizer sempre que amo quem amo, a quem amo.
Está em curso uma experiência nova no catolicismo: neste 17 de outubro, em todas as dioceses do mundo, em simultâneo, inaugura-se um caminho sinodal. Na verdade, é o início de um processo em três etapas, que se desenvolverão entre outubro de 2021 e outubro de 2023: a primeira será diocesana, a segunda organizar-se-á por continentes e a culminar ocorrerá aquela do sínodo da Igreja universal. O tema é o mesmo nas três etapas: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”.
A palavra grega synodos é composta por dois termos: a preposição syn, que significa com, conjuntamente; e o substantivo hodos, que se traduz como caminho. O sínodo seria assim um caminho percorrido em conjunto. Ora, se isso é alguma coisa inerente à natureza da própria comunidade eclesial (por exemplo, a voz autorizada de São João Crisóstomo dizia que Igreja e sínodo são expressões equivalentes), a verdade é que a dinâmica sinodal pretende ser também um passo em frente, abrindo um amplo e inovador processo de escuta, participação e discernimento sobre o presente e o futuro.
A instituição contemporânea do sínodo deve a sua origem à redescoberta da dimensão colegial operada pelo Concílio Vaticano II. De facto, foi na reta final do Concílio que o Papa Paulo VI criou o “sínodo dos bispos”, cuja primeira assembleia decorreu em 1967. Se daí em diante todos os papas valorizaram o recurso ao sínodo (João Paulo II convocou dezena e meia, Bento XVI cinco), Francisco tem-se mostrado particularmente envolvido na intensificação da sinodalidade. Para compreender esta especial aposta do Pontífice, a sua biografia pode ser útil, pois os episcopados da América Latina destacam-se precisamente pelo ritmo sinodal que adotaram e que as importantes assembleias-gerais de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) documentam com vivacidade. Por exemplo, o então arcebispo de Buenos Aires, de nome Jorge Bergoglio, presidiu à comissão de redação do documento final de Aparecida, e isso realçou a sua visibilidade no contexto da Igreja.
Desde o início do seu pontificado, o Papa tem sublinhado com profecia e realismo dois elementos: o primeiro é que o caminho sinodal deve plasmar melhor a forma de ser Igreja neste terceiro milénio; o segundo é que — e são suas as palavras — “caminhar conjuntamente (leigos, pastores, bispo de Roma) é um conceito simples de verbalizar mas não tão fácil de colocar em prática”. Os obstáculos foram resumidos recentemente por Francisco como um aviso à navegação: existe o risco do formalismo (patente na tentação de construir um evento de fachada em vez de inaugurar instrumentos e estruturas de diálogo que relancem a participação dos leigos); o risco do intelectualismo (que reduziria o sínodo a uma espécie de grupo de trabalho especializado, descolado da realidade e das preocupações concretas); e o risco do imobilismo (que repete de forma estafada, como desculpa, o “sempre foi assim”).
Mas, a par dos obstáculos, há também reais oportunidades que se abrem. O caminho sinodal pode tornar a Igreja uma comunidade de escuta e de vizinhança, capaz de espelhar a participação, a inclusão e o cuidado, deixando-se converter ela própria pelo estilo de Deus. Isto tem mais hipóteses de acontecer, acredita Francisco, se a Igreja não for ocasionalmente sinodal, mas aceitar caminhar para uma Igreja estruturalmente sinodal. E uma citação que este mês de outubro tem reaparecido é a de Yves Congar, um dos teólogos-chave do Concílio Vaticano II: “Não precisamos de uma outra Igreja, mas de uma Igreja diferente.”
Cardeal Dom José Tolentino Mendonça
23.10.21
In: imissio.net
Olhando para trás, aquela conferência que o sociólogo Zygmunt Bauman pronunciou em Assis, em 2016, tornou-se uma espécie de legado seu ao futuro. Nessa ocasião, ele que tinha então 91 anos de idade, propôs-se refletir sobre o estado da humanidade fazendo a história do recurso ao pronome “nós”. Recordo-me de ouvi-lo dizer que esta palavra decisiva começou o seu percurso da forma mais restritiva, pois os grupos humanos protegiam a sua identidade fechando-se em agregados minúsculos. Por exemplo, o primeiro “nós” da história humana não ultrapassaria o reduzido círculo de uma centena de pessoas. Além dessa realidade, os primeiros humanos não conseguiam dizer “nós”. A humanidade era então composta por bandos de caçadores e recoletores que podiam mover-se conjuntamente e assegurar a alimentação do próprio grupo. O “nós” terminava abruptamente nessas fronteiras. Tudo o resto era “outro”. E o outro era olhado como inimigo.
Com o tempo, o número daqueles que cabiam dentro do “nós” foi crescendo e assim se chegou à subsequente noção de tribo e de comunidade, de nação e de império. Do estritamente local passava-se ao global. Bauman para descrever a mecânica da história insistia em dois princípios: o primeiro é que a construção da civilização (tanto no passado, como no presente) ocorreu sempre no balanço entre exclusão e inclusão; a segunda, é que a civilização avançou apenas quando conseguiu alargar as fronteiras da inclusão e fazer regredir a prática da exclusão. Por isso, ele afirmava que o nosso futuro depende da capacidade de expandir o pronome “nós” e de reduzir o espaço dado ao pronome “eles”, coisa que só acontecerá se soubermos erguer uma sociedade mais empática, humana e dialógica.
