Um Filme

Blade Runner 2049 (EUA, 2017)

Dirigido por Denis Villeneuve. Roteirizado por Hampton Fancher, Michael Green. Baseado na obra literária Do Androids Dream of Electric Sheep? por Philip K. Dick. Elenco: Ryan Gosling, Harrison Ford, Ana de Armas, Sylvia Hoeks, Robin Wright, Mackenzie Davis, Carla Juri, Lennie James, Dave Bautista, Jared Leto.

O universo dos Blade Runner retorna novamente após trinta anos. Em 1982, a versão de Ridley Scott contava a história de um mundo distópico situado no ano 2019. Agora, em 2017, Denis Villeneuve (Sicaro: A Terra de Ninguém, A Chegada, Os Suspeitos) dirige a sua continuação no ano de 2049. Para explicar este lapso temporal, o roteiro inicialmente explica em seus letreiros iniciais o que ocorreu: a Tyrell Corporation faliu e fora posteriormente comprada pela Wallace Corporation, a qual aperfeiçoou a tecnologia dos replicantes para torná-los ainda mais obedientes e, ainda, a agricultura sintética evoluiu de tal forma a ter erradicado a fome dos seres humanos. Lá, ainda existe a figura dos Blade Runner que são responsáveis por caçar e “aposentar” os antigos modelos da Tyrell, ilegalmente na Terra. Assim sendo, acompanhamos a jornada de um detetive referenciado por “K”, interpretado por Ryan Gosling.

Neste contexto, o design de produção funcionou maravilhosamente para não somente respeitar o design dos cenários criados lá em 1982 e nos familiarizar com esse ambiente, mas também expandi-lo de tal forma a possibilitar conhecer novos horizontes, não tornando, portanto, nada repetitivo. A sua abordagem neo-noir continua lá, mas agora inclui elementos do cyberpunk em seus cenários. Os carros voadores, drones, as gigantescas propagandas, a imensa escuridão e poluição sonora, a decadência da sociedade, tudo isso está junto a cidades que servem exclusivamente como um grande terreno baldio para a intensa quantidade de lixo e poluição causada pela humanidade; a ausência de qualquer vegetação ou ambiente natural que é reforçada pelas extensas terras completamente secas, inférteis, tornando ainda mais simbólico a presença de uma única árvore morta, ou a recriação de uma floresta por tecnologia e ainda a surpresa de encontrar um cavalo de madeira (de árvore de verdade!), o que, por sinal, faz uma eficiente rima visual com o unicórnio de Deckard, (Ford) e dialoga diretamente à manipulação de nossas memórias.

Sim, as memórias são novamente o tema central desta história para tentar trabalhar os conceitos de vida e a diferença que seu significado possui para os replicantes e para os humanos, principalmente quando K descobre que uma de suas memórias implantadas (agora a implantação é abertamente comentada e reconhecida) pode ser real. Da mesma forma, não é à toa que os exatos minutos iniciais da trama mostram o close-up de um olho humano, representando nossa essência e consciência. Mas não se enganem, pois não estamos vendo a mesma trama, pelo contrário, ela retoma esse elementos importantes, mas Villeneuve não tem medo de ir além e explorar novas problemáticas que possam envolver o tema. Porque a jornada de K faz ele mesmo trabalhar a filosofia existencialista de sua pessoa, já que ele é programado para ser cegamente obediente e aposentar aqueles de sua mesma “espécie”.

A fotografia é um trabalho magistral digno de um prêmio Óscar em sua categoria. Por meio das cores, Villeneuve transparece o estado emocional de seus personagens e do ambiente ao seu redor. As intensas cores azuis são mais intensas que a de 1982, a qual trabalhava muito com cores cinzentas. Aqui, a melancolia faz parte do cotidiano e dela se apropriam seus habitantes. As cores quentes e vivas do amarelo que é o destaque na imensa empresa de Wallace (Leto) transparecem um lugar de criação, de vida, motivo pelo qual o personagem se compara a um Deus criador que concebe replicantes cobertos de “placenta amarela” e distinguem os conceitos de “anjos bons” e de “anjos ruins”, ou seja, referindo-se estes àqueles modelos antigos. Wallace é um personagem interessantíssimo pelo tamanho de sua megalomania em um mundo em que apesar de longe de ser religioso, emprega seus dogmas para a ciência da mesma forma que Mary Shelly desenvolveu sua obra Frankenstein. Joi (de Armas), por sua vez, faz uma referência a parceira em Ela (2013), se tornando uma mulher digital programada para satisfazer a necessidade de seu “dono”. Neste aspecto, é incrível o emprego eficaz de efeitos especiais para torná-la transparente como um holograma e uma pessoa tridimensional a depender da iluminação do lugar. Por fim, temos os intensos tons alaranjados e amarelos que representam um lugar árido, totalmente abandonado, funcionando literalmente como um refúgio para seu único habitante. Um refúgio, aliás, nostálgico e que contém os prazeres de um tempo antigo.

Denis Villeneuve, em suma, é um diretor que nunca deixa de nos surpreender ao nos trazer uma sequencia digna de ser chamada de “sequencia”. Os planos gerais contemplativos e a mise-en-scène cuidadosamente pensada nos trazem novamente aquele mundo triste, que mesmo sendo “sem vida”, ainda busca incessantemente por “vida”, inteligente ou natural. É um filme que nos faz refletir novamente sobre nossa condição humana e até que ponto nós chegamos para ter poder sobre seres “humanos mais do que humanos”.

Uma obra espetacular.  

Gabriella Tomasi