Num dos escritos de Wittgenstein há uma crua metáfora que infelizmente arrisca tornar-se emblemática da nossa contemporaneidade. Diz o filósofo que nos assemelhamos a um homem que olha o mundo através dos vidros foscos de uma janela fechada. Vemos a sombra dos que passam no exterior, mas não compreendemos os seus estranhos movimentos. Na verdade, estando protegidos em casa, não nos damos conta que rebentou uma tempestade e que aqueles que vemos do outro lado só com dificuldade se mantêm de pé. O mundo dividido entre “nós” e “eles” é um mundo assente numa visão de vidros foscos, caindo em tantas deformações. Sabemos como a insistência na contraposição dualista favorece apenas a hostilidade e o medo, em vez de incentivar a hospitalidade, o encontro, a percepção do bem comum. Não tenhamos dúvidas: a experiência da pandemia só nos servirá como alavanca se ativar mecanismos de construção do “nós”, tornando-nos a todos co-responsáveis por uma política da esperança. Em vez de dizermos “eles”, deveríamos ser mais capazes de dizer “nós”. Falando dos pobres, dos excluídos da prosperidade económica, da multidão daqueles que o mercado de trabalho condena à precariedade, dos jovens a quem não se oferece uma perspectiva de amanhã, dos idosos considerados pelas nossas sociedades como um peso deveríamos ter a capacidade de dizer “nós”. Falando daqueles que não estão em igualdade de oportunidades ou são apressadamente remetidos para o equívoco estatuto de minoria deveríamos ser capazes de dizer “nós”. Falando dos migrantes e dos refugiados, deveríamos ser capazes de dizer “nós”, alicerçando-nos no reconhecimento de uma condição universal. Naquela sua conferência/testamento, Bauman recordava que ainda não encontramos os instrumentos para implementar o “nós”. Nesse sentido, creio, uma tarefa urgente para esta estação que vivemos é aprofundar o significado dessa palavra.
Dom José Tolentino Mendonça
texto publicado no imissio.net em 11.10.21
Não acredites em quem te diz que as riquezas são o caminho para a alegria abundante. Os bens materiais são todos ainda mais passageiros do que nós.
Jamais alguém possuirá todas as coisas e, ainda que isto fosse possível, nem mesmo nessa altura veria a sua cega ambição acalmar. Porque a lógica de ter é acumular sempre, mais e mais. À satisfação de uma maior conquista segue-se uma fome por mais ainda. A pobreza precisa de muito menos do que a ganância.
Aprende a reconhecer o valor do pouco que tens, valoriza a liberdade de quem, por ter uma bagagem pequena e leve, pode ser tudo… e feliz.
Se os teus dias se passam a cuidares de não perder as coisas que tens e a procurares formas de ter mais, talvez seja tempo de te questionares sobre os resultados alcançados. Estás no caminho que planeaste? Por que razão há pessoas que têm tão menos do que tu, mas são muito mais felizes? Estarão elas iludidas? Ou estarás tu?
A vida passa e todas as coisas que temos deixarão de o ser em breve. O tempo que gastámos para as adquirir foi um bom investimento?
Não preciso mais do que pouco para viver aquela alegria que não é momentânea, mas um sentimento profundo que me habita, ilumina e fortalece, tornando-me capaz de viver cada novo dia apenas com o essencial, partilhando o resto com quem não o tem.
José Luis Nunes Martins
In: imissio.net 08.10.21
Penso nessa frase que G. E. Lessing escreveu: “O maior dos milagres é que os milagres verdadeiros nos apareçam como banais ocorrências de todos os dias.” De fato, precisaríamos de uma escola do olhar que nos ajudasse a compreender a natureza do que acontece e nos escapa. Precisaríamos de aprender a colher o sentido daquilo que efetivamente se joga diante dos nossos olhos, tanto no real que nos é distante como naquele que nos está mais próximo e se aloja, inclusive, dentro de nós. Por um estranho automatismo, nunca suficientemente criticado, damo-nos mais facilmente conta do mal do que do bem. O mal salta-nos à vista e como que nos obsidia. A ele reservamos a condição de coisa extraordinária: uma peça que se solta e se destaca, um elemento inesperado que se manifesta, uma contrariedade que emerge, um problema no qual imediatamente nos concentramos. Não nos apercebemos logo, mas à custa de nos focarmos na parcela de negatividade cria-se uma distorção do nosso olhar, já que perdemos a capacidade de considerar a vida na sua inteireza. E tal ocorre, em grande medida, por julgarmos ainda o bem uma banalidade; um pressuposto que nos é absolutamente devido e que, por isso, nem nos sentimos no dever de agradecer; um mero resultado fisiológico da existência ao qual não reconhecemos qualquer intencionalidade. Não admira que os grandes milagres nos passem ao lado como banais ocorrências para as quais reservamos apenas olhos sonolentos.
Bastaria, contudo, colocarmos em prática um exercício de observação contrária. Que arrancássemos a jornada enumerando, com gratidão, o interminável elenco do bem de que somos atores e testemunhas. A começar pelo prodigioso espetáculo da própria vida sem mais, a nossa e a das outras criaturas. Bastaria abrir a janela ao romper do dia e demorar uns instantes a percorrer como este mundo, mesmo no seu degrado ou nas suas aflições, não deixa de nos rodear sempre de elementos suntuosos, de miríades de detalhes luminosos que recordam como a graça pesa infinitamente mais no prato da balança. E, ainda quando sentimos o agravo daquilo que nos tirado, é sempre mais e mais espantoso o que nos é oferecido. Na origem da vida está, assim, a bênção e esta sua admirável excedência à qual deveríamos colar o nosso coração. Isso que, por exemplo, a poesia de Walt Whitman ensina, quando diz: “Não conheço nada que não seja um milagre:/ ou ande eu pelas ruas de Manhattan,/ ou erga a vista sobre os telhados/ na direção do céu,/ ou pise com os pés descalços/ a franja das águas pela praia,/ ou converse durante o dia com uma pessoa a quem amo/ [...] ou olhe os desconhecidos na carruagem/ de frente para mim [...]// Cada momento de luz ou de treva/ é para mim um milagre,/ milagre cada polegada cúbica de espaço,/ cada metro quadrado da superfície da terra por milagre se estende/, cada pé do interior está apinhado de milagres.”
Não há dia nenhum em que não sejamos visitados por um anjo. O grande desafio, porém, é o da hospitalidade que estamos ou não disponíveis a viver de forma concreta. Há um passo de um texto bíblico, a Carta aos Hebreus, que centra precisamente aí a necessária conversão da nossa atitude: “Não vos esqueceis de praticar a hospitalidade; pois agindo assim, mesmo sem o perceber, muitos acolheram anjos” (Heb 13:2). A maior parte das vezes, a questão não é inventar, mas reconhecer. Não é tanto forçar a irrupção do inédito, mas reaprender a ver o habitual. Não é a descoberta aparatosa, mas o abraço humilde à vida que nos é dada e às suas circunstâncias.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 30.08.21
Alguém distraído escorrega e, depois de tentar em vão equilibrar-se e evitar o inevitável, cai no chão sem se magoar. É algo que arranca pelo menos um sorriso à maior parte de nós. Pelo fato de não ter sentido nem valor.
Alguém que vê uma outra pessoa em risco e, sem olhar as consequências, se lança em seu socorro, acabando por se magoar de forma aparatosa. Aqui não há vontade de rir, nem de sorrir, porque o que aconteceu de negativo teve sentido e isso confere-lhe valor.
Um artista sacrifica vários meses da sua vida a produzir uma obra de arte porque ambiciona fazer uma grande venda, tornando-o rico e famoso. Outro artista produz, com o mesmo nível de sacrifício, a mesma obra de arte, mas a sua intenção é acrescentar mais beleza ao mundo, entregando o quadro a um museu em troca de entradas gratuitas para todas as pessoas desfavorecidas que o queiram visitar. O sofrimento deste artista faz mais sentido do que o do primeiro. Porque visa algo mais elevado do que o natural egoísmo.
Sofrer de forma absurda acrescenta dor à dor. Encontrar no sofrimento um meio para alcançar algo excelente dá-lhe sentido e valor.
Se eu viver a fugir ao sofrimento, talvez não chegue a viver um único dia de paz, muito por causa do medo que me impede de ser livre. Se eu for capaz de lutar pela felicidade, aceitando os sofrimentos que isso implica, então as dores terão sentido, e ainda que as feridas teimem em não sarar, eu serei digno de mim mesmo, porque lutei pelo melhor de mim, qualquer que seja o resultado que consiga.
Luta pelo melhor de ti sem medo de sofrer. Sofrerás as mesmas dores do que aqueles que as temem e delas passam a vida a fugir, mas as tuas terão sentido e valor. As deles serão a sua derrota, as tuas o preço a pagar pela vitória.
José Luís Nunes Martins
24.09.21 - In: imissio.net
O Papa Francisco inicia o Capítulo VI da Encíclica Laudato Si´, com uma lapidar afirmação: “antes de tudo é a humanidade que precisa mudar”, pois “falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos.” (nº 202) E prognostica: “Esta consciência basilar permitira o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida” (nº 202). O desafio é definido então como “cultural, espiritual e educativo e implicará longos processos de regeneração.” (nº 202) Neste sentido, o Santo Padre aponta alguns caminhos práticos que podem ajudar a (re)estabelecer a aliança entre Criador e criatura e a harmonia entre todo ser criado.
O Pontífice insiste na busca por um novo estilo de vida, que seja capaz de resistir ao condicionalismo psicológico e social que é imposto pelo mercado de consumo e onde os consumidores possam exercer sua responsabilidade social. É necessário uma nova educação ambiental, onde se inclua uma crítica aos “mitos” da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e venha a recuperar “os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus.” (nº 210) Esta nova educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos e hábitos diários, que terão incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente. Uma educação onde seja difundido um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza, em contraposição ao modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.
Neste sentido, o Papa Francisco propõe-nos uma verdadeira e profunda conversão ecológica. A conversão ecológica, para ser duradoura, tem de ser não somente individual, mas também comunitária. A conversão comunitária rompe com uma consciência isolada, com o individualismo e a autorreferencialidade nos quais consolidam a submissão ao consumismo e ao paradigma tecno-econômico por impedirem que se saia de si em direção ao outro. Este sair de si seria o passo inicial para a conversão, sair da individualidade imposta pelo paradigma tecnocrático e econômico e pelo antropocentrismo conveniente ao mercado e ao lucro. Um estilo de vida mais ecológico para a vivência diária do cristão implica transformações e rupturas, inicialmente com o consumismo e com o desperdício.
Dessa forma, poderíamos dizer que a conversão ecológica, na realidade, se trata de uma reconversão, ou seja, um chamado, para que os cristãos redirecionem suas vidas já marcadas pelo sinal divino para viverem “a vocação dos guardiões da obra de Deus” (nº 217). A Igreja aprimorou a Teologia da Criação e nela encontrou uma chave para que o discurso ambiental, que atravessa o planeta e seus habitantes, possibilitasse a convocação de seus fiéis a uma reconversão. Em termos de reconciliação com a criação “devemos examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus com as nossas ações e com nossa incapacidade de agir.” (nº 218) Na Teologia da Criação, este pensar teológico encontra-se nos dois primeiros capítulos do livro do Gênesis e na literatura sapiencial, onde nos apresenta um Deus amoroso que cria todas as coisas, possibilitando o seu crescimento e desenvolvimento. Tendo criado o ser humano, o homem e a mulher, à sua imagem e semelhança, confere-lhe a tarefa de cuidar do jardim e a responsabilidade de administrar e zelar, a fim de dar continuidade à sua obra criadora. Isso significa que o ser humano deverá fazer toda a sua tarefa seguindo os mesmos princípios usados pelo criador: cuidar da casa que lhe foi confiada.
Os cristãos, ao se converterem ecologicamente, devem deixar emergir nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus que, pelo mistério da Encarnação, assume a carne humana num processo de comunhão. Desta forma, nada mais é estranho ao reino de Deus e à natureza. Tudo está envolvido pela salvação que Jesus veio trazer. É missão de cada ser humano trabalhar por esta comunhão intrínseca entre o Criador e os seres criados. Segundo o teólogo alemão Jürgen Moltmann, a comunhão é a correlação entre a criatura e o Criador:
Se a pessoa reconhece o mundo como criação, então ela experimenta a existência de uma Comunhão da criação e toma parte nela. A Comunhão da criação transforma-se, então, num diálogo perante o criador comum. O reconhecimento do mundo como criação é, na sua forma original, o agradecimento pela dádiva da criação e da comunhão nela e do louvor exaltante do criador.
Nesta comunhão universal entre todos os seres, o Papa Francisco convida-nos a promover a alegria e a paz refletidas no retorno à simplicidade que, permite saborear pequenas coisas, agradecer pelo que se tem, sem apego, e não lamentar por aquilo que não se possui. Uma vida simples, onde se encontre prazer e felicidade em coisas simples, que não se relacionem ao consumo. Uma integridade da vida humana, onde a humildade e a sobriedade estejam sempre presentes.
Por fim, o Santo Padre convoca-nos a uma fraternidade universal, que se expressa no amor civil e político, na responsabilidade para com os outros e para com o mundo, traduzidas em atitudes de bondade e honestidade. O amor social nos planos político, econômico e cultural seria a chave do desenvolvimento autêntico e uma norma constante e suprema do agir. Impulsiona-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Nesse contexto, o Papa destaca as ações comunitárias que intervêm em prol do bem-comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano na busca da construção de um mundo melhor.
Desta forma, a esperança futura volta-se para Jesus. A restauração de todas as coisas se dará a partir de Cristo, uma vez que Ele é o Primogênito de toda Criação que reconcilia em si, como que num ponto de atração, todas as coisas do céu e da terra, possibilitando que toda a criação grite as dores de parto à espera ansiosa da vinda do Reino de Deus (Rm 8, 18-25).
Pe. Me. Alexsander Baccarini Pinto
Universidade Católica Portuguesa, Lisboa
25.08.2021
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O tema das alterações climáticas não é novidade e é atualmente tão debatido científica e politicamente que se tornou para muitos um assunto banal. O mais recente relatório de avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas reforçou as preocupações em torno dos acontecimentos climáticos e levantou alarmantes cenários futuros. Simultaneamente, assistimos à ocorrência de eventos extremos como fogos e cheias que são sinais destas alterações e que têm profundas consequências ambientais e sociais.
Com a quantidade de informação a que somos expostos, incluindo opiniões divergentes de especialistas como climatologistas, é difícil para os “meros mortais” como nós compreenderem com o que lidamos. De um lado, temos uma comunidade científica a alertar para os danos ambientais causados pela humanidade e a afirmarem que, a este ritmo, estamos a caminhar para a próxima extinção em massa. Do outro, temos os climatologistas céticos que afirmam que pouco se sabe com certeza; e, por isso, não devemos fazer inferências com base em pressupostos tendenciosos. Não obstante, há aspetos com os quais até os mais céticos concordam, nomeadamente que “as temperaturas à superfície aumentaram desde 1880”, que “os seres humanos têm vindo a lançar dióxido de carbono para a atmosfera” e que “o dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa têm um efeito de aquecimento no planeta” (em “Alterações Climáticas: o que sabemos, o que não sabemos”, de Judith A. Curry 2019).
Certo, o panorama é complexo, mas este debate incessante sobre a gravidade da situação, sobre quem é o mais culpado e sobre como será o futuro desfoca-nos do essencial. Não precisamos ser cientistas para sabermos que os recursos da natureza são finitos e para avaliarmos grande parte dos modelos de produção e consumo vigentes como insustentáveis.
Isto não é suficiente para nos responsabilizarmos?
Podemos começar com o nosso coração. Trabalhando a nossa humildade, crescendo na consciência de que não somos proprietários dos recursos naturais e reconhecendo as limitações dos ecossistemas. Na carta encíclica sobre o cuidado pela casa comum Laudato Si’, o Papa Francisco chama a atenção para esta introspeção e convida-nos a encontrar soluções “não só na técnica, mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas”. Façamos uma avaliação ao nosso estilo de vida: faço escolhas que contribuem para a destruição do ambiente? Se sim, a preço de quê? De comodidade? Consigo alterar algum tipo de comportamento em prol do cuidado pela casa comum? É fácil responsabilizar os dirigentes políticos e empresas e argumentar que as escolhas ao nível individual não representam muito, mas se estas escolhas influenciarem opções políticas ou empresariais já podem ser representativas. Façamos a nossa quota parte com coragem, passando “do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha” (Laudato Si’, §9).
Se a Terra é casa comum, então, a forma como nos relacionamos com a natureza é indissociável aos conceitos de fraternidade e justiça. Na carta encíclica Fratelli Tutti do Santo Padre sobre a fraternidade e a amizade social, somos convidados a combater a indiferença globalizada e a promover uma nova forma de vida, capaz de recuperar a sede de “pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (116). Este sair da própria bolha e amar mais, não só o que nos são próximos, mas todos, exige tempo e esforço.
Por fim, destaco o papel da educação e liderança na responsabilidade ambiental. Os jovens e crianças são os decisores do futuro e, por isso, é fundamental que as instituições de ensino e as famílias apontem para outro estilo de vida, capaz de cuidar dos ecossistemas. Não apenas as escolas e as famílias: todos nós somos convidados a ser exemplo nas pequenas ações diárias – evitar o desperdício alimentar, reduzir o consumo de água, produzir menos resíduos, apagar as luzes quando não são necessárias, plantar árvores –, amadurecendo os nossos hábitos e influenciando o estilo de vida de outros. Esta transformação pessoal nos pequenos gestos “faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano” (Laudato Si’, §211).
Para a semana, dia 1 de setembro, a Igreja assinala o dia mundial de oração pelo cuidado da Criação, e até dia 4 de outubro somos convidados a viver o Tempo da Criação, em memória de São Francisco de Assis. E se aproveitarmos este tempo para renovarmos o nosso compromisso pelo bem comum?
Margarida Pessoa Vaz
In: pontosj.pt 23.08.21
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Há quem tema o fim do mundo, se deixe esmagar pela certeza de que um dia todos deixaremos de estar aqui. Em momentos diferentes, mas todos vamos deixar este mundo.
Há quem desespere com essa verdade que parece impedir a esperança.
Talvez a verdade seja que a vida não é para adiar, é para cumprir, da melhor forma possível, sem nos perdermos em tempos que não são os nossos, que não podemos alterar. O passado e o futuro escapam-nos, e quando nos demoramos a pensar neles, perdemos o presente. O hoje. A vida.
É certo que o dia do fim chegará, e haverá um dia antes desse. E se nesses, como nos anteriores, tivermos sido mais fortes do que os medos que nos paralisam e do que os egoísmos que nos impossibilitam de sermos melhores, então, se tivermos tido essa coragem, a nossa vida foi felicidade, apesar de todas as dores.
O que podemos esperar depois do fim desta vida? Creio que tudo. Não somos capazes de compreender o porquê de tudo, mas somos inteligentes o suficiente para que nos seja evidente que o mundo e tudo o que há nele, visível e invisível, não são o resultado de uma explosão sem sentido. Até pode haver acasos, mas não será tudo um acaso!
Este mundo está cheio de sinais simples de que tem sentido.
O tempo passa e nós com ele. Como se a existência fosse um enorme palco onde todos são livres de escrever o seu papel. Um palco num comboio que vai parando para que uns entrem e outros saiam. As estações não são o nada, mas outro mundo.
As certezas que não temos não são mais importantes do que a fé que podemos ter.
A minha vida não é o mal que me acontece, é o bem de que sou capaz. Viver é acrescentar.
Que eu aprenda a estar atento ao que brota de novo em mim… e não é para mim!
Que hoje seja diferente, que haja mais luz no mundo e que uma parte brote de mim!
José Luís Nunes Martins
In: imissio.net 30.07.21
Imagem: pexels/pixabay
Sêneca dedicou os últimos anos da sua vida a construir um dos mais fascinantes epistolários latinos. Discute-se muito se o seu correspondente, Lucílio, existisse de facto ou fosse simplesmente uma entidade ficcional. Há, porém, um candidato plausível a ocupar o lugar: Lucílio, o jovem, um modesto escritor e político que exercia nesses anos (62-65 d.C.) o cargo de procurador imperial na província da Sicília. As cartas de Séneca têm tudo o que nos fascina nas cartas: a vivacidade visual do quotidiano, as marcações lentas e íntimas do tempo, as confidências, os sentimentos entrevistos, a espontaneidade, o humor, as observações não transcuradas. De facto, as cartas são uma incrível forma de escrita tridimensional: dão a ver (ou criam a ilusão de dar a ver) em direto a existência tal como ela é. Mas, a somar a essas características, as de Séneca são também preciosos tratados filosóficos em pequeno formato. Além de amigo, o filósofo sentia a responsabilidade de guiar através da reflexão o aperfeiçoamento do seu interlocutor. Assim, cada carta oferecia a possibilidade de abordar temas e de oferecer pontos de meditação onde o conhecimento da verdade se ampliava. E de fazê-lo — facto deveras admirável neste clássico de obrigatória leitura — como um diálogo escorreito entre amigos, partindo tantas vezes da experiência mais comezinha da vida, mas com a capacidade de reconduzi-la ao âmago do seu sentido.
A carta 23 é dedicada à verdadeira alegria, aquela que não se confunde com a satisfação imediatista ou com os prazeres prêt-à-porter que apenas armadilham e contraem o campo de possibilidade do desejo. A verdadeira alegria é a que nos faz trilhar com decisão um itinerário interior do qual resulta um crescimento e uma maior consciência de nós próprios. Há formas de contentamento que alegram momentaneamente o rosto, mas aprofundam a divisão e o vazio da alma. Séneca insiste: “É o espírito que se deve alegrar, elevando-se com confiança sobre os acontecimentos, quaisquer que eles sejam.” Para isso temos, porém, de acolher a exortação que ele faz a Lucílio: disce gaudere, aprende a alegrar-te.
Esta necessidade de uma aprendizagem, não raro árdua, requerida para a experiência efetiva da alegria é um dos pontos centrais da sua mensagem. A este, juntaria outros três. O primeiro deles é a descoberta de que a alegria deve ser encontrada em nós (“que a alegria te nasça em casa”), não no que nos acontece. Contudo como acontece com os metais — os de escasso valor encontram-se à superfície, enquanto que os preciosos se escondem nas profundezas da terra —, a verdadeira alegria é aquela que parte do fundamento e se expande a partir de dentro. O segundo ponto leva-nos a compreender que a verdadeira alegria é a alegria do bem que se exprime, segundo Séneca, por uma reta consciência, uma honestidade de intenções e uma concentração no essencial, como “quem percorre um único caminho”. O último ponto é a vigilância e o empenho necessários para levar a bom termo a aprendizagem da alegria: são poucos aqueles que conduzem realmente a própria vida; a maior parte deixa-se levar pelo curso das coisas.
O discurso da alegria serve assim a Sêneca para um apelo à responsabilidade de vivermos a fundo a vida. Não aconteça que partamos sem ter percebido a oportunidade que representou esta passagem ou, pior ainda, que desistamos “de viver ainda antes de ter começado”. E Sêneca despede-se dizendo, vale, adeus.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 26.06.21
Miserere: A nudez poética de Adélia Prado
Miserere é o sugestivo título da última obra poética de Adélia Prado. Neste livro, as palavras da poetisa enamoram-nos quer pela metafísica, quer pelo desvendamento do que frequentemente se vincula ao quotidiano, proporcionando-nos a descoberta da grandeza da vida nas pequenas coisas.
A poesia adeliana possui a capacidade de estabelecer um diálogo permanente com Deus e uma ponte para a transcendência, veiculando uma crença na perenidade da carne e na eternidade da alma. Miserere nobis sugere um título no qual a fé se expressa através da poesia e a poesia se assume discursivamente como uma manifestação de fé.
Diante do medo, da insegurança, da morte e do pecado, a fé é chamada a permanecer intrinsecamente unida ao Criador, que sempre Se volta para nós com os Seus olhos de misericórdia. Adélia convoca-nos a contemplar a beleza da vida que floresce, mas também a ver, com os olhos de Deus, a fraqueza da carne nos afazeres do dia-a-dia, na certeza de que em todas as circunstâncias, a Beleza nos acompanha provocando-nos o espanto diante da magnificência da existência humana, lugar onde a vulnerabilidade se converte num laboratório de vida.
Adélia Prado iniciou o seu percurso biográfico como professora de filosofia, exercendo o magistério durante vinte e quatro anos até que, em 1976, surge no cenário da poesia brasileira a sua obra Bagagem, marcada pela novidade formal, apreciada por exímios escritores como Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de Sant´Anna. Nesta sua primeira obra, revela uma maturidade estilística que vai determinar todo o seu posterior percurso literário. A poesia de Adélia configura a revalorização do feminino nas letras e o papel da mulher como ser-pensante.
Uma relação entre literatura e religião que compreenda ambas como criaturas irmãs e seres da linguagem permite-nos pressupor que as experiências poética e religiosa são correlativas enquanto experiências de sentido e, uma vez que se expressam em linguagem simbólica, encontram-se numa analogia formal. A última obra de Adélia, intitulada Miserere, convida-nos a percorrer esse pressuposto e a questionar a mutualidade entre as funções estética e religiosa no interior da ação criativa do ser humano. Numa entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Adélia afirma a dimensão epifânica da poesia:
(…) poesia é a revelação do real. Experimentar a poesia é experimentar o real, o que de fato é. Ela é desveladora da realidade, ela permite a você a desmistificação da vida. [...] o poeta é como o filósofo, é aquele que está centrado no real. Por isso, ele é tão importante no processo de humanização das pessoas. [...] o discurso poético é uma epifania, revelação constante. Revelação dirigida à sensibilidade, que não conta com a inteligência, que envolve.
No poema Quarto de Costura, encontramos os elementos simbólicos que remetem à sensibilidade religiosa, imbuída na poética adeliana. Com considerável simplicidade, Adélia valoriza neste poema a figura feminina na imagem de um óvulo que contém a potência de um universo. Demonstra uma questionadora interpelação ao entregar-se a Deus perante as perguntas, deixando-se levar pelo afazer quotidiano de um bordado esquecido. Realiza ainda uma referencialidade bíblica e filosófica que não resiste ao apelo do corpo como lugar e condição de uma realização última do ser humano.
Interessante é perceber que a fé, como experiência humana, se transforma em linguagem poética e que o poema adquire uma estrutura corporal. Adélia é fascinada pelo mistério da vida! Ela contempla toda a criação como um “espelho de Deus”, onde a multiplicidade pertence à Unidade, onde um “óvulo imaginado” se abre em universos, onde o Mistério da Vida acontece no desabalar do olhar da fé e do coração pulsante de Deus.
A poesia adeliana carrega em si o desejo de alcançar um entendimento para além de uma fé alienada e nesse sentido Adélia questiona e interpela a compreensão da sua existência. A presença de Aristóteles e Platão mostra a inquietação em busca dos conhecimentos das questões universais inerentes ao ser humano. É na aceitação da natureza humana, da sua fragilidade e mortalidade, na saudade de algo feito de “carne e ossos”, na “acidez do sangue”, que o sujeito poético encontra o que deseja como quem carrega a sua cruz, para nela dar a vida e mergulhar no mistério insondável de Deus.
Os poemas de Adélia revelam peculiaridades de uma reflexão metalinguística, reflexão na qual as palavras são encaradas pela poetisa com um efeito vivificador e questionador, vivenciando a experiência poética em toda a sua força e corporeidade, aproximando a poesia do sagrado. O campo poético adeliano revela uma mistagogia onde o humano e o divino se dão as mãos, onde o infinito se funde no finito, parecendo configurar uma unidade intrínseca. De fato, o eu lírico é permeado de dúvidas e crenças nas quais é simultaneamente possível tocar o transcendente, o incondicional. Adélia tem um olhar de águia, com o qual é capaz de ver a vida como uma existência criativa e repleta de sentidos. Em Pontuação, por exemplo, podemos perceber que o mundo adeliano suporta o encontro paradoxal entre a condicionalidade da existência e a incondicionalidade de sentido:
(…) O medo pode explodir-nos,
é com zelo de quem leva sua cruz
que o carregamos.
Por isso, Deus, Vossa justiça é Jesus,
o Cordeiro que abandonastes.
Assim, quem ao menos se atreve
a levantar os olhos para Vós? (…)
Adélia comunica um encontro com o mundo em que este ora transparece em lúcida revelação, ora de si prorrompe tudo aquilo que o transcende. A poesia é esta linguagem simbólica à qual a poetisa recorre para expressar a sua experiência de encontro com o mundo. Na sua obra, as coisas estão imbuídas de sentido e carregam em si as marcas de Deus, sensível aos olhos da fé. A poesia parece ser uma via de se chegar ao real, de se contemplar na realidade do dia-a-dia os rastros de Deus nas coisas. Nas palavras de Mircea Eliade, esta constitui uma peculiaridade da existência do ser religioso no mundo:
Qualquer que seja o contexto histórico em que está imerso, o homo religiosus crê sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que se manifesta nele e, por isso, o santifica e o faz real. Crê que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, na medida em que participa da realidade.
Adélia concebe a criação literária como um mistério que é quase um sinónimo de fé, ou seja, algo que não se explica através da inteleção, mas advém da experiência com o sagrado. A poesia leva-nos a ler a vida humana com o pano de fundo do sagrado. É na luz do transcendente que as palavras poéticas ganham um sentido e se humanizam, revelando a beleza e o ser das coisas.
Na poesia adeliana está patente a força da fé! É esta fé, muitas das vezes provada, dura, desconcertante, desinstaladora, que conduz o sujeito poético ao amadurecimento na oração, na espera pelo tempo de Deus. O poema Sala de espera revela a ansiedade do eu lírico que procura um consolo e uma resposta para os seus questionamentos e, no fundo, só se confronta com a dureza das palavras das Escrituras Sagradas:
A Bíblia, às vezes, não me leva em conta,
tão dura com minha gula.
Nem me adiantou envelhecer,
partes de mim seguem adolescentes,
estranhando privilégios.
Nunca me senti moradora,
a sensação é de exílio (…)”
A Bíblia mostra-se “tão dura” perante a voracidade do desejo de alimentar uma espécie de carência existencial que não foi sanada pela maturidade, em que os questionamentos permanecem “adolescentes”, em contínuo desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a confiança na sabedoria divina de que “Deus sabe o que fez” faz o sujeito poético superar o medo, tendo na sua fragilidade a condição primordial para o entendimento da matéria humana. Adélia termina o poema de uma forma mais esclarecida, consciente de que a “fraqueza me põe no caminho certo” e na esperança de que Deus nunca abandona ou desampara o homem. Em Jó Consolado, o eu lírico aparece já amadurecido, com uma sólida esperança, na qual compreende o sofrimento e lhe confere um sentido transcendente. Desta forma, o corpo cansado desperta e a língua feita de argila louva pelo Amor visceral que Deus tem pelo homem, libertando-o de toda a dor, vergonha e má sorte.
Na poesia adeliana, destaca-se um misto de temáticas inerentes à infância da poetisa, à sua ligação com os familiares e amigos. No poema A que não existe, fica patente a temática da saudade. Adélia adentra-se num saudosismo que é preenchido pela abissal confiança em Deus. A poesia transporta em si o poder de eternizar a beleza dos momentos vividos, de trazer à memória pessoas e acontecimentos que marcaram a nossa peregrinação sobre o chão desta terra. A poesia aporta sentido às lembranças e atribui forças para prosseguir na construção da história da humanidade, com o sentimento de gratidão, como bem expressa o poema Contramor, por aqueles que nos concederam o dom da vida.
A poesia conduz-nos à dialética entre vida e morte, alegria e tristeza, saúde e doença. Leva-nos a confrontar com as distrações no velório de Filipa e, ao mesmo tempo, nos “espasmos no santuário” faz-nos contemplar o amor que Deus tem pelo pequenino rebanho que, apesar das feridas que sangram, dá a vida àquele que na sua fragilidade se encontrava morto. É nas três aves juntas que a poetisa nos leva a mergulhar na perfeita alegria da Trindade Santa. Num dia de inverno, a poesia convida-nos a maravilhar com o sol nascente que ilumina a beleza linfática do mundo. O olhar puro e simples de Adélia traz cor e beleza às coisas, mesmo diante do incompreensível emerge um facho de luz que plenifica e rodopia a existência humana:
(…) Mas eis que a noite constela-se
e, com tanta acha de lenha
e tanta casca de pau,
já tenho como fazer uma fogueira bonita.
Espelho meu, estilhaça-te!
Escolho o baile,
quero rodopiar.
Na poesia de Adélia Prado, há um constante ir e voltar, numa conversa em que se cruzam vários assuntos. Em muitos deles, o sujeito poético começa um tema, passa para outro, faz um retorno ao primeiro e convoca um terceiro, tal como uma espiral. Isso ocorre, porque provavelmente o processo poético de Adélia se desenvolve com o olhar, com a contemplação e, finalmente, com uma reformulação. A beleza das coisas motiva o observador a expressar os seus encantamentos. É através da via da beleza e da forma que a realidade adquire o verdadeiro sentido e, por isso, é necessário olhar, contemplar e reformular o processo poético. A poesia tem, por isso, a capacidade de nos remeter para a beleza suprema das coisas que tudo purifica, que tudo transforma, que tudo recria. Alfredo Bosi, em sua obra O ser e o tempo da poesia, afirma que:
Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e de pensar. Bela é a metáfora ardida, a palavra concreta, o ritmo forte. Belo é o que deixa entrever, pelo novo da aparência, o originário e o vital da essência.
Mesmo Fiódor Dostoiésvski afirmava: “A beleza salvará o mundo”. Com a Encarnação do Verbo, não há dúvidas de que esta Beleza tem um rosto e um nome: Jesus de Nazaré! É a própria Beleza que assume a forma humana para elevar e dignificar o homem, criado à sua imagem e semelhança. O título desta última obra de Adélia é uma feliz invocação à misericórdia desta Beleza encarnada: Miserere! É a beleza nua desta misericórdia que salva, que transforma e que recria. Jesus é a “palavra concreta” e o “ritmo forte” que dá vitalidade e beleza às coisas criadas.
O olhar de Adélia faz da poesia um sursum corda, um signo sagrado de ética religiosa aliada à opção estética. Confrontamo-nos com a afirmação de princípios poéticos e éticos, em que a metalinguagem é o ponto de partida para uma discussão existencial. Através do concreto, chega-se ao abstrato. Enquanto matéria palatável, o poema transforma-se em algo que se pode “lamber” e “devorar”: “Pus um ponto final no poema / e comecei a lambê-lo a ponto de devorá-lo”, diz Adélia em A Pontuação. Numa cena insólita, o sujeito poético é tomado por pensamentos caracterizados como estranhos: “numa bandeja de prata / uma comida de areia, / um livro com meu nome / sem nenhuma palavra minha”. Depois a imagem de uma cruz que é carregada pelo homem num ato semelhante ao de Cristo: “O medo pode explodir-nos, / é com zelo de quem leva sua cruz, / que o carregamos” – uma mistagogia que pode ser compreendida como metáfora para a aceitação do sacrifício da condição humana.
Miserere evoca o clamor da intimidade, onde a poesia dá voz e sabor ao brado da nudez existencial de cada homem e cada mulher. Miserere é o diálogo com Deus, através dos acontecimentos da vida humana. Nas fragilidades, nos sentimentos de inadequação, nos descompassos entre o corpo e o espírito, a luz da fé deve permanecer acesa, como evoca o poema Humano: “A alma se desespera, / mas o corpo é humilde; / ainda que demore, / mesmo que não coma, / dorme”.
Diante do medo e da instabilidade, a fé é convidada a permanecer constante. Construir, reconstruir, cair, levantar, carne, espírito, mistério, morte, vida, pecado, Deus. Tudo se transforma em poesia! Tudo se transforma em oração! Adélia convida-nos a amar a nudez da nossa carne. Amar sempre! O amor salva e liberta! E, quando não amamos, devemos suplicar: Miserere! Em Adélia, o pecado maior, que brada aos céus, que desfigura o corpo e a alma, é não amar, é recusar-se à abertura do coração. No dizer de Carlos Drummond de Andrade: “Não catei o verme / Não curei a sarna / Não amei bastante meu semelhante / Não amei bastante sequer a mim mesmo.” É deste pecado, mais do que de qualquer outro, que devemos ser perdoados e por isso rezamos o Miserere! O mistério da Encarnação dobra a cerviz, pois nele habita a infinda beleza de Deus que nos ama e nos conduz à Beleza do seu misericordioso Coração.
A nudez poética adeliana clama por um Miserere nobis, mas também ecoa uníssono um Laudato Si, como bem sugere poetisa:
“Louvado seja Deus, meu Senhor, porque o meu coração está cortado a lâmina, mas sorrio no espelho ao que a revelia de tudo se promete, porque sou desgraçado como um homem tangido para a forca, mas me lembro de uma noite na roça, o luar nos legumes e um grilo, minha sombra na parede. Louvado sejas porque eu quero pecar contra o afinal sítio abrasivo dos mortos, violar as tumbas com o arranhão das unhas, mas vejo tua cabeça pendida e escuto o galo cantar três vezes em meu socorro. Louvado sejas porque a vida é horrível, porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos. Velho é o fim da guerra como macabra, mas limpo os olhos, do muco do meu nariz, por um canteiro de grama. Louvado sejas porque eu quero morrer, mas tenho medo e insisto em esperar o prometido. Uma vez quando eu era menina quando abri a porta de noite, a horta estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento, louvado sejas.”
Bendita e louvada seja a nossa nudez!
Pe. Me. Alexsander Baccarini Pinto
Mestre em Teologia pela
Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.
